SUMÁRIO:
I. A fusão mantém na entidade dela resultante o financiamento pelo qual esta pagou juros, e teve como consequência patrimonial a junção, no mesmo balanço, dos activos que tal dívida financiava e continuou a financiar. Não já activos financeiros, mas a sua real tradução em activos e passivos de cariz operacional.
II. Os encargos financeiros contraídos para obter um financiamento aplicado na aquisição de participações sociais, mantêm-se dedutíveis, após a incorporação, por fusão, das sociedades cujas participações haviam sido adquiridas, na sociedade que contraiu o referido financiamento e continua a suportar os respectivos encargos financeiros.
DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)
I – RELATÓRIO
1. No dia 16 de Março de 2020, A..., S.A, NIPC..., com sede no ..., ..., ...-... ..., apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade dos actos tributários de liquidação adicional de IRC, identificado com n.º 2019..., de 23 de Outubro de 2019, de Demonstração de Liquidação de Juros, identificado com o n.º 2019..., de 23.10.2019, e de Demonstração de Acerto de Contas, identificada com o n.º 2019..., de 29 de Outubro de 2019.
2. Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, que os juros suportados pela Requerente relativos ao financiamento inicialmente contratado pela mesma junto da sua empresa mãe (com sede na Holanda), para a aquisição do capital do original grupo B..., preenchem os requisitos do artigo 23.º do CIRC, sendo por isso de qualificar como gasto fiscal.
3. No dia 17 de Março de 2020, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.
4. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
5. Em 6 de Julho de 2020, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.
6. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 5 de Agosto 2020.
7. No dia 20 de Outubro de 2020, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.
8. Ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º, e n.º 2 do art.º 29.º, ambos do RJAT, foi dispensada a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.
9. Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelas partes, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.
10. Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no art.º 21.º/1 do RJAT, com as prorrogações determinadas nos termos do n.º 2 do mesmo artigo.
11. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
O processo não enferma de nulidades.
Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.
Tudo visto, cumpre proferir:
II. DECISÃO
A. MATÉRIA DE FACTO
A.1. Factos dados como provados
1- A Requerente, exerce a título principal a actividade a que corresponde o Código da Atividade Económica (CAE) 22220 – “Fabricação de Embalagens de Plástico” e a nível secundário a actividade do CAE 38322 “Valorização de recursos não metálicos”, adoptando um período de tributação coincidente com o ano civil.
2- Em cumprimento das Ordem de Serviço n.ºs 012018..., 012018... e OI2018..., foi efectuada uma acção inspectiva externa de âmbito parcial (incidindo sobre o IRC), por referência aos exercícios de 2014, 2015 e 2016, com vista essencialmente à análise e controlo das operações financeiras intragrupo.
3- A Ordem de Serviço OI2018... que deu origem ao procedimento inspectivo em causa, derivou da troca espontânea de informações da Autoridade Fiscal Holandesa sobre decisões fiscais prévias transfronteiriças e/ou acordos prévios sobre preços de transferência, rececionada pela Direção de Serviços de Relações Internacionais (DSRI), onde é feita referência ao “(...) relacionamento entre a A... SA e a C... BV - entidades com sede respetivamente em Portugal e na Holanda que realizam transações com um tratamento preferencial ou que dá origem a rendimentos que beneficiam de um tratamento preferencial (...).”.
4- Em 18 de Outubro de 2018, no decurso do procedimento de inspecção, foi solicitado, às Autoridades Fiscais Holandesas, um pedido de cooperação no sentido da obtenção de esclarecimentos relativos à qualificação e tipo de tributação efetiva a que estão sujeitos na Holanda os montantes faturados à A... pela sociedade com sede na Holanda, a título de pagamento de juros relativos ao financiamento concedido pela “empresa mãe” D... BV que ascenderam aos montantes de €486.558,00, €771.685,00 e €221.724,00, respectivamente nos anos de 2014, 2015 e 2016.
5- Foi solicitada a clarificação dos seguintes pontos:
a. A qualificação dos rendimentos e a taxa de tributação efectiva dos valores transferidos para a empresa Holandesa D... BV;
b. Relação entre a D... BV e a C... BV;
c. Termos e condições da operação de financiamento da D... BV junto da instituição E... NV no montante de €12.500.000,00 nomeadamente montante dos juros registados como gastos na empresa por via desse empréstimo;
d. Extractos dos fluxos financeiros associados à sociedade F... UNIPESSOAL LDA / A... SA, contribuinte fiscal ... .
6- Na resposta a Autoridade Fiscal Holandesa facultou os elementos solicitados (extractos de fluxos financeiros associados às operações financeiras e outros documentos), respondendo às questões colocadas da seguinte forma:
a. Regra geral, todos os pagamentos efectuados à D... BV estão incluídos na base tributável holandesa da D... BV. Especificamente em relação às transferências para a D... BV relacionados com o empréstimo participativo do lucro, a posição é considerada isenta do imposto sobre o rendimento holandês por força da participation exemption, i. e. os juros não estão efectivamente sujeitos a impostos holandeses e uma possível desvalorização do montante do empréstimo não pode ser deduzido para fins de imposto sobre o rendimento holandês;
b. A D... BV é uma filial a 100% da C... BV, ambas as empresas são sociedades de responsabilidade limitada de acordo com a lei holandesa e sujeitas ao imposto sobre o rendimento holandês;
7- Dos anexos apensos à resposta resultava, ainda, que:
a. Para assegurar o empréstimo que em 16 de Julho de 2008 a D... BV concedeu à F... Lda, no montante de €12.500.000,00, a primeira teve de recorrer ao crédito junto do banco E... NV (entidade mutualista holandesa);
b. A taxa de juro praticada inicialmente (em 8 de Abril de 2008) neste empréstimo cifrou-se em 5,938500%;
c. Em 7 de Abril de 2008 a D... BV deu à E... NV ordem de transferência bancária dessa importância para numa instituição financeira em Portugal, numa conta bancária associada ao nome de “G...”;
d. O empréstimo concedido foi reembolsado no dia 31 de Março de 2016.
8- Os Serviços de Inspecção Tributária (SIT) na sequência do procedimento inspectivo supra referido concluíram pela desconsideração fiscal dos gastos financeiros registados na contabilidade relativos ao pagamento dos encargos associados à obtenção do supra referido financiamento junto da “empresa mãe”, D... BV, constituída ao abrigo do direito Holandês.
9- Do Relatório de Inspecção Tributária (RIT), consta, para além do mais, o seguinte:
“Em síntese:
Um grupo multinacional [A] –C... BV através da [B] –D... BV constitui em Portugal uma filial [C] – F...com a intenção de adquirir um grupo de sociedades [D] com sede em Portugal - Grupo B...- em que a sociedade com maior destaque é a sociedade H... LDA, contribuinte fiscal... .
Em Portugal a sociedade subsidiária [C] – F... UNIPESSOAL LDA, contribuinte fiscal ... obtém o financiamento (12.500.000,00 euros) junto da empresa “mãe” [B] –D... BV sediada na Holanda e detentora de 100 por cento do seu capital. Posteriormente a sociedade [C] adquire as empresas do Grupo B... e incorpora através de fusão as sociedades [D] passando ainda a utilizar a sua designação comercial (marca B...), a desenvolver a sua atividade empresarial (com os mesmos inputs, fatores de produção e bens fabricados) e a operar no mesmo mercado das empresas incorporadas.
No momento da sua aquisição, conforme informação da Autoridade da Concorrência, o Grupo B... era, de longe, líder no mercado nacional na atividade de produção e venda de produtos em Polipropileno Expandido (EPP), bem como na produção e venda de produtos em Poliestireno Expansível (EPS).
O Grupo I... estava representado pela D... BV (entidade que detém as subsidiárias do Grupo I... fora da Holanda), sendo esta detida pela C... BV que é uma entidade privada de direito Holandês, detida desde 2000 por fundos de investimento privados, dedicada à produção de EPP, EPS e outras espumas para usos técnicos em produtos industriais e sistemas de isolamento utilizados em edifícios.
A F... Unipessoal Lda (sociedade “veículo”) não dispunha de uma estrutura empresarial compatível com o exercício da atividade económica do seu objeto social, porquanto não tinha instalações industriais, não possuía equipamentos, não tinha pessoal ao serviço, nem licenças, patentes e outros bens ou serviços necessários para a fabricação de qualquer produto.
Destaca-se ainda que, segundo informação da Autoridade da Concorrência, a sociedade [C] adquirente não se encontrava presente no mercado nacional, nem realizou operações ativas ou passivas até à concretização do processo de fusão com as sociedades operacionais do Grupo B... [D].
”
10- Na sequência do procedimento de inspecção, foi emitida a liquidação adicional de IRC objecto da presente acção arbitral (imposto e juros), referente ao período de tributação de 2016, a qual foi originada pela correcção fiscal de €221.724,00 relativa à não dedução dos encargos financeiros suportados pela Requerente.
11- Em 13 de Dezembro de 2019, a Requerente procedeu ao pagamento voluntário do montante de imposto e juros, apurado.
12- A requerente “A..., S.A”, apresentava entre a data da sua constituição (13 de Março de 2008) e 05 de Dezembro de 2008, a designação de F..., Unipessoal, Lda e na base de dados da AT nunca constou com o exercício da actividade de sociedade gestora de participações sociais.
13- O seu capital social é integralmente detido pela sociedade de direito holandês D... BV, registada na câmara de comércio da Holanda sob o n.º ..., VAT n.º NL...B.01, que por sua vez é totalmente detida pela C... BV, igualmente uma sociedade de direito holandês.
14- A D... BV não desenvolve, nem desenvolveu, de forma directa qualquer tipo de actividade económica em Portugal, sendo uma empresa não residente sem estabelecimento estável em território nacional, sem registos para efeitos de imposto sobre o rendimento e despesa.
15- A constituição da Requerente teve por objetivo a aquisição do grupo B... composto pela sociedade H... Lda, NIF:... e por um conjunto de sociedades locais, pertencentes ao grupo, todas exercendo a mesma actividade.
16- De entre as sociedades adquiridas, foram objecto de fusão por incorporação na Requerente, as seguintes:
a. J..., S.A. (NIF:...);
b. H..., Lda. (NIF:...);
c. K..., Lda. (NIF:...);
d. L..., Lda. (NIF:...);
e. M..., Lda. (NIF:...);
f. N... Lda. (NIF:...).
17- Em 7 de Abril de 2008 foi celebrado um Contrato Promessa de Compra e Venda, no qual o Grupo I... obriga-se a adquirir as participações sociais representativas da totalidade do capital social das sociedades que constituem o Grupo B..., onde consta a alocação do valor global do negócio (€12.500.000,00) para a aquisição de cada uma das empresas do Grupo B..., nos seguintes termos:
18- Em 16 de Julho de 2008, foi celebrado um “Acordo de Financiamento” (“Facility Agreement”) no valor de €12.500.000,00, entre a D... BV (financiador) e a F... Unipessoal Lda (devedor), destinado a financiar a aquisição do grupo B... .
19- Este empréstimo, inicialmente com uma maturidade de 51 anos, foi reduzido para €10.500.000,00 em 2009 por conversão de €2.000.000,00 em prestações acessórias e manteve- se em vigor até Março de 2016.
20- Em execução do contrato de financiamento celebrado com a D... BV, a Requerente transferiu para aquela entidade nos anos de 2016, 2015 e 2014, respetivamente, os montantes de €221.724,00; €771.685,00 e €486.558,00 a título de pagamento de juros relativos ao financiamento concedido, os seguintes montantes:
21- As facturas emitidas pela D... BV, deram origem à contabilização na esfera da requerente de lançamentos a débito da conta 69116 (IC D...– Juros) e a crédito na conta 2211214052 (D... BV), tendo a Requerente considerado os referidos encargos financeiros suportados, como uma componente negativa na formação do lucro tributável, isto é, procedeu à sua dedução fiscal, nos seguintes termos:
22- Os SIT corrigiram aquele montante, não aceitando a respectiva dedutibilidade fiscal, nos termos do art.º 23.º, n.º 2, alínea c), do Código do IRC.
23- Em 1 de Abril de 2016, foi deliberado em Assembleia Geral da A... SA a conversão do valor remanescente em dívida do empréstimo de médio-longo prazo em prestações acessórias de capital.
24- Por escritura pública celebrada em 5 de Dezembro de 2008, foram realizadas as seguintes operações:
a. Operação de fusão, por transferência global do património da sociedade incorporada H... Lda e das sociedades incorporadas J... SA, K... Lda, L... Lda e M... Lda para a F... Unipessoal Lda na qualidade de sociedade incorporante;
b. Aumento de Capital Social da F... Unipessoal Lda, de €5.000 para €50.000,00 mediante novas entradas de dinheiro no montante de €45.000,00 por parte do sócio único D... BV; e;
c. Transformação de sociedade através da qual a F... Unipessoal Lda passa a ser uma sociedade anónima com a designação de A... SA, com o capital social de €50.000,00, representado por 10 mil acções, com o valor nominal de €5 cada, todas da titularidade da sociedade D... BV.
25- No dia 5 de Dezembro de 2008, depois de incorporar a sociedade H... Lda, a Requerente alterou a sua denominação social de F... Unipessoal, Lda para A..., S.A.
26- A N... Lda, sociedade localizada em Santo Tirso, foi incorporada na Requerente em 27 de Julho de 2012, através de uma operação de fusão por incorporação.
A.2. Factos dados como não provados
Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13 , o “relatório da inspecção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.
Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.
B. DO DIREITO
A situação em causa no presente processo é de relativamente simples configuração e poderá ser, sumariamente e nos seus traços essenciais, descrita da seguinte forma:
- Em 2008, a Requerente, contraiu um empréstimo junto da titular do seu capital social, que utilizou para a aquisição de um conjunto de sociedades em Portugal;
- No mesmo ano de 2008, a Requerente incorporou, por fusão, a maioria das sociedades adquiridas, tendo incorporado uma outra, da mesma forma em 2012;
- No âmbito de contrato de financiamento outorgado, a Requerente suportou gastos com financiamentos, que a AT não aceitou como dedutíveis, nos termos do art.º 23.º, n.º 2, alínea c), do Código do IRC.
A questão que se coloca é, igualmente, de simples configuração, e prende-se unicamente com aferir se, como sustenta a AT, os gastos correspondentes aos encargos com o financiamento suportados pela ora Requerente, no exercícios ora em causa, cumprem os requisitos do artigo 23.º, n.º 2, alínea c), do CIRC, relativos à sua indispensabilidade para realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, e, consequentemente, se podem ser deduzidos na determinação do lucro tributável daquela, nos respectivos exercícios.
É, no fundo, isto que se apresenta a este Tribunal arbitral para decidir.
Vejamos então.
*
O entendimento firmado pela doutrina e jurisprudência nacionais em matéria de indispensabilidade dos gastos, e respectivos traços essenciais, pode-se sintetizar da seguinte forma:
- o juízo sobre a indispensabilidade dos gastos suportados implica que seja verificado o seu contributo para a obtenção dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora;
- “A noção legal de indispensabilidade recorta-se, portanto, sobre uma perspectiva económico-empresarial, por preenchimento directo ou indirecto, da motivação última de contribuição para a obtenção do lucro” e “a dedutibilidade fiscal do custo depende, apenas, de uma relação causal e justificada com a actividade da empresa.” (Ac. STA, proferido a 30-11-2011, no processo n.º 0107/11 );
- “os custos (...) não podem deixar de respeitar, desde logo, à própria sociedade contribuinte. Ou seja, para que determinada verba seja considerada custo daquela é necessário que a actividade respectiva seja por ela própria desenvolvida, que não por outras sociedades.” (Ac. STA, proferido a 30-05-2012, no processo n.º 0171/11);
- “um conceito de indispensabilidade que, afastando-se definitivamente da ideia de causalidade entre os gastos e rendimentos, põe a tónica na relação dos gastos com a actividade prosseguida pelo sujeito passivo, ou seja, considerando que o referido conceito de indispensabilidade se verifica sempre que os gastos sejam incorridos no interesse da empresa, na prossecução das respectivas actividades.” (Ac. STA, proferido a 04-09-2013, no processo n.º 0164/12);
- o conceito de indispensabilidade é de preenchimento casuístico, e o nexo de causalidade económica não pode estar desligado da factualidade do caso concreto;
- “a A. Fiscal não pode avaliar a indispensabilidade dos custos à luz de critérios incidentes sobre a oportunidade e mérito da despesa. Um custo é indispensável quando se relacione com a actividade da empresa, sendo que os custos estranhos à actividade da empresa serão apenas aqueles em que não seja possível descortinar qualquer nexo causal com os proveitos ou ganhos (ou com o rendimento, na expressão actual do código - cfr.artº.23, nº.1, do C.I.R.C.), explicado em termos de normalidade, necessidade, congruência e racionalidade económica.” (Ac. TCA-Sul, proferido a 16-10-2014, processo n.º 06754/13);
- “A indispensabilidade do custo há-de resultar simplesmente da sua ligação à actividade empresarial. Se o custo não é estranho à actividade da empresa, isto é, se se relaciona com a actividade normal da empresa (independentemente de ser maior ou menor o grau de intensidade ou proximidade), e se se aceita a sua existência (não se está perante um custo aparente ou simulado), o custo é indispensável.” (Ac. TCA-Norte, proferido a 20-11-2011, processo n.º 01747/06.3BEVIS);
- “da noção legal de custo fornecida pelo art. 23° do CIRC não resulta que a AT possa pôr em causa o princípio da liberdade da gestão, sindicando a bondade e oportunidade das decisões económicas da gestão da empresa e considerando que apenas podem ser assumidos fiscalmente aqueles de que decorram, directamente, proveitos para a empresa ou que se revelem convenientes para a empresa. A indispensabilidade a que se refere o art. 23° do CIRC como condição para que um custo seja dedutível não se refere à necessidade (a despesa como uma condição sine qua non dos proveitos), nem sequer à conveniência (a despesa como conveniente para a organização empresarial), sob pena de intolerável intromissão da AT na autonomia e na liberdade de gestão do contribuinte, mas exige, tão-só, uma relação de causalidade económica, no sentido de que basta que o custo seja realizado no interesse da empresa, em ordem, directa ou indirectamente, à obtenção de lucros.
A noção legal de indispensabilidade recorta-se, portanto, sobre uma perspectiva económico-empresarial, por preenchimento directo ou indirecto, da motivação última de contribuição para a obtenção do lucro. Os custos indispensáveis equivalem aos gastos contraídos no interesse da empresa ou, por outras palavras, em todos os actos abstractamente subsumíveis num perfil lucrativo. Este desiderato aproxima, de forma propositada, as categorias económicas e fiscais, através de uma interpretação primordialmente lógica e económica da causalidade legal. O gasto imprescindível equivale a todo o custo realizado em ordem à obtenção de ingressos e que represente um decaimento económico para a empresa. Em regra, portanto, a dedutibilidade fiscal do custo depende, apenas, de uma relação causal e justificada com a actividade da empresa. E fora do conceito de indispensabilidade ficarão apenas os actos desconformes com o escopo social, aqueles que não se inserem no interesse da sociedade, sobretudo porque não visam o lucro.” (Ac. STA, proferido a 30-11-2011, processo n.º 0107/11);
- “A regra é que as despesas correctamente contabilizadas sejam custos fiscais; o critério da indispensabilidade foi criado pelo legislador, não para permitir à Administração intrometer-se na gestão da empresa, ditando como deve ela aplicar os seus meios, mas para impedir a consideração fiscal de gastos que, ainda que contabilizados como custos, não se inscrevem no âmbito da actividade da empresa, foram incorridos não para a sua prossecução mas para outros interesses alheios. Em rigor, não se trata de verdadeiros custos da empresa, mas de gastos que, tendo em vista o seu objecto, foram abusivamente contabilizadas como tal. Sem que a Administração possa avaliar a indispensabilidade dos custos à luz de critérios incidentes sobre a sua oportunidade e mérito.
O conceito de indispensabilidade não só não pode fazer-se equivaler a um juízo estrito de imperiosa necessidade, como já se disse, como também não pode assentar num juízo sobre a conveniência da despesa, feito, necessariamente, a posteriori. Por exemplo, os gastos feitos com uma campanha publicitária que se revelou infrutífera não podem, só em função desse resultado, afirmar-se dispensáveis.
O juízo sobre a oportunidade e conveniência dos gastos é exclusivo do empresário. Se ele decide fazer despesas tendo em vista prosseguir o objecto da empresa mas é mal sucedido e essas despesas se revelam, por último, improfícuas, não deixam de ser custos fiscais. Mas todo o gasto que contabilize como custo e se mostre estranho ao fim da empresa não é custo fiscal, porque não indispensável.
Entendemos (...) que, sob pena de violação do princípio da capacidade contributiva, a Administração só pode excluir gastos não directamente afastados pela lei debaixo de uma forte motivação que convença de que eles foram incorridos para além do objectivo social, ou seja, na prossecução de outro interesse que não o empresarial, ou, ao menos, com nítido excesso, desviante, face às necessidades e capacidades objectivas da empresa.” (Ac. STA, proferido a 29-03-2006, processo n.º 01236/05);
Sendo, deste modo, consensuais os critérios de decisão, resta, unicamente, a operação de aplicação de tais critérios ao caso concreto.
*
Em causa, como se anotou já, está a aplicação da al. c) do n.º 2 do art.º 23.º do CIRC aplicável, na parte que se reporta a “juros de capitais alheios aplicados na exploração”.
Relativamente a esta matéria, cumpre notar, antes de mais, que a norma se refere à aplicação de “capitais alheios”, remunerados pelos juros.
Ora, e desde logo, os capitais alheios obtidos pela Requerente, a título de financiamentos, foram integralmente aplicados (exaurindo-se) aquando da aquisição das participações sociais das sociedades posteriormente incorporadas.
Ou seja, no caso é essa a realidade: os montantes obtidos através financiamento (os “capitais alheios”, na terminologia da al. c) do n.º 2 do artigo 23.º do CIRC aplicável), não perduraram, sequer até um momento pós-fusão, mas, aquando daquela, estavam já integralmente aplicados.
Daqui resulta, então, que não houve qualquer alteração na aplicação daqueles, sendo certo que a própria AT, em momento algum, questionou que, no momento que os “capitais alheios” foram aplicados, o foram no interesse empresarial da Requerente.
Não obstará à conclusão formulada – julga-se, a constatação de que as obrigações pecuniárias de pagamento de juros pelo capital mutuado perduram no momento pós fusão, o que é uma evidência, estando em questão, justamente, da sua dedutibilidade. Com efeito, a aplicação a que se refere a al. c) do n.º 1 do artigo 23.º do CIRC, reporta-se aos “capitais alheios”, e não a quaisquer obrigações.
Poderá, então, ser questionado se o produto mediato dos gastos (as participações das sociedades subsequentemente incorporadas) foi “desviado”.
Este parece ser o entendimento da Requerida, ao afirmar que “Se é clara e inequívoca a conexão económica existente entre o empréstimo (e os correspondentes encargos) e as partes sociais cuja aquisição se destinou a financiar já o mesmo tipo de ligação nunca existia com os activos e passivos das sociedades adquiridas que só pelo acto de fusão foram transmitidos para a Requerente.” (art.º 66.º da Resposta).
Não obstante, não lhe poderá ser reconhecida razão.
Com efeito, e como se escreveu no Ac. do STA de 13-04-2005, proferido no processo 01265/04:
“A fusão por incorporação, ainda que implique que só sobreviva, com personalidade jurídica própria, a sociedade na qual as demais se incorporam, não tem como consequência, no campo das realidades económicas e empresariais, o desaparecimento das empresas fundidas. Alguma doutrina comercialista – vd. PINTO FURTADO, PINTO COELHO e PUPO CORREIA nos lugares citados na sentença recorrida – aponta que a sociedade fundida, perdendo a sua personalidade jurídica, todavia persiste, modificada, formando um todo com outras, em condições diversas das que ocorriam antes da fusão. Mas não deixa de continuar a existir a mesma realidade económica, um mesmo conjunto (agora integrado noutro mais alargado) de meios afectos a uma actividade produtiva, que os sócios, aliás, quiseram potenciar com a fusão.
Ou seja, com a fusão por incorporação ocorre uma transformação da sociedade, mas não uma extinção, não decorrendo da integração o seu desaparecimento, mas a sua alteração, ainda que implique a perda de personalidade jurídica."
Também no Ac. do TCA-Sul de 17-04-2012, proferido no processo 04172/10, se escreveu que “a fusão de sociedades é o acto pelo qual duas ou mais sociedades reúnem as suas forças económicas para formarem, com os sócios de todas elas, uma só personalidade colectiva, um novo sujeito económico e jurídico.
Daí que se possa afirmar, como parece tê-lo feito a A., que a fusão é, regra geral, e a situação em análise não constitui excepção, recomendada por interesses comuns às sociedades nela intervenientes, e não apenas a uma delas.”
E mais adiante: “É certo que se poderia argumentar que a sociedade fundida, perdendo a sua personalidade jurídica, todavia persiste, modificada, formando um todo com outras, em condições diversas das que ocorriam antes da fusão; todavia, também o certo é que não deixa de continuar a existir a mesma realidade económica, um mesmo conjunto (agora integrado noutro mais alargado) de meios afectos a uma actividade produtiva, que os sócios, aliás, quiseram potenciar com a fusão.
Numa outra formulação, põe afirmar-se que com a fusão por incorporação ocorre uma transformação da sociedade, mas não uma extinção, não decorrendo da integração o seu desaparecimento, mas a sua alteração, ainda que implique a perda de personalidade jurídica.”.
Compreendido isto, será compreensível então, a afirmação de que os gastos com juros em questão, correspondem a capitais alheios que foram aplicados na exploração da entidade que os suporta.
Citando a jurisprudência que antecede, continua “a existir a mesma realidade económica”, o “mesmo conjunto (agora integrado noutro mais alargado) de meios afectos a uma actividade produtiva”, em cuja exploração foram aplicados os capitais alheios cujos gastos em juros vêm a sua dedutibilidade questionada, uma vez que não decorreu da integração o seu desaparecimento, mas a sua alteração, ainda que com a perda de personalidade jurídica.
Assim, à luz desta compreensão dos efeitos da fusão por incorporação, não se poderá concluir de outra forma que não pelo preenchimento dos pressupostos da al. c) do n.º 2 do art.º 23.º do CIRC aplicável.
No mesmo sentido se havia concluído já no processo arbitral 42/2015-T , que analisou questão análoga à que ora se coloca, explicando-se que “a fusão mantém na Requerente o financiamento pelo qual esta pagou juros, e teve como consequência patrimonial a junção, no mesmo balanço, dos ativos que tal dívida financiava e continuou a financiar. Não já ativos financeiros, mas a sua real tradução em ativos e passivos de cariz operacional”.
Não se considera, por fim, que assuma relevância a circunstância de, no momento em que são suportados os juros (no caso, o exercício de 2014), os activos nos quais foram aplicados os capitais alheios (participações sociais), a que se reportam aqueles, não integrarem já a esfera jurídica da sociedade resultante da fusão.
Efectivamente, aplicados os capitais alheios na exploração (situação diferente do “desvio” de parte dos capitais para aplicações estranhas ao interesse empresarial, que, não se verifica nos autos), concorda-se que seria, ainda assim, possível recusar a dedutibilidade fiscal dos correspondentes encargos financeiros, demonstrando-se que o produto daquela aplicação – no caso, as participações sociais e já não os capitais alheios - teriam sido desviados para finalidades extra-empresariais.
O que vem de se afirmar será de fácil compreensão com recurso ao exemplo de uma sociedade que, com recurso a capitais alheios adquira uma viatura, a qual afecta, desde logo, à exploração no âmbito da respectiva actividade, mas que, a partir de dado momento, passa a permitir a utilização da mesma exclusivamente no interesse de terceiros (v.g.: sócios; outras empresas).
Nesta situação, julga-se, a presunção de indispensabilidade dos encargos financeiros suportados com a aquisição da viatura, decorrente da aplicação dos capitais alheios na exploração da sociedade em causa, ver-se-á afastada , pelo que a dedutibilidade daqueles encargos deverá ser recusada. Não é, contudo, uma vez mais, essa a situação dos autos.
Antes, o que acontece na situação que nos ocupa, como se viu já, é que, por via da operação de fusão realizada, houve um desaparecimento do objecto da aplicação dos capitais alheios as participações sociais, tendo sido substituídos por um outro tipo de activos – os activos operacionais das sociedades incorporadas.
Retomando o exemplo da viatura, a situação será a mesma que ocorreria no caso de, por via de uma decisão empresarial, antes de terminar o período de pagamento dos encargos financeiros relacionados com a sua aquisição, a mesma fosse trocada por outro tipo de activo (p. ex.: uma máquina industrial utilizada na actividade económica do sujeito passivo).
Ainda assim, não se tem dúvidas, aqueles encargos manter-se-iam dedutíveis, não obstante o desaparecimento da esfera jurídica do contribuinte – por via de uma decisão empresarial – do objecto em que os capitais alheios que remuneram foram aplicados. Tal só não aconteceria, na sequência do que vem de se dizer, se se demonstrasse que a decisão que deu causa ao desaparecimento de tal objecto foi motivada por interesses alheios à empresa ou, então, que foi abusiva. O que não é o que está em causa no presente processo.
Do mesmo modo, dúvidas não se têm, no caso, que os encargos financeiros contraídos para obter um financiamento aplicado na aquisição de participações sociais, se mantêm dedutíveis, após a incorporação, por fusão, das sociedades cujas participações haviam sido adquiridas.
Pelo exposto, enferma a liquidação objecto da presente acção arbitral de erro nos seus pressupostos de facto e de direito, devendo, consequentemente, ser anulada, e procedendo assim, na íntegra, o pedido arbitral.
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Quanto ao pedido acessório de reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios formulado pela Requerente, o n.º 1 do artigo 43.º da LGT estabelece que são devidos juros indemnizatórios quando se determine, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
No caso, os erros que afectam a liquidação são imputáveis à Autoridade Tributária e Aduaneira, que praticou os actos de liquidação ilegais por sua iniciativa.
Tem, pois, direito a ser reembolsada a Requerente da quantia que pagou indevidamente (nos termos do disposto nos artigos 100.º da LGT e n.º 1 do artigo 24.º do RJAT) e, ainda, a ser indemnizada pelo pagamento indevido através do pagamento de juros indemnizatórios, pela Requerida, desde a data do pagamento da quantia indevidamente liquidada, até reembolso, à taxa legal supletiva, nos termos dos n.ºs 1 e 4 do artigo 43.º e n.º 10 do artigo 35.º da LGT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.
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C. DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar integralmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:
a) Anular os actos de liquidação adicional de IRC, identificado com n.º 2019..., de 23 de Outubro de 2019, de Demonstração de Liquidação de Juros, identificado com o n.º 2019..., de 23 de Outubro de 2019, e de Demonstração de Acerto de Contas, identificada com o n.º 2019..., de 29 de Outubro de 2019;
b) Condenar a AT na restituição do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos acima indicados;
c) Condenar a Requerida nas custas do processo, no montante abaixo fixado.
D. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em €60.667,30, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
E. Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €2.448,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi totalmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa, 06 de Outubro de 2021
O Árbitro Presidente
(José Pedro Carvalho)
O Árbitro Vogal
(Hélder Faustino)
O Árbitro Vogal
(Mariana Vargas)