SUMÁRIO:
1. O poder conferido à AT na Diretiva 2011/16/UE com as atualizações subsequentes em particular na Diretiva 2014/107/UE, do Conselho, de 9 de dezembro de 2014, permite-lhe verificar toda e qualquer declaração de rendimento com origem externa sem prejuízo dos poderes constantes nas Convenções de Dupla Tributação.
2. Os poderes conferidos na Diretiva impedem a invocação do n.º 1 do artigo 74.º da LGT pela AT no caso de uma declaração Modelo 3 substitutiva (IRS) entregue pelo contribuinte que identifica os rendimentos alterados.
3. O exercício dos poderes/deveres constantes da Diretiva de troca de informações é vinculado não podendo a AT discricionariamente e em prejuízo do contribuinte não o exercer.
4. O não exercício pela AT do poder/dever de verificar a informação em caso de dúvida constitui ilegalidade que invalida o acto de liquidação reclamado.
DECISÃO ARBITRAL
O árbitro Vasco António Branco Guimarães árbitro singular designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral, constituído em 03-05-2021, decide o seguinte:
1. Relatório
A..., id. nos autos, NIF ..., residente na Rua ..., n.º..., ..., ..., (doravante designado por “Requerente”), apresentou, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”) pedido de pronúncia arbitral tendo em vista a: 1.º declaração de ilegalidade da liquidação do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) referente ao ano de 2017 identificada sob o n.º 2018... no montante de 19.785,50 Euro; 2.ºA condenação da AT na aceitação de Declaração Modelo 3 de Retificação apresentada pelo Reclamante (cfr. Doc. 8); 3.º Reembolso do imposto pago em excesso pelo Reclamante, no montante que vier a ser apurado, acrescido dos juros indemnizatórios devidos nos termos do artigo 43.º da Lei Geral Tributária (LGT).
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 09-12-2020.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 29-01-2020 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral singular foi constituído em 03-05-2021.
A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta em que defendeu que os pedidos devem ser julgados improcedentes.
Por despacho de 16-06-2021, foi decidido dispensar reunião e alegações.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.
As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades.
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos com relevância para a decisão da causa:
A) O Requerente é um nacional italiano a quem foi concedido o estatuto de residente não habitual.
B) Em 7 de Junho de 2008, o Requerente apresentou a sua declaração Modelo 3 de rendimentos onde incluiu rendimentos de capitais obtidos no exterior.
C) A declaração referida deu origem à liquidação de IRS n.º 2018..., referente a 2017 que apresentava um valor de imposto devido de 19.785,50 Euro que foi pago pelo Requerente em 24.09.2018.
D) Tendo o Requerente verificado que a declaração entregue, liquidada e paga apresentava dois erros e uma omissão apresentou uma declaração Modelo 3 de substituição em 16 de Janeiro de 2019 para correção das anomalias que identificou.
E) Em 08.02.2019, a AT notificou o Reclamante da convolação da declaração Modelo 3 substitutiva na Reclamação Graciosa n.º... .
F) No seguimento desta notificação o Requerente apresentou uma exposição em que justifica e analisa as alterações introduzidas e solicita a emissão de liquidação corretiva com devolução dos montantes pagos em excesso.
G) A AT, na resposta à Reclamação graciosa e na contestação vem defender que: «não foram exibidos documentos suficientes para comprovar alteração dos rendimentos, nem ficou demonstrado que tenham sido esgotados todos os meios ao seu alcance, para obtenção dos mesmos» (cfr. Artigo 5.º da douta contestação)». Acresce que segundo a AT o ónus da prova é, nos termos do artigo 74.º da LGT do contribuinte pelo que considera que esta prova não foi feita.
H) A AT, já no âmbito do processo arbitral revoga parcialmente a liquidação mas faz referência a omissões declarativas do Requerente obtidas mediante troca de informação com autoridades fiscais internacionais pelo que pretende a manutenção da liquidação primitiva com a consequente improcedência do pedido de pronúncia arbitral.
2.2. Factos não provados e fundamentação da fixação da matéria de facto
Os factos provados baseiam-se nos documentos juntos pela Requerente e os que constam do processo administrativo.
Não se retiram outros factos relevantes dos articulados por serem citações de textos legais, acórdãos ou posições de parte sem conteúdo fáctico.
3. Matéria de direito
As questões de mérito que são objecto deste processo são:
1. Saber se o ónus da prova é do Requerente nos casos em que a AT pode usar os instrumentos europeus ou internacionais para obter informação relevante e clarificadora por parte das autoridades fiscais de Estados Membros ou Países com os quais existem em vigor Convenções de Dupla Tributação ou Acordos de Troca de Informação.
2. Saber se são devidos pelos RNH impostos sobre rendimentos de capitais obtidos no exterior (com fonte externa) fora do território nacional e em que termos.
3.1. Posições das Partes
O Requerente defende o seguinte, em suma:
- Que a primeira declaração apresentada continha erros que corrigiu com a entrega da nova declaração convolada em reclamação graciosa;
- A AT deveria ter aceite a correção e não podia recusá-la por corresponder à realidade.
A AT defende:
- Que o ora Requerente e então Reclamante tinha o ónus de provar que é como afirma e que não o fez pelo que, não deu cumprimento ao referido artigo 74.º n.º1 da LGT;
- O pedido arbitral tem de improceder face à ineficácia e incapacidade do Requerente em demonstrar a verdade do que afirma em nome da prudência, cuidado e coerência do sistema fiscal que a AT tem de praticar nos casos de rendimentos obtidos no estrangeiro.
3.2. Apreciação da questão.
A primeira questão em apreciação é a de verificar se nos casos como o dos autos o ónus de provar a existência de um dado tributário que se encontra junto de outra Administração Tributária estrangeira é do contribuinte e, em consequência, a AT pode discricionariamente justificar a não apreciação da reclamação graciosa por o Reclamante não ter feito a prova do direito que invocou – com base no disposto no artigo 74.º n.º 1. da LGT.
Vejamos:
A questão constante dos autos foi já objeto de Jurisprudência do Tribunal de Justiça em questões de prova (Vejam-se como exemplo: Acórdão do Tribunal de Justiça (5.a Secção) de 3 de outubro de 2002, Danner (C-136/00) n.ºs 48, 49, 50, 52. Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 30 de janeiro de 2007 (Processo 150/04), n.ºs 51,52,53,54 a 58).
Convém lembrar que é a Diretiva 2011/16/EU, de 15 de fevereiro, o diploma que, com modificações instrumentais várias regula hoje a matéria. De importância para o caso a Diretiva 2014/107/UE, do Conselho, de 9 de dezembro de 2014 que foi transposta pelo Decreto-Lei n.º 64/2016, de 11 de outubro.
No essencial na relação jurídica entre a AT e o sujeito passivo sobre rendimentos de origem internacional quem tem o poder/dever de verificar se os elementos declarados pelos contribuintes são corretos é a AT. Só esta entidade tem a possibilidade de utilizar o mecanismo de troca de informações entre autoridades administrativas numa relação jurídica em que o contribuinte não é parte.
Resulta do diploma europeu citado (Diretiva 2011/16/EU com as modificações em vigor) que a AT tem: Informação automática e, em caso de necessidade, a pedido.
Não é em consequência possível à AT invocar que o ónus da prova no caso de detenção de contas ou investimentos internacionais financeiros é do contribuinte por ser a AT quem detém a informação transmitida automaticamente e toda e qualquer outra de que necessite a pedido.
Rege em consequência nesta matéria o disposto no n.º 2 do artigo 74.º da LGT sendo obrigação do contribuinte identificar corretamente estes rendimentos - o que se presume feito ao abrigo do artigo 75.º da LGT - e foi materializado com a entrega da segunda declaração Modelo 3 substitutiva que foi recusada ilegalmente pela AT.
Assim, houve violação do disposto no Decreto-Lei n.º 64/2016 de 11 de outubro, por ser a AT que tem, ou pode ter - caso cumpra os seus deveres funcionais - a certeza sobre a verdade da informação adiantada pelo contribuinte sendo aplicável o n.º 2 do artigo 74.º da LGT.
É ilegal a recusa da AT na apreciação da Modelo 3 substitutiva com base na falta de prova e procede o pedido de anulação da liquidação 2018.5005501581 no montante de 19.785,50 Euro por violação de lei.
Verificada a existência de vício relevante ficam prejudicadas as restantes questões pelo que não procederemos à análise da segunda questão enunciada.
4. Decisão.
Nos termos e com os fundamentos expostos, o Tribunal Arbitral decide julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, determinando a anulação da liquidação impugnada de IRS com o consequente reembolso da importância indevidamente cobrada acrescida dos correspondentes juros indemnizatórios desde a data da apresentação da declaração substitutiva até efetivo pagamento.
Valor do processo: Fixa-se o valor do processo em 19.785,50 Euro, nos termos do artigo 97.º -A , n.º 1, alínea a do CPPT, aplicável por remissão do artigo 29.º , n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e artigo n.º 2 do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
Custas: Vai a AT condenada em custas por ser sua a responsabilidade da ilegalidade existente, sendo o seu montante fixado em 1224,00 Euro.
Lisboa, 13 de setembro de 2021
O Árbitro
(Vasco Branco Guimarães)