SUMÁRIO:
I- A falta da sua notificação ao contribuinte no prazo da caducidade, por força do preceituado no artigo 45.º, n.º 1 da LGT, integra ilegalidade invalidante desse acto.
II- O ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque.
DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)
I – RELATÓRIO
1. No dia 27 de Dezembro de 2019, A..., S.A., NIPC..., com sede Avenida ..., n.º..., ...-..., Lisboa, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade do acto de liquidação de IRC n.º 2016..., de liquidação de juros compensatórios n.º 2016... e, bem assim, da liquidação de juros moratórios n.º 2016..., bem como a decisão do recurso hierárquico que teve aqueles actos como objecto, no valor de 1.227.699,74.
2. Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese:
i. A caducidade do direito à liquidação;
ii. Que os actos de liquidação padecem de falta de fundamentação;
iii. Que houve preterição de formalidade legal essencial;
iv. Que os encargos financeiros incorridos com a fusão em apreço são dedutíveis;
v. Que as liquidações de juros compensatórios padecem de ilegalidade;
vi. Que as liquidações de juros moratórios padecem de ilegalidade; e
vii. Que o despacho de indeferimento do recurso hierárquico padece de ilegalidade.
3. No dia 30-12-2019, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.
4. A Requerente procedeu à indicação de árbitro, tendo indicado o Exm.º Sr. Professor Doutor Tomás Cantista Tavares, nos termos do artigo 11.º n.º 2 do RJAT. Nos termos do n.º 3 do mesmo artigo, a Requerida indicou como árbitro o Exm.º Sr. Professor Doutor Manuel Pires.
5. Os árbitros indicados pelas partes foram nomeados e aceitaram os respectivos encargos.
6. Na sequência do requerimento apresentado pelos árbitros designados pelas partes para que o árbitro-presidente fosse designado pelo Conselho Deontológico, foi designado árbitro-presidente nos termos do artigo 6.º, n.º 2, alínea b) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro e do artigo 5.º do Regulamento de Selecção e de Designação de Árbitros em Matéria Tributária, o ora relator, que, no prazo aplicável, também aceitou o encargo.
7. Em 11-03-2020, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.
8. Em conformidade com o preceituado no n.º 7 do artigo 11.º do RJAT, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Tribunal Arbitral Colectivo foi constituído em 06-07-2020.
9. No dia 25-09-2020, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.
10. Por despacho do Ex.º Sr. Presidente do Conselho Deontológico, de 09-03-2021, e na sequência da recusar da função de árbitro no âmbito do processo pelo Exm.º Sr. Professor Doutor Tomás Cantista Tavares, procedeu-se à sua substituição de acordo com as regras a este caso aplicáveis.
11. No dia 09-07-2021, realizou-se a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, onde foram inquiridas as testemunhas, no acto, apresentadas pela Requerente.
12. Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelas partes, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.
13. Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no art.º 21.º/1 do RJAT, com as prorrogações determinadas nos termos do n.º 2 da mesma norma.
14. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea b), do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
O processo não enferma de nulidades.
Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.
Tudo visto, cumpre proferir:
II. DECISÃO
A. MATÉRIA DE FACTO
A.1. Factos dados como provados
1- No dia 25 de Setembro de 2015 a REQUERENTE foi notificada da Carta-Aviso relativa ao procedimento de inspecção externa, de âmbito parcial, com referência ao exercício de 2011, sob a ordem de serviço n.º OI2015..., datada de 24 de Setembro de 2015.
2- No dia 7 de Outubro de 2015, iniciou-se o referido procedimento de inspecção externa, de âmbito parcial.
3- Em 27 de Outubro de 2015, foi a Requerente notificada do Projecto de Relatório da Inspecção Tributária, mediante o qual foram propostas diversas correcções à matéria tributável, em sede de IRC, e referentes ao exercício de 2011.
4- A Requerente foi notificada, através do Ofício de 4 de Dezembro de 2015, do Relatório de Inspecção Tributária, que manteve as correcções propostas no Projecto que lhe antecedeu.
5- A Requerente foi notificada do Relatório de Inspecção a 7 de Dezembro de 2015.
6- No dia 18-12-2015 foi emitido o acto de liquidação adicional n.º 2015, com referência ao exercício de 2011.
7- A liquidação adicional n.º 2015..., após os movimentos de compensação deu origem à nota de cobrança n.º 2015..., de valor nulo, também notificada à Requerente no dia 18-12-2015.
8- A 5 de Abril de 2016, a Requerente foi notificada do acto de liquidação de IRC n.º 2016..., do acto de liquidação de juros compensatórios n.º 2016... e do acto de liquidação de juros moratórios n.º 2016..., relativos ao exercício de 2011, dos quais resultou um valor a pagar de € 1.227.699,74.
9- Era o seguinte o teor do referido acto de liquidação:
10- No seguimento da notificação dos actos referidos, a Requerente procedeu, no dia 19 de Abril de 2016, ao pagamento do montante indicado de € 1.227.699,74.
11- A Requerente procedeu à apresentação de Reclamação Graciosa contra os referidos actos, em 22 de Junho de 2016.
12- No âmbito daquele procedimento de Reclamação Graciosa, a Requerente foi notificada do Projecto de decisão de indeferimento, no âmbito do qual a Administração tributária sustentou, para além do mais, a não verificação da caducidade do direito à liquidação do imposto.
13- Considerou Administração tributária que o acto de liquidação, objecto de Reclamação assume natureza rectificativa, atenta a existência de um acto de liquidação anterior, entendendo que, “(…) para concretização das correcções efetuadas foi efectuada a liquidação adicional n.º 2015... [1.º acto de liquidação notificado com referência ao exercício de 2011], que não evidenciou, as correcções efectuadas em sede de inspecção, pelo que, em consequência, foi efetuada a liquidação adicional rectificativa que o sujeito passivo agora sindica. Esta liquidação (…) não poderá ser vista como um novo ato tributário, ela é apenas rectificativa da liquidação adicional n.º 2015..., notificada ao sujeito passivo dentro do prazo de caducidade, reflectindo as correcções efetuadas no relatório de inspecção. Não existindo autonomia desta face à primeira liquidação adicional.”.
14- Mais entendeu a Administração tributária que “(…) o ato de liquidação é um ato em massa que consiste num apuramento matemático processado informaticamente, que não pode alterar o que foi determinado pela decisão plasmada no despacho que sancionou as correcções efectuadas em sede de acção de inspecção, limitando-se estes Serviços a proceder à rectificação da liquidação adicional, nos termos do artigo 174.º do CPA”.
15- Após a apreciação do direito de audição entretanto apresentado pela Requerente face ao Projecto de decisão da Reclamação Graciosa, a Administração tributária veio reiterar, na decisão final da Reclamação Graciosa o entendimento já anteriormente transmitido no teor do Projecto de Decisão.
16- Com efeito, concluiu a Administração tributária que o prazo de caducidade do direito à liquidação do imposto não se encontrava decorrido, aquando da notificação do acto de liquidação objecto do presente processo arbitral (2.º acto de liquidação com referência ao exercício de 2011), atenta a existência de um primeiro acto de liquidação emitido dentro do referido prazo de caducidade legal.
17- A Requerente apresentou, nesse seguimento, o competente Recurso Hierárquico, o qual, foi também indeferido através do Despacho da Senhora Subdirectora-Geral da Direcção de Serviços do IRC, de 27 de Setembro de 2019.
A.2. Factos dados como não provados
Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.
B. DO DIREITO
A primeira questão colocada pela Requerente, e, portanto, a primeira questão que se apresenta a estre Tribunal para resolver, prende-se com aferir da ocorrência, ou não, da caducidade do direito à liquidação.
Conforme não é objecto de disputa entre as partes, atentos os prazos de caducidade vigentes e o teor das normas quanto à suspensão dos referidos prazos, os actos de liquidação de IRC, de juros compensatórios e de juros moratórios, objecto do pedido de pronúncia arbitral deveriam ter sido notificados à Requerente, até ao dia 13 de Março de 2016.
A referida data corresponde ao decurso dos quatro anos seguintes ao do termo do ano em que se verificou o facto tributário – 31 de Dezembro do ano de 2011 – acrescidos dos 73 dias referentes ao período em que a Requerente foi notificada da Carta-Aviso até à notificação do Relatório de Inspecção (entre 25 de Setembro de 2015 e 7 de Dezembro de 2015).
Neste quadro, sustenta a Requerente que, conforme resulta da própria identificação numérica dos actos de liquidação de IRC, de juros compensatórios e de juros moratórios e, bem assim, de demonstração de acerto de contas, objecto da presente acção arbitral, os mesmos apenas foram praticados em 31 de Março de 2016 e notificados em 5 de Abril do mesmo ano, pelo que, sem suma, quando estes actos foram praticados já teria caducado o direito da AT liquidar imposto.
Já a Requerida, relativamente a esta matéria, sustenta que o RIT que fundamenta o despacho de decisão das correcções fiscais em causa é perfeitamente claro e, portanto, permite a percepção por parte da Requerente de que a liquidação n.º 2015... não evidenciava essas mesmas correções, tratando-se de um evidente erro material manifestamente revelado no próprio contexto da declaração sendo o mesmo perfeitamente apreensível por um destinatário ou observador normal e médio, como é o caso da Requerente.
Alega a Requerida que a lei adjectiva confere especial primazia à justiça material sobre o formalismo processual, pelo que se deve entender que a liquidação n.º 2016 ... ora contestada, se enquadra no disposto no art.º 249.º do Código Civil, constituindo uma rectificação levada a efeito posteriormente.
Nota a Requerida que, não obstante estarem disponíveis todos os elementos que permitiriam a emissão de uma liquidação adicional com imposto a pagar de €1.227.699,74, no caso concreto, existiu um erro na matéria coletável inscrita e, em consequência, na quantificação do tributo, mas as circunstâncias antecedentes (procedimento de inspeção, RIT e decisão final) evidenciam que se trata precisamente disso mesmo.
Conclui a Requerida que a AT praticou o acto tributário a que corresponde a liquidação n.º 2015..., no prazo legal e cumprindo as demais formalidades, só que quantitativamente incorreto entendendo que tal circunstância não deve obstar à reposição da verdade dos factos, consubstanciando o relatório de inspecção um indiscutível documento que declara a vontade da AT de produzir efeitos na esfera tributária da ora recorrente, pelo que a liquidação n.º 2015..., comportava um manifesto erro revelado no próprio contexto da declaração indubitavelmente perceptível pela Requerente, já que a mesma sabia que a acção de inspecção levada a efeito foi só uma (OI 2015...), pelo que a liquidação ora contestada não pode ser entendida como um novo acto tributário, dado que apenas corrigiu o erro existente na liquidação adicional n.º 2015..., tendo sido emitida sob a forma usada para a prática do acto rectificativo.
Vejamos.
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Dispõe o art.º 249.º do Código Civil que "o simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita, dá direito à retificação desta."
Já o n.º 1 do art.º 174.º do Código de Procedimento Administrativo (CPA) dispõe que "[o]s erros de cálculo e os erros materiais na expressão da vontade do orgão administrativo, quando manifestos, podem ser retificados, a todo o tempo, pelos órgãos competentes para a revogação do ato.", dispondo ainda o n.º 2 do mesmo artigo que "[a] retificação pode ter lugar oficiosamente ou a pedido dos interessados, produz efeitos retroativos e deve ser feita sob a forma e com a publicidade usadas para a prática do ato retificado.".
Dispõe, ainda, o artigo 79.º da LGT, sob a epígrafe “Revogação, ratificação, reforma, conversão e rectificação”:
“1 - O acto decisório pode revogar total ou parcialmente acto anterior ou reformá-lo, ratificá-lo ou convertê-lo nos prazos da sua revisão.
2 - A administração tributária pode rectificar as declarações dos contribuintes em caso de erros de cálculo ou escrita.”.
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Aqui chegados, cumpre, desde logo referir que não se julga possível, face à matéria de facto dada como provada (que decorre directamente dos factos alegados pelas partes, na matéria ora em causa), concluir de outra forma que não a da efectiva verificação da arguida caducidade do direito à liquidação, no que diz respeito aos actos tributários objecto da presente acção arbitral, e isto, essencialmente, por 3 ordens de razão, a saber:
i. O acto objecto da presente acção arbitral é, efectivamente, um acto de liquidação autónomo e distinto do acto de liquidação n.º 2015...;
ii. Não foi praticado qualquer acto administrativo em matéria tributária, determinando a correcção de qualquer erro material no acto de liquidação n.º 2015...; e
iii. Não resulta provada a existência de qualquer lapso de escrita, ou erro material ou de cálculo, no acto de liquidação n.º 2015... .
Senão, vejamos.
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Como resulta da matéria de facto provado, o acto de liquidação n.º 2016 ... constitui um acto de liquidação arquetípico, consistente na aplicação de uma taxa a uma matéria colectável, e concluindo pela fixação de um montante de imposto devido.
Ao referido acto, foi atribuído um número próprio, com referência ao ano a que foi praticado, e nada no mesmo permite, directa ou indirectamente, fazer uma ligação ao acto de liquidação n.º 2015 ..., em termos de, mesmo que se encarasse aquele acto de liquidação n.º 2016 ... como um acto rectificativo, sempre se teria de concluir, inelutavelmente, crê-se, pela sua absoluta ausência de fundamentação, dado que, no mesmo, nada é dito, sugerido ou implicado, quer ao nível de facto quer ao nível do Direito, a respeito de se tratar de um acto rectificativo...
Ou seja, e em suma, o acto de liquidação n.º 2016... é, em substância e em forma, um acto de liquidação, tal qual foi nomeado pela AT.
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Sendo assim, como não se descortina se possa deixar de concluir que é, e tendo sido, indisputadamente, praticado para lá do termo do prazo de caducidade do direito à liquidação, nos termos já vistos, terá, forçosamente, de ser anulado, conforme tem sido entendimento reiterado e persistente do STA, de há muitos anos para cá, ou seja, de que “o facto da intempestividade da notificação da liquidação em qualquer caso, incluindo a falta da sua notificação ao contribuinte no prazo da caducidade, poder ser fundamento de oposição, não significa que, por tal razão, que quando essa falta for determinante da caducidade do direito de liquidação não possa, por força do preceituado no artigo 45.º, n.º 1 da LGT, ser ilegalidade invalidante desse acto e, como tal, fundamento de impugnação judicial.” .
A verdade é que se a AT, com a prática do acto de liquidação n.º 2016 ... queria praticar um acto correctivo de lapso(s) ou erro(s) do acto de liquidação n.º 2015 ..., voltou a cometer novo erro, já que, salvo melhor opinião, a forma correcta de o fazer seria a prática de um acto administrativo em matéria tributária, que determinasse a correcção do lapso ou erro, como de resto a própria AT intui, ao pretender sustentar-se no art.º 174.º do CPA, acto esse que seria susceptivel de impugnação judicial por meio da acção administrativa em matéria tributária.
Com efeito, tal acto “rectificativo”, não se estaria a pronunciar sobre a quantificação do imposto – essa seria indiscutível – mas sobre a verificação dos pressupostos relativos à existência e termos da correcção do erro ou lapso a corrigir, pelo que a respectiva impugnação incidiria não sobre a existência ou quantificação do imposto, mas sobre a verificação ou não daqueles pressupostos.
Concomitantemente, o acto “rectificativo”, não abriria novo prazo impugnatório, à semelhança do que acontece com a rectificação da sentença, regulada nos artigos 613.º e ss. do CPC, que não abre novo prazo para recurso, sendo apenas o próprio despacho de rectificação, se ilegal, susceptível de recurso.
Deste modo, e pelo exposto, conclui-se não ter existido qualquer acto “rectificativo” da liquidação n.º 2015..., tendo-se antes verificado uma revogação por substituição daquele acto, que pode ter tido um propósito subjectivo correctivo, mas que não se reveste, substancial ou materialmente, da natureza de um acto rectificativo, no sentido propugnado pela AT. E tendo o acto de liquidação substitutivo sido praticado para lá do prazo de caducidade do direito de liquidar, terá, como referido, de ser anulado.
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Acresce ainda que, salvo melhor opinião, e face à matéria de facto dada como provada, não se apura que, efectivamente tenha ocorrido qualquer lapso ou erro no acto de liquidação n.º 2015..., corrigível nos termos sustentados pela AT.
Assim, e sem prejuízo da total falta de fundamentação a esse nível do acto de liquidação n.º 2016..., sempre se dirá que os normativos onde a posteriori a AT pretende sustentar a legalidade da sua actuação, pressupõem a evidência ou carácter manifesto do lapso ou erro a corrigir.
Por outro lado, nos termos do artigo 74.º, n.º 1, da LGT, “O ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque.”.
Daí que sempre fosse à AT que competisse demonstrar a efectiva existência de lapso ou erro rectificável (e, naturalmente, que o teria de fazer contemporaneamente ao acto).
Ora, a tal respeito nada se apura, a não ser que:
- A Requerente foi notificada do Relatório de Inspecção a 7 de Dezembro de 2015;
- No dia 18-12-2015 foi emitido o acto de liquidação adicional n.º 2015..., com referência ao exercício de 2011;
- A liquidação adicional n.º 2015..., após os movimentos de compensação deu origem à nota de cobrança n.º 2015..., de valor nulo, também notificada à Requerente no dia 18-12-2015.
Ora, este factos serão sempre, crê-se, absolutamente insuficientes para preencher os pressupostos das normas (a posteriori, repete-se) invocadas pela AT.
Com efeito, não se demonstrando sequer, como é o caso, e sem prejuízo de outras questões que se pudessem colocar a jusante disso, que o acto de liquidação adicional n.º 2015... evidencia um propósito de efectivar as correcções determinadas no procedimento de inspecção tributária, cai pela base toda a argumentação (a posteriori) esgrimida pela AT, sendo que a mera proximidade temporal entre a liquidação e a notificação do RIT, só por si, nunca poderia sustentar a pretendida evidência daquele propósito, não só porquanto seria admissível que, justamente atenta tal proximidade temporal, a liquidação em causa nada tivesse a ver com o procedimento de inspecção, por um lado, como, atento o prazo ainda disponível para a notificação da liquidação incorporante das correcções resultantes da inspecção tributária, seria perfeitamente plausível que o contribuinte continuasse à espera de tal liquidação, notando-se ainda que, como se disse anteriormente, caso estivesse em causa um lapso ou erro rectificável nos termos pretendidos pela AT, a correcção do mesmo não originaria, em princípio, novo prazo de impugnação da liquidação corrigida, mas unicamente a possibilidade de impugnar o acto rectificativo.
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A título de obiter dictum refira-se ainda que o ora decidido não contende por qualquer forma, julga-se, com a primazia da justiça material sobre o formalismo processual, ao contrário do sustentado pela Requerida.
Efectivamente, a ser correcta a tese da AT, da existência de erro(s) e/ou lapso(s) rectificáveis nos termos por si (a posteriori) sustentados, tais erro(s) e/ou lapso(s) serão, como a própria Requerida também sustenta, rectificáveis a todo o tempo.
Ora, a presente decisão, limita-se à anulação do acto de liquidação adicional n.º 2016..., e actos acessórios, repristinando a situação que existia à data da sua prática, ou seja, repristinando a liquidação adicional n.º 2015... .
Caso, efectivamente e como afirma a AT, este último acto enferme de erros e/ou lapsos rectificáveis nos termos pretendidos por aquela, tais lapsos poderão, naturalmente, ser rectificados, por meio da prática de um acto administrativo em matéria tributária que, fundamentadamente, conclua nesse sentido, podendo igualmente a Requerente, caso tal acto seja praticado, reagir contra o mesmo, assim se assegurando, material e efectivamente, os direitos de todos os interessados na matéria.
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Assim, e face ao exposto, julgando-se caduco o direito à liquidação de imposto, anular-se-á o acto de liquidação adicional n.º 2016..., e actos acessórios, procedendo, integralmente, o pedido arbitral, e ficando prejudicado o conhecimento das restantes questões colocadas pela Requerente.
***
A Requerente formula, ainda, o pedido acessório de condenação da Requerida na restituição do montante de imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.
O artigo 43.º, n.º 1, da LGT estabelece que são devidos juros indemnizatórios quando se determine que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
No presente caso, o erro é imputável à AT, que praticou o acto de liquidação, quando já tinha caducado o direito para o fazer.
Tem, portanto, a Requerente direito a ser reembolsada da quantia de que indevidamente foi privada (nos termos do disposto nos artigos 100.º da LGT e 24.º, n.º 1, do RJAT) por força do acto anulado e, ainda, a ser indemnizada através da atribuição de juros indemnizatórios, desde a data do pagamento indevido, até ao reembolso, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, artigo 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.
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C. DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar integralmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência,
a) Anular o acto de liquidação de IRC n.º 2016..., de liquidação de juros compensatórios n.º 2016... e, bem assim, da liquidação de juros moratórios n.º 2016..., bem como a decisão do recurso hierárquico que teve aqueles actos como objecto;
b) Condenar a AT na restituição do imposto indevidamente retido, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos acima determinados.
D. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 1.227.699,74, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
Notifique-se.
Lisboa, 13 de Setembro de 2021
O Árbitro Presidente
(José Pedro Carvalho)
O Árbitro Vogal
(Rui Duarte Morais)
O Árbitro Vogal
(Manuel Pires)
(vencido conforme declaração em anexo)
DECLARAÇÃO DE VOTO
Não estou de acordo com a decisão proferida, com todos os efeitos legais decorrentes desta posição.
Importa distinguir diversos tipos de casos, quanto à caducidade do direito de liquidar o imposto, mormente tendo em consideração os fundamentos dessa caducidade. Após o decurso do respectivo prazo para a notificação da liquidação, surge algo relativo ao imposto, com a consequência do respectivo aumento. Sem o facto nunca ter sido suscitado no respectivo procedimento. o SP é notificado para pagar o que surge de novo. Noutro tipo de casos, depois de uma inspecção, com correcções a fazer e dadas a conhecer aos obrigados, seguindo todos os requisitos legais, foi remetida notificação com indicação errada do imposto a pagar, dado, por evidente lapso, não ter sido incluído no respectivo quantitativo o resultado da mencionada inspecção. No primeiro tipo de casos, se o prazo de caducidade tiver decorrido, não haverá mais imposto a pagar, enquanto no último. Tendo sido enviada uma primeira notificação dentro do prazo e uma segunda com a importância correcta, embora decorrido esse prazo, o imposto deverá ser pago. Mas pode ser invocado o aforismo ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus. No entanto, o aforismo não é invocável no caso, porque não apresenta verdade se os fundamentos da lei aplicanda conduzirem à sua não aplicação. A disposição relativa ao prazo de caducidade filia-se na necessária segurança do contribuinte, na protecção da sua confiança e na necessidade de sua certeza, princípios aplicáveis também a outro tipo de realidades como a irretroactividade. Sendo assim, como pode o SP, no presente caso, invocar a aplicação do que já se denominou o princípio da não surpresa? Conheceu bem o resultado da inspecção, origem do problema objecto do processo. Depois de saber que a AT decidira manter a tributação derivada da inspecção, recebeu o documento de cobrança no montante de € 0 (zero euros). No entanto, decorreu o prazo de caducidade e a AT - após cerca de três meses - corrigiu o documento agora com a importância devida. Obviamente ser este caso diferente dos indicados em primeiro lugar, porque não há surpresa que, a existir, gerou-se com a primeira exigência de 0 euros e, de modo nenhum, com a segunda, a única correcta e já conhecida pelo SP, que certamente compreendeu tudo o que estava a ocorrer, sem necessidade de prática de outro acto, visando o mesmo efeito e a possibilidade de contestação ( aliás , no segundo documento, agora com o quantitativo certo e constante do processo, menciona-se: “ A Demonstração da Compensação e a correspondente nota de cobrança seguem em envelope separado” e”nota demonstrativa” relativa ao cálculo do imposto “é junta e fundamentação já enviada”). A segunda comunicação resultava não de qualquer algo novo, resultava unicamente da rectificação da primeira. Logo, neste tipo de casos, não há lugar ocorrerem os fundamentos da caducidade. Não obstante a rectificação estar disciplinada
reduzidamente na lei tributária (artigo 79º nº2 LGT), tal não pode significar que o legislador
Tenha intencionalmente omitido tudo o relativo à figura imprescindível
da correcção, por entender ser desnecessário. A figura é regulada, em geral, no CPA, scilicet
no correspondente artigo 174º, aplicável por força do artigo 2º, alínea c) da LGT. Dispõe aquele artigo : “1 Os erros de cálculo e os erros materiais na expressão da vontade do órgão administrativo, quando manifestos, podem ser rectificado a todo o tempo, pelos órgãos competentes para a revogação do ato. 2. A retificação pode ter lugar oficiosamente ou a pedido dos interessados, produz efeitos retroactivos e deve ser feita sob a forma e com a publicidade usadas para a prática do ato retificados”, disposição semelhante ao artigo 148º da versão anterior do Código. Já foi escrito sem suscitar interrogações: “Na falta de regras especiais sobre os requisitos da revogação, da reforma, da ratificação, conversão e da rectificação do acto administrativo. deverão ser aplicadas as previstas no CPA, subsidiariamente aplicável, nos termos do art.2º da LGT” (Diogo Leite de Campos, Benjamim Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, Lei Geral Tributária, 4ª edição, 2012, pg.794, sendo nosso o bold). Não se diga que, sabendo o legislador da figura da rectificação favorável à AT e não a regulando na legislação tributária , implica que não a admitiu em termos mais amplos, o que significaria a inconsideração do interesse do Estado , Aliás, o resultado do estabelecido sobre a matéria é a justiça e encontra-se também reflectido no artigo 249º do Código Civil: “ O simples erro de cálculo ou de escrita , revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita , apenas dá direito à rectificação desta” . Não se trata, pois, de lacuna legal, impossível de disciplinar, de desistência de regular aspecto tão relevante. Está-se, no caso presente, indubitavelmente, perante um lapso manifesto, ostensivo e bem revelado pelas circunstâncias antes referidas e conhecidas pelo SP e, perante isso, procedeu-se á rectificação do que se escreveu, diferente do que se queria escrever. O SP não podia invocar que desconhecia as razões dos sucessivos actos, não sendo necessário mais formalidades, a não ser que se queira a subordinação ao formal, posto que injustificável. A solidez da liquidação perante o prazo de caducidade importa preservar, quando ela resulta, sem mais, da vontade da AT e não de casos como o presente, em que se verifica um acto praticado nas circunstâncias acima assinaladas, não tendo o acto resultante da rectificação autonomia, incorporando-se no primeiro, visto que, com a rectificação, não se inova, atenta-se, primo ictu oculi, que corresponda ao pensamento e à vontade da AT, quando emitiu o primeiro documento. com consequências para o prazo que é o anterior, não podendo ser invocada a caducidade. O que corrobora a inaplicabilidade, como se demonstrou acima, do fundamento da caducidade, o princípio da não surpresa. Aliás, o SP não parece divergir do que foi escrito, quando se pode ler nas respectivas alegações, depois de se referir a razão da caducidade :” pelo que só pode admitir-se o alargamento do prazo de caducidade quando o contribuinte tem ou possa ter conhecimento da verificação do facto que determinou essa mesma extensão do prazo “, seguindo-se o exemplo legal da instauração de um procedimento criminal e, bem assim, a invocação dos princípios da certeza e de segurança jurídica. No caso sob julgamento, alguém pode afirmar não ter o SP conhecimento do facto que determinou a extensão? É- se sujeito a uma inspecção de que resulta imposto a pagar, o SP tem indubitavelmente o respectivo conhecimento, surge um documento mencionando zero € de imposto a pagar (a existência deste documento nunca foi objecto de contestação nem mesmo no processo) e depois outro com a menção do imposto a pagar conforme o resultado da inspecção no documento enviado ao SP com a importância sem erro e que aquele juntou ao Requerimento inicial deste Processo. Aliás, como seria possível o SP reclamar, recorrer hierarquicamente e pedir a decisão no actual processo se não conhecesse as razões= da exigência do imposto? Pode afirmar-se que houve surpresa e que seria necessário algo mais para além do constante dos documentos emitidos? No caso afirmativo, poderia estar-se perante uma “ectasia” documental, sempre de evitar.
Lisboa, 13 de Setembro de 2021
(Manuel Pires)