Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 180/2021-T
Data da decisão: 2021-09-13  ISV  
Valor do pedido: € 3.417,50
Tema: Artigo 11º do CISV – Conformidade com o artigo 110º do TFUE – Veículos usados provenientes de outros Estados-Membros.
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DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)

 

I. Relatório

1. No dia 26-3-2021, o sujeito passivo A..., contribuinte nº..., residente na Rua ... nº..., ..., ...–..., em Lisboa, apresentou um pedido de constituição do tribunal arbitral singular, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), tendo em vista a declaração de ilegalidade e anulação parcial da liquidação de ISV resultante da Declaração Aduaneira de Veículos (DAV) n.º 2019/..., emitida pela Alfândega do Jardim do Tabaco, Lisboa, no valor de € 11.395,64 referente ao veículo ligeiro de passageiros, usado, da marca ..., modelo ..., movido a gasolina, n.º de motor..., n.º de chassi/quadro ..., cilindrada ..., com a matrícula definitiva ... .

2. Nos termos do n.º 1 do artigo 6.º do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem designou o árbitro ora signatário, disso notificando as partes.

3. O tribunal encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objecto do processo.

4. Os fundamentos que sustentam o pedido de pronúncia arbitral da Requerente são em súmula, os seguintes:

4.1. O Requerente introduziu em Portugal, com origem na Bélgica, o veículo ligeiro de passageiros, usado, da marca ..., modelo ..., movido a gasolina, n.º de motor..., n.º de chassi/quadro..., cilindrada ..., a que foi atribuída a matrícula ... .

4.2. O referido veículo tinha sido matriculado pela primeira vez no seu país de origem, a Bélgica, em 29 de janeiro de 2015, tendo na altura 74 214 kms percorridos.

4.3. O Requerente procedeu à respectiva Declaração Aduaneira de Veículos (DAV) n.º 2019/..., emitida pela Alfândega do Jardim do Tabaco.

4.4. Com base nos elementos constantes da DAV foi efetuado o cálculo do ISV, com base nas disposições constantes dos artigos 7.º e 11.º do respetivo Código, sendo apurado o valor de € 11.395,64, pela seguinte forma:

 

4.5. Em 31 de Maio de 2019, o Requerente efetuou o pagamento do imposto liquidado.

4.6. O pedido de pronúncia arbitral, apresentado em 28.03.2021, visa a declaração de ilegalidade e anulação parcial do ato de liquidação de Imposto sobre Veículos (ISV) n.º 2019/..., da Alfândega do Jardim do tabaco, de 24-05-2019, no montante total de € 11.395,64, sendo o pedido de devolução fixado em € 3.417,50 correspondentes à não desvalorização da componente ambiental do ISV.

4.6. O Requerente pede assim a devolução do imposto indevidamente cobrado, no valor de € 3417,5, acrescido dos correspondentes juros indemnizatório contados nos termos legais, requerendo, ainda, que, caso subsistam dúvidas sobre a interpretação e aplicação do artigo 110.º do TFUE, o reenvio prejudicial desta questão ao Tribunal de Justiça da União Europeia.

4.7. O fundamento do pedido reside no facto de que a liquidação impugnada, efectuada ao abrigo das normas dos artigos 7.º e 11.º do Código do Imposto Sobre Veículos (CISV), enferma de ilegalidade por, em conformidade com disposto no citado artigo 11.º, não ter sido considerada qualquer percentagem de redução do imposto relativamente à antiguidade do veículo e à componente ambiental, em violação do disposto no artigo 110.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE).

4.8. O Requerente efectuou reclamação graciosa junto da Requerida a 08.06.2020 a fim de solicitar a devolução dessa parte do ISV.

4.9. A Requerida indeferiu essa reclamação graciosa, tendo notificado o Requerente por carta registada a 24.12.2020.

4.10. A par da anulação parcial do acto de liquidação, e consequente reembolso da importância indevidamente cobrada, o Requerente solicita ainda que lhe seja reconhecido o direito a juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43.º da LGT.

5. Por seu turno, a Requerida Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, na qual se defendeu, em súmula, nos seguintes termos:

5.1. O Requerente apresentou reclamação graciosa junta da Requerida em 08.06.2020 a fim de solicitar devolução de parte do ISV liquidado e pago.

5.2. Invoca o Requerente que a Requerida indeferiu a reclamação graciosa tendo notificado o Requerente por carta registada a 24.12.2020, mas a reclamação graciosa foi indeferida por despacho de 4.5.2021, já depois de o Requerente ter apresentado, intempestivamente, o presente pedido arbitral.

5.3. É que, nos termos do disposto no nº 1 do artigo 70.º do CPPT, a reclamação graciosa pode ser deduzida com os mesmos fundamentos previstos para a impugnação judicial e será apresentada no prazo de 120 dias contados a partir dos factos previstos no n.º 1 do artigo 102º.

5.4. Ora, conforme a alínea a) do referido nº 1 do artigo 102.º, aplicável ao caso em apreço, os 120 dias devem ser contados a partir do termo do prazo para pagamento voluntário das prestações tributárias legalmente notificadas ao contribuinte.

5.5. De acordo com a casa T da DAV que se transcreve infra, o termo do prazo para o pagamento voluntário do ISV em crise ocorreu em 12.06.2019, pelo que a reclamação graciosa só seria tempestiva se tivesse sido apresentada até 10.10.2019 o que não ocorreu.

 

5.6. Ou seja, na data da apresentação da reclamação graciosa pelo Requerente, em 08.06.2020, o direito a reclamar do contribuinte tinha há muito precludido.

5.7. Nestes termos, uma reclamação graciosa cujo pedido foi intempestivamente apresentado não pode justificar a tempestividade do pedido de pronúncia arbitral, pelo que na data da apresentação do pedido arbitral pelo requerente, em 26.03.2021, o prazo de impugnação havia decorrido há muito.

5.8. Pelo que, nos termos do artigo 576.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (aplicável subsidiariamente pelo artigo 29.º do RJAT), deve a AT ser absolvida do pedido atenta a verificação da exceção peremptória de intempestividade do pedido.

5.9. Conforme resulta dos elementos constantes do Processo Administrativo (PA), constituído pelos procedimentos atinentes às Declarações Aduaneiras de Veículo supra identificadas, das Alfândegas de Leixões e do Freixieiro e procedimento de reclamação graciosa, em 24.05.2019 (data de aceitação da DAV), o Requerente procedeu à regularização fiscal do veículo ligeiro de passageiros, usado, da marca ..., modelo..., proveniente de outro Estado-membro (Bélgica), tendo para o efeito processado, para introdução no consumo, através de transmissão electrónica de dados, a identificada declaração, na Alfândega do Jardim do Tabaco.

5.10. O Requerente, enquanto proprietário do veículo procedeu à sua introdução no consumo, no território nacional, através da DAV em questão, tendo-lhe sido atribuída a matrícula nacional ..., conforme indicado no Quadro M do formulário da mesma DAV.

5.11. Conforme resulta do teor da DAV, as características do veículo constam das inscrições dos Quadros E, F e G, referentes às características do veículo, apresentação do veículo e matrículas anteriores, para as quais se remete.

5.12. Sendo que, no referido Quadro E da DAV, atinente às características do veículo, consta, na casa 50, relativa à Emissão de Gases CO2, o respetivo valor de 194g/km.

5.13. Quanto ao veículo declarado, conforme indicado na DAV, para efeitos de aplicação da tabela D prevista no n.º 1 do artigo 11.º do CISV, inseria-se no escalão “mais de 4 a 5” anos de uso, tendo sido aplicada no cálculo do imposto a percentagem de redução correspondente de 4 %.

5.14. De acordo com o Quadro R da DAV, o cálculo do imposto sobre veículos foi efetuado com recurso à tabela A, aplicável aos veículos ligeiros de passageiros, atendendo à componente cilindrada e à componente ambiental, nos termos do artigo 7.º do CISV.

5.15. Em 08.06.2020 o Requerente apresentou reclamação graciosa do ato de liquidação junto da Alfândega do Jardim do Tabaco.

5.16. Na pendência da presente ação, veio a reclamação graciosa a ser objeto de despacho de indeferimento do Diretor da Alfândega do Jardim do Tabaco do Jardim do Tabaco, proferido em 04.05.2021, decisão que veio a ser notificada ao Requerente pelo ofício n.º..., de 14.05.2021.

5.17. Em 26.03.2021 o Requerente apresentou junto da Instância Arbitral o presente pedido de constituição de tribunal arbitral peticionando a anulação parcial da liquidação de ISV e o reembolso do montante de 3.417,50 € acrescido de juros indemnizatórios.

5.18. Estando em causa, nos presentes autos, a admissão de veículo usado, proveniente de outro Estados-membro, deve atender-se, especificamente, ao artigo 11.º do CISV na redação atualmente em vigor, o qual já foi sujeito a alterações desde a entrada em vigor do diploma que aprovou o mesmo código.

5.19. Não obstante o artigo 11.º do CISV ter sido objecto de várias alterações desde a sua entrada em vigor, para o caso em apreço releva, particularmente, a redacção atual introduzida pela Lei n.º 42/2016, de 28.12.2016 (Lei do OE para 2017), a qual procedeu ao alargamento das percentagens de redução da tabela D, tendo sido criado o escalão “até um ano”, a que corresponde uma percentagem de redução de 10%, sendo ainda criados novos escalões a partir dos cinco anos de uso, com percentagens de redução que atingem os 80% para veículos com mais de 10 anos, permitindo estabelecer uma maior correspondência entre a desvalorização comercial média sofrida pelos veículos usados no mercado nacional e o seu nível de tributação, em sede de ISV, que na redacção anterior se cifrava no máximo de 52 % para veículos com mais de 5 anos de uso.

5.20. Relevando, também, no contexto da tributação automóvel, o disposto no artigo 1.º do CISV, de acordo com o qual o imposto sobre veículos obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam nos domínios do ambiente, infraestruturas viárias e sinistralidade rodoviária, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária.

5.21. O artigo 191.º do TFUE, que consagra, expressamente, que a política da União no domínio do ambiente contribuirá para a prossecução dos objectivos da preservação, a proteção e a melhoria da qualidade do ambiente, da protecção da saúde das pessoas e a promoção, no plano internacional de medidas destinadas a enfrentar os problemas regionais ou mundiais do ambiente e designadamente, a combater as alterações climáticas, acrescentando o nº2 que a política da União se baseará nos princípios da precaução e da acção preventiva, da correcção, prioritariamente na fonte, dos danos causados ao ambiente e do poluidor-pagador.

5.22. Resultando ainda do art. 66º, nº2, da Constituição que incumbe ao Estado: a) prevenir e controlar a poluição; f)  Promover a integração de objectivos ambientais nas várias políticas de âmbito sectorial; h)  Assegurar que a política fiscal compatibilize desenvolvimento com protecção do ambiente e qualidade de vida.

5.23. No caso concreto o imposto foi calculado de acordo com o previsto no artigo 7.º. do CISV, tendo sido aplicada uma redução para a componente ambiental nos termos deste artigo, não tendo sido aplicada outra redução à componente ambiental porque tal redução não se encontra prevista no artigo 11.º do CISV, ao contrário do estabelecido para a componente cilindrada, que prevê uma redução em função dos “anos de uso” de acordo com a tabela D.

5.24. O modelo de tributação do ISV, resultante da aprovação do CISV pela Lei n.º 22-A/2007, de 29 de Junho, foi norteado por preocupações ambientais com respeito pelas diretrizes emanadas pelas instâncias comunitárias e pelos compromissos assumidos no âmbito do Protocolo de Quioto e, mais tarde, pelo Acordo de Paris.

5.25. Acrescendo que o estabelecido no artigo 191.º do TFUE, tendo surgido depois do artigo 90.º do TCE (actual artigo 110.º do TFUE), exige que se proceda a uma interpretação atualista, no que concerne ao enquadramento da questão sub judice, que deve atender aos elementos sistemático e teleológico, porquanto, naquele dispositivo, afirma-se, expressamente, no n.º 1, que a política da União, no domínio do ambiente, contribuirá para a prossecução, entre outros, da preservação, da proteção e a melhoria da qualidade do ambiente, não podendo o artigo 110.º do TFUE ser interpretado nos termos defendidos pelo Requerente.

5.26. Devendo, pois, a interpretação do artigo 110.º do TFUE ser efectuada à luz do disposto no artigo 191.º do mesmo tratado, sob pena de conflitualidade e desarmonia entre as duas normas, a não ser que o TJUE, em sede de interpretação, venha defender a existência de tal violação e que a norma do artigo 110.º do TFUE tem valor superior ao previsto no artigo 191.º quanto à proteção e a melhoria da qualidade ambiental.

5.27. Por outro lado, a aplicação da mesma percentagem de redução às duas componentes, por não se encontrar prevista na lei, dá origem a um desagravamento que, por via da alteração à taxa do imposto, incentivava os consumidores a utilizarem veículos mais poluentes, interpretação que não pode deixar de se considerar inconstitucional face ao disposto no n.º 2 do artigo 103.º da Constituição da República Portuguesa.

5.28. Acrescendo que, em rigor, os artigos 7.º e 11.º do CISV não violam a norma prevista no artigo 110.º do TFUE, por gerarem uma descriminação negativa dos veículos usados admitidos no território nacional, uma vez que estes artigos não são de aplicação exclusiva aos veículos usados admitidos no território nacional.

5.29. Configurando a  aplicação  da  interpretação,  pugnada  pela  Requerente,  uma  desaplicação  do  direito internacional - do artigo 191.º do TFUE, do Protocolo de Quioto e do Acordo de Paris - que vincula o Estado Português, por força do artigo 8.º da CRP, bem como uma violação do disposto no n.º 1, e alíneas a), f) e h), do n.º 2, do artigo 66.º e do n.º 2 do artigo 103.º da CRP.

5.30. Concluindo-se que as liquidações de ISV, que aplicaram o artigo 11.º do CISV, foram efectuadas em conformidade com a lei nacional e o direito comunitário, cumprindo, designadamente, o disposto nos artigos 110.º e 191.º do TFUE e nos artigos 66.º e 103.º da Constituição, não existindo, conforme o exposto, a invocada discriminação da tributação dos veículos usados nacionais relativamente aos admitidos de outros Estados-membros, não se verificando, consequentemente, a alegada violação do artigo 110.º do TFUE.

5.31. Destarte, tendo o acto impugnado sido efectuado de acordo com o direito nacional e comunitário, não enfermam de qualquer vício, devendo, consequentemente, na parte que vem impugnada, quanto ao cálculo do imposto efetuado nos termos do n.º 1 do artigo 11.º do CISV e à não aplicação de redução à componente ambiental nos termos deste artigo, considerar-se conforme ao direito constituído então em vigor.

5.32. Da interpretação do artigo 11.º do CISV defendida pela Requerente resulta uma violação do princípio da legalidade consagrado no artigo 266.º (Princípios fundamentais) da Constituição da República Portuguesa (CRP), o qual, além de estabelecer, no n.º 1, que a administração pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos, impõe aos órgãos e agentes administrativos a subordinação à Constituição e à lei, devendo actuar no exercício das suas funções com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé (n.º 2).

5.33. Concomitantemente, no que concerne ao princípio da legalidade tributária, nos termos do artigo 8.º da Lei Geral Tributária, estão sujeitos a este princípio a incidência, a taxa, os benefícios fiscais, as garantias dos contribuintes, bem como a liquidação e cobrança dos tributos.

5.34. Ora, no caso concreto a administração tributária agiu nos termos da lei, de acordo com as normas de incidência, taxas e liquidação do imposto em causa, não podendo ter actuado de modo diferente, face ao direito constituído, sob pena de violar os referidos princípios da legalidade e da justiça tributária, da igualdade e da segurança jurídica.

5.35. Assim, relativamente à liquidação ora impugnada, a mesma foi efectuada de acordo com as normas aplicáveis em vigor, designadamente as constantes do artigo 7.º e do artigo 11.º do CISV, não sendo possível retirar da letra da lei, no caso, do artigo 11.º do CISV, ou de outra norma do mesmo código, a aplicação da redução prevista na admissão de veículos usados, para a componente cilindrada, à componente ambiental, além da aplicada por força do artigo 7.º.

5.36. Nesta medida, a interpretação da Requerente ofende claramente o princípio da equivalência previsto no artigo 1.º do CISV, sobre o qual assenta o atual modelo de tributação automóvel, e o artigo 9.º, alínea e) e artigo 66.º, n.º 1 e n.º 2, ambos da CRP, ocorrendo uma violação do princípio constitucional do Estado de direito ambiental.

5.37. Na elaboração do CISV foram considerados os referidos princípios constitucionais, estando subjacentes, designadamente, nos artigos 1.º e 11.º do CISV, não podendo afastar-se a aplicação deste artigo, impondo-se que se afira a sua conformidade com os princípios constitucionais consagrados no artigo 9.º e 66.º da CRP, até porque está em causa matéria de reserva de lei (âmbito de reserva legislativa da Assembleia da República).

5.38. Acrescendo que, a interpretação defendida pela Requerente, posto que defende a aplicação de uma fórmula de cálculo, com atribuição de uma redução não prevista na tabela D do artigo 11.º, acrescenta uma redução à componente ambiental que não está consagrada na letra da lei, que não foi querida pelo legislador, consubstancia assim, também nesta parte, uma violação dos princípios constitucionais aludidos, da legalidade e da justiça tributária, da igualdade e da certeza e segurança jurídica.

5.39. Por outro lado, a aplicação de tal redução, não prevista na lei, não pode deixar de se considerar como um benefício fiscal que não se encontra previsto na lei e que é inconstitucional face ao disposto no n.º 2 do artigo 103.º da CRP, que estabelece que os impostos são criados por lei, determinando esta igualmente a incidência, taxa, benefícios fiscais e garantias dos contribuintes, que coloca igualmente a Requerente em situação de vantagem face aos demais sujeitos passivos, criando também, nesta parte, uma situação de desigualdade fiscal.

5.40. Ademais, a pretensão da Requerente também olvida que estamos perante um imposto sobre o consumo não harmonizado, e que a tributação do consumo visa adaptar a estrutura do consumo à evolução das necessidades do desenvolvimento económico e da justiça social, devendo onerar os consumos de luxo, conforme o consagrado no n.º 4 do artigo 104.º da CRP.

5.41. E, sendo um dos princípios gerais da interpretação das normas jurídicas e “critério de interpretação” o da interpretação conforme à Constituição, de acordo com este critério, no caso de o intérprete, mediante a aplicação dos elementos interpretativos, chegar a mais do que um sentido possível a atribuir a um preceito normativo, deve preferir aquele que mais se adeque à Constituição.

5.42. Não podendo, assim, deixar de se considerar o artigo 204.º da CRP, que impõe que os tribunais não apliquem normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados.

5.43. Por outro lado, defender a ilegalidade da liquidação por se entender que existe uma desconformidade do artigo 11.º do CISV com o artigo 110.º do TFUE, além de violar, por via de tal interpretação, os já referidos princípios, consagrados na nossa Lei Fundamental, viola ainda, por via da desaplicação do artigo 11.º do CISV o princípio do acesso ao direito à tutela jurisdicional efectiva.

5.44. De facto, tendo o Requerente recorrido à arbitragem tributária para impugnar as liquidações, a administração encontra-se coarctada no seu direito de reacção face aos limitados meios de recurso perante a prolação de uma decisão arbitral desfavorável, em geral e, concretamente, quanto ao recurso de decisão que desaplica norma nacional com fundamento em violação de princípio de direito da União Europeia.

5.45. É que o RJAT prevê tão somente três tipos de reacções recursórias, sendo eles o recurso para o Tribunal Constitucional, o recurso para uniformização de jurisprudência e a impugnação arbitral, com base nas nulidades elencadas no artigo 28.º, n.º 1 do RJAT.

5.46. Ora, defendendo a Requerente a violação de um princípio do TFUE no caso concreto, e prevendo o RJAT que o recurso para o Tribunal Constitucional só pode ter como fundamento as alíneas a) e b) do artigo 70.º da Lei do TC, não há dúvida que, a vingar tal interpretação, estamos perante uma violação do princípio do livre acesso aos tribunais.

5.47. Verifica-se, pois, face ao disposto nos artigos 20.º, n.º 1 e n.º 4 e 266.º, todos da CRP, a violação dos princípios do Estado de Direito e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva.

5.48. Em face do exposto, a interpretação do Requerente do artigo 11.º do CISV viola os princípios, acima mencionados, da legalidade e da legalidade fiscal, da justiça tributária, da igualdade e da certeza e segurança jurídica, do Estado de direito ambiental e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, impondo-se a apreciação da constitucionalidade de tal entendimento, o qual, desde já, reputamos de inconstitucional, não podendo por isso, ser aplicado no caso concreto.

5.49. Devendo a questão da desconformidade do direito nacional, em concreto das normas dos artigos 7.º e 11.º do CISV, aplicáveis à liquidação ora impugnada, ser suscitada junto do TJUE, conforme já decidido pelo Tribunal Constitucional, designadamente, nos autos de recurso n.º 173/20 e n.º 649/20.

5.50. Quanto ao direito a juros indemnizatórios, consagrado no artigo 43.º da Lei Geral Tributária, o mesmo pressupõe que se apure a existência de erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida em montante superior ao legalmente devido.

5.51. E, no caso concreto, não se verifica a existência de qualquer erro que possa ser imputável à administração tributária.

5.52. É que, efetivamente, a liquidação em causa nos presentes autos decorreu exclusivamente da aplicação da lei em vigor, tendo aquela sido efectuada nos termos das normas aplicáveis, previstas no CISV, que determinam a exigibilidade e consequente liquidação do imposto.

5.53. E, estando a AT e os seus órgãos, vinculados, na sua actuação, ao princípio da legalidade, a Requerida AT agiu, sempre, em obediência àquele e em conformidade com o direito em vigor, não podendo ter agido de modo diverso, não devendo, consequentemente, ser-lhe atribuído qualquer erro que lhe seja imputável, nos termos do artigo 43.º da LGT, posição que já foi sufragada em sede arbitral, conforme resulta das decisões proferidas nos Processos n.º 348/2019-T e n.º 34/2020-T.

5.54. Pelo que, face ao invocado, tendo a AT agido no cumprimento estrito da lei, não se verifica qualquer erro de que possa resultar o pagamento indevido do imposto, sob pena de se verificar com tal interpretação, uma violação, também aqui, do invocado princípio constitucional da legalidade e legalidade fiscal, não devendo assistir, por conseguinte, à Requerente, o direito ao pagamento de juros indemnizatórios.

6. Em 12/7/2021 foi proferido despacho arbitral convidando o Requerente a pronunciar-se sobre a excepção de caducidade invocada pela Requerida.

7. Em 20/7/2021, o Requerente respondeu, sustentando não haver lugar à caducidade, uma vez que estaria em causa "o conteúdo essencial de um direito fundamental", previsto no art. 161º, nº2, al. d) do CPA, e que, dado que a norma legal invocada pela Requerida viola o direito comunitário, a impugnação pode ocorrer a todo o tempo, de acordo com o disposto no art. 102º, nº3, do CPPT.

8. Em 20/7/2021 foi proferido despacho arbitral, dispensando a reunião prevista no art. 18º do RJAT por não estarem preenchidas as circunstâncias que justificam a sua realização, podendo as partes requerer que a mesma tivesse lugar, o que estas não fizeram.

 

II – Factos provados

9. Com base na prova documental constante da documentação junta pela Requerente e do processo administrativo junto aos autos pela Requerida, consideram-se provados os seguintes factos, com interesse para a decisão da causa:

9.1. O Requerente apresentou em 28.5.2019 a Declaração Aduaneira de Veículo (DAV) n.º 2019/..., emitida pela Alfândega do Jardim do Tabaco, Lisboa, no valor de € 11.395,64 referente ao veículo ligeiro de passageiros, usado, da marca ..., modelo ..., movido a gasolina, n.º de motor ..., n.º de chassi/quadro ..., cilindrada..., com origem na Bélgica com a matrícula definitiva ... .

9.2. O valor da liquidação de ISV correspondente à referida DAV foi integralmente pago pelo Requerente.

9.3. Dessa importância de ISV, € 7.856,86 corresponde ao valor global da componente cilindrada e € 3.538,78 ao valor global da componente ambiental.

9.4. Para efeitos de aplicação da tabela D prevista no n.º 1 do artigo 11.º do CISV, o veículo em causa inseria-se no escalão “mais de 4 a 5” anos de uso, tendo sido aplicada no cálculo do imposto a percentagem de redução correspondente de 4 %.

9.5. Sendo que, no referido Quadro E da DAV, atinente às características do veículo, consta, na casa 50, relativa à Emissão de Gases CO2, o respetivo valor de 194g/km.

9.6. De acordo com o Quadro R da DAV, o cálculo do imposto sobre veículos foi efetuado com recurso à tabela A, aplicável aos veículos ligeiros de passageiros, atendendo à componente cilindrada e à componente ambiental, nos termos do artigo 7.º do CISV

9.7. Em 08.06.2020 o Requerente apresentou reclamação graciosa do ato de liquidação junto da Alfândega do Jardim do Tabaco.

9.8. Em 26.03.2021 o Requerente apresentou junto da Instância Arbitral o presente pedido de constituição de tribunal arbitral peticionando a anulação parcial da liquidação de ISV e o reembolso do montante de 3.417,50 € acrescido de juros indemnizatórios.

9.9. Na pendência da presente ação, veio a reclamação graciosa a ser objeto de despacho de indeferimento do Diretor da Alfândega do Jardim do Tabaco do Jardim do Tabaco, proferido em 04.05.2021, decisão que veio a ser notificada ao Requerente pelo ofício n.º..., de 14.05.2021.

9.10. Nos termos da fundamentação de 11.4.2021 para onde se remeteu, o indeferimento da reclamação graciosa resultou de se ter considerado que "a liquidação foi efectuada em conformidade com as normas legais em vigor", considerando-se ainda que "o procedimento adequado à obtenção do efeito pretendido seria a Revisão Oficiosa".

 

III - Factos não provados

10. Não há factos não provados com relevo para a decisão da causa.

 

IV - Do Direito

11. São as seguintes as questões a examinar no presente processo.

- A excepção de extemporaneidade do pedido de pronúncia arbitral.

- Da ilegalidade da liquidação de ISV.

- Da inconstitucionalidade da interpretação do artigo 11.º do CISV em conformidade com o artigo 110.º do TFUE.

- Do direito a juros indemnizatórios.

Examinar-se-ão assim essas questões:

 

— A EXCEPÇÃO DA EXTEMPORANEIDADE DO PEDIDO DE PRONÚNCIA ARBITRAL

12. Invocou a Requerida, em sede de excepção, que a reclamação graciosa foi interposta extemporaneamente, uma vez que a mesma foi apresentada depois de decorrido o prazo de 120 dias previsto no art. 70º, nº1, CPPT. Em consequência no seu entender seria extemporâneo o presente pedido de pronúncia arbitral.

Respondeu o Requerente, sustentando não haver lugar à caducidade, uma vez que estaria em causa "o conteúdo essencial de um direito fundamental", previsto no art. 161º, nº2, al. d) do CPA, e que, dado que a norma legal invocada pela Requerida viola o direito comunitário, a impugnação poderia ocorrer a todo o tempo, de acordo com o disposto no art. 102º, nº3, do CPPT.

É manifesto, no entanto, que não está em causa a violação do conteúdo essencial de um direito fundamental, nem a ilegalidade resultante da violação do direito da União Europeia se inclui entre as causas de nulidade dos actos administrativos referida nos art. 161º, nº2, do CPA. Está em causa uma situação de anulabilidade do acto, nos termos do art. 163º, nº1, CPA, pelo que a sua impugnação tem que ocorrer dentro dos prazos legalmente estabelecidos, nos termos do art. 163º, nº3, CPA. Não é assim caso de aplicação do art. 102º, nº3, CPPT, tendo antes a reclamação graciosa que ser apresentada no prazo previsto no art. 102º, nº1, CPPT. Neste termos é de facto extemporânea a apresentação da reclamação graciosa, conforme referido pela Requerida.

Salienta-se, no entanto, que a reclamação graciosa não foi indeferida com fundamento em extemporaneidade, tendo inclusivamente a Requerida salientado que o meio adequado seria o pedido de revisão oficiosa.

Efectivamente, dispõe o artigo 78º, nº 1, da Lei Geral Tributária: “A revisão dos actos tributários pela entidade que os praticou pode ser efectuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou, por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços”.

Referindo o nº 3 do mesmo artigo: “A revisão dos actos tributários nos termos do n.º 1, independentemente de se tratar de erro material ou de direito, implica o respectivo reconhecimento devidamente fundamentado nos termos do n.º 1 do artigo anterior”.

A jurisprudência tem considerado que o erro imputável aos serviços, previsto no art. 78º da LGT como fundamento da revisão oficiosa, abrange o erro de direito, no caso de uma incorrecta interpretação da lei, sendo nesse caso o prazo para o pedido de revisão elevado para quatro anos. Efectivamente, conforme referiu o Supremo Tribunal Administrativo, no Ac. STA 14/3/2012 (Dulce Neto), processo 01007/11:

"Em suma, a revisão do acto tributário por «iniciativa da administração tributária» pode ser efectuada «a pedido do contribuinte», como resulta do artigo 78.º, n.º 7 da LGT e do artigo 86.º, n.º 4, alínea a), do CPPT, bem como dos princípios da legalidade, justiça, igualdade e imparcialidade - art. 266º, nº 2 da CRP. E o «erro imputável aos serviços» constante do artigo 78.º, nº 1, in fine, da LGT compreende o erro de direito e não apenas o lapso, erro material ou erro de facto, como aliás veio esclarecer o n.º 3 do artigo 78.º da LGT, na redacção introduzida pelo artigo 40.º da Lei n.º 55-B/04, de 30 de Dezembro.

É esta jurisprudência consolidada e pacífica que aqui, mais uma vez, se acolhe (Além dos acórdãos referidos na sentença recorrida, leiam-se, por mais recentes, os acórdãos proferidos em 17/05/2006, no recurso n.º 16/06, em 6/06/2007, no recurso n.º 606/06, em 21/01/2009, no recurso n.º 771/08, e em 22/03/2011, no recurso n.º 1009/10.), pois que nenhuma razão se descortina para dela divergir".

No caso dos presentes autos, o Requerente apresentou efectivamente a reclamação graciosa fora de prazo, mas nada impedia a Requerida de convolar a reclamação graciosa num pedido de revisão oficiosa, que considerou mesmo ser o meio adequado. Na verdade, determina o art. 52º CPPT que "se, em caso de erro na forma de procedimento, puderem ser aproveitadas as peças úteis ao apuramento dos factos, será o procedimento oficiosamente convolado na forma adequada".  

Conforme foi igualmente sustentado no Ac. STA 17/1/2018 (Dulce Neto), processo 01377/14:

"Com efeito, constitui jurisprudência pacífica e reiterada desta Secção do STA que a Administração Tributária tem o poder-dever, à luz do disposto no art.º 52º do CPPT, de proceder à convolação do procedimento de reclamação em procedimento de revisão do acto de liquidação sempre que na data em que aquela é apresentada ainda não se encontrava esgotado o prazo dentro do qual a revisão oficiosa podia ser pedida e ordenada. E a tal dever não obsta a intempestividade da reclamação, pois que, para o efeito, apenas é relevante a tempestividade do meio procedimental adequado - cfr. acórdãos de 6/10/2005, no proc. nº 0653/05, de 7/10/2009, nos procs. nº 0474/09, 0475/09 e 0476/09, de 02/11/2011, no proc. nº 0329/11, e de 14/12/2011, no proc. nº 0366/11".

Assim sendo, e uma vez que a Requerida não indeferiu a reclamação graciosa por extemporaneidade, tendo reconhecido a existência de um meio idóneo, a revisão oficiosa, para apreciação da questão de fundo, em relação ao qual estaria obrigada a fazer a convolação do procedimento, é manifesto que improcede a excepção de caducidade da reclamação por extemporaneidade.

Efectivamente, uma vez que a liquidação ocorreu em 28.5.2019, e a reclamação graciosa foi apresentada em 18.6.2020, podendo a mesma ser convolada num pedido de revisão oficiosa, o qual estaria dentro do prazo previsto no art. 78º, nº1, da LGT, não existe extemporaneidade nesse pedido.

Nestes termos, julga-se improcedente a excepção relativa à caducidade do direito de impugnar as liquidações por extemporaneidade da reclamação graciosa.

 

DA ILEGALIDADE DA LIQUIDAÇÃO DE ISV.

13. Sustenta ainda o Requerente existir ilegalidade da liquidação de ISV, uma vez que a disposição do art. 11º do CISV contraria o art. 110º do Tratado de Funcionamento da União Europeia.

O art. 110º do Tratado de Funcionamento da União Europeia dispõe expressamente o seguinte:

"Nenhum Estado-Membro fará incidir, directa ou indirectamente, sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidam, directa ou indirectamente, sobre produtos nacionais similares. Além disso, nenhum Estado-Membro fará incidir sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas de modo a proteger indirectamente outras produções".

Dispõe o artigo 11.º, nº1, do CISV o seguinte:

O imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados membros da União Europeia é objeto de liquidação provisória nos termos das regras do presente Código, com exceção da componente cilindrada à qual são aplicadas as percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respetiva, as quais estão associadas à desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional:

TABELA D

 

Esta redacção do art. 11º, nº1, do CISV foi introduzida pela Lei 42/2016, de 27 de Dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 2017), surgida após o Acórdão do Tribunal de Justiça (Sétima Secção) de 16 de junho de 2016, emitido no processo C-200/15 relativo à acção de incumprimento interposta pela Comissão Europeia contra a República Portuguesa no qual se declarou a desconformidade da anterior redacção desta disposição com o art. 110º TFUE, nos seguintes termos:

"A República Portuguesa, ao aplicar, para efeitos da determinação do valor tributável dos veículos usados provenientes de outro estado-membro, introduzidos no território de Portugal, um sistema relativo ao cálculo da desvalorização dos veículos que não tem em conta uma desvalorização antes de estes atingirem um ano, nem a desvalorização que seja superior a 52% no caso de veículos com mais de cinco anos, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do art. 11º do TFUE (…)Este artigo (110º do TFUE) é violado sempre que a imposição que incide sobre o artigo importado e a que incide sobre o produto nacional similar são calculados de forma diferente e segundo modalidades diferentes que conduzam, ainda que apenas em certos casos, a uma imposição superior do produto importado (acórdão de 22 de fevereiro de 2001, Gomes Valente, C-393/98, EU: C:2001:109, nº 21; de 19 de setembro de 2002, Tulliasiames e Siilin, C-101/00, EU: C:2002:505, nº  53; e de 20 de setembro de 2007, Comissão/Grécia, C-74/06, EU:C:2007:534, nº 25)” (nº 24 dos fundamentos do acórdão). Assim, a cobrança, por um Estado-Membro, de um imposto sobre os veículos usados provenientes de outro Estado-membro é contrária ao artigo 110º. do TFUE, quando o montante do imposto, calculado sem tomar em conta a depreciação real do veículo, exceda o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional (v., designadamente, acórdãos de 9 de março de 1995, Nunes Tadeu, C-345/93, EU:C:1995:66, n.º 20, e de 22 de fevereiro de 2001, Gomes Valente, C-393/98, EU:C:2001:109, n.º 23)” (nº 25 dos fundamentos do acórdão).“ (…) Mais precisamente, um Estado-Membro não pode cobrar um imposto sobre os veículos usados importados, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares, disponíveis no mercado nacional. O valor do veículo usado importado utilizado pela Administração como base de tributação deve refletir fielmente o valor de um veículo similar já registado no território nacional (v. acórdão de 20 de setembro de 2007, Comissão/Grécia, C-74/06, EU:C:2007:534, n.ºs 27 e 28 (…) ".

Sucede, porém, que a actual redacção do art. 11º do CISV mantém uma diferenciação com os valores do ISV aplicáveis aos veículos nacionais, e que constam do art. 7º CISV e tabelas anexas, dado que o legislador, em conformidade com o acima referido acórdão do TJUE, alargou as percentagens de redução ao primeiro ano de uso do veículo, prolongando-a até aos 10 e mais anos de uso, mas introduziu uma outra alteração diferenciadora em relação aos veículos com origem noutros Estados-Membros, com impacto no cálculo do ISV, uma vez que a actual redacção do art. 11º CISV limita a aplicação das percentagens de redução apenas à componente cilindrada, excluindo-a da componente ambiental (emissão de CO2), ao contrário do que sucede com os veículos usados já matriculados no território nacional.

Por esse motivo, a jurisprudência deste CAAD tem decidido uniformemente que a actual redacção do art. 11º CISV viola o disposto no art. 110º TFUE (cfr. as decisões dos processos 572/2018-T, 346/2019-T, 348/2019-T, 350/2019-T, 459/2019-T e 660/2019-T).

É claramente essa a solução desta questão, uma vez que as normas do Direito da União Europeia, no caso o art. 110º TFUE, têm efeito directo e primado sobre o Direito Nacional, não podendo assim o art. 11º CISV contrariar aquela disposição. Ora, existe uma clara violação do artigo 110.° TFUE sempre que o montante de imposto que incide sobre um veículo usado proveniente de outro Estado-Membro exceda o montante residual do referido imposto incorporado no valor dos veículos usados similares já matriculados no território nacional, o que é o caso.

Quanto à justificação apresentada pela Requerida que a diferenciação na tributação resulta de razões ambientes, a mesma não pode proceder. Como se escreveu na Decisão no processo 660/2019-T "decorre da jurisprudência do TJUE e da própria sistemática do TFUE que, ao contrário do que indica a AT, a norma do artigo 110.º do TFUE é imperativa e sobrepõe-se às normas de cariz ambiental do artigo 191.º do TFUE. Assim, ainda que um EM utilize componente ambientais na determinação do cálculo do regime de tributação de veículos, nunca poderá, com base nessa componente, agravar a tributação de veículos usados provenientes de outros EM face aos veículos usados já matriculados em território nacional". Tal "equivale a dizer que não decorre da legislação aplicável que as regras e princípios ambientais constantes do artigo 191.º do TFUE e artigo 66.º da CRP prevaleçam sobre a regra do artigo 110.º do TFUE que é imperativa para os EM".

Tal veio mesmo a ser confirmado pelo TJUE no recente Acórdão de 2 de Setembro de 2021 no processo C-169/20 Comissão contra República Portuguesa, onde este Tribunal decidiu julgar procedente uma acção de incumprimento contra a República Portuguesa, declarando expressamente que:

 "Ao não desvalorizar a componente ambiental no cálculo do valor aplicável aos veículos usados postos em circulação no território português e adquiridos noutro EstadoMembro, no âmbito do cálculo do imposto sobre veículos previsto no Código do Imposto sobre Veículos, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 71/2018, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º TFUE".

É manifesta assim a ilegalidade da liquidação de ISV impugnada, tendo razão o Requerente nesta questão, não se justificando desencadear qualquer processo de reenvio prejudicial, face à posição já firmada do TJUE.

 

- DA INCONSTITUCIONALIDADE DA INTERPRETAÇÃO DO ART. 11º DO CISV EM CONFORMIDADE COM O ARTIGO 110º DO TFUE.

14. Veio ainda a Requerida alegar que a desaplicação do artigo 11.º do CISV resulta numa violação do princípio da legalidade consagrado no artigo 266.º da CRP e do disposto nos artigos 20.º, n.º 1 e n.º 4, 66º, e 266.º, todos da CRP, i.e. violação dos princípios do Estado de Direito ambiental e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva.

É manifesto que tal não sucede, sendo de salientar que, nos termos do art. 8º, nº4 da Constituição, "as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático". Não é assim possível aos tribunais, salvo em caso de violação dos princípios fundamentais do Estado de direito democrático, que in casu não se verificam, recusar a aplicação de normas do Direito da União Europeia invocando disposições do Direito Interno Português.

Relativamente à invocação da limitação dos recursos em sede da arbitragem tributária, tal resulta da vinculação da Administração Tributária à jurisdição do CAAD resultante da Portaria 112-A/2011, de 22 de Março, com as alterações resultantes da Portaria 287/2019, de 3 de Outubro, e ao regime instituído no RJAT que este Tribunal tem que observar. É por isso que tem o dever de apreciar a legalidade dos actos tributários de liquidação de ISV aqui em causa, limitado e no âmbito da competência que lhe é conferida pelo artigo 2.º n.º s 1 e 2 do RJAT, não se verificando qualquer inconstitucionalidade nessa sua competência. Na verdade, a existência de tribunais arbitrais é reconhecida pelo art. 209º, nº2, da Constituição.

 

- DO DIREITO A JUROS INDEMNIZATÓRIOS.

15. O Requerente solicitou ainda o pagamento de juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43º da LGT.

Decorre do número 1 desse artigo que "quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido".

Podemos entender ainda que, como decorre do n.º 5 do art. 24.º do RJAT, o direito a juros indemnizatórios pode ser reconhecido em processo arbitral. Ter-se-á, no entanto, de determinar se houve ou não erro imputável aos serviços.

Como já se referiu, a Autoridade Tributária tinha pleno conhecimento da jurisprudência existente no sentido da interpretação da incompatibilidade do art. 11º do CISV como o art. 110º do TFUE, devendo por isso ter convolado a reclamação graciosa apresentada pelo contribuinte em pedido de revisão oficiosa e procedido a essa revisão. Estamos assim, neste caso, perante uma actuação por parte da Autoridade Tributária, que se traduz num “erro imputável aos serviços”, conforme consta do art. 43º da LGT.

Tendo em conta o estabelecido no artigo 61º do CPPT e tendo sido verificada a existência de erro imputável aos serviços da Administração Tributária, do qual resultou pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido (vide art. 43º, nº1 da LGT), entendemos que a Requerente tem direito a juros indemnizatórios à taxa legal, calculados sobre o valor de € 3.417,50, que serão contados desde a data do pagamento desse montante, até ao integral reembolso dessa mesma quantia.

 

V – Decisão

 

Nestes termos, julga-se procedente o pedido de anulação parcial da liquidação de ISV resultante da Declaração Aduaneira de Veículos (DAV) n.º 2019/..., emitida pela Alfândega do Jardim do Tabaco, Lisboa, anulando-se parcialmente a referida liquidação quanto ao valor de €  3.417,50.

Julga-se procedente o pedido de reembolso do ISV, acrescido dos componentes juros indemnizatórios, condenando-se a Requerida a pagar ao Requerente a quantia de € 3.417,50, acrescida dos correspondentes juros indemnizatórios desde o pagamento indevido até que ocorra o reembolso.

Fixa-se ao processo o valor de € 3.417,50 e o valor da correspondente taxa de arbitragem em € 612,00 nos termos da Tabela I do Regulamento de Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, condenando-se a Requerida nas custas do processo

 

Lisboa, 13 de Setembro de 2021

 

O Árbitro

(Luís Menezes Leitão)