Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 30/2021-T
Data da decisão: 2021-09-15  IRC  
Valor do pedido: € 69.522,61
Tema: IRC - Mais-valias resultantes da alienação de viaturas ligeiras de passageiros. Artigo 46.º, n.º 2, do CIRC.
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Sumário:

Nos termos do disposto no artigo 46.º, n.º 2, do CIRC, as mais-valias fiscais referentes à alienação de viaturas ligeiras de passageiros que integravam o activo fixo tangível do sujeito passivo e que haviam sido adquiridas por valores superiores ao limite estabelecido na Portaria n.º 467/2010, de 7 de julho, são calculadas mediante a dedução ao valor de aquisição das depreciações aceites fiscalmente.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Acordam em tribunal arbitral

 

I – Relatório

 

1. A..., S.A., com o número único de identificação de pessoa colectiva ... e sede em ... ..., n.º..., ..., Lisboa, ...-... Lisboa, vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, para apreciar a legalidade do acto de liquidação de IRC n.º 2020..., e da liquidação de juros compensatórios e de juros moratórios, referentes ao exercício de 2017, dos quais resultou o montante global a pagar de € 15.129,82, bem como do acto de liquidação de IRC n.º 2020..., e da liquidação de juros compensatórios, referentes ao exercício de 2018, dos quais resultou o montante global a pagar de € 54.392,79, requerendo ainda o reembolso do imposto indevidamente pago acrescido de juros indemnizatórios.

 

Fundamenta o pedido nos seguintes termos.

 

A Requerente é uma sociedade comercial que se dedica, desde 1989, ao exercício das actividades de contabilidade, de auditoria e de consultoria fiscal e se encontra enquadrada, em sede de IRC, no regime geral de determinação do lucro tributável.

 

Em 2017, a Requerente alienou 50 veículos ligeiros de passageiros, dos quais 13  haviam sido adquiridos por valor superior ao limite estabelecido na Portaria n.º 467/2010, de 7 de julho, a que se refere a alínea e) do n.º 1 do artigo 34.º do Código do IRC, e, em 2018, alienou 33 veículos ligeiros de passageiros, dos quais 15 haviam sido adquiridos por valor superior ao referido limite estabelecido na Portaria n.º 467/2010.

 

Em 10 de fevereiro de 2020 e ao abrigo das ordens de serviço n.os OI2019... e OI202..., foi desencadeado um procedimento de inspecção, de natureza externa e de âmbito parcial, que visava a confirmação dos valores declarados em sede de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) e de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) por referência aos exercícios de 2017 de 2018.

 

No Relatório Final de Inspecção Tributária, os serviços inspectivos  determinaram a correcção das mais-valias declaradas por considerarem que, para o seu apuramento, releva o valor das depreciações praticadas na contabilidade, sempre que o valor de aquisição ou reavaliação da(s) viaturas tenha excedido os limites estabelecidos para efeitos de dedutibilidade fiscal dos gastos das respectivas depreciações, conforme estabelecido na Circular n.º 6/2011, de 5 de maio, da Direção de Serviços do IRC, no seu ponto 32.1.

 

Discordando deste entendimento, que originou os actos tributários impugnados, a Requerente considera que resulta do artigo 46.º, n.º 2, do CIRC, sem margem para dúvidas, que para o cálculo de mais ou menos-valias, ao valor de aquisição deverão ser deduzidos os montantes das depreciações e das amortizações aceites fiscalmente, pelo que os serviços inspectivos fazem uma interpretação correctiva da indicada norma, ao considerarem que, quando esteja em causa o cálculo de mais ou de menos-valias resultantes da alienação de veículos ligeiros de passageiros cujo valor de aquisição exceda os limites previstos na Portaria a que se refere a alínea e) do n.º 1 do artigo 34.º do Código do IRC, ao valor de aquisição deverão ser deduzidos os montantes correspondentes às depreciações e às amortizações contabilísticas efetivamente praticadas, isto é, aqueles que foram registados na contabilidade.

 

Para sustentar essa posição, os serviços invocam o entendimento vertido na referida Circular n.º 6/2011, de 5 de maio, segundo o qual «[f]ace à ratio subjacente à imposição de limites ao reconhecimento de gastos com este tipo de bens quando o respectivo valor de aquisição ou de reavaliação ultrapassa determinado montante, a interpretação mais consentânea com essa ratio é considerar que, para efeitos de determinação das respectivas mais-valias ou menos-valias, o valor das depreciações que releva é o das praticadas na contabilidade» (ponto 32).

 

No entanto, as circulares são atos administrativos emanados de órgãos da Administração Pública que consubstanciam normas dotadas de eficácia meramente interna e carecem de força vinculativa heterónoma para os particulares, não podendo sobrepor-se ao estabelecido na lei.

 

O teor da referida circular é manifestamente contrário à letra da norma legal aplicável ao caso, constante do artigo 46.º, n.º 2, do Código do IRC, e, assim sendo, a fundamentação subjacente às correções tributárias padece de manifesto erro sobre os respetivos pressupostos de direito e, nessa medida, é ilegal, encontrando-se igualmente ferida do vício de ilegalidade consequente os actos de liquidação de juros compensatórios e moratórios.

 

A Autoridade Tributária, na sua resposta, alega, em síntese, o seguinte.

Nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 34.º do CIRC, não são aceites como gastos “As depreciações das viaturas ligeiras de passageiros ou mistas, incluindo os veículos elétricos, na parte correspondente ao custo de aquisição ou ao valor revalorizado excedente ao montante a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, bem como dos barcos de recreio e aviões de turismo, desde que tais bens não estejam afetos ao serviço público de transportes nem se destinem a ser alugados no exercício da atividade normal do sujeito passivo”.

 

Esse montante depreciável e aceite para efeitos fiscais, veio a ser definido pela Portaria n.º 467/2010, de 7 de Julho, para as viaturas ligeiras de passageiros ou mistas adquiridas no período de tributação iniciado em 1 de Janeiro de 2010 ou após essa data.

 

Tendo em vista evitar que os sujeitos passivos viessem a recuperar, na venda, o montante das depreciações praticadas que, por força da limitação do valor depreciável estabelecido por lei, não foram fiscalmente aceites no período em que o activo esteve a ser depreciado, a Autoridade Tributária, através da Circular n.º 6/2011 da Direção de Serviços de IRC, veio definir as regras relativas ao apuramento das mais e menos-valias fiscais na transmissão onerosa de viaturas ligeiras de passageiros ou mistas, que não estejam afectas à exploração de serviços público de transportes nem se destinem a ser alugadas no exercício da sua atividade normal.

                                 

Assim de acordo com o ponto 32 da referida circular para as viaturas ligeiras de passageiros ou mistas cujo valor de aquisição ou de reavaliação exceda o limite definido na Portaria n.º 467/2010 o cálculo da mais-valia ou menos-valia fiscal é efetuado também de acordo com o disposto no n.º 2 do art.º 46.º do Código do IRC devendo considerar-se, na respetiva fórmula de cálculo, as depreciações praticadas ao invés das depreciações aceites fiscalmente.

 

Caso se entendesse em sentido contrário e se admitisse o entendimento da Requerente, poderiam estar em causa as limitações ao valor fiscalmente depreciável das viaturas ligeiras de passageiros ou mistas, previstas na alínea e) do n.º do artigo 34.º do CIRC, no n.º 1 do artigo 11.º do Decreto Regulamentar n.º 25/2009, de 14 de Setembro, e na Portaria n.º 467/2010, de 7 de Julho. Ou seja, se no cálculo das mais-valias e menos-valias fiscais se utilizar as depreciações fiscalmente aceites ao invés das depreciações praticadas, anula-se o efeito da limitação fiscal previsto nas referidas normas.

 

Com efeito, relativamente às viaturas ligeiras de passageiros a legislação fiscal vigente estabelece, não apenas a não aceitação como gastos fiscais das depreciações na parte correspondente ao custo de aquisição ou ao valor revalorizado excedente ao montante definido por portaria do Governo, nos termos da alínea e) do n.º 1 do Artigo 34º do CIRC, mas também a não dedutibilidade das menos-valias realizadas para efeitos da determinação do lucro tributável, exceto na parte em que correspondam ao valor fiscalmente depreciável, de acordo com o disposto na alínea l) do n.º 1 do Artigo 23.º-A do CIRC.

 

O procedimento vertido na Circular n.º 6/2011, que determinou a correcção das mais-valias declaradas pelo sujeito passivo, permite expurgar da determinação do lucro tributável a parcela da menos-valia calculada pelo sujeito passivo que o legislador expressamente determinou que não era passível de ser deduzida, daí se devendo concluir pela conformidade legal da actuação da Autoridade Tributária. 

 

2. No seguimento do processo, por despacho de 30 de Junho de 2021, o tribunal dispensou a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, bem como a apresentação de alegações escritas por considerar não existirem quaisquer novos elementos sobre que as partes se devessem pronunciar.

 

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 21 de Maio de 2021.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades e nem foram invocadas excepções.

 

II - Fundamentação

 

Matéria de facto

 

4. Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes.

 

A)           A Requerente é uma sociedade comercial que se dedica, desde 1989, ao exercício das actividades de contabilidade, de auditoria e de consultoria fiscal e se encontra enquadrada, em sede de IRC, no regime geral de determinação do lucro tributável.

B)           Em 2017, a Requerente alienou 50 veículos ligeiros de passageiros, dos quais 13 haviam sido adquiridos por valor superior ao limite estabelecido na Portaria n.º 467/2010, de 7 de Julho, a que se refere a alínea e) do n.º 1 do artigo 34.º do Código do IRC.

C)           Em 2018, a Requerente alienou 33 veículos ligeiros de passageiros, dos quais 15 haviam sido adquiridos por valor superior ao referido limite estabelecido na Portaria n.º 467/2010, de 7 de Julho, a que se refere a alínea e) do n.º 1 do artigo 34.º do Código do IRC.

D)           A Requerente foi objecto de um procedimento de inspecção tributária, de natureza externa e de âmbito parcial, ao abrigo das ordens de serviço n.ºs OI2019... e OI202..., que visava a confirmação dos valores declarados em sede de IRC e de IVA, por referência aos exercícios de 2017 de 2018.

E)            Em sede de IRC, o procedimento inspectivo teve por base a análise dos mapas Modelo 31 - Mais-valias e Menos-valias declarados pelo sujeito passivo relativamente aos períodos de tributação de 2017 e 2018, pelos quais se constata que as mais-valias fiscais apuradas naqueles exercícios resultaram, principalmente, da alienação de viaturas ligeiras de passageiros (VLP). Das viaturas alienadas, verifica-se que 13, em 2017, e 15, em 2018, foram adquiridas por valor superior ao limite estabelecido na alínea e) do n.º 1 do artigo 34.º do CIRC (limite às depreciações para efeitos fiscais).

F)            O procedimento inspectivo determinou a correcção das mais-valias declaradas, originando a emissão dos actos tributários de liquidação de IRC n.º 2020..., demonstração da liquidação de juros compensatórios n.º 2020..., da liquidação de juros moratórios n.º 2020... e demonstração de acerto de contas n.º 2020..., referentes ao exercício de 2017, dos quais resultou o montante global a pagar de € 15.129,82, e a emissão dos actos tributários de liquidação de IRC n.º 2020..., demonstração da liquidação de juros compensatórios n.º 2020... e demonstração de acerto de contas n.º 2020..., referentes ao exercício de 2018, dos quais resultou o montante global a pagar de € 54.392,79.

G)           As correcções encontram-se justificadas, no Relatório de Inspecção Tributária, nos seguintes termos:

III.1.2. Enquadramento fiscal

O Código de IRC determina, relativamente às VLPs, não apenas a não aceitação como gastos fiscais das depreciações na parte correspondente ao custo de aquisição ou ao valor revalorizado excedente ao montante definido por portaria do Governo viaturas, nos termos da alínea a) do n.º 1 do Artigo 34º do CIRC, mas também a não dedutibilidade das menos-valias realizadas para efeitos da determinação do lucro tributável, exceto na parte em que correspondam ao valor fiscalmente depreciável, de acordo com o disposto na alínea l) do n.º 1 do Artigo 23.º-a do CIRC.

Está subjacente a esta norma impedir a recondução à aceitação fiscal, por via das menos-valia realizadas, da parte excedente do gasto de depreciações de viaturas ligeiras que o legislador expressamente pretendeu limitar, quando se efetua o cálculo de apuramento.

No sentido de instruir a aplicação da correção do apuramento das mais-valias e menos-valias, definido no n.º 2 do Artigo 46º e n.º 1 do Artigo 47º, ambos do CIRC, para VLPs com valor de aquisição superior ao limite fiscal estabelecido foi emitida a Circular n.º 6/2011, de 5 de maio – Direção de Serviços do IRC que no seu ponto 32.1, estabelece que deverá relevar o valor das depreciações praticadas na contabilidade sempre que o valor de aquisição ou reavaliação da(s) mesmas tenha excedido os limites estabelecidos para efeitos de dedutibilidade fiscal dos gastos das respectivas depreciações.

No caso de se apurar uma menos-valia fiscal, estabelece o seu ponto 32.2 que deverá aplicar-se o estabelecido na alínea l) do n.º 1 do artigo 23.º-A do CIRC, considerando-se que a parcela da mais-valia fiscal passível de ser deduzida como gasto é a proporcional ao valor fiscalmente depreciável, ou seja, mv fiscal dedutível = valor limite / valor de aquisição x mv fiscal.

[…]

III.1.3. Correção proposta às mais-valias apuradas pelo sujeito passivo

Considerando-se que releva o valor das depreciações praticadas na contabilidade para efeitos fiscais, sempre que o valor de aquisição ou reavaliação da(s) viaturas tenha os limites estabelecidos para efeitos de dedutibilidade fiscal dos gastos das respectivas depreciações, conforme estabelecido no circular n.º 6/2011, de 5 de maio – Direção de Serviços do IRC no seu ponto 32.1, deverá ser retificado o apuramento das mais ou menos-valias a considerar para efeitos fiscais (Anexo 4).

Sendo de relevar no cálculo das mais-valias das VLP dos activos identificados nos quadros III.1.A e III.1.B, as depreciações praticadas na contabilidade e não as fiscalmente aceites, da retificação do cálculo de apuramento da mais ou menos-valias a considerar para efeitos fiscais, efetuado nos termos do n.º 2 do Artigo 46º do CIRC conjugado com o estabelecido na Circular n.º 6/2011, de 5 de maio – Direção de Serviços do IRC no seu ponto 32.1, resultam os respetivos montantes de mais-valias fiscais de 554.545,79€ em 2017 e de 431.975,02€ em 2018, conforme a seguir de apresenta:

[…]

O sujeito passivo expressou intenção de reinvestir as mais-valias fiscais apuradas em 2017, mediante inscrição no campo 740 no Quadro da Mod. 22/IRC de 50% da diferença positiva entre as mais-valias e menos-valias fiscais originalmente calculadas, nos termos do n.º 1 do Artigo 48º do CIRC, no montante de 2019.472,90€ (438.945,79€ x 0,5).

Relativamente ao exercício de 2018, não obstante ter apurado uma diferença negativa entre as mais valias e menos valias fiscais calculadas em 16.012,12€, acresceu 50% desse valor, no montante 8.006,06€, no campo 740 da referida declaração.

Deste modo, tendo em consideração as correções ao apuramento das mais-valias e menos-valias, mencionadas nos quadros III.1.3.A e III.1.3.B bem como a intenção de reinvestimento das mais-valias fiscais manifestadas pelo sujeito passivo, será de se considerar para efeitos de apuramento do lucro tributável de 2017 e 2018, 50% da diferença positiva entre as mais-valias e menos-valias fiscais calculadas. Comparando s montantes apurados acima com os declarados pelo s.p. na declarados pelo s.p. na declaração Mod.22, temos:

 

III.1.3.C – Mais-valias fiscais a acrescer ao lucro tributável na Mod. 22

50% das Mais-valias Fiscais          2017      2018

1- 50% das mais-valias fiscais – apuradas pela AT             277.272,90€*    215.987,43€**

2- 50% das mais-valias fiscais – apuradas pelo s.p. (Mod. 22)       219.472,90€       8.006,06€

3- Diferença (3) = (1)-(2)              57.800,00€          207.981,37€

 

Face aso exposto propõe-se que sejam consideradas as seguintes correções ao lucro tributável de IRC de 2017 e 2018:

 

III.1.3.D – Correções propostas ao luco tributável

Designação        2017       2018

1- Resultado fiscal declarado      5.388.751,72€    4.328.214,08€

2- Correções propostas (Campo 740, Quadro 7, Mod.22/IRC)     57.800,00€          207.961,37€

3- Resultado fiscal corrigido (1)+(2)         5.446.551,72€    4.536.195,45€

 

H)           A Requerente efectuou o pagamento dos montantes de € 15.129,82 e de € 54.392,79, em 15 de Outubro e em 5 de Novembro de 2020.

I)             O pedido arbitral deu entrada em 12 de Janeiro de 2021.

 

Factos não provados

 

Não existem quaisquer factos não provados relevantes para a decisão da causa.

 

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária com a resposta, e em factos não questionados pelas partes.

 

Matéria de direito

 

5. A única questão em debate traduz-se em saber  se, no cálculo das mais-valias fiscais referentes à alienação de viaturas ligeiras de passageiros que integravam o activo fixo tangível do sujeito passivo e que haviam sido adquiridas por valores superiores ao limite estabelecido na Portaria n.º 467/2010, de 7 de Julho, a que se refere a alínea e) do n.º 1 do artigo 34.º do Código do IRC, poderia ter sido deduzido ao valor de aquisição o montante das depreciações consideradas para efeitos fiscais ou deveria ter sido deduzido o montante das depreciações praticadas na contabilidade.

 

A questão prende-se essencialmente com as disposições dos artigos 34.º, n.º 1, alínea e), e 46.º, n.º 2, do CIRC.

 

A primeira dessas disposições respeita às depreciações e amortizações não dedutíveis para efeitos fiscais, dispondo a alínea e) do n.º 1 nos seguintes termos:

 

1 – Não são aceites como gastos:

[…]

e) As depreciações das viaturas ligeiras de passageiros ou mistas, incluindo os veículos elétricos, na parte correspondente ao custo de aquisição ou ao valor revalorizado excedente ao montante a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças.

 

O diploma regulamentar que fixou o custo máximo de aquisição das viaturas, para o efeito previsto nesse preceito, foi a Portaria n.º 467/2010, de 7 de Julho, entretanto alterada pela Lei n.º 82-D/2014, de 29 de Dezembro, que fixou diferentes valores de custo de aquisição consoante o período de tributação em que foram adquiridas as viaturas e a fonte energética utilizada pelos veículos.

 

A segunda disposição mencionada insere-se no regime de mais-valias e menos-valias realizadas, definindo o critério geral para o seu cálculo, e tem o seguinte teor:

 

2- As mais-valias e as menos-valias são dadas pela diferença entre o valor de realização, líquido dos encargos que lhe sejam inerentes e o valor de aquisição, deduzido das depreciações e amortizações aceites fiscalmente, das perdas por imparidade e outras correções de valor previstas nos artigos 28.º-A, 31.º-B e ainda dos valores reconhecidos como gasto fiscal nos termos do artigo 45.º-A, sem prejuízo do disposto na parte final do n.º 3 do artigo 31.º-A. 

 

Como se constata pela sua própria inserção sistemática, as disposições em análise têm um campo específico de aplicação. No quadro geral das regras de apuramento do lucro tributável, o artigo 34.º identifica as situações em que as depreciações e amortizações não são dedutíveis para efeitos fiscais, aí se incluindo a referida norma da alínea e) do n.º 1, que se refere à depreciação de viaturas ligeiras na parte excedente ao custo de aquisição que se encontra fixado regulamentarmente. Por seu lado, o artigo 46.º pretende definir o conceito de mais-valias e menos-valias e o seu n.º 2 estabelece o modo de cálculo das mais-valias e menos-valias por referência ao valor da realização e ao valor da aquisição. E em relação a cada destes factores admite que os valores a considerar correspondam aos resultados líquidos, que, no caso do valor da aquisição, implica a dedução das depreciações e amortizações fiscalmente aceites.

 

Como resulta da matéria de facto dada como assente e é reafirmado pela Autoridade Tributária na sua resposta, a correcção tributária efectuada pelos serviços inspectivos, que originaram ao actos tributários impugnados, assenta no entendimento vertido na Circular n.º 6/2011, de 5 de Maio, da Direcção de Serviços do IRC, segundo o qual sempre que o valor da aquisição das viaturas tenha excedido os limites estabelecidos na Portaria n.º 467/2010, o valor das depreciações a deduzir ao valor da aquisição, para efeito do cálculo das mais-valias, é o das depreciações praticadas na contabilidade, e não o das depreciações dedutíveis para efeitos fiscais. E essa solução é explicada como uma forma de evitar a anulação do efeito da limitação fiscal que resulta do artigo 34.º, n.º 1, alínea e), do CIRC quando o valor da aquisição dos veículos exceda o montante fixado.

 

Com efeito, a Circular n.º 6/2011 pretendeu esclarecer dúvidas relacionadas com o enquadramento dos activos fixos tangíveis e teve especialmente em vista introduzir diversas alterações quanto ao método de depreciação, tendo fixado, nos pontos 31 e 32, os seguintes critérios:

 

 31. Para as viaturas ligeiras de passageiros ou mistas cujo valor de aquisição ou de reavaliação não exceda o limite fixado, a mais­valia ou menos­valia fiscal resulta da diferença entre o valor de realização, líquido dos encargos que lhe sejam inerentes, e o valor de aquisição deduzido das perdas por imparidade bem como das depreciações aceites fiscalmente, sem prejuízo da parte final do n.º 5 do art.º 30.º (cf. art.º 46.º, n.º 2).

 32. Para as viaturas ligeiras de passageiros ou mistas cujo valor de aquisição ou de reavaliação exceda aquele limite, deve observar­se o seguinte:

32.1. O cálculo da mais­valia ou menos­valia fiscal é efectuado também de acordo com o disposto no n.º 2 do art.º 46.º do Código do IRC devendo considerar­se, na respectiva fórmula de cálculo, depreciações praticadas. 

Face à ratio subjacente à imposição de limites ao reconhecimento menos­valia de gastos com este tipo de bens quando o respectivo valor de fiscal aquisição ou de reavaliação ultrapassa determinado montante, a interpretação mais consentânea com essa ratio é considerar que, para efeitos de determinação das respectivas mais­valias ou menos­valias, o valor das depreciações que releva é o das praticadas na contabilidade

 

Como se depreende, a Circular em causa, mediante uma pretensa interpretação teleológica do artigo 46.º. n.º 2, do CIRC em vista à sua conformação com o estabelecido no artigo 34.º, n.º 1, alínea e), quanto à dedutibilidade das depreciações, acaba por efectuar uma interpretação desse dispositivo que não tem qualquer correspondência com a letra da lei, estabelecendo como critério de apuramento das mais-valias, não a dedução das “depreciações e amortizações aceites fiscalmente”, como consta da referida disposição do artigo 46.º. n.º 2, mas o da dedução das depreciações praticadas na contabilidade.  

 

Importa ter presente, a este propósito, que as disposições dos artigos 34.º, n.º 1, alínea e), e 46.º. n.º 2, têm um campo aplicativo e uma finalidade legislativa inteiramente diversos, não podendo atribuir-se a este último preceito um objectivo anti-elisivo que poderá estar patente na precedente norma do artigo 34.º, n.º 1, alínea e).

 

Isso mesmo se observa no acórdão proferido no Processo n.º 57/2017-T, onde se afirma o seguinte:

 

O regime da alínea e) do n.º 1 do artigo 34.º do CIRC tem subjacente, numa linha de continuidade com o regime de tributação autónoma dos encargos com viaturas, a consideração de que a utilização pelas empresas de viaturas acima de determinado valor não tem uma justificação integralmente empresarial, sendo, essencialmente, em função de tal juízo que se justificará a limitação das amortizações e reintegrações nos termos ali consagrados.

Nos casos abrangidos pelo n.º 2 do artigo 46.º do CIRC, não estamos já no campo da utilização dos veículos pelo sujeito passivo de IRC, mas no âmbito da sua alienação, o que vale por dizer que a norma em questão opera, justamente, nos casos em que aquele cessa de ter a disponibilidade na respectiva esfera da viatura cuja utilização a lei tem, no âmbito da alínea e) do n.º 1 do artigo 34.º, por não integralmente justificável do ponto de vista empresarial. Ou seja, dito de outro modo, nas hipóteses de operatividade do n.º 2 do artigo 46.º em causa, o sujeito passivo está, precisamente, a actuar no sentido pretendido pelo legislador no âmbito da norma da alínea e) do n.º 1 do artigo 34.º, desfazendo-se da(s) viatura(s) cuja aquisição e uso o legislador pretende desincentivar.

 

Como é de concluir e se refere no acórdão do STA de 20 de Fevereiro de 2019 (Processo n.º 095/16), tendo o legislador estabelecido diferentes regimes no que concerne às depreciações a relevar em sede de consideração de gastos e de cálculo das mais-valias e menos-valias, não pode o intérprete adoptar uma interpretação analógica ou extensiva que não tenha o mínimo de correspondência na letra lei, pelo que haverá de entender-se que, nos termos do estatuído no artigo 46.º , n.º 2, do CIRC, as mais-valias e menos-valias resultam da diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição, sendo certo que a este último são deduzidas as depreciações aceites fiscalmente e não as depreciações praticadas.

 

Resta acrescentar que as circulares, tendo em vista ditar regras de procedimento ou uniformizar a interpretação das normas legais ou regulamentares, caracterizam-se como regulamentos internos, emitidos no exercício de um poder de direcção hierárquica, que se dirigem para o interior da própria organização administrativa, sem repercussão directa nas relações entre esta e os particulares.

 

                É irrelevante, por outro lado, que a Administração Tributária se encontre vinculada às orientações genéricas constantes das circulares (artigo 68.º-A, n.º 1, da LGT). Essa vinculação constitui a necessária decorrência de se tratar de regulamentos que se destinam a uniformizar o entendimento dos serviços. Em processo jurisdicional, é ao tribunal que cabe dizer o direito à luz das normas e princípios jurídicos aplicáveis ao caso, assim se compreendendo, de resto, que o próprio artigo 68.º-A, que confere vinculatividade às orientações genéricas, acabe por impor à Administração o dever de rever essas orientações atendendo, nomeadamente, à jurisprudência dos tribunais superiores (n.º 4).

 

O pedido arbitral mostra-se, pois, ser procedente.

 

Reembolso do imposto indevidamente pago e juros indemnizatórios

 

6. A Requerente pede ainda a condenação da Autoridade Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.

 

De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”. O que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

 

Por efeito da reconstituição da situação jurídica em resultado da anulação do acto tributário, há assim lugar ao reembolso do imposto indevidamente pago.

 

Ainda nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, de um e outro desses diplomas, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito.

 

Há assim lugar, na sequência de declaração de ilegalidade dos actos de liquidação de IRC, ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos das citadas disposições dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT, calculados sobre a quantia que a Requerente pagou indevidamente, à taxa dos juros legais (artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.º 4, da LGT).

 

Juros compensatórios e juros de mora

 

7.  A Requerente impugna igualmente a liquidação de juros compensatórios em relação ao acto tributário de liquidação de IRC.

 

Nos termos do artigo 35.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária, “são devidos juros compensatórios quando, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido ou a entrega de imposto a pagar antecipadamente, ou retido ou a reter no âmbito da substituição tributária”.

 

Como tem sido entendimento corrente, os juros compensatórios devidos nos termos da referida disposição constituem uma reparação de natureza civil que se destina a indemnizar a Administração Tributária pela perda de disponibilidade de uma quantia que não foi liquidada atempadamente. Tratando-se de uma indemnização de natureza civil, ela só exigível se se verificar um nexo de causalidade entre a actuação do sujeito passivo e o atraso na liquidação e essa actuação possa ser censurável a título de dolo ou negligência.

 

A procedência do pedido arbitral torna necessariamente inexigível o pagamento de juros compensatórios, pelo que também nesse ponto o pedido é procedente.

 

                Por identidade de razão, não há lugar ao pagamento de juros de mora que, nos termos do disposto no artigo 44.º da LGT apenas são devidos a favor da Administração por falta de pagamento no prazo legal da prestação tributária que for legalmente exigível.

 

III – Decisão

Termos em que se decide:

 

a)            Julgar procedente o pedido arbitral e anular os actos tributários de liquidação em IRC, bem com os actos de liquidação de juros compensatórios e de juros de mora, referentes aos anos de 2017 e 2018, que foram impugnados;

b)           Condenar a Autoridade Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago e no pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito.

 

Valor da causa

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 69.522,61, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 2.448,00, que fica a cargo da Requerida.

 

Notifique.

 

Lisboa, 15 de Setembro de 2021

  

O Presidente do Tribunal Arbitral

Carlos Fernandes Cadilha

 

A Árbitro vogal

Maria da Graça Martins

 

O Árbitro vogal

Fernando Borges de Araújo