SUMÁRIO: I — O regime previsto no art. 43.º, n.º 2, do CIRS (na redação vigente em 2018), na medida em que restringe apenas aos sujeitos passivos residentes a aplicação da desconsideração de 50% do saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias para efeitos de determinação do rendimento de mais-valias sujeito a tributação em sede de IRS a que essa norma se refere, é incompatível com o art. 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e, como tal deve ser desaplicado. II — O ato de liquidação que se baseou em norma ou interpretação normativa desaplicada por incompatibilidade com preceito de Direito Europeu está ferido de vício de violação de lei decorrente de erro nos pressupostos de direito e, como tal, deve ser anulado.
DECISÃO ARBITRAL
— I —
A..., contribuinte n.º ..., e mulher B..., contribuinte n.º ... (doravante “os requerentes”), ambos de nacionalidade neerlandesa e residentes nos Países Baixos, vieram deduzir pedido de pronúncia arbitral tributária contra a AUTO¬RI¬DADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante “a AT” ou “a requerida”) peticionando a declaração de ilegalidade e anulação parcial das liquidações de IRS n.os 2020-... e 2020-... relativas ao exercício de 2018.
Para tanto alegaram, em síntese, que em 2001 adquiriram um prédio urbano no concelho de Albufeira que vieram subsequentemente a alienar em 2018; que declararam essa alienação com vista à tributação das mais-valias em sede de IRS; e que a tributação nessa sede, por força dos atos de liquidação impugnados na presente arbitragem, veio a incidir sobre a totalidade do montante das mais-valias realizadas sem ter havido lugar à aplicação do regime de desconsideração de metade da diferença positiva entre o valor de alienação e o valor de aquisição, previsto no art. 43.º, n.º 2, do CIRS apenas para os sujeitos passivos fiscalmente residentes em Portugal. Mais invocaram que a não aplicação desse regime a residentes fiscais de outros Estados membros da União Europeia constituiria uma ilícita restrição à livre circulação de capitais em violação do disposto no art. 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE).
Concluíram peticionando a anulação parcial de ambas as liquidações impugnadas, assim como das correspondentes liquidações de juros compensatórios.
Juntaram documentos e procuração forense e declararam não pretender proceder à designação de árbitro. Procederam ao pagamento da taxa de arbitragem inicial.
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Constituído o Tribunal Arbitral Singular, nos termos legais e regulamentares aplicá-veis, foi determinada a notificação da administração tributária requerida para os efeitos previstos no art. 17.º do RJAT.
Depois de devidamente notificada, a requerida veio apresentar resposta defendendo-se por impugnação. Em síntese, sustentou que o regime fiscal aplicável à tributação de mais-valias imobiliárias obtidas por sujeitos passivos não residentes constante do Código do IRS é totalmente compatível com os preceitos e os princípios do Direito da União Europeia na sequência das alterações introduzidas àquele diploma pela Lei n.º 67-A/2007. Mais requereu a formulação de questão prejudicial ao Tribunal de Justiça da União Europeia tendo por objeto a apreciação da compatibilidade dos mencionados preceitos do Código do IRS com o referido art. 63.º do TFUE.
Concluiu pela improcedência do pedido e sua consequente absolvição e juntou um despacho de nomeação de mandatários forenses e um processo administrativo.
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Depois de assegurado o exercício do contraditório, por despacho do Tribunal Arbitral foi indeferido o requerido reenvio prejudicial e dispensada a realização da reunião a que se refere o art. 18.º do RJAT.
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Notificadas as partes para, querendo, produzirem alegações escritas quanto à matéria de facto e de direito, nenhuma delas as produziu, tendo os requerentes vindo aos autos demonstrar o pagamento da segunda prestação da taxa de arbitragem.
— II —
As partes gozam de personalidade judiciária e capacidade judiciária, têm legitimidade ad causam e estão devidamente patrocinadas nos autos. O presente Tribunal Arbitral Singular é competente por força da vinculação à arbitragem tributária institucionalizada do CAAD por parte da administração tributária requerida conforme resulta da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, e, em especial, do disposto no proémio do art. 2.º e no n.º 1 do art. 3.º deste instrumento regulamentar.
Inexistem quaisquer questões prévias ou outras questões prejudiciais que obstem ao conhecimento do objeto da causa. Não se verificam igualmente nulidades processuais de que importe conhecer, quer por terem sido invocadas pelas partes, quer ainda por serem do conhecimento oficioso.
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Relego para final a fixação do valor da causa, por se tratar de matéria que está estrei-ta-mente conexa com a decisão da questão da responsabilidade pelas custas da arbitragem.
— III —
FACTOS PROVADOS:
Com relevância para a decisão da presente causa consideram-se provados os seguintes factos:
1. Ambos os requerentes têm nacionalidade neerlandesa e residem nos Países Baixos.
2. Encontram-se registados no cadastro fiscal português como não residentes.
3. Mediante escritura pública outorgada em 26/06/2001, ambos os requerentes adquiriram, na proporção de metade para cada um e pelo preço global de PTE 25.000.000,00, um prédio urbano destinado a habitação, composto de uma casa com logradouro, denominado “...”, sito no lugar de ... na freguesia de ... e ... do município de Albufeira, e inscrito na respetiva matriz sob o artigo ... .
4. Mediante escritura pública outorgada em 14/12/2018 os requerentes alienaram o prédio referido em 3. pelo preço global de EUR 460.750,00.
5. Em 17/6/2020 o requerente marido submeteu eletronicamente a declaração de rendimentos, modelo 3, com o n.º..., declarando no campo 4001 do respetivo Anexo G a alienação de 50% do prédio referido em 3., indicando como valor de realização a quantia de EUR 230.375,00, como valor de aquisição a quantia de EUR 62.349,50 e como despesas e encargos a quantia de EUR 13.743,01;
6. Em 17/6/2020 a requerente mulher submeteu eletronicamente a declaração de rendimentos, modelo 3, com o n.º..., declarando no campo 4001 do respetivo Anexo G a alienação de 50% do prédio referido em 3., indicando como valor de realização a quantia de EUR 230.375,00, como valor de aquisição a quantia de EUR 62.349,50 e como despesas e encargos a quantia de EUR 13.743,01;
7. Em 20/06/2020 a requerida emitiu a Liquidação de IRS n.º 2020-...referente ao exercício de 2020 e tendo por destinatário o requerente marido, da qual resulta a fixação do rendimento coletável em EUR 134.330,65 (campo 9), da coleta líquida em EUR 37.612,58 (campo 22), de juros compensatórios em EUR 1.455,04 (campo 28) e de um valor total a pagar de EUR 39.067,62;
8. Em 20/06/2020 a requerida emitiu a Liquidação de IRS n.º 2020-... referente ao exercício de 2020 e tendo por destinatário a requerente mulher, da qual resulta a fixação do rendimento coletável em EUR 134.330,65 (campo 9), da coleta líquida em EUR 37.612,58 (campo 22), de juros compensatórios em EUR 1.455,04 (campo 28) e de um valor total a pagar de EUR 39.067,62;
9. Em 16/10/2018 o contribuinte n.º 513635408 emitiu sobre os requerentes a fatura n.º 4 4/429 no montante total de EUR 7.456,88 com o seguinte descritivo: “Comissão referente à venda do prédio urbano, sito no lote ..., ..., em ... e ..., inscrito na matriz urbana sob o n.º..., descrito na CRP de Albufeira sob o n.º ... . (Ref.SV...).
10. Em 12/12/2018 o contribuinte n.º... emitiu sobre os requerentes a fatura n.º 4 4/454 no montante total de EUR 7.456,88 com o seguinte descritivo: “Comissão referente à venda do prédio urbano, sito no lote ..., ..., em ... e ..., inscrito na matriz urbana sob o n.º..., descrito na CRP de Albufeira sob o n.º... . (Ref.SVP...).”
11. Em 16/10/2018 o contribuinte n.º ... emitiu sobre os requerentes a fatura n.º 4 4/429 no montante total de EUR 7.456,88 com o seguinte descritivo: “Comissão referente à venda do prédio urbano, sito no lote..., ..., em ... e ..., inscrito na matriz urbana sob o n.º..., descrito na CRP de Albufeira sob o n.º ... . (Ref.SVP...).”
12. Em 16/2/2017 o contribuinte n.º ... emitiu sobre o requerente marido a fatura n.º FT 1/327 no montante total de EUR 265,07 com o seguinte descritivo: “Emissão de certificado energético [§] Moradia T3 existente sito em Urb. ..., n.º... .”
13. Em 2/3/2016 o contribuinte n.º ... emitiu sobre o requerente marido a fatura n.º FT 2016/16 no montante total de EUR 450,18 com o seguinte descritivo: “Quadro elétrico standard simples.”
14. Em 4/2/2011 o contribuinte n.º ... emitiu sobre o requerente marido a fatura n.º FT001.0008298 no montante total de EUR 507,01 com o seguinte descritivo: “...” e “Comando via rádio-V2.”
15. Em 17/11/2010 o contribuinte n.º ... emitiu sobre os requerentes a fatura n.º 0042 no montante total de EUR 2.620,00 com o seguinte descritivo: “...substituição turquesa.”
16. Em 16/11/2015 o contribuinte n.º ... emitiu sobre os requerentes a fatura n.º 8747 no montante total de EUR 479,58 com o seguinte descritivo: “1 Disjuntor 25 [§] 2 Rolamentos 620142RS [§] 1 Relógio modular [§] 1 Condensador 25 [§] 2 Horas de estufa [§] 5 Horas de mão de obra [§] 20 lts. hipoclorito de sódio.”
FACTOS NÃO PROVADOS:
Da factualidade alegada relevante para a decisão da presente causa, de acordo com as diversas soluções plausíveis da questão de direito, consideram-se como não provados os seguintes factos:
i. Que os montantes indicados nas faturas identificadas sob os n.os 9. a 16. dos factos dados como provados tenham sido colocados a pagamento por qualquer um dos requerentes;
ii. Aquando da aquisição do prédio referido em 3. dos factos provados os requerentes pagaram em sisa a quantia de PTE 1.454.100,00 e em Imposto de Selo a quantia de PTE 200.000,00.
MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO:
Os factos dados como provados em 1. e 2. resultam demonstrados dos documentos juntos sob os n.os 3 a 6 com o requerimento inicial, de resto não contraditados nem impugnados pela requerida. Com efeito, a nacionalidade e o local de residência dos requerentes estão patenteados nas escrituras públicas cujas certidões constam dos documentos n.os 5 e 6, e de cujo conteúdo resulta que os notários intervenientes nessas escrituras declararam nelas terem verificado pessoalmente a exibição dos documentos comprovativos da nacionalidade e da residência dos outorgantes, agora requerentes. Também os documentos n.os 3 e 4 demonstram a inscrição dos requerentes como sujeitos passivos não residentes junto da AT (em especial, a informação constante do quadro 8-A de cada um desses documentos): é certo que se trata de declarações preenchidas pelos próprios requerentes, mas uma vez que, depois de apresentadas, estas declarações têm de ser validadas pela AT, a sua validação — demonstrada pelo código de alfanumérico que delas consta — é suficiente para concluir que o declarado nos respetivos quadros 8-A corresponde, com efeito, à informação constante das bases de dados da administração fiscal.
Os factos provados em 3. a 16. resultam demonstrados, respetivamente, pelos documentos juntos com o requerimento sob os n.os 6, 5, 3, 4, 1, 2, 7, 8, 9 e 10.
Quanto à matéria dada como não provada, o facto i. resulta da circunstância de os requerentes não terem logrado demonstrar terem colocado a pagamento os montantes indicados nas faturas referidas. Com efeito, enquanto documento contabilístico uma fatura não serve de quitação das quantias que nela são inscritas. Por outro lado, não foi junta qualquer prova documental (designadamente recibos ou comprovativos de fluxos financeiros) que permitisse concluir que os montantes faturados aos requerentes nas referidas faturas foram por estes, simultânea ou posteriormente com a sua emissão, colocados a pagamento. Não foi igualmente oferecido qualquer outro meio de prova que indiciasse essa factualidade. Em consequência, não poderia considerar-se provado que as faturas juntas com o requerimento inicial tenham, em algum momento, sido colocadas a pagamento.
Também em relação aos montantes alegadamente pagos a título de sisa e de Imposto de Selo não foi oferecido qualquer meio de prova, documental ou outro, que demonstrasse a sua liquidação e pagamento, sendo além do mais certo que na escritura pública cuja certidão se ofereceu como como documento n.º 6 junto com o requerimento inicial o notário não declarou nela ter verificado o pagamento destes impostos. Não poderá assim considerar-se provado tal facto, apesar de alegado.
— IV —
QUESTÃO DECIDENDA:
A única questão relevante para a decisão da presente causa é a de saber se o regime previsto no art. 43.º, n.º 2, do CIRS (na redação vigente em 2018), na medida em que restringe apenas aos sujeitos passivos residentes a aplicação da desconsideração de 50% do saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias para efeitos de determinação do rendimento de mais-valias sujeito a tributação em sede de IRS, deve ser afastado por ser incompatível com preceitos e princípios de Direito Europeu, em particular com o disposto no art. 63.º do TFUE.
Com efeito, ao proceder ao apuramento do rendimento de mais-valias sujeito a tributação em sede de IRS de cada um dos requerentes, a AT considerou in totum a diferença positiva entre o valor de realização declarado, deduzido das despesas e encargos, e o valor de aquisição corrigido pela aplicação do coeficiente de desvalorização da moeda. Não foi, por conseguinte, efetuada a exclusão de tributação que à época se previa no cit. n.º 2 do art. 43.º do CIRS: “O saldo referido no número anterior, respeitante às transmissões efetuadas por residentes previstas nas alíneas a), c) e d) do n.º 1 do artigo 10.º, positivo ou negativo, é apenas considerado em 50 % do seu valor” (realce adicionado).
Com efeito, a factispécie da referida norma é bastante clara: a desconsideração na determinação do rendimento de mais-valias (ou, se se preferir, a exclusão de tributação) que nela se prevê aplica-se apenas aos rendimentos provenientes de transmissões efetuadas por sujeitos passivos residentes. No caso presente, sendo os requerentes residentes nos Países Baixos, a letra da lei não consentiria que a norma pudesse ser aplicada à determinação dos seus rendimentos tributáveis.
Insurgem-se porém os requerentes sustentando a incompatibilidade de uma tal solução legislativa com os princípios e os preceitos de Direito Europeu e, em especial, com o art. 63.º do TFUE que estatui uma proibição genérica de restrições à livre circulação de capitais (n.º 1) e à livre realização de pagamentos (n.º 2) entre Estados membros e entre estes e países terceiros e, por conseguinte, clamando pelo afastamento da aplicação da referida norma de direito interno.
Importa decidir.
*
Independentemente das sérias reservas que a solução encontrada possa suscitar — na medida em que desconsidera por completo as opções de política legislativa que presidem entre nós à tributação dos rendimentos mais-valias imobiliárias e que passam pelo englobamento destes rendimentos quando obtidos por sujeitos passivos residentes, sujeitando-os à tributação pelas taxas gerais de IRS e acabando assim por se revelar como uma solução que redunda, as mais das vezes, em situações de flagrante discriminação positiva dos sujeitos passivos não residentes em relação àqueles fiscalmente residentes no território nacional —, a verdade é que a resposta da jurisprudência à questão decidenda é hoje absolutamente clara e inequívoca, não se antevendo qualquer razão ou fundamento para agora divergir dela, sobretudo tendo presente o preceituado no art. 8.º, n.º 3, in fine, do Código Civil.
Com efeito, as exigências de uniformidade na interpretação e aplicação do Direito da União Europeia impõem que seja o Tribunal de Justiça da União Europeia o único intérprete das normas dos tratados constitutivos e do direito derivado. Nessa medida, a jurisprudência do TJUE a propósito da interpretação das normas e princípios de Direito Europeu tem carácter obrigatório e é vinculativa para os tribunais nacionais. E acerca da questão decidenda nos presentes autos o Tribunal do Luxemburgo já deixou bem claro que “a fixação da matéria coletável em 50 % para as mais valias realizadas por todos os sujeitos passivos residentes em Portugal, e não para os sujeitos passivos não residentes que optaram pelo regime de tributação previsto no artigo 72.°, n.° 1, do CIRS, constitui uma restrição aos movimentos de capitais, proibida pelo artigo 63.°, n.° 1, do TFUE” que não encontra justificação válida ou objetiva (Ac. TJUE 18-3-2021, MK, C-388/19, EU:C:2021:212, pars. 32 e 41).
Consequentemente, concluiu o Tribunal de Justiça (Ac. MK, cit., par. 47):
o artigo 63.° TFUE, lido em conjugação com o artigo 65.° TFUE, deve ser interpretado no sentido de que se opõe à regulamentação de um Estado Membro que, para permitir que as mais valias provenientes da alienação de bens imóveis situados nesse Estado Membro, por um sujeito passivo residente noutro Estado Membro, não sejam sujeitas a uma carga fiscal superior à que seria aplicada, para esse mesmo tipo de operação, às mais valias realizadas por um residente do primeiro Estado Membro, faz depender da escolha do referido sujeito passivo o regime de tributação aplicável.
Também o Supremo Tribunal Administrativo afinou pelo mesmo diapasão, mesmo antes da prolação do Acórdão MK, uniformizando a jurisprudência no mesmo exato e preciso sentido. Na verdade, no Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo veio a tirar-se acórdão [Ac. STA 9-12-2020, Proc.º 075/20.6BALSB (ainda não publicado em Diário da República, mas disponível em www.dgsi.pt)] que uniformizou a seguinte jurisprudência:
III - A norma do n.º 2 do art. 43.º do CIRS, na redação aplicável, na medida em que prevê uma limitação da tributação a 50% das mais-valias realizadas apenas para os residentes em Portugal, não extensiva aos não residentes, constitui uma restrição aos movimentos de capitais, proibida pelo art. 63.º do TFUE, ao qual o Estado português se obrigou.
IV – Essa incompatibilidade da norma com o Direito Europeu não pode ter-se como sanada pelo regime opcional introduzido no art. 72.º do CIRS pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro, aliás, previsto apenas para os residentes noutro Estado-membro da União Europeia ou na EEE e não para os residentes em Países terceiros.
Assim, nada mais resta do que aderir aos fundamentos destes dois arestos acima citados e, subsumindo a factualidade dada como provada a esses considerandos jurídicos, concluir que o regime previsto no art. 43.º, n.º 2, do CIRS (na redação vigente em 2018), na medida em que restringe apenas aos sujeitos passivos residentes a aplicação da desconsideração de 50% do saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias para efeitos de determinação do rendimento de mais-valias sujeito a tributação em sede de IRS, é incompatível com o disposto no art. 63.º do TFUE, na exata e precisa medida em que tal resulta da jurisprudência fixada pelo Acórdão MK.
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Neste passo é forçoso ter presente que, de acordo com o artigo 8.º, n.º 4, da CRP, o Direito Europeu é aplicável na ordem interna nos termos previstos pelo próprio Direito da União — isto é, neste preceito constitucional está implícita a assunção do denominado princí-pio do primado do Direito da União sobre o direito interno. Na verdade, “[é] a regra básica do Direito Comunitário que [...] uma norma de Direito Comunitário com efeito direto prevalece sempre sobre uma norma de direito nacional. Esta regra, que não se encontra consagrada em nenhum dos Tratados mas que tem sido invocada com grande ênfase pelo Tribunal, aplica-se independentemente da natureza da norma comunitária (tratado constitutivo, ato comunitário ou acordo com um Estado terceiro) ou da norma nacional (Constituição, norma legislativa ou normação derivada); aplica-se da mesma forma quer a norma comunitária seja anterior ou posterior a uma norma nacional: em todos os casos a norma nacional cede perante o Direito Comunitário” (T.C. HARTLEY, Foundations of European Community Law, Oxford University Press, 2003, p. 228, tradução livre). Entendimento que, de resto, corresponde à jurisprudência longamente consolidada do TJUE — assim, cfr. Ac. TJUE 15-7-1964, COSTA c. ENEL, C-6/64, EU:C:1964:66; Ac. TJUE 9-3-1978, SIMMENTHAL, C-106/77, EU:C:1978:49, par. 24). Também na doutrina portuguesa é consensual a ideia de que “a uniformidade do Direito Comunitário impõe o pri¬ma¬do de todo o Direito Comunitário (originário, isto é, os tratados, e derivado, quer dizer, as normas e os atos emanados dos órgãos comunitários) sobre todo o direito estadual (inclu¬sive a Cons¬tituição), seja este anterior ou posterior aos tratados comunitários ou à nor¬ma comu¬ni¬tária concretamente em causa” (GONÇALVES PEREIRA / FAUSTO DE QUA¬DROS, Manual de Direito Internacional Público, Almedina, 1997, pp. 125 e 126).
Como bem sintetiza ALBERTO XAVIER, agora já no plano da aplicação deste princípio no domínio específico do Direito Fiscal (Direito Tributário Internacional, Almedina, 2007, p. 216):
O Direito Comunitário (tratados institutivos e disposições dotadas de aplicabilidade direta) tem prevalência ou primazia de aplicação (Anwendungsvorrang) relativamente à legislação nacional dos Estados- Membros. Esta primazia traduz-se na desaplicação da lei nacional e consequente aplicação da norma comunitária com ela colidente, mas não necessariamente abrogação.
Como o Tribunal do Luxemburgo deixou bem explícito no cit. Acórdão Simmenthal (cit., par. 24): “O juiz nacional responsável, no âmbito das suas competências, por aplicar disposições de direito comunitário, tem obrigação de assegurar o pleno efeito de tais normas, decidindo, por autoridade própria, se necessário for, da não aplicação de qualquer norma de direito interno que as contrarie, ainda que tal norma seja posterior, sem que tenha de solicitar ou esperar a prévia eliminação da referida norma por via legislativa ou por qualquer outro processo constitucional.”
Em conclusão, do princípio do primado não decorre que as normas de Direito Europeu tenham natureza paramétrica sobre as normas de direito interno: não há lugar a um juízo de invalidação ou de revogação enquanto manifestação de uma hierarquia normativa strictu sensu, cuja existência, de resto, não é consensual. No que interessa à economia da presente arbitragem, o efeito prático do princípio do primado é a desaplicação das normas de direito interno que sejam contrárias ao, ou incompatíveis com, o Direito da União Europeia.
Nessa medida há que recusar a aplicação do mencionado art. 43.º, n.º 2, do CIRS na referida interpretação normativa de efeito restritivo e cerceador da liberdade de circulação de capitais consagrada pelo citado art. 63.º do TFUE. Aplicando, então, aos factos sub judice aquele preceito de direito interno já despido do segmento normativo que se concluiu ser incompatível com os tratados europeus, verifica-se que as liquidações impugnadas não podem validamente subsistir, pois estão feridas de vício de violação de lei decorrente de erro nos pressupostos de direito.
Consequentemente, a presente arbitragem terá de proceder totalmente, determinando-se a anulação das liquidações impugnadas na parte em que, na determinação do rendimento de mais-valias de cada um dos requerentes sujeito a tributação em sede do IRS referente ao exercício de 2018, não consideraram o saldo positivo entre as mais-valias e as menos-valias imobiliária por ele declaradas nesse exercício em apenas 50% do seu valor.
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Anuladas as liquidações impugnadas, o seu efeito invalidante arrastar-se-á também às liquidações de juros compensatórios que delas são consequentes e que as têm por pressuposto, mas aqui também apenas na parte em que tais liquidações atendem, na operação de determinação dos juros devidos, aos quantitativos de imposto cuja anulação se irá determinar a final.
DA RESPONSABILIDADE PELAS CUSTAS DA ARBITRAGEM:
No seu requerimento inicial, os requerentes atribuíram à presente arbitragem o valor de EUR 39.067,62, montante que a administração tributária requerida não impugnou nem colocou em causa na resposta que fez atravessar nos autos.
Por outro lado, as circunstâncias do caso permitem concluir, com segurança, que é esse o valor correto a atribuir à presente arbitragem. Conforme resulta do art. 97.º-A, n.º 1, al. a), do CPPT, aplicável ex vi do art. 29.º do RJAT, o valor atendível, para efeitos de custas, será “[q]uando seja impugnada a liquidação, o da importância cuja anulação se pretende.”
No caso dos presentes autos, a circunstância da totalidade dos rendimentos coletáveis fixados em ambas as liquidações impugnadas estar sujeito a tributação à taxa especial de 28% permite concluir, sem margem para dúvidas, que o montante de imposto a anular em cada uma das liquidações será precisamente de metade da coleta que nelas se apurou.
Assim, fixo à presente arbitragem o valor de EUR 39.067,62.
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Vencida na presente arbitragem, é a requerida AT responsável pelas custas — art. 12.º, n.º 2, do RJAT e arts. 4.º, n.º 5, e 6.º, al. a), do Regulamento de Custas da Arbitragem Tributária do CAAD.
Assim, tendo em conta o valor atribuído ao processo, por aplicação da l. 6 da Tabela I ane¬xa ao mencionado Regulamento, há que fixar a taxa de arbitragem do presente processo em EUR 1.836,00, em cujo pagamento se condenará a final a administração tributária reque¬rida.
— V —
Assim, pelos fundamentos expostos, julgo a presente arbitragem totalmente proce¬den¬te e em consequência:
a) Julgo o regime previsto no art. 43.º, n.º 2, do CIRS (na redação vigente em 2018), na medida em que restringe apenas aos sujeitos passivos residentes a aplicação da desconsideração de 50% do saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias para efeitos de determinação do rendimento de mais-valias sujeito a tributação em sede de IRS, incompatível com o disposto no art. 63.º do TFUE, na exata e precisa medida em que tal resulta da jurisprudência fixada pelo Acórdão MK, melhor identificado supra, e, consequentemente, recuso a aplicação daquele preceito legal na interpretação normativa acima indicada;
b) Declaro ilegal e anulo parcialmente a Liquidação de IRS n.º 2020-..., na parte em que, na determinação do rendimento de mais-valias do requerente marido sujeito a tributação em sede do IRS referente ao exercício de 2018, não considerou o saldo positivo entre as mais-valias e as menos-valias imobiliárias por ele declaradas nesse exercício em apenas 50% do seu valor;
c) Declaro ilegal e anulo parcialmente a Liquidação de IRS n.º 2020-..., na parte em que, na determinação do rendimento de mais-valias da requerente mulher sujeito a tributação em sede do IRS referente ao exercício de 2018, não considerou o saldo positivo entre as mais-valias e as menos-valias imobiliárias por ela declaradas nesse exercício em apenas 50% do seu valor;
d) Declaro ilegal e anulo parcialmente as liquidações de juros compensatórios incluídas nas liquidações referidas em b) e c), na parte em atendem, na operação de determinação dos juros devidos, aos quantitativos de imposto agora anulados;
e) Condeno a requerida Administração Tributária e Aduaneira nas custas do presente processo arbitral tributário, fixando a taxa de arbitragem em EUR 1.836,00.
Notifiquem-se as partes.
Notifique-se o M.º P.º — arts. 252.º, n.º 1, do CPC e 72.º, n.º 3, da LTC.
Registe-se e deposite-se.
CAAD, 13/9/2021
O Árbitro,
(Gustavo Gramaxo Rozeira)