SUMÁRIO:
I- Para proceder à tributação por desreconhecimento de um passivo, não é suficiente demonstrar, como consensualmente é o caso, que o movimento que o extingue não tem correspondência com a realidade.
II- Antes, e sobretudo quando acontece como na presente situação, em que o sujeito passivo nega a existência do próprio passivo desreconhecido, é igualmente necessário demonstrar a existência de tal passivo, não sendo aceitável nem suficiente que se dê por assente a existência do mesmo com base numa contabilidade – confessada e reconhecidamente – inverídica.
III- Para proceder à tributação directa, não basta demonstrar que um movimento contabilístico não está contabilisticamente fundado nem tem qualquer aderência à realidade, e que as explicações dadas pelo sujeito passivo não têm qualquer cabimento e são insusceptíveis de ser acolhidas, sendo ainda necessário demonstrar, para lá de qualquer dúvida razoável, a efectiva existência, no exercício em causa, de um rendimento com as características do sujeito a tributação na liquidação impugnada.
DECISÃO ARBITRAL
I – RELATÓRIO
1. No dia 28 de Janeiro de 2020, A…., LDA, NIPC ………, com sede na Av. …………., união das freguesias da …., ………, 5300-….. Bragança, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade das liquidações adicionais promovidas pela Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) e respetivos juros compensatórios (JC) por retardamento da liquidação, do exercício fiscal de 2015, identificadas, respetivamente, sob os n.ºs 2019 ………… e 2019 …………., e no valor total a pagar, até 30 de Outubro de 2019, de € 456.075,45 (quatrocentos e cinquenta e seis mil e setenta e cinco euros e quarenta e cinco cêntimos).
2. Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, que:
i. A AT enveredou pela via da presunção de rendimentos (via anulação de passivos inexistentes e simultaneamente via reconhecimento de activos, só que estes também inexistentes);
ii. A presunção de rendimentos ou de gastos só pode ser feita com o recurso a métodos indirectos de tributação, o que não foi o caso presente;
iii. No plano substantivo e de acordo com a verdade material, a Sociedade é devedora de quem lhe facultou meios financeiros para o financiamento das suas necessidades (os Sócios), no valor de € 1.068.000,00, mesmo não se encontrando correctamente contabilizados tais créditos;
iv. É totalmente ilegal o procedimento adoptado pela AT de utilizar um erro contabilístico para inverter a situação patrimonial da Sociedade e gerar a liquidação de tributos, sem que tenha havido qualquer prova dos pressupostos dessas mesmas liquidações adicionais;
v. Por força do princípio da periodização para o apuramento do resultado, não se podem subtrair os saldos de balanço que transitam para serem saldos de abertura em 01.01.2015, tendo já decorrido o prazo de caducidade do direito à liquidação por parte da AT;
vi. A AT não apresenta qualquer fundamentação válida e congruente que justifique as correcções e a fixação do imposto em falta, actuando em manifesto desrespeito pela exigência legal que lhe é imposta, conforme artigo 74.º da Lei Geral Tributária (LGT), artigo 124.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA) e artigo 268.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa.
3. No dia 29-01-2020, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.
4. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
5. Em 16-03-2020, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.
6. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 06-07-2020.
7. No dia 17-09-2020, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.
8. Ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º, e n.º 2 do art.º 29.º, ambos do RJAT, foi dispensada a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.
9. Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelas partes, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.
10. Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no art.º 21.º/1 do RJAT, com as prorrogações determinadas nos termos do n.º 2 do mesmo artigo.
11. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
O processo não enferma de nulidades.
Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.
Tudo visto, cumpre proferir:
II. DECISÃO
A. MATÉRIA DE FACTO
A.1. Factos dados como provados
1- Sob a ordem de serviço n.º OI2017….., com despacho datado de 19 de Outubro de 2017, para o período de 2015, a Equipa … da Divisão DIV …. dos Serviços de Inspecção Tributária (SIT) da Direção de Finanças de Bragança, efectuaram um procedimento externo de inspecção tributária à Requerente, de âmbito geral.
2- No seguimento da assinatura da ordem de serviço pelo Sócio-gerente da Requerente, o início da acção inspectiva ocorreu a 17 de Abril de 2019.
3- O Relatório de Inspecção Tributária (RIT) foi notificado através do Ofício n.º 2019………., de 12 de Setembro de 2019.
4- Da inspecção tributária resultaram, para o exercício de 2015, correcções de natureza meramente aritmética em sede de matéria tributável de IRC, no montante total de € 1.847.468,32 (um milhão oitocentos e quarenta e sete mil e quatrocentos e sessenta e oito euros e trinta e dois cêntimos).
5- De acordo com o ponto III.1 – Movimentos no diário 10 - do RIT, foram identificados pelos SIT os seguintes lançamentos:
6- Com base nos esclarecimentos dados e documentos juntos pela Requerente, os SIT consideraram existir suporte documental, a título de fluxos financeiros, para um valor total de € 1.068.000,00, conforme o seguinte quadro:
7- O RIT fundamenta as correções do seu ponto III.6, nos seguintes termos:
“III.6.1 – Lançamentos efetuados no diário 10 tendo como suporte o documento 2
Analisando todo o supra exposto verificamos que o representante do S.P. no procedimento de inspeção, refere, em síntese, que à data de 31-12-2015 o sócio B…. detinha suprimentos sobre a sociedade, conforme documentos que anexou, descritos na tabela do Anexo II, no valor de 1.068.000,00 €, apesar de, segundo o mesmo, não terem sido formalizados contratos, mas existirem evidências dos fluxos financeiros correspondentes às entregas feitas pelo sócio.
Acrescentou ainda que o débito da conta 2701101000-Outras Contas a receber e a pagar- Fornecedores de Imobiliário-B…… por contrapartida de crédito na conta 2513201-Financiamentos obtidos- C….. se deve a engano na identificação desta conta, uma vez que o credor é o sócio.
Contudo, da análise à sua resposta verificou-se que o S.P. não apresentou o documento 2 que serviu de suporte aos lançamentos contabilísticos efetuados no diário 10, isto é, os lançamentos a débito nas contas 2701101000, no valor de 800.231,97 €, e 25214 no valor de 168.274,00 € por contrapartida a crédito das contas 2513201-Locações Financeiras-C……., 800.231,97 € e 2513101-Locações Financeiras- C….., 168.274,00 €, datados a 01-01-2015.
Mais, os documentos apresentados referem-se a transferências da conta bancária da atividade a titulo individual desenvolvida por B…….. para a conta das Construções A……., Lda, sendo certo que grande parte das mesmas referem-se a adiantamentos/pagamentos relativos a aquisição de frações autónomas do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Zona de …….., …………, lote …….., freguesia da ….., concelho de Bragança, a que corresponde a descrição matricial subordinada ….. - "P".
Alguns dos documentos suporte dessas mesmas transferências contém referências manuscritas a escrituras e adquirentes das frações, valores e formas de pagamento das mesmas, sendo ainda que algumas mencionam que os valores tiveram como destino a conta da sociedade e outras contas particulares ou conta pessoal, bem como têm juntos cheques e transferências bancárias de que são titulares/ordenantes os próprios adquirentes das frações.
De todas as escrituras de compra e venda das frações juntas pelo S.P. verificamos que os vendedores das mesmas são B…….. e mulher F……, logo como proprietários das frações vendidas através daquelas escrituras e não a sociedade Construções A……., Lda.. Que as mesmas se referem a vendas de frações relativas ao prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Zona ……., ………, lote ……., Rua ………, freguesia da ….., concelho de Bragança, prédio descrito sob o número ……, inscrito na matriz sob o artigo …., prédio este da propriedade de B……. e mulher F……..
O Senhor B…….., NIF ………, sócio-gerente das Construções A……, Lda, no período compreendido entre 1980-09-04 e 2013-08-30, encontrava-se enquadrado em IRS na Cat B-Rer Empresarias, com contabilidade organizada, sujeito passivo de IVA, mas dele isento nos termos do art.º 9.º do CIVA, tendo o CAE 41220 - Construção de Edifícios (Residenciais e Não Residências), atividade que cessou ao abrigo do disposto nos art.ºs 114.o , n.1, alínea a), do CIRS, por ter deixado de praticar habitualmente atos relacionados com a atividade empresarial e profissional e 34.o, n.1, alínea a), do CIVA, por ter deixado de praticar atos relacionados com atividades determinantes da tributação durante um período de dois anos consecutivos.
Por suprimentos considera-se, nos termos do n.º 1, 2 e 6, do art.º 243.º, do Código das Sociedades Comerciais, o contrato pelo qual o sócio empresta à sociedade dinheiro ou outra coisa fungível, ficando aquela obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade desde que se estipule um prazo de reembolso superior a um ano. Assim, os suprimentos figuram como um contrato típico, que visam suprir a insuficiência do capital próprio da sociedade através de um «empréstimo» a médio ou longo prazo, em execução de uma obrigação estatutária ou de forma livre. O contrato de suprimento apresenta, assim, duas características essenciais: por um lado, o carácter de permanência e, por outro, a obrigação por parte da sociedade da restituição dos meios disponibilizados pelo(s) sócio(s).”
8- Tendo-se concluído a esse propósito, no RIT, que:
“Em conclusão:
1. Não existindo qualquer obrigação de pagamento à C……… da importância resultante do lançamento 2 (968,505,97 €);
2. Não tendo sido feita prova documental, que a entidade credora possa, nos montantes registados na contabilidade, ser o Senhor B……. (800,231,97 €);
3. Desconhecendo-se a que título foram as transferências apresentadas, o tempo que tais quantias permaneceram na sociedade Construções A……., Lda., ou se inclusive voltaram a sair da sociedade;
4. Considerando que o sujeito passivo foi notificado para fazer a prova das quantias em dividas e não o tendo feito até à presente data;
5. Considerando ainda que não foi apresentada qualquer justificação para o montante de 168274,00 €, incluída no lançamento 2, cujo credor registado na contabilidade é também a C……………..
Deverá ser reconhecido um rendimento de montante igual aos passivos que carecem de desreconhecimento (968.505,97 €), nos termos da normalização contabilística, em conformidade com o quadro seguinte:
”
9- Mais se considerou, no RIT, que:
“III.6.2 – Lançamentos efetuados no diário 10 tendo como suporte o documento 7
Foi também verificado no decurso do procedimento inspetivo a existência de lançamentos a débito nas contas 121-Banco D……, no valor de 11.032,24 €, 122-E……., no valor de 49.178,62 € e 124-C….., no valor de 818.751,49 € por contrapartida a crédito da conta 2182000001-Adiantamentos de clientes, no valor de 878.751,49 € tendo por base o documento que o S.P. designou por documento 7 e estão datados a 31-12-2015, sem contudo ter sido junto qualquer documento justificativo de tais lançamentos.
Refere o representante do S.P. no procedimento de inspeção, em síntese, que o lançamento teve como racional o facto de existirem entradas em bancos referentes a contratos promessa que não chegaram à contabilidade, tendo sido remetidos as respetivas escrituras de venda. Daí que tivesse sido deduzido que a diferença de valores só podia dizer respeito a adiantamentos realizados pelos promitentes adquirentes.
Contudo o S.P. não junta qualquer documento de entradas em contas bancárias no ano de 2015, antes junta escrituras datadas dos períodos de 2011 e 2012 e relativas a vendas efetuadas pelos sócios, B……. e F……, no âmbito da sua atividade empresarial exercida a título individual.
Compulsados os extratos bancários juntos pelo S.P. verificamos que a posição financeira integrada financeira era, a 31-12-2015 no valor total de 176.987,31 €, montante idêntico ao contabilístico, após os ajustamentos decorrentes do lançamento em causa no montante de 878.751,49 €. (...)
No caso concreto a transferência dos riscos e vantagens associados ao bem apenas são transferidos para o adquirente no momento da escritura, tomando o cliente controlo do bem nesse momento, o rédito pela venda das frações apenas deve ser reconhecido na data da escritura, independentemente de existirem adiantamentos anteriores. Os adiantamentos de clientes devem ser registados, como o foram, numa conta 218-"Adiantamentos a clientes”.
Apenas quando estiverem cumpridas todas as condições previstas no parágrafo 14 da NCRF 20, supra expostas, é que a entidade vendedora deve proceder ao reconhecimento do rédito através do registo na respetiva conta 71.
Ora refere o S.P. nos seus esclarecimentos quanto aos lançamentos que tiveram como suporte o documento 7: "... que o lançamento leve como racional o facto de existirem entradas em bancos referentes a contratos promessa que não chegaram á contabilidade, tendo sido remetidos as respetivas escrituras de venda. Daí que tivesse sido deduzido que a diferença de valores só podia dizer respeito a adiantamentos realizados pelos promitentes adquirentes.".
Contudo as entregas feitas a título de adiantamentos de clientes deveriam ter como suporte documental fatura, ou recibo comprovando o seu recebimento.
Ora em face do exposto no que concerne ao reconhecimento do rédito, o S.P. em face das escrituras de venda alegadas, deveria ter efetuado lançamentos a débito da conta 2182000001- Diversos, no valor global de 878.962,35 € por contrapartida a crédito das respetivas contas 21. Em simultâneo reconhecer um rendimento na conta 71 - pela totalidade dos valores constantes das escrituras, por contrapartida de um débito na conta 21, que seria saldada com o remanescente pago pelos respetivos clientes no momento da escritura.
Assim, os ativos bancários reconhecidos em 2015 nunca poderiam derivar de vendas registadas na contabilidade, uma vez que as contas das entidades que procederam aos adiantamentos estariam, neste momento, saldadas.”
10- Tendo-se ali concluído, a este respeito, que:
“Ora, de acordo com a informação contabilística, foi necessário reconhecer pelo sujeito passivo ativos existentes nas suas contas bancárias que não se encontravam reconhecidos na contabilidade. Todavia, este reconhecimento deveria ter sido por contrapartida de um rendimento e não por contrapartida de adiantamentos de clientes, uma vez que não existe qualquer obrigação da sociedade para com estes. Assim, mostra-se necessário a correção resultante do não reconhecimento do rendimento nos termos da normalização contabilística, em conformidade com o quadro seguinte:
”
11- A Requerente é uma Sociedade do tipo por quotas, de base exclusivamente familiar, e com actividade empresarial iniciada a 16 de Setembro de 1988.
12- O seu capital social actual é de € 249.398,95, sendo que desde o início a sua estrutura de capital estava repartida em duas quotas, uma titulada por B……., no valor nominal de € 149.639,37 e outra titulada por F…….., no valor nominal de € 99.759,98.
13- A 6 de Março de 2009, deu-se a entrada de dois novos Sócios, G………… e H……., filhos dos Sócios originários, a quem estes cederam uma quota, a cada um, no valor de € 24.940,00.
14- Posteriormente, a sócia F………. dividiu a sua quota em duas, tendo cada uma o valor nominal unitário de € 37.409,79, e, em seguida, cedeu cada uma destas quotas aos seus filhos, os referidos G…….. e H………, pelo que estes ficaram titulares de duas quotas cada um.
15- Tendo ficado a estrutura de capital da Requerente distribuída por B………. (titular de 50% do capital social) e os seus dois Filhos, o G…….. e a H……… (titulares de 25% do capital social cada um).
16- A gerência da Requerente é, desde a sua constituição, exercida pelo Sócio B……. .
17- Em termos cadastrais, a Requerente apresenta o CAE principal – 41200 (Construção de Edifícios – Residenciais e Não Residenciais) e o CAE secundário – 68200 (Arrendamento de Bens Imobiliários).
18- A Requerente está, e esteve, enquadrada no regime geral de determinação do lucro tributável em IRC.
19- Em termos de IVA, a Requerente foi sujeito passivo sujeito, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do Código do IVA, enquadrado no regime normal de periodicidade mensal até Fevereiro de 2015, e isento, nos termos do artigo 9.º do mesmo Código, a partir de 2 de Março de 2015.
20- Ao longo dos seus mais de 30 anos de existência, a Requerente dedicou-se, praticamente em exclusivo, à construção imobiliária para venda, na cidade de Bragança.
21- O Sócio B…….., titular do NIF ………, exerceu entre 4 de Setembro de 1980 e 30 de Agosto de 2013, a actividade de Construção de Edifícios (Residenciais e Não Residenciais) – CAE 41220 – a título de Empresário em Nome Individual (ENI).
22- Enquanto ENI, B………. foi tributado em sede de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), categoria B – rendimentos empresariais e profissionais, através do regime da contabilidade organizada, e mediante englobamento com os restantes rendimentos por si auferidos e sujeitos às taxas progressivas.
23- A maior parte dos lucros obtidos pela Requerente ao longo da sua actividade foram sendo acumulados na mesma, sob a forma de reservas.
24- Os movimentos financeiros ocorridos entre o Sócio-gerente B………. e a Sociedade foram efectuados para satisfazer as necessidades de financiamento das obras, dada a dimensão temporal do ciclo de exploração.
25- Foram efectuadas transferências para a conta bancária da Requerente, referentes a adiantamentos e/ou pagamentos relativos à venda de fracções autónomas do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na zona de ……, …….., lote …, freguesia da …, concelho de Bragança, a que corresponde a descrição com o número ….. e o artigo matricial …., prédio este que era propriedade de B…….. e mulher F……..
A.2. Factos dados como não provados
Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13 , “o valor probatório do relatório da inspecção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.
Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.
B. DO DIREITO
Conforme expressamente enunciado, a Requerente põe ora em causa a integralidade das seguintes correcções:
i. lançamentos efectuados no diário 10 tendo como suporte o documento 2 e que geraram uma correcção no valor de € 968.505,97 (ref. III.6.1. do RIT); e
ii. nos lançamentos efectuados no diário 10 tendo como suporte o documento 7 e que geraram uma correcção no valor de € 878.962,35 (cf. ref. III.6.2. do RIT).
Essencialmente, e antes de avançar para a análise de cada um dos pontos em questão, cumpre notar que ambas as correcções assentam, essencialmente, num ponto comum, que é a circunstância de a Requerente não ter apresentado o documento de suporte de cada um dos lançamentos, o que levou a AT a desconsiderá-los, recalculando o lucro tributável como se tais lançamentos não existissem.
Posto isto, vejamos cada uma das situações, nas respectivas especificidades.
*
Em causa, na primeira das correcções a apreciar, estão os seguintes movimentos:
Não tendo sido apresentado o documento 2, de suporte aos referidos movimentos, a AT concluiu, em suma, que, sendo demonstrado – o que não é contestado pela Requerente – a inexistência das dívidas registadas nas contas 2513101 e 251320, haveria que desreconhecer tal passivo, o que integrará um rendimento tributável em IRC.
A Requerente, por seu lado, afirma que os registos nas contas se deveram a um erro na contabilidade, motivado pela falta de disponibilização de documentos pela Requerente.
Assim, desde o decurso do procedimento de inspecção tributária, em resposta a esclarecimentos solicitados pela própria inspecção, que o contribuinte esclareceu a AT que o passivo inscrito nas contas 2513101 e 251320 nunca existiu, que era um passivo devido a suprimentos não formalizados nem, consequentemente, registados, prestados pelo sócio B….., e que os movimentos suportados no documento 2 em questão, igualmente nunca existiram, tendo sido unicamente o expediente contabilístico para regularizar a situação.
A AT, no entanto, manteve a correcção em questão, entendendo, em suma, que:
1. Não existia qualquer obrigação de pagamento à C…… da importância resultante do lançamento 2 (968,505,97 €);
2. Não foi feita prova documental, que a entidade credora possa, nos montantes registados na contabilidade, ser o sócio B……. (800,231,97 €);
3. Desconhece-se a que título foram as transferências apresentadas, o tempo que tais quantias permaneceram na sociedade Construções A……, Lda., ou se inclusive voltaram a sair da sociedade;
4. O sujeito passivo foi notificado para fazer a prova das quantias em dívida, não o tendo feito até à presente data;
5. Não foi apresentada qualquer justificação para o montante de 168274,00 €, incluída no lançamento 2, cujo credor registado na contabilidade é também a C…….
Ora, ressalvado o respeito devido, não se poderá julgar tal fundamentação suficiente para sustentar a correcção ora em apreço.
Com efeito, e desde logo, para proceder à tributação por desreconhecimento de um passivo, não é suficiente demonstrar, como consensualmente é o caso, que o movimento que o extingue não tem correspondência com a realidade.
Antes, e sobretudo quando acontece como na presente situação, em que o sujeito passivo nega a existência do próprio passivo desreconhecido, é igualmente necessário demonstrar a existência de tal passivo, não sendo aceitável nem suficiente que se dê por assente a existência do mesmo com base numa contabilidade – confessada e reconhecidamente – inverídica.
Ou seja, e em suma, no caso, a AT deveria ter apurado e demonstrado, não só por força do princípio do inquisitório mas, igualmente, por força das regras do ónus da prova – e tanto mais que a Requerente, no cumprimento do seu dever de colaboração, instado pela AT, afirmou, logo durante o procedimento de inspecção, que o passivo registado não existia – que o passivo de cujo desreconhecimento resultaria o rendimento a tributar, existia efectivamente.
O que não aconteceu, gerando-se, pelo menos, uma fundada dúvida sobre a existência do facto tributário, geradora da anulabilidade do acto tributário, conforme impõe o art.º 100.º, n.º 1, do CPPT.
Com efeito, a primeira – e fundamental – conclusão em que a AT funda a correcção ora em causa (“Não existia qualquer obrigação de pagamento à C…….. da importância resultante do lançamento 2”), é insuficiente, já que tal apenas poderia legitimar aquela, se a obrigação de pagamento em questão alguma vez tivesse existido, e tivesse deixado de existir, o que não se comprova, para lá de qualquer dúvida razoável.
Acresce ainda que, mesmo que se verificasse a existência de tal rendimento, derivado da extinção de um passivo, face à prova oferecida pela Requerente, sempre necessário seria apurar se, concomitantemente e em que medida, não existiria um passivo a reconhecer, derivado das entradas imputadas ao sócio B….., ou a terceiros.
É que, conforme emerge, para além do mais, das folhas 15 a 18 do RIT, a AT reconheceu as entradas, na esfera da Requerente, dos montantes indicados pela Requerente no cumprimento do seu dever de colaboração, como suprimentos do referido sócio, limitando-se, a tal respeito a entender que não se sabia a que título foram as transferências apresentadas, o tempo que tais quantias permaneceram na sociedade Construções A……., Lda., ou se inclusive voltaram a sair da sociedade.
Ora, ressalvado uma vez mais o respeito devido, não se poderia aceitar tal entendimento.
Com efeito, estando em causa a consideração de uma componente negativa do lucro tributável, o contribuinte apenas teria que demonstrar a sua existência e, já não, que a mesma foi modificada ou extinta, tanto mais que a AT, conforme é igualmente pacífico nos autos, teve acesso a todos os extractos bancários da Requerente.
Deste modo, demonstrado – e aceite pela AT, nos termos descriminados no RIT – as referidas entradas, sem causa que obstasse ou impedisse a obrigação de as restituir, ou a AT demonstrava que as mesmas tinham sido restituídas, ou estaria obrigada a reconhecer as mesmas como um passivo, ainda que não contabilizado, da Requerente.
Daí que, também por aqui, se geraria uma dúvida razoável sobre a quantificação do facto tributário, geradora da anulabilidade do acto de liquidação sub iudice, nos termos do artigo 100.º, n.º 1, do CPPT.
Daí que, pelo exposto, deva proceder, nesta parte, o pedido arbitral.
*
Na segunda das correcções a apreciar, estão em causa os seguintes movimentos:
Não tendo sido apresentado o documento 7, de suporte aos referidos movimentos, a AT concluiu que, tendo sido necessário à Requerente reconhecer activos existentes nas suas contas bancárias que não se encontravam reconhecidos na contabilidade, tal reconhecimento deveria ser reconhecido por contrapartida de um rendimento, e não por contrapartida de adiantamentos de clientes, gerando-se, desse modo, um rendimento tributável em IRC.
Relativamente a esta situação apurou-se no RIT, em suma, que:
- compulsados os extractos bancários, a posição financeira integrada da Requerente era, a 31-12-2015, no valor de €176.987,31, montante idêntico ao contabilizado, após os ajustamentos decorrentes do lançamento em causa, no valor de €878.751,49;
- da contabilidade retira-se que o valor total de adiantamentos a clientes é de €1.174.962,35 para o período de 2015, estando apenas comprovado documentalmente o valor de €296.000,00;
- compulsados os extractos bancários relativos ao período de 2015, os mesmos revelam que não foram depositados naqueles bancos as supra-referidas quantias.
Em termos fácticos, portanto, e no que para o que ora releva, é o exposto tudo quanto no RIT se apurou.
Em sede de inspecção tributária, a Requerente sustentou que o racional do lançamento foi o de que existirem entradas em bancos referentes a contratos promessa que não chegaram à contabilidade, tendo sido remetidas as respectivas escrituras de venda, pelo que se deduziu que a diferença de valores só podia dizer respeito a adiantamentos realizados pelos promitentes adquirentes.
Em sede arbitral, veio a Requerente sustentar que o lançamento em causa devia ter reconhecido os empréstimos dos Sócios, ou seja, a conta creditada como “adiantamento de clientes” correspondia, com base nos factos descritos e apurados pelos SIT, a suprimentos realizados pelo Sócio B….. e pela Sócia F……., em razão de transferências e depósitos efectuados a partir da actividade como ENI pelo Sócio B…...
Aqui chegados, quid iuris?
A primeira conclusão a tirar, e antes de tudo o mais, é que a contabilidade da Requerente não merece qualquer credibilidade.
Com efeito, a mesma reflecte movimentos bancários inexistentes (a AT constatou que os extractos bancários revelam que não foram depositados naqueles bancos as supra-referidas quantias), que são regularizados por movimentos formais, sem qualquer correspondência na realidade, não sendo o sujeito passivo capaz de adiantar e demonstrar uma explicação substancial coerente para o ocorrido (numa primeira fase seriam “adiantamento de clientes” e depois “suprimentos de sócios”).
Assim, e outra conclusão não é possível tirar, há que concluir que nem a contabilidade merece qualquer credibilidade, nem o sujeito passivo deu cabal cumprimento ao seu dever de colaboração, esclarecendo, de forma transparente e directa as incorrecções da contabilidade.
Não obstante, o certo é que nada mais demonstra a AT.
É que, compulsado o RIT nesta parte, nos termos previamente sumariados, o que se verifica é que a AT apura, e bem, que o movimento contabilístico ora em apreço não está contabilisticamente fundado nem tem qualquer aderência à realidade e que as explicações dadas pelo sujeito passivo não tem qualquer cabimento e são insusceptíveis de ser acolhidas.
Todavia, a questão que se impõe, de seguida, é se, daí se pode concluir, para lá de qualquer dúvida razoável, pela existência, no exercício de 2015, de um rendimento derivado do aumento de activos, por contrapartida do reconhecimento de um rendimento, como considerou a AT.
Ora, a resposta a esta questão, não pode deixar de ser negativa.
Efectivamente, e como se expôs já, o que, da forma mais resumida possível, concretamente se apurou no caso, é que na contabilidade constavam saldos bancários que não tinham correspondência com a realidade, ou seja, que, segundo a contabilidade, as disponibilidades financeiras nas entidades bancárias em causa deveriam ser, a 31-12-2015, de € 1.055.738,8, quando na realidade eram de €176.987,31.
Não obstante, fica-se sem saber, concretamente, a que se deve tal diferença, designadamente: a) se a mesma se deve a rendimentos incorrectamente, ou não, contabilizados; e, sendo esse o caso b) se tais rendimentos são imputáveis ao exercício de 2015.
Que isto é assim, de resto, ficará substancialmente claro face a uma simples pergunta, que é a de saber se:
a) caso o movimento ora em causa (assente no documento 7) não tivesse sido registado (ou seja, se, simplesmente a AT constatasse o desfasamento entre as disponibilidades financeiras registadas na contabilidade e as disponibilidades financeiras reais); e
b) se a Requerente não tivesse prestado quaisquer “esclarecimentos” (o que acaba por ser o caso, porque nada do que a Requerente informa na matéria em causa esclarece o que quer que seja),
seria legítimo à AT efectivar a correcção ora em apreço?
A resposta, crê-se, não poderá, em caso algum, ser positiva, porquanto, nesta última situação, tal como no presente caso, não se evidencia, para lá de qualquer dúvida razoável, a ocorrência, no exercício de 2015, do rendimento tributado.
Com efeito, a correcção operada pela AT, e ora em apreço, e tal como alega a Requerente, corresponde substancialmente à aplicação de métodos presuntivos, sem que tenha sido instaurado e seguido o correspondente procedimento próprio.
Na realidade, o que a AT fez foi retirar de um facto conhecido – o desfasamento entre as disponibilidades financeiras contabilizadas em bancos e a realidade – um facto desconhecido – a obtenção de um rendimento correspondente àquela diferença, realizado no ano de 2015.
Neste contexto, não se pode concluir de outra forma, julga-se, que não pela ocorrência de fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, pelo que deverá o acto impugnado ser anulado, como impõe o art.º 100.º, n.º 1, do CPPT.
Face ao decidido, fica prejudicado o conhecimento das demais questões colocadas pela Requerente.
***
C. DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar integralmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:
a) Anular as liquidações adicionais de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) e respetivos juros compensatórios (JC) por retardamento da liquidação, do exercício fiscal de 2015, identificadas, respetivamente, sob os n.ºs 2019 ……….. e 2019 …………;
b) Condenar a Requerida nas custas do processo, abaixo fixadas.
D. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 456.075,45, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
E. Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 7.344,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi totalmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa, 13 de Setembro de 2021
O Árbitro Presidente
(José Pedro Carvalho)
O Árbitro Vogal
(Pedro Miguel Bastos Rosado)
O Árbitro Vogal
(Augusto Vieira)