Sumário:
As sociedades de capital de risco não se caracterizam como instituições financeiras para efeito da incidência de imposto do selo nos termos das verbas 17.3 e 17,3.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo.
DECISÃO ARBITRAL
Acordam em tribunal arbitral
I – Relatório
1. A..., SOCIEDADE DE CAPITAL DE RISCO, S.A. pessoa coletiva n.º..., com sede na ..., ..., ..., ...-..., em Lisboa, e os fundos de capital de risco B..., C... contribuinte n.º..., D..., FUNDO DE CAPITAL DE RISCO, contribuinte n.º..., e E..., contribuinte n.º..., todos representados pela A..., vêm requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade das autoliquidações de imposto do selo sobre as comissões de gestão cobradas a fundos de capital de risco entre agosto de 2018 e agosto de 2020 e da liquidação de juros compensatórios quanto a uma das liquidações, e, bem assim, do despacho de indeferimento da reclamação graciosa contra elas deduzido, requerendo ainda o reembolso do imposto indevidamente pago acrescido de juros indemnizatórios.
Fundamenta o pedido nos seguintes termos.
A A... e é uma sociedade de capital de risco (SCR) constituída ao abrigo do Regime Jurídico do Capital de Risco, Empreendedorismo Social e Investimento Especializado consagrado na Lei n.º 18/2015, de 4 de março.
No âmbito da sua atividade, gere diversos fundos, entre os quais os Fundos de Capital de Risco acima identificados e, em concreto, gere e representa os Fundos de Capital de Risco em todos os aspetos da sua atividade económica e jurídica, nos termos previstos no artigo 17.º , n.º 4, do referido regime jurídico.
Em contrapartida pela gestão e representação jurídica dos Fundos de Capital de Risco, a Requerente cobra uma comissão de gestão, sobre a qual sempre liquidou imposto do selo à taxa de 4% prevista na verba 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS).
Assim, entre agosto de 2018 e agosto de 2020, a A... autoliquidou e entregou ao Estado imposto do selo sobre as comissões de gestão no valor global de € 249.950,70.
Todavia, os Requerentes entendem que as autoliquidações referidas são ilegais e devem ser anuladas uma vez que as comissões de gestão cobradas pela A... aos Fundos de Capital de Risco não estão sujeitas a imposto do selo, porque não se verificam, quanto a elas, os elementos objetivo e subjetivo da incidência previstos na mencionada verba 17.3.4 da TGIS.
Nesse sentido, os Requerentes apresentaram uma reclamação graciosa contra os atos de autoliquidação, que veio a ser indeferida por despacho do Chefe de Divisão de Justiça Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes, com base no entendimento de que a gestão jurídica e económica dos fundos é uma atividade financeira e a A... deve ser qualificada como uma instituição financeira, pelo que se encontram verificados os elementos de que depende a incidência de imposto.
No entanto, os Requerentes continuam a considerar que as comissões de gestão cobradas pela A... aos Fundos de Capital de Risco não estão sujeitas a imposto do selo, quer porque não se trata de serviços financeiros, quer porque as sociedades de capital de risco não são instituições de crédito, sociedades financeiras nem instituições financeiras.
As comissões de gestão que a A... cobra aos Fundos de Capital de Risco não são devidas pela prestação de qualquer tipo de serviços financeiros, mas pela gestão e representação desses Fundos em todos os aspetos da sua atividade económica e jurídica, pelo que se trata de uma atividade de gestão de um património autónomo, que em nada difere da gestão de outros patrimónios autónomos como as heranças, pessoas coletivas ou sociedades.
Por outro lado, o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF) elenca as entidades que se enquadram na categoria de instituições de crédito e sociedades financeiras, como, por exemplo, os bancos, as instituições de crédito hipotecário, as sociedades de investimento, as sociedades de locação financeira, e previa na alínea h) do n.º 1 do artigo 6.º, na sua versão originária, que as sociedades de capital de risco eram qualificadas como sociedades financeiras.
Sucede que essa disposição foi revogada pelo Decreto-Lei n.º 319/2002, de 28 de dezembro, tendo as sociedades de capital de risco perdido a qualificação de sociedades financeiras e, consequentemente, a de instituições financeiras.
Acresce que as sociedades de capital de risco não podem ser qualificadas como outras instituições financeiras por efeito do disposto no artigo 30.º, n.º 1, alínea f), do Código dos Valores Mobiliários (CVM), porquanto o enquadramento das SCR naquele preceito legal apenas releva para efeitos de qualificação destas entidades como investidores qualificados (e não como instituições financeiras).
Em conclusão, as comissões de gestão em causa não preenchem, nem o elemento objetivo, nem o elemento subjetivo da incidência do imposto do selo a que se refere a verba 17.3.4 da TGIS, razão pela qual as autoliquidações contestadas são ilegais e devem ser anuladas.
A Autoridade Tributária, na sua resposta, sustenta que o imposto do selo, nos termos do artigo 1.º do Código do Imposto do Selo (CIS), incide sobre todos os atos, contratos, documentos, títulos, papéis e outros factos ou situações jurídicas previstos na TGIS, incluindo as transmissões gratuitas de bens” (n.º 1), com exclusão das operações sujeitas a imposto sobre o valor acrescentado e dele não isentas” (n.º 2).
As operações de “administração ou gestão de fundos de investimento” estão isentas de IVA, conforme prevê a alínea g) do n.º 27 do artigo 9.º do Código do IVA, pelo que, tendo em consideração a sua natureza de prestação de serviços que gozam de isenção de IVA encontram-se sujeitas a imposto do selo por ser este um imposto de carácter residual.
Por sua vez, a verba 17.3 da TGIS tributa as “operações realizadas por ou com intermediação de instituições de crédito, sociedades financeiras ou outras entidades a elas legalmente equiparadas e quaisquer outras instituições financeiras” e “outras comissões e contraprestações por serviços financeiros”.
E o que se constata é que as comissões cobradas pelas entidades gestoras de fundos, a título de contraprestação pela administração e gestão dos fundos, se encontram sujeitas a imposto do selo na medida em que se trata de comissões cobradas por instituições financeiras a título de contraprestação por serviços financeiros prestados.
Com efeito, as sociedades de capital de risco são consideradas como instituições financeiras, como se extrai da alínea l) do nº 1, do artigo 6º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), numa interpretação conjugada com outros dispositivos legais aplicáveis.
Esse artigo 6.º considera como sociedades financeiras “outras empresas que, correspondendo à definição de sociedade financeira, sejam como tal qualificadas pela lei”, e, por outro lado, o Código dos Valores Mobiliários (CVM) qualifica, na alínea f) do nº 1 do artigo 30º, como “outras instituições financeiras autorizadas ou reguladas, designadamente sociedades de capital de risco, fundos de capital de risco e respetivas sociedades gestoras”.
E ainda a Lei n.º 25/2008, de 5 de junho, no seu artigo 3.º, n.º 1, alínea h), define como entidades financeiras as “sociedades e investidores de capital de risco”.
E sendo assim, a Requerente preenche os elementos subjetivo e objetivo de incidência do imposto.
Conclui no sentido da improcedência do pedido arbitral.
2. No seguimento do processo, por despacho de 2 de Julho de 2021, o tribunal dispensou a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e determinou o prosseguimento do processo para a apresentação de alegações escritas, pelo prazo sucessivo de dez dias.
Em alegações, a Requerente procurou fixar os factos que se devem considerar assentes e, no mais, manteve a sua anterior posição. A Autoridade Tributária não contra-alegou.
3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 21 de Maio de 2021.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.
Cabe apreciar e decidir.
II - Fundamentação
Matéria de facto
4. Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes.
A) A A... é uma sociedade de capital de risco constituída ao abrigo do Regime Jurídico do Capital de Risco, Empreendedorismo Social e Investimento Especializado consagrado na Lei n.º 18/2015, de 4 de março;
B) No âmbito da sua atividade, a A... gere diversos fundos, entre os quais os Fundos de Capital de Risco B..., C..., D..., FUNDO DE CAPITAL DE RISCO e E...- FCR;
C) Em concreto, a A... gere e representa os Fundos de capital de risco em aspetos da sua atividade económica e jurídica, nos termos previstos no artigo 17.º, n.º 4, do Regime Jurídico do Capital de Risco, Empreendedorismo Social e Investimento Especializado consagrado na Lei n.º 18/2015;
D) Em contrapartida pela gestão e representação jurídica dos Fundos de capital de risco, a A... cobra uma comissão de gestão, sobre a qual liquidou imposto do selo à taxa de 4% prevista na verba 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo;
E) Entre agosto de 2018 e agosto de 2020, a A... autoliquidou e entregou ao Estado imposto do selo sobre as comissões de gestão no valor global de € 249.950,70, como consta da seguinte tabela:
Guia Faturas Entrega do Imposto Valor Imposto de Selo Docs.
... FA2018_2/3/6/7 agosto/18 4 270,00 € 2 e 13
... FA2018_8 setembro/18 180,00 € 3 e 14
... FA2018_13 novembro/18 2 951,13 € 4 e 15
... FA2018_14/16 dezembro/18 4 031,46 € 5 e 16
... FA2018_18/19/20/21 janeiro/19 38 507,87 € 6 e 17
... FT2019_1 fevereiro/19 15 928,80 € 7 e 18
... FT2019_3 julho/19 15 928,80 € 8 e 19
... FT2019_7/12/13/14/15/16/17/18/19 fevereiro/20 79 180,28 € 9 e 20
... FT2020_1/2/3 abril/20 42 042,69 € 10 e 21
... FT2020_9/10/11 junho/20 42 142,54 € 11 e 22
... FT2020_12/13/14/15/16 agosto/20 4 787,13 € 12 e 23
249 950,70 €
F) Em março de 2020, a A... foi notificada da liquidação de juros compensatórios n.º 2020... no valor de € 216,93, referente ao atraso na entrega do imposto a que se refere a guia...;
G) A A... procedeu ao pagamento dos juros compensatórios;
H) Em 1 de julho de 2020, os Requerentes apresentaram à Administração Tributária uma reclamação graciosa contra os atos de autoliquidação de imposto do selo;
I) A reclamação graciosa foi indeferida por despacho do Chefe de Divisão de Justiça Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes, de 9 de setembro de 2020, praticado com subdelegação de competências;
J) O despacho de indeferimento manifestou concordância com a informação dos serviços n.º 236-APT/2020, que integra o documento n.º 1 junto ao pedido, que aqui se dá como reproduzido;
K) A informação dos serviços remete para o projeto de decisão de indeferimento que consta da informação n.º 203-A/T/2020, que integra o processo administrativo (fls. 102-118) e que aqui se dá como reproduzido;
L) O projeto de decisão considera que a gestão jurídica e económica dos fundos é uma atividade financeira e a A... deve ser qualificada como uma instituição financeira, que realiza serviços financeiros, pelo que se encontram verificados os elementos objetivo e subjetivo da liquidação de imposto do selo;
T) O pedido arbitral deu entrada em 11 de dezembro de 2020.
Factos não provados
Não existem quaisquer factos não provados relevantes para a decisão da causa.
O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária com a resposta, e em factos não questionados pelas partes.
Matéria de direito
5. A única questão em debate consiste em saber se as comissões cobradas por sociedades de capital de risco por atividades de gestão e representação jurídica de fundos de capital de risco se encontra sujeita a imposto do selo nos termos da verba 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS).
Tendo autoliquidado o imposto de selo relativamente a essas comissões no período de agosto de 2018 a agosto de 2020, a Requerente veio deduzir reclamação graciosa em vista à anulação dos atos tributários, por considerar que o imposto não era devido por se não verificarem os requisitos objetivo e subjetivo de incidência.
A decisão de indeferimento do procedimento, por remissão para a informação dos serviços, assenta essencialmente em três ordens de considerações: (a) a atividade de gestão dos fundos de capital de risco comporta, no essencial, a prática de atos e operações semelhantes aos realizados por outros fundos de investimento, e encontra-se coberta pela isenção de IVA prevista na alínea g) do n.º 27 do artigo 9.º do Código do IVA; (b) a atividade de administração e gestão de fundos, embora não seja considerada uma atividade de intermediação financeira, constitui uma atividade auxiliar de serviços financeiros e de seguros e, como tal, enquadra-se no âmbito das operações financeiras a que se refere a verba 17.3 da TGIS; (c) na ausência de especificação do que se entende por “outras instituições financeiras”, a que igualmente alude a verba 17.3 da TGIS, haverá de recorrer-se a outros elementos interpretativos, e, especificamente, à norma da alínea f) do n.º 1 do artigo 30.º do Código dos Valores Mobiliários, que integra na enumeração exemplificativa dos “investidores profissionais” outras instituições financeiras autorizadas ou reguladas, designadamente as sociedades de capital de risco, os fundos de capital de risco e as respetivas sociedades gestoras.
Importa começar por dizer, como se assinalou no acórdão proferido no Processo n.º 226/2018-T, que a isenção de IVA relativamente às operações desenvolvidas pelas sociedades de capital de risco, no pressuposto de que a sua atividade é equiparada à administração ou gestão de fundos de investimento, não implica a necessária sujeição dessa atividade a imposto do selo.
Segundo o n.º 2 do artigo 1.º do Código do Imposto do Selo (CIS), “não são sujeitas a imposto as operações sujeitas a imposto sobre o valor acrescentado e dele não isentas”. Mas essa é uma mera norma de incidência negativa da qual não pode resultar, por argumento a contrario, que todas as operações não sujeitas ou cobertas pela isenção de IVA passem a ser abrangidas pelo imposto do selo.
A norma que delimita pela positiva a incidência objetiva do imposto é a do n.º 1 do artigo 1.º do CIS, pelo que a sujeição ao imposto por parte de sociedades de capital de risco depende de a sua atividade se encontrar enquadrada em qualquer dos factos ou situações jurídicas previstas na Tabela Geral do Imposto do Selo.
No caso, estão em causa as verbas 17.3 e 17.3.4 da TGIS, que são do seguinte teor:
17.3 - Operações realizadas por ou com intermediação de instituições de crédito, sociedades financeiras ou outras entidades a elas legalmente equiparadas e quaisquer outras instituições financeiras - sobre o valor cobrado:
17.3.4 – Outras comissões e contraprestações por serviços financeiros, incluindo as taxas relativas a operações de pagamento baseadas em cartões …… 4%
Daí decorre que o imposto é devido por comissões e contraprestações cobradas por serviços financeiros e desde que se trate de operações realizadas por ou com intermediação de instituições de crédito, sociedades financeiras ou equiparadas e outras instituições financeiras, pelo que se torna sempre necessário demonstrar, nas circunstâncias do caso, se as comissões cobradas respeitam à prestação de serviços financeiros (elemento objetivo) e se a Requerente, na qualidade de sociedade de capital de risco, é suscetível de ser qualificada em qualquer das categorias que são elencadas na verba 17.3 (elemento subjetivo).
Começando pela análise deste último requisito, deve fazer-se notar que as sociedades de capital de risco, que constituíam uma das espécies de sociedades financeiras segundo o disposto no artigo 6.º, n.º 1, alínea h), do Regime Jurídico das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RJICSF), na sua redação originária, perdeu esse qualificativo por efeito da revogação dessa disposição, operada pelo Decreto-Lei n.º 319/2002, de 28 de Dezembro, que alterou o regime jurídico das sociedades de capitais de risco, que então constava do Decreto-Lei n.º 433/91, de 7 de Novembro.
No preâmbulo do Decreto-Lei n.º 319/2002, a descaraterização das sociedades de capitais de risco como sociedades financeiras é assinalada como um dos “traços mais salientes do novo regime” e encontra-se justificada nos seguintes termos:
As sociedades de capital de risco deixam de ser qualificadas como sociedades financeiras. Tal alteração é agora viabilizada pelo facto de as sociedades de capital de risco deixarem de estar autorizadas a praticar atividades exclusivas de instituições de crédito e sociedades financeiras, como seja a participação na colocação de valores mobiliários. Em consequência, e à semelhança do que já acontece em outros países europeus, as sociedades de capital de risco passam a estar unicamente sujeitas a registo junto da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários CMVM;
A modificação do estatuto das sociedades de capital de risco relaciona-se com a proibição, estabelecida no artigo 10.º, n.º 1, alínea d), daquele diploma legal, de “concessão de crédito ou prestação de garantias, sob qualquer forma ou modalidade, exceto em benefício de sociedades em que participem”, proibição que se manteve nos diplomas que sucessivamente vieram regular o regime jurídico do capital de risco, como consta do artigo 7.º, n.º 3, alínea d), do Decreto-Lei n.º 375/2007, de 8 de Novembro, e do artigo 10.º, n.º 2, alínea d), da Lei n.º 18/2015, de 4 de Março. E é igualmente consentânea com o objeto social das sociedades de capital de risco, que se encontra circunscrito à realização de investimento em capital de risco e à gestão de fundos de capital de risco, e a que se encontra vedado a realização de operações não relacionadas com a prossecução do seu objeto social e a respetiva política de investimentos (artigos 9.º, n.ºs 1 e 2, e 10.º, n.º 1, da Lei n.º 18/2015, disposições que têm correspondência no regime jurídico anteriormente definido nos Decretos-Lei n.º 319/2002 e n.º 375/2007).
Resta acrescentar que a norma do artigo 6.º, n.º 1, alínea h), do RJICSF não foi repristinada, mantendo-se a sua revogação, quer na atual redação do RJICSF, quer na redação vigente à data em que ocorreram os atos tributários de autoliquidação de imposto do selo, revogação que, entretanto, se estendeu às sociedades gestoras de fundos de investimentos e às sociedades gestoras de fundos de titularização de créditos (cfr., RJICSF na versão da Lei n.º 54/2021, de 13 de Agosto).
Tendo havido um claro propósito legislativo de excluir as sociedades de capital de risco do conceito de sociedades financeiras - o que se encontra explicado pelo seu próprio objeto social e a proibição da prática de atividades exclusivas das instituições de crédito -, não faz qualquer sentido, no plano da hermenêutica jurídica, que se pretenda qualificar essas mesmas entidades como sociedades financeiras com base numa interpretação analógica a partir de elementos interpretativos que provêm de outros lugares do sistema.
A Requerida alega, referindo-se ao regime jurídico do capital de risco aprovado pelo Decreto-Lei n.º 375/2007, entretanto revogado, que, nos termos do seu artigo 12.º, n.º 2, a "a gestão de Fundos de Capital de Risco pode ser exercida por sociedades de capital de risco, por sociedades de desenvolvimento regional e por entidades legalmente habilitadas a gerir fundos de investimento mobiliário fechados", e essas entidades são "sociedades financeiras", nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 6.º do RGICSF, pelo que não existe razão válida para sujeitar ao imposto de selo as comissões de gestão cobradas pelas sociedades de desenvolvimento regional e as sociedades gestoras de fundos de investimento e não as comissões de gestão cobradas pelas sociedades de capital de risco.
Importa notar, em primeiro lugar, que não estamos a discutir, no presente processo, a sujeição a imposto do selo de comissões eventualmente cobradas pelas sociedades de desenvolvimento regional ou sociedades gestoras de fundos imobiliários, mas antes a qualificação das sociedades de capital de risco como instituição financeira, e, mais especificamente, como sociedade financeira. E o que se constata é que as sociedades de desenvolvimento regional continuam a ser tidas como sociedades financeiras (artigo 1.º. n.º 1, alínea b), subalínea vii), do RJICSF), enquanto que as sociedades de capital de risco deixaram de ter esse qualificativo por efeito da revogação da alínea h) do n.º 1 do artigo 6.º do RJICSF operada pelo Decreto-Lei n.º 319/2002 (o que é igualmente aplicável às sociedades gestoras de fundos de investimento, a que se referia a subalínea vi) do n.º 1 do artigo 1.º RJICSF, que foi também revogada).
Estando em causa a incidência subjetiva do imposto do selo em função da qualificação do sujeito passivo como sociedade financeira, é patente que não é possível caracterizar como sociedade financeira uma instituição que deixou de ser considerada como tal pelo RJICSF, com base num mero argumento de analogia com uma outra entidade que continua a ser tida pelo RJICSF como uma sociedade financeira.
Como se sabe, o recurso à analogia apenas tem lugar quando se verifiquem casos omissos relativamente aos quais se torne necessário aplicar as normas que diretamente contemplem casos análogos e justifica-se por uma razão de coerência normativa ou de justiça relativa de modo a assegurar um tratamento semelhante para conflitos de interesses semelhantes.
É claro que não existe nenhuma lacuna suscetível de ser preenchida por via analógica quando o legislador optou deliberadamente por excluir as sociedades de capital de risco da categoria de sociedades financeiras, revogando a disposição legal que anteriormente previa essa qualificação.
Acresce que o n.º 4 do artigo 11.º da LGT proíbe a integração analógica de lacunas resultantes de normas tributárias abrangidas na reserva de lei da Assembleia da República, e, no caso vertente, está justamente em causa uma norma de incidência subjetiva de imposto que se enquadra na reserva parlamentar, sendo certo que o Código do Imposto do Selo foi aprovado pela Lei n.º 159/99, de 11 de setembro.
E, por conseguinte, encontra-se vedado ao intérprete a integração por meio de analogia relativamente à referida disposição da verba 17.3 da TGIS.
Um outro argumento que é utilizado pela Autoridade Tributária prende-se com o disposto no artigo 30.º do Código dos Valores Mobiliários, que, sob a epígrafe “Investidores profissionais”, no seu n.º 1, alínea f), considera como investidores profissionais “outras instituições financeiras autorizadas ou reguladas, designadamente entidades com objeto específico de titularização, respetivas sociedades gestoras, se aplicável, e demais sociedades financeiras previstas na lei, sociedades de capital de risco, fundos de capital de risco e respetivas sociedades gestoras”.
Como se explicita no acórdão proferido no Processo n.º 399/2019-T, a referida norma limita-se a classificar as sociedades de capital de risco como investidores profissionais, a par de diversas outras entidades, como instituições de crédito e empresas de investimento, em vista aos deveres de conduta que essas entidades se encontram obrigadas no âmbito do mercado dos valores mobiliários, em consonância com as diretivas europeias.
Não é possível extrair dessa disposição, com um campo de aplicação específico, a conclusão de que essas entidades são consideradas como instituições financeiras para efeito de incidência de imposto do selo, tanto mais que a verba 17.3 da TGIS se refere a operações realizadas com a intermediação de instituições financeiras ao passo que as sociedades de capital de risco se encontram excluídas de qualquer atividade de intermediação financeira.
A Autoridade Tributária, na sua resposta, para sustentar a sua posição, refere-se ainda à alínea h) do n.º 1 do artigo 23.º da Lei n.º 26/2008, de 5 de julho (Lei de Branqueamento de Capitais), que, definindo o respetivo âmbito de aplicação, inclui sob a epígrafe “Entidades financeiras”, as sociedades de capital de risco.
No entanto, não só esse não foi um argumento invocado no procedimento tributário - constituindo assim uma fundamentação a posteriori a que o tribunal não tem de atender -, como também essa disposição, visando definir um elenco de entidades que poderão encontrar-se sujeitas a medidas preventivas e repressivas de combate ao branqueamento de vantagens de proveniência ilícita, não tem qualquer relação com o âmbito de incidência do imposto de selo, nem pode servir – pelas razões já invocadas – para justificar uma aplicação analógica.
As sociedades de capital de risco não podem entender-se, por conseguinte, como instituições financeiras para efeito do disposto nas verbas 17.3 e 17.4 da TGIS, pelo que a Requerente não se encontrava sujeita a imposto do selo relativamente às comissões cobradas por atividades de gestão e representação jurídica dos fundos de capital de risco.
Não se verificando um dos requisitos de que depende a incidência do imposto, não se torna necessário averiguar se os serviços prestados pela Requerente se caracterizam, para o aludido efeito, como serviços financeiros.
Face ao exposto, o pedido arbitral mostra-se ser procedente.
8. A Requerente impugna igualmente a liquidação de juros compensatórios, no valor de € 216,93, referente ao atraso na entrega do imposto a que se refere a guia ..., cujo pagamento efetuou.
Nos termos do artigo 35.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária, “são devidos juros compensatórios quando, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido ou a entrega de imposto a pagar antecipadamente, ou retido ou a reter no âmbito da substituição tributária”.
Como tem sido entendimento corrente, os juros compensatórios devidos nos termos da referida disposição constituem uma reparação de natureza civil que se destina a indemnizar a Administração Tributária pela perda de disponibilidade de uma quantia que não foi liquidada atempadamente. Tratando-se de uma indemnização de natureza civil, ela só exigível se se verificar um nexo de causalidade entre a atuação do sujeito passivo e o atraso na liquidação e essa atuação possa ser censurável a título de dolo ou negligência.
A procedência do pedido arbitral torna necessariamente inexigível o pagamento de juros compensatórios, pelo que também nesse ponto o pedido é procedente.
Reembolso do imposto indevidamente pago e juros indemnizatórios
9. A Requerente pede ainda a condenação da Autoridade Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago acrescido de juros indemnizatórios.
De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”. O que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.
Por efeito da reconstituição da situação jurídica em resultado da anulação do acto tributário, há assim lugar ao reembolso do imposto indevidamente pago.
Ainda nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, de um e outro desses diplomas, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito.
Há assim lugar, na sequência de declaração de ilegalidade do ato de liquidação de IMT, ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos das citadas disposições dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT, calculados sobre a quantia que a Requerente pagou indevidamente, à taxa dos juros legais (artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.º 4, da LGT).
III – Decisão
Termos em que se decide
a) Julgar procedente o pedido arbitral e anular os atos de liquidação de imposto do selo e de juros compensatórios impugnados, e, bem assim, o despacho de indeferimento da reclamação graciosa contra eles deduzido;
b) Condenar a Autoridade Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago acrescido de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito.
Valor da causa
A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 249.950,70, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.
Custas
Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 4.284,00, que fica a cargo da Requerida.
Notifique.
Lisboa, 27 de Setembro de 2021,
O Presidente do Tribunal Arbitral
Carlos Fernandes Cadilha
O Árbitro vogal
António Pragal Colaço
O Árbitro vogal
Jorge Carita