SUMÁRIO:
I- Ocorrendo uma elevada divergência entre os valores apurados na liquidação adicional de imposto objeto do processo e na liquidação anteriormente efetuada pela Requerida impunha-se, à luz do dever de fundamentação, uma especifica e exaustiva explicitação dos eventuais erros de factos ou de direito ou omissões de que padeceria a liquidação anterior uma que, de acordo com o art. 89º, nº 2, al. b), do CIRS, a liquidação adicional depende da existência de “Erros de facto ou de direito ou omissões verificadas em qualquer liquidação de que tenha resultado prejuízo para o Estado.”.
II- Todavia, tendo a Requerida juntado aos autos o processo administrativo e não se encontrando no mesmo qualquer referência a eventuais erros, de facto ou de direito, ou omissões de que pudesse enfermar a liquidação que anteriormente tinha efetuado, nem qualquer elemento substancialmente explicativo das razões que levaram a AT a efetuar a liquidação adicional, que também não constam da notificação da liquidação objeto do processo, não é possível saber as razões concretas que levaram a AT a praticar liquidação divergente da anterior, havendo manifesta inaptidão justificativa da fundamentação da nova liquidação.
III- Verifica-se, assim, ostensivo e grave vício de fundamentação do ato administrativo, por manifesta insuficiência do mesmo, equivalente a falta de fundamentação (art. 153º, nº 2, do CPA) uma vez que ficou o Requerente, como qualquer declaratário normal na sua posição, na completa ignorância dos motivos pelos quais a AT considerou errada a liquidação que anteriormente tinha praticado, e legal a quantificação da obrigação tributária decorrente da liquidação de imposto objeto do processo.
IV- Ocorre, pois, violação do art. 77º, nº 1 e 2, da LGT, com a consequente anulação do ato tributário de liquidação de imposto, nos termos do art. 163º do Código de Procedimento Administrativo.
V- Anulado o ato de liquidação de imposto, não pode deixar de ser decretada a anulação das liquidações de juros compensatórios, nos termos dos artigos 35º, nº 8, e 100º, da LGT e 24º, nº 1, al. b), do RJAT.
DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)
I – Relatório
1.No dia 1.09.2020, o Requerente, A..., contribuinte nº ..., residente ..., ..., ..., Londres, Reino Unido, requereu ao CAAD a constituição de Tribunal arbitral, nos termos do artigo 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por “RJAT”), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, com vista à anulação:
a) Do despacho proferido pelo Chefe de Divisão da Justiça Tributária da Direção de Finanças de Lisboa, ao abrigo de subdelegação de competências, que indeferiu a reclamação graciosa apresentada contra o ato de liquidação de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares nº 2019... e dos correspondentes atos de liquidação de juros compensatórios nº 2019 ... e 2019..., subscritos pela Senhora Diretora-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira, todos relativos ao ano de 2015.
b)Das liquidações objeto da referida reclamação graciosa.
O Requerente alegando ter pagado, em 30 de Junho de 2020, em sede de execução fiscal, o montante de € 50.339,28, respeitando € 49.460,91 a imposto e juros compensatórios, € 363,19 a juros de mora e € 515,18 a encargos, peticiona, ainda, o reembolso de tal valor, acrescido de juros indemnizatórios.
2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira.
Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1, do art. 6.º, do RJAT, por decisão do Senhor Presidente do Conselho Deontológico, devidamente comunicada às partes nos prazos legalmente aplicáveis, foi designado árbitro o signatário, que comunicou ao Conselho Deontológico e ao Centro de Arbitragem Administrativa a aceitação do encargo no prazo regularmente aplicável.
O Tribunal Arbitral foi constituído em 23.11.2020.
Em 21.07.2021, foi proferido despacho determinativo de prorrogação do prazo de decisão por dois meses, nos termos do art. 21º, nº 1, do RJAT.
3. Como fundamento da sua pretensão anulatória o Requerente invocou vários vícios, segundo relação de subsidiariedade, pela ordem seguinte:
1) Vício de insuficiência de fundamentação dos atos de liquidação objeto do processo.
2) Vício de preterição do direito de audição prévia antes da liquidação.
3) Vício de violação de lei por erro nos pressupostos de direito, conducente à anulação parcial dos atos tributários,
4)Relativamente à liquidação de juros compensatórios, para o caso de não se anular a liquidação de imposto com a consequente anulação da liquidação de juros compensatórios, invoca, ainda, vícios autónomos de falta de fundamentação e de violação de lei.
4. A ATA – Administração Tributária e Aduaneira, chamada a pronunciar-se, contestou a pretensão da Requerente.
Sustenta a Requerida que não se verificam os vícios apontados pelo Requerente aos atos impugnados.
Invoca, ainda, a Requerida, que o Requerente na reclamação graciosa não foi pedido ao órgão decisor que analisasse a legalidade das liquidações dos juros compensatórios, razão pela qual a decisão da mesma não se pronunciou sobre tal questão. Conclui, por isso, que é intempestivo o pedido de declaração de ilegalidade de tal liquidação, uma vez que à data da apresentação do pedido de pronúncia arbitral já havia decorrido o prazo previsto na al. a), do nº 1, do art. 10º, do RJAT, para apresentação do pedido de pronúncia arbitral.
5. Verificando-se a inexistência de qualquer situação prevista no art. 18º, nº 1, do RJAT, que tornasse necessária a reunião arbitral aí prevista, foi dispensada a realização da mesma, com fundamento na proibição da prática de atos inúteis.
Foi ainda dispensada a realização de alegações, nos termos do art. 18º, nº 2, do RJAT, “a contrario”.
6. O tribunal é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas.
O processo não padece de vícios que o invalidem.
7. As questões que cumpre solucionar, de acordo com a relação de subsidiariedade apresentada pelo Requerente, são as seguintes:
1) Ilegalidade das liquidações por falta de fundamentação.
2) Ilegalidade das liquidações por preterição do direito de audição prévia a estes atos tributários.
3) Ilegalidade das liquidações por vício de violação de Lei.
4) Direito do Requerente à restituição dos montantes pagos em sede de execução fiscal.
5) Direito do Requerente a juros indemnizatórios.
6) Intempestividade do pedido arbitral no que se refere à impugnação da liquidação de juros compensatórios.
II – A matéria de facto relevante.
8. Consideram-se provados os seguintes factos:
1. O Requerente, no estado de casado no regime de comunhão de adquiridos com B..., outorgou, em 13.05.1996, escritura pública de compra e venda pela qual o casal adquiriu um lote de terreno para construção, sito em ..., freguesia de ..., Concelho de Sintra , descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o número ... e inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ... sob o artigo ..., com o valor patrimonial tributário de 4.440.000 escudos, equivalente a 22.445,91 euros.
2. Com o objetivo de construir a sua habitação no terreno adquirido e de forma a financiar as respetivas obras, o Requerente e a sua mulher celebraram, no dia 6 de Janeiro de 1997, um contrato de mútuo com hipoteca com o “Banco C..., S.A.”, no valor de 34.500.000 escudos, equivalente a 172.085,27 euros.
3.Na sequência da conclusão da construção da habitação o imóvel ficou inscrito na matriz urbana sob o artigo ... da freguesia de ... .
4.Em 10.08.2015 o Requerente e sua mulher outorgaram escritura publica, pela qual venderam o referido imóvel a D..., pelo preço de 399.000,00 euros.
5.Na data da alienação o Requerente já não era residente em Portugal, mas sim no Reino Unido, para onde foi exercer a sua atividade profissional.
6.A cônjuge do Requerente continuou, nesse ano, a ser residente em Portugal.
7.Em 29 de maio de 2016, o Requerente entregou, na qualidade de não residente em Portugal, a sua declaração modelo 3 de IRS relativa aos rendimentos obtidos em 2015, que respeitaram, exclusivamente, a rendimentos do trabalho dependente, realizado até abril de 2015, e à mais- valia imobiliária realizada com a alienação do prédio referido em 3) deste probatório, tendo optado, enquanto cidadão residente na União Europeia, pela tributação de acordo com o regime geral dos seus rendimentos obtidos em território português.
8.Na referida declaração modelo 3 de IRS, o Requerente declarou não optar pela tributação conjunta dos rendimentos, mas declarou a totalidade da mais-valia obtida com a venda do identificado imóvel por si e pela sua cônjuge, tendo indicado como quota parte 100%.
9.Para efeitos do apuramento da mais-valia o Requerente declarou como valor de aquisição do imóvel o montante de € 220.419,76 e despesas e encargos no valor de €111.656,23.
10. A Chefe do Serviço de Finanças de Lisboa ... enviou ao Requerente a seguinte comunicação, datada de 21.10.2016:
11.A Administração tributária emitiu o ato de liquidação de IRS nº 2016..., datado de 21 de Dezembro de 2016, nos seguintes termos:
12. Foi enviado ao Requerente a seguinte comunicação da Chefe do Serviço de Finanças de Lisboa ..., datada de 6.01.2017:
13.Com data de 29.07.2017, a Administração tributária emitiu novo ato de liquidação de IRS com o nº 2017..., referente ao mesmo facto tributário, nos seguintes termos:
14.Com data de 03.12.2019, a Administração tributária emitiu novo ato de liquidação de IRS com o nº 2019..., referente ao mesmo facto tributário, nos seguintes termos:
15.Nesta liquidação, que teve por base Declaração oficiosa modelo 3, foi considerado ao Requerente a quota-parte de 100% nas mais-valias realizadas.
16.Em 17.12.2019 o Requerente apresentou reclamação graciosa contra esta liquidação nos seguintes termos:
17.Consta do processo de reclamação graciosa a seguinte informação da técnica responsável:
18.Na sequência desta informação foi proferido, em 26.02.2020, pela chefe de equipa, parecer, nos termos seguinte:
19.Na sequência da informação e do parecer, em 27.02.2020, foi proferido pelo Senhor Chefe de Divisão o seguinte despacho:
20.O Requerente exerceu o direito de audição, que lhe foi concedido no âmbito do procedimento de reclamação graciosa, nos seguintes termos:
21.Na sequência da pronúncia do Requerente, foi prestada pela técnica responsável a seguinte informação complementar:
22.Na sequência desta informação, foi proferido o seguinte parecer pela Senhora Chefe de equipa:
23.Sobre a informação e o parecer antecedente incidiu o seguinte despacho do senhor Chefe de Divisão, datado de 3.04.2020:
24.Em 30.06.2020, no âmbito do processo executivo nº ...2020..., o Requerente pagou o montante resultante da demonstração de acerto de contas referente à liquidação objeto do processo, no valor de 49.460,19 €, acrescido de 363,19 € de juros de mora e de 515,18 € de encargos.
Com interesse para a decisão da causa, à luz da matéria de facto alegada pelas partes, inexistem factos não provados.
9. A convicção do Tribunal quanto à decisão da matéria de facto dada como provada alicerçou-se nos documentos constantes do processo do administrativo, designadamente o teor das notificações para audição prévia antes das liquidações de 21.12.2016 e de 29.07.2017, bem como o teor da reclamação graciosa, notificação para o exercício de audição neste âmbito, exercício do direito de audição, decisão de indeferimento da reclamação graciosa e respetivos parecer e informação, bem como nos documento juntos pelo Requerente com o pedido de pronúncia arbitral, designadamente as cópias das escrituras publicas de compra do terreno, de venda do imóvel e de mútuo com vista ao financiamento da construção do imóvel vendido, sendo que nenhum dos documentos constantes dos autos foi objeto de impugnação por qualquer das partes.
-III- O Direito aplicável
10. O impugnante invocou a ilegalidade dos atos de liquidação, tendo alegado para os efeitos diversos vícios segundo uma relação de subsidiariedade, referindo, após a invocação e fundamentação de cada vício, o seguinte:
“Se assim se não entender – o que não se admite e, por mero dever de ofício, se equaciona-, subsidiariamente, sempre se dirá o seguinte:
(…)”.
A arguição subsidiária de vícios é permitida pelo artigo 101º do CPPT, aplicável por força do art. 29º, nº 1, al. a), do RJAT.
Nenhum dos vícios invocados tem como consequência, em caso de procedência, a declaração de inexistência dos atos tributários objeto do processo, mas sim a sua anulação. Assim, nos termos do art. 124º, nº 2, al. b), do CPPT, a apreciação dos vícios deve ser feita pela ordem indicada pelo Requerente.
11. A questão da anulação da liquidação de juros compensatórios será, em primeira linha, objeto de apreciação conjunta com o das ilegalidades apontadas ao ato de liquidação do imposto, à luz dos art. 35º, nº 8, 100º, da LGT e 24º, nº 1, al. b), do RJAT.
Caso não seja determinada a anulação do ato de liquidação do imposto e inerente anulação das liquidações de juros compensatórios, com a necessária apreciação dos vícios autónomos apontados pelo Requerente a estas, proceder-se-á, então, previamente, à apreciação da questão suscitada pela Requerida referente à alegada intempestividade da invocação de tais vícios.
12. Vício de Fundamentação
Alega o Requerente que da análise da notificação do ato de notificação recebido pelo Requerente não resulta suficiente a necessária fundamentação, nem de facto nem de direito, conforme é exigido pelo artigo 77º da LGT, não permitindo conhecer o itinerário cognoscitivo, de facto e de direito, que lhe subjaz.
Por sua vez, alega a Requerida sobre esta questão, que o ato de liquidação foi efetuado em consequência do preenchimento, a título oficioso, de uma declaração modelo 3 de IRS em nome do Requerente, referente ao ano de 2015, preenchimento esse elaborado em conformidade com as conclusões extraídas na sequência de um procedimento de gestão de divergências instaurado também em seu nome e que no âmbito do qual o Requerente foi ouvido, o que lhe permitiu, desde então, tomar conhecimento do que estava em causa.
Acrescenta que o Requerente compreendeu bem a factualidade subjacente à liquidação, contestando-a em primeiro lugar por via administrativa, interpondo procedimento de reclamação graciosa e posteriormente pela via arbitral.
Vejamos.
O art. 77º da Lei Geral Tributária dispõe o seguinte:
“1 - A decisão de procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária.
2 - A fundamentação dos actos tributários pode ser efectuada de forma sumária, devendo sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo.
(…)”
Sobre o tema, escreve José Carlos Vieira de Andrade que:
“(…) o conteúdo da fundamentação não pode obedecer a um modelo único, nem sequer a tipos limitados, dado que depende de factores múltiplos, diversos e interactivos. Há-se ser variável conforme a matéria, consoante o tipo de acto, mas sobretudo segundo a situação concreta no contexto e no modo como se apresentarem os interesses, público e privados, relevantes para a decisão” (O DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO EXPRESSA DE ACTOS ADMINISTRATIVOS, Almedina, 2ª reimpressão, 2007,pags. 240-241).
Nesta linha, pode ler-se no acórdão do STA de 10.09.2014, proferido no proc. 01226/13, que:
“(…) as exigências de fundamentação não são rígidas, variando de acordo com o tipo de acto e as circunstâncias concretas em que este foi proferido, bastando-se com a expressão clara das razões que levaram a determinada deliberação decisória. A determinação do âmbito da declaração fundamentadora pressupõe, portanto, a busca de um conteúdo adequado, que há-de ser, num sentido amplo, o suficiente para suportar formalmente a decisão administrativa.”
Pode ainda ler-se na referida obra de José Carlos Vieira de Andrade que:
“(…) um acto que suprima ou comprima direito ou imponha obrigações e, em especial, um acto sancionatório, pelo seu carácter restritivo e individualizado, há-se conter uma fundamentação mais clara e completa, que se refira especificamente aos pressupostos legais da restrição ou imposição” (pag. 257).
Na mesma linha, para o campo específico do Direito Fiscal, já havia escrito José Luís Saldanha Sanches (a propósito da avaliação administrativa, mas cujo sentido é também aplicável ao caso dos autos) o seguinte:
“A existência de uma situação de controvérsia corporizada num litigio entre o contribuinte e Administração sobre a existência ou a quantificação de um determinado facto é pois a nota distintiva, no terreno da Administração fiscal, para a separação entre actos administrativos irque exigem uma fundamentação especialmente desenvolvida e aqueles que a não exigem.
(…)
(…) é verdade que sempre que se verifica a quantificação administrativa de um imposto com afastamento dos elementos fornecidos pelo sujeito passivo (…) estamos potencialmente perante um “défice do Estado de Direito” na sua concretização particular do princípio da legalidade fiscal: e perante tal possibilidade de défice é também na fundamentação, pelos deveres que atribui às autoridades administrativas e pela transparência que atribui ao procedimento decisório, que reside a melhor forma de reduzir ou anular este défice.” (A QUANTIFICAÇÃO DA OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, Centro de estudos Fiscais, Lisboa, 1995, pags. 430-431).
No caso em apreço, verifica-se ocorrer, não só uma divergência atinente à quantificação da obrigação tributária entre a declaração do contribuinte e o ato de liquidação de imposto como, ainda, entre este e a liquidação praticado pela Administração Tributária em 29.07.2017. Desta anterior liquidação tinha resultado um rendimento global de 65.822,66 € e um imposto a pagar de 9.649,66 €. Na liquidação sub judice, muito diferentemente, consta o rendimento global de 225.941,57 € e um valor a pagar de 59.110,57 €.
Na “demonstração de acerto de contas” resultante da nova liquidação é mencionado o “estorno” da anterior liquidação. No entanto, na notificação enviada ao Requerente não são indicadas quaisquer razões explicativas da realização da nova liquidação e dos eventuais erros de que padeceria a anterior, sendo certo que de acordo com o art. 89º, nº 2, al. b), do CIRS, neste tipo de situações, a liquidação adicional depende da existência de “Erros de facto ou de direito ou omissões verificadas em qualquer liquidação de que tenha resultado prejuízo para o Estado.”.
Tendo em conta a forte divergência entres os valores apurados da liquidação de 29.07.2017 e na liquidação sub judice impunha-se, manifestamente, à luz do regime legal e da doutrina e jurisprudência referidas, uma especifica e exaustiva explicitação dos eventuais erros de factos ou de direito ou omissões de que pudesse padecer a liquidação anterior.
Acresce que, relativamente à liquidação de 29.07.2017 não há notícia de divergência do sujeito passivo, ao invés, constando da sua petição de reclamação graciosa, o seguinte:
“Na sequência da audição prévia nesses serviços, o montante de IRS inicialmente liquidado (46.597,28) foi posteriormente corrigido pela AT tendo sido efetuado um estorno de 38.276,62 por excesso de imposto liquidado(…) não tendo recebido qualquer posterior comunicação da AT, dei como concluído o processo de liquidação de IRS de 2015”
Todavia, tendo a Requerida juntado aos autos o processo administrativo percorrido exaustivamente o mesmo não se encontra qualquer referência a eventuais erros, de facto ou de direito ou omissões de que pudesse enfermar a liquidação de 29.07.2017, nem qualquer elemento, de facto ou de direito, explicativo das razões que levaram a AT a efetuar a liquidação adicional. Ao nível da matéria de facto consta a referência ao rendimento global considerado na liquidação de 29.07.2017, mas não o rendimento discriminado por categorias de rendimento, pelo que não é possível aferir, sequer, em que medida e muito menos com que fundamentos, se afastou a liquidação de imposto sub judice da liquidação anterior.
E, neste ponto, é de salientar que a liquidação de 29.07.2017 já tinha substituído uma outra de 21.12.2016, praticada na sequência dum procedimento em que a Requerida alegava ter detetado incorreções na declaração de rendimentos do Requerente.
Ou seja: Quer a penúltima liquidação efetuada pela AT, quer a antepenúltima já tinha sido efetuadas com base em elementos apurados pela AT, na sequência de procedimento com vista a suprir correções da declaração modelo 3 e não com base na declaração do sujeito passivo.
Por outro lado, também a liquidação de 21.12.2016 contém valores divergentes dos que constam da liquidação objeto do presente processo (rendimento global de 184.884,49 e valor a pagar de 47.926,28 €).
Nestas circunstâncias, não se pode dizer que a fundamentação do ato tributário tenha permitido ao Requerente o conhecimento das razões que levaram a Administração a agir, por forma a possibilitar-lhes uma opção consciente entre a aceitação da legalidade do ato e a sua impugnação contenciosa.
Quer face à notificação da liquidação ao Requerente, quer face aos elementos que constam do processo administrativo não é possível saber as razões concretas, de facto e de direito, que levaram a AT a praticar liquidação divergente da anterior, por si efetuada, também, já após o apuramento decorrente do procedimento de divergências que efetuou, havendo manifesta inaptidão justificativa, à luz da qual se pode compreender a surpresa manifestada pelo Requerente na petição de reclamação graciosa.
Ocorre, pois, manifestamente, vício de insuficiência de fundamentação, equivalente a falta de fundamentação, nos termos do art. 153, nº 2, do Código de Procedimento Administrativo.
E não se venha dizer, como veio a Requerida, que “(…) cumpre informar que o ato de liquidação foi efetuado em consequência do preenchimento, a título oficioso, de uma declaração modelo 3 de IRS em nome do Requerente referente ao ano de 2015, preenchimento esse elaborado em conformidade com as conclusões extraídas na sequência de um procedimento de gestão de divergências instaurado também em seu nome. “E que:
“(…) no âmbito do qual o Requerente foi ouvido, o que lhe permitiu, desde então, tomar conhecimento do que estava em causa e continua a estar, no presente processo. “
Em primeiro lugar, porque, como se referiu, também as liquidações efetuadas em 2016 e 2017 foram efetuadas na sequência do procedimento de gestão de divergências, oficiosamente, e não com base na declaração modelo 3 apresentada pelo Requerente.
Por outro lado, resulta dos autos que o Requerente foi ouvido antes da liquidação de 2016 e foi notificado para se pronunciar antes da liquidação de 2017, mas dos autos nada consta relativamente a qualquer eventual comunicação ao Requerente para se pronunciar entre a data da liquidação de 2017 e a data da liquidação objeto do processo. O que emerge dos autos é que o Requerente foi notificado para efeitos do direito de audição, no âmbito do referido procedimento de divergências, antes das liquidações efetuadas pela Requerida em 2016 e em 2017, mas não o foi antes da liquidação de imposto objeto do presente processo, que é diferente da liquidação de 2016 e substancialmente diferente da liquidação de 2017. Ou seja, o que a Requerida alega seria suscetível de se aplicar às liquidações de 2016 e 2017, mas não à liquidação de 2019, que é aquela que está em causa nos presentes autos.
Acresce que, foi invocado pelo Requerente na reclamação graciosa constante dos autos e não contraditado pela Requerida em tal procedimento, que foi surpreendido pela nova notificação e que não teve qualquer participação na mesma. Por outro lado, no presente processo a Requerida também não invoca qualquer comunicação da Requerida ao Requerente entre estas duas liquidações, nem qualquer intervenção do mesmo no procedimento. Por último, do próprio processo administrativo junto pela Requerida aos presente autos, não consta a referência a qualquer erro, de facto ou de direito ou omissão de que pudesse padecer a liquidação de 29.07.2017.
Verifica-se, pois, vício de fundamentação do ato administrativo, por manifesta insuficiência da mesma, uma vez que deixou o Requerente, como a qualquer declaratário médio na sua posição, na completa ignorância dos motivos que terão levado a AT a considerar errada a liquidação que anteriormente tinha praticado.
Foi, assim, violado o art. 77º, nº 1 e 2, da LGT, o que determina a anulação do ato tributário de liquidação de imposto, nos termos do art. 163º do Código de Procedimento Administrativo.
Anulado o ato de liquidação de imposto, não pode deixar de ser decretada a anulação das liquidações de juros compensatórios, nos termos dos artigos 35º, nº 8, 100º, da LGT e 24º, nº 1, al. b), do RJAT, improcedendo a alegação de intempestividade do pedido de anulação das liquidações de juros compensatórios.
Em consequência, fica prejudicado o conhecimento dos demais vícios, subsidiariamente alegados pelo Requerente.
13. Veio, ainda, o Requerente pedir a condenação da Requerida a reembolso das quantias indevidamente arrecadadas, bem como o pagamento de juros indemnizatórios que se mostrarem devidos, nos termos do artigo 43.º da Lei Geral Tributária.
No caso em apreço, é manifesto que, na sequência da ilegalidade dos atos de liquidação, é procedente a pretensão do Requerente à restituição do imposto e juros compensatórios pagos por força dos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para restabelecer a situação que existiria se a ilegalidade em causa não tivesse sido praticada.
Este dever de restituição reporta-se ao montante de 49.460,19 €, valor que o Requerente pagou e que resultou das liquidações de imposto e de juros compensatórios, o mesmo não se aplicando aos demais valores pagos no âmbito do processo executivo, que não decorrem diretamente das liquidações anuladas, mas que terão resultado da omissão de pagamento das liquidações dentro do prazo de pagamento voluntário, em violação das normas legais aplicáveis, enformadas pelo princípio “solve et repete” .
No que concerne aos juros indemnizatórios, cabe ainda apreciar esta pretensão à luz do artigo 43º da Lei Geral Tributária.
Dispõe o nº 1 daquele artigo que “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.
Como referem Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa :
“O erro imputável aos serviços que operaram a liquidação fica demonstrado quando procederem a reclamação graciosa ou a impugnação dessa mesma liquidação e o erro não for imputável ao contribuinte.”
No caso em apreço, não sendo, manifestamente, o erro imputável ao contribuinte não pode, pois, deixar de se concluir que o Requerente tem direito a juros indemnizatórios, a calcular sobre o montante de 49.460,19 €, contados desde a data do pagamento desta importância até à data do processamento da respetiva nota de crédito, em que são incluídos, nos termos do artigo 61º, nº 5, do Código de Procedimento e Processo Tributário.
-IV- Decisão
Assim, decide o Tribunal arbitral julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, decretando-se a ilegalidade e consequente anulação dos atos tributários impugnados e condenando-se a Requerida a restituir ao Requerente o
montante de 49.460,19 €, acrescido de juros indemnizatórios a calcular sobre tal importância, contados desde 30.06.2020, até à data do processamento da respetiva nota de crédito.
Valor da ação: 49.460,19 € (quarenta e nove mil quatrocentos e sessenta euros e dezanove cêntimos) nos termos do disposto no art. 306º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.
Custas pela Requerida, no valor de 2142 € (dois mil cento e quarenta e dois euros), nos termos do nº 4 do artigo 22º do RJAT.
Notifique-se.
Lisboa, CAAD, 30.08.2021
O Árbitro
Marcolino Pisão Pedreiro