SUMÁRIO:
Pretendendo a AT aplicar o disposto no n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA, nos termos do n.º 3, alínea b) do mesmo artigo, e sendo aquela uma norma que impõe obrigações adicionais ao contribuinte, é àquela Autoridade que cabe o ónus de prova da verificação dos requisitos legais da sua actuação.
DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)
1. Relatório
A..., S.A., com sede na Rua ..., ..., no ... (...-...), matriculado na Conservatória do Registo Comercial do ... sob o número único de matrícula e pessoa colectiva ..., (adiante Requerente), vem ao abrigo do disposto no Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante RJAT), apresentar pedido de pronúncia arbitral tendo em vista a declaração de ilegalidade dos actos tributários de decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2015..., apresentada relativamente aos actos de liquidação adicional de IVA n.ºs 2015... e 2015..., no valor total de € 989.873,74, e correspondentes liquidações de juros compensatórios n.ºs 2015... e 2015..., no valor total de € 79.347,85.
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por AT).
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 30.12.2019.
Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral foi constituído em 17.03.2020.
A AT apresentou resposta a 16.04.2020, defendendo-se por impugnação e pugnando pela improcedência do pedido arbitral. Não apresentou processo administrativo.
Por despacho de 2.09.2020, foi convocada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT para o dia 13.10.2020, tendo sido inquirida a testemunha indicada pelo Requerente e fixado prazo para alegações sucessivas.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º e do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT e é competente.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março) e estão devidamente representadas.
O processo não enferma de nulidades.
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos:
a) O Requerente é uma instituição de crédito, de acordo com o preceituado no Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro;
b) Em sede de IVA, o Requerente configura-se como um sujeito passivo, nos termos da alínea a), do n.º 1, do artigo 2.º, do Código do IVA, enquadrando-se no regime normal de periodicidade mensal;
c) O Requerente constitui um sujeito passivo misto, uma vez que exerce actividades sujeitas que conferem direito à dedução;
d) No que concerne à parte da actividade exercida que confere direito à dedução, o Requerente procede à integral dedução do IVA incorrido na aquisição dos respectivos inputs específicos, através do método de imputação directa;
e) Em relação aos bens e serviços utilizados nas actividades que conferem e que não conferem direito à dedução (inputs mistos), o Requerente procedeu, até Setembro de 2012, à aferição do IVA dedutível através do método do coeficiente de imputação específico apurado no âmbito de aplicação do método da afectação real, por imposição da Autoridade Tributária e Aduaneira (depoimento da testemunha B...);
f) Em Outubro de 2012, o Requerente procedeu à revisão do método acima identificado, mediante a entrega de declaração, tendo inscrito, no campo 40, do quadro 06, da DP de 1012, o valor de € 759.501,53 respeitante a 2010 e 2011 e de € 222.688,37 relativamente ao ano de 2012 (Documento 1);
g) O Requerente passou a considerar para a determinação do coeficiente de imputação específico a utilização dos recursos consumidos, especificamente na actividade de concessão de crédito com reserva de propriedade (“CRP”) (depoimento da testemunha B...);
h) No âmbito da actividade de CRP, o Requerente permite aos clientes a aquisição de veículos automóveis, novos ou usados, ficando aqueles a constar do registo de propriedade enquanto proprietários dos veículos, mas sendo sempre constituída reserva de propriedade dos mesmos a favor do Requerente (depoimento da testemunha B...);
i) O Requerente celebra, num primeiro momento, um contrato de compra e venda com uma entidade terceira, adquirindo o veículo que é pretendido pelo seu cliente, e, num segundo momento, procede à transmissão do mesmo veículo para a esfera do seu cliente (depoimento da testemunha B...);
j) A par da celebração daquele contrato de compra e venda, o Requerente celebra um contrato de mútuo com o seu cliente, em que as partes acordam a concessão de um crédito que possibilitará ao cliente (mutuário) adquirir ao Requerente (mutuante) o veículo em apreço (depoimento da testemunha B...);
k) Com a celebração do contrato de mútuo, o cliente (mutuário) aceita a constituição da reserva de propriedade do veículo a favor do Requerente, mantendo-se esta sempre, até que o Requerente receba a integralidade do valor do crédito constituído (depoimento da testemunha B...);
l) A constituição da reserva de propriedade a favor do Requerente visa assegurar o integral pagamento, por parte do seu cliente, dos montantes devidos ao abrigo do contrato de mútuo celebrado, por forma a prevenir eventuais situações de incumprimento e a permitir ao Requerente a expedita restituição do bem, em caso de falta de pagamento das prestações acordadas (depoimento da testemunha B...);
m) Para o desenvolvimento da actividade de CRP, o Requerente recorre à sua rede de balcões, bem como a diversas Direcções (Direcção de Financiamento Automóvel, Direcção de Marketing Empresas, Direcção de Planeamento, Direcção de Operações, entre outras), utilizando, por conseguinte, um conjunto de recursos (exclusivos e mistos) (depoimento da testemunha B...).
n) A promoção e divulgação dos produtos de CRP é efetuada nos cerca de 600 balcões do Requerente, envolvendo o correspondente consumo de recursos (depoimento da testemunha B...).
o) O consumo mais significativo dos recursos utilizados pelo Requerente com a actividade de CRP verifica-se ao nível dos balcões, com destaque para os serviços de tecnologias de informação (compreendendo a instalação, manutenção e aluguer de software informático e o hardware), meios de comunicações, publicidade, rendas das instalações, despesas de conservação e manutenção dos espaços, aquisição e aluguer de equipamento diverso necessário ao funcionamento dos balcões, consumíveis, entre outros (depoimento da testemunha B...).
p) A actividade de CRP é coordenada, a nível central, pela Direção de Financiamento Automóvel, a qual assume as funções de análise e gestão de todas as operações de financiamento automóvel, incluindo as operações de leasing, de ALD e de CRP (depoimento da testemunha B...).
q) Outras Direcções têm uma efectiva intervenção na divulgação, comercialização e operacionalização do produto CRP, como sejam a Direcção de Marketing Empresas (responsável pelo desenvolvimento de acções de publicidade), as Direcções envolvidas na gestão de riscos (DP - Direcção de Planeamento e DO - Direcção de Operações) (depoimento da testemunha B...).
r) As Direcções referidas incorrem num conjunto diversificado de recursos necessários à prossecução da actividade de CRP, nomeadamente na parte respeitante à transmissão das viaturas aos clientes, como sejam recursos humanos (interno e externos), comunicações, material de escritório, deslocações e estadas (depoimento da testemunha B...).
s) Considerando o Requerente que o coeficiente de imputação específico não se encontrava correctamente apurado, na medida em que não traduzia a efetiva utilização dos recursos consumidos, especificamente na actividade concessão de crédito com reserva de propriedade (“CRP”), procedeu à respectiva revisão, passando a considerar, no seu coeficiente de imputação específico, a componente da transmissão da viatura objecto da actividade de CRP (depoimento da testemunha B...a).
t) A consideração daquela componente conduziu a um incremento do seu coeficiente de imputação específico e, consequentemente, a uma regularização de IVA, a seu favor, no valor de € 759.501,53, com referência aos anos 2010 e 2011 (€ 542.763,00 e € 216.738,53, respetivamente), a qual foi efectuada na declaração periódica respeitante a Outubro 2012.
u) A regularização de IVA em apreço resultou da revisão do coeficiente de imputação específico apurado para os anos 2010 e 2011 de 7% para 10% e de 5% para 6%, respectivamente.
v) Esta alteração do método de cálculo do coeficiente de imputação específico originou, igualmente, a alteração da percentagem de dedução aplicável ao ano 2012, a qual passou de 4% para 5%, originando um diferencial de IVA de € 222.688,37, a favor da Requerente.
w) Por força da Ordem de serviço n.º OI2014..., de 17 de Março de 2014, o Requerente foi objecto de uma acção inspectiva respeitante ao ano 2012, concluída com a elaboração do Relatório de Inspecção Tributária junto aos autos (Documento 3);
x) No seguimento de tal acção inspectiva resultou uma correcção, no valor global de € 982.189,90, tendo sido emitidas as liquidações adicionais n.ºs 2015... (201210) e 2015... (201212), nos valores de € 761.356.25 e € 228.517,49, respectivamente, bem como as liquidações de juros compensatórios n.ºs 2015... (201210), no valor de € 62.243,48, e 2015... (201212), no valor de € 17.104,37 (Documentos 2 e 3);
y) Em 7 de Agosto de 2015, o Requerente apresentou a Reclamação Graciosa n.º ...2015... dos actos de liquidação acima identificados, a qual foi indeferida através do Despacho exarado pela Exma. Sra. Chefe da Divisão de Gestão e Assistência Tributária (DGAT), com os seguintes fundamentos (Doc. 1):
z) Tendo a ora Requerente, em sede de reclamação graciosa, questionado a diferença de valores entre as liquidações adicionais de IVA e respectivos juros compensatórios e o Relatório de Inspecção Tributária, veio o despacho de indeferimento esclarecer que: “o valor constante da petição de Reclamação Graciosa ascende a € 1.069.221,59 (cfr. nota de rodapé fls. 2/23 do despacho de indeferimento junto como Documento 1).
aa) Verifica-se assim uma diferença de € 7.683,84, relativamente ao valor em divida que ascende a € 982.189,90 de IVA, acrescido de juros compensatórios no montante de € 79.347,85, que perfazem € 1.061.537,75. A diferença de € 7.683,84 resulta de dois pagamentos (€ 1.854,72 referente a Outubro de 2012 e € 5.829,12 referente a Dezembro de 2012) que o sujeito passivo efectuou em 09-04-2015, correspondentes a correcção efectuada pela inspecção Tributária e evidenciada no ponto III.2.2.1 (cfr. nota de rodapé fls. 2/23 do despacho de indeferimento junto como Documento 1).
bb) Pagamentos esses aplicados nas liquidações adicionais n.ºs 2015 ... (Outubro de 2012) e 2015 ... (Dezembro de 2012), pelo que, os respectivos valores foram anulados às referidas liquidações em 10.04.2015, conforme detalhe da identificação das notas de cobrança com os n.ºs 2015 ... e 2015 ... (cfr. nota de rodapé fls. 2/23 do despacho de indeferimento junto como Documento 1).
cc) O Requerente prestou, em 13.04.2015, a Garantia Bancária n.º .../2015, pelo montante de € 1.696.662,54, com vista à suspensão dos processos de execução fiscal provenientes das liquidações em crise (Documento 5).
2.2. Motivação da decisão da matéria de facto
A matéria de facto foi fixada por este Tribunal Arbitral Colectivo cuja convicção ficou formada com base nas peças processuais apresentadas pelas Partes, nos documentos juntos pelo Requerente e no depoimento da testemunha por este arrolada, B..., na qualidade de Director, responsável pela Direcção Jurídica – Fiscal daquele.
Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de seleccionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor, conforme n.º 1 do artigo 596º e n.º 2 a 4 do artigo 607º, ambos do Código Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi das alíneas a) e e) do n.º do artigo 29º do RJAT e consignar se a considera provada ou não provada, conforme n.º 2 do artigo 123º Código do Procedimento e do Processo Tributário (CPPT).
Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607º do CPC. Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g. força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas Partes, a prova documental junta aos autos e a prova testemunhal, consideraram-se provados, com relevo para esta Decisão Arbitral, os factos acima elencados.
3. Matéria de Direito
Tendo em conta o exposto, cabe a este Tribunal apreciar se os actos de liquidação de IVA subjacentes ao indeferimento da decisão de reclamação graciosa são anuláveis por vício de violação de lei, em conformidade com o disposto no n.º 1 do artigo 163.º do Código do Procedimento Administrativo, aplicável ex vi artigo 29.º do RJAT.
3.1. Questão principal
A questão que se apresenta a resolver nos presentes autos prende-se com a consideração, ou não, do total do montante da renda (componente de capital [amortizações] e componente de juro) relativo às operações de crédito com reserva de propriedade (“CRP”), no cálculo do pro rata relativo aos recursos de utilização mista.
Com relevo na matéria ora em apreço, dispõe o artigo 23.º do CIVA aplicável:
“1 - Quando o sujeito passivo, no exercício da sua actividade, efectuar operações que conferem direito a dedução e operações que não conferem esse direito, nos termos do artigo 20.º, a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de ambos os tipos de operações é determinada do seguinte modo:
a) Tratando-se de um bem ou serviço parcialmente afecto à realização de operações não decorrentes do exercício de uma actividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, o imposto não dedutível em resultado dessa afectação parcial é determinado nos termos do n.º 2;
b) Sem prejuízo do disposto na alínea anterior, tratando-se de um bem ou serviço afecto à realização de operações decorrentes do exercício de uma actividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, parte das quais não confira direito à dedução, o imposto é dedutível na percentagem correspondente ao montante anual das operações que dêem lugar a dedução.
2 - Não obstante o disposto da alínea b) do número anterior, pode o sujeito passivo efectuar a dedução segundo a afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito, sem prejuízo de a Direcção-Geral dos Impostos lhe vir a impor condições especiais ou a fazer cessar esse procedimento no caso de se verificar que provocam ou que podem provocar distorções significativas na tributação.
3 - A administração fiscal pode obrigar o sujeito passivo a proceder de acordo com o disposto no número anterior:
a) Quando o sujeito passivo exerça actividades económicas distintas;
b) Quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza a distorções significativas na tributação.
4 - A percentagem de dedução referida na alínea b) do n.º 1 resulta de uma fracção que comporta, no numerador, o montante anual, imposto excluído, das operações que dão lugar a dedução nos termos do n.º 1 do artigo 20.º e, no denominador, o montante anual, imposto excluído, de todas as operações efectuadas pelo sujeito passivo decorrentes do exercício de uma actividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, bem como as subvenções não tributadas que não sejam subsídios ao equipamento.
5 - No cálculo referido no número anterior não são, no entanto, incluídas as transmissões de bens do activo imobilizado que tenham sido utilizadas na actividade da empresa nem as operações imobiliárias ou financeiras que tenham um carácter acessório em relação à actividade exercida pelo sujeito passivo.”
O Requerente pretende ver deduzido o imposto incorrido na obtenção dos recursos necessários à realização das operações relacionadas com a concessão de crédito com reserva de propriedade, associada à inclusão no numerador e denominador da fração, a que se refere o n.º 4 do artigo 23.º do Código do IVA, da componente de transmissão de viaturas desta actividade.
O Requerente esclarece que na actividade de crédito com reserva de propriedade existem sempre duas operações distintas, autonomizadas e com diferente enquadramento em IVA: (i) a tributação, nos termos gerais, da operação de transmissão de viaturas e (ii) a isenção de IVA na concessão do crédito, nos termos da alínea a) do n.º 27 do artigo 9.º do Código do IVA. Assim, a consideração da componente de transmissão de viaturas da actividade de crédito com reserva de propriedade no coeficiente de imputação específico, atendendo ao consumo de recursos necessários para a realizar, revela-se fulcral para aferir a exacta medida do direito à dedução.
No entendimento expresso pelo Requerente, o facto de diversos (cerca de 600) Serviços Centrais/Direcções e Balcões se encontrarem dispersos pelo país, tornam inviável a determinação de critérios objetivos de afectação real que permitam aferir o rácio de inputs adquiridos por estes Serviços/Direcções cujo imposto se afiguraria dedutível por respeitar à prossecução da actividade de crédito com registo de propriedade. Verifica-se assim o efectivo consumo de recursos de utilização mista pela actividade de crédito com registo de propriedade, concretamente relacionados com a transmissão de viaturas.
A não consideração destas despesas no coeficiente de imputação específico conduziria a que a parcela do IVA incorrido nos recursos de utilização mista não tivesse em consideração a plenitude da actividade de crédito com reserva de propriedade, pelo que existiria uma efectiva desvantagem injustificada na capacidade de dedução do Requerente.
Consequentemente, o único critério capaz de traduzir a real afetação do IVA incorrido nos bens e serviços acima referidos será sempre o pro rata de dedução.
A Requerida defende que, no caso do crédito com registo de propriedade, a desconsideração do valor de venda da transmissão dos veículos (aos seus clientes do crédito) no apuramento do direito de dedução através do método da afectação real é a única forma de assegurar o princípio da neutralidade do imposto, na medida em que o IVA suportado na aquisição dos veículos (adquiridos e alienados no âmbito do crédito com reserva de propriedade) foi integralmente deduzido pelo Requerente, quando da sua aquisição no stand (ou concessionário automóvel), o que iria aumentar injustificadamente a percentagem de dedução. Efetivamente, quanto maior fosse o crédito concedido (operação sujeita a IVA, mas dele isenta por força do disposto na alínea 27) do artigo 9.º do Código do IVA), maior seria a dedução de IVA que resultaria da aplicação do coeficiente de imputação específico. Pelo que não se mostra possível, nem adequada a utilização do método do pro rata definido na alínea b) do n.º 1 e n.º 2, do artigo 23.º, e desenvolvido nos n.ºs 4 a 8 do mesmo preceito legal, devendo ser aplicado o disposto no n.º 3 do artigo 23.º do Código do IVA, conjugado com o entendimento constante do Oficio-Circulado n.º 30103, de 23-04-2008.
Cumpre apreciar.
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No Acórdão Volkswagen Financial Services (Processo C-153/17) do TJUE, procurou-se responder à questão de saber se o artigo 168.º e o artigo 173.º, n.º 2, alínea c), da Directiva IVA devem ser interpretados no sentido de que, por um lado, mesmo quando os custos gerais relativos às prestações de locação financeira de bens móveis, como as que estão em causa no processo principal, não são repercutidos no montante devido pelo cliente pela disponibilização do bem em causa, ou seja, a parte tributável da operação, mas sim no montante dos juros devidos a título da parte «financiamento» da operação, ou seja, a parte isenta da operação, esses custos gerais devem ser considerados, para efeitos do IVA, como um elemento constitutivo do preço dessa disponibilização e, por outro lado, se os Estados-Membros podem aplicar um método de repartição que não tem em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega.
Note-se desde logo, que as situações do Requerente nos presentes autos e da Volkswagen Financial Services no processo C-153/17, não são idênticas, porquanto esta é uma instituição especializada, dedicada exclusivamente a operações financeiras conexionadas com o ramo automóvel.
Não obstante julga-se, ainda, assim, que o TJUE emitiu, com clareza, pronúncia com relevância para a matéria que ora se discute, pelo que será útil analisar a decisão em questão.
Na mesma, começa o TJUE por definir se, do ponto de vista do IVA, diferentes operações como a concessão de financiamento e a disponibilização de veículos, devem ser tratadas como operações distintas tributáveis separadamente ou como operações complexas únicas compostas por vários elementos, tendo concluído que a resposta a tal questão deve ser dada pelo órgão jurisdicional nacional, tendo em conta os seguintes critérios:
a) cada operação deve normalmente ser considerada distinta e independente, e uma operação constituída por uma só prestação no plano económico não deve ser artificialmente decomposta, para não alterar a funcionalidade do sistema do IVA;
b) há que considerar que existe uma prestação única quando dois ou vários elementos ou actos fornecidos pelo sujeito passivo estão tão estreitamente ligados que formam, objectivamente, uma única prestação económica indissociável, cuja decomposição revestiria carácter artificial;
c) está-se em presença de uma prestação única quando um ou mais elementos devam ser considerados a prestação principal, ao passo que devem ser considerados uma prestação ou prestações acessórias que partilham do tratamento fiscal da prestação principal quando não constitua para a clientela um fim em si mesmo, mas o meio de beneficiar, nas melhores condições, do serviço principal do prestador.
Adicionalmente, esclareceu o TJUE que o pagamento diferido do preço de compra de um bem, mediante o pagamento de juros, pode ser considerado como uma concessão de crédito, que constitui uma operação isenta nos termos desta disposição, desde que o pagamento dos juros não constitua um elemento da contrapartida recebida pela entrega dos bens ou pelas prestações de serviços, mas sim a remuneração desse crédito.
Relativamente ao direito à dedução, o TJUE reafirmou que o sistema comum do IVA garante, por conseguinte, uma neutralidade perfeita quanto à carga fiscal de todas as actividades económicas, independentemente dos respectivos fins ou resultados, desde que essas actividades estejam elas próprias sujeitas a IVA, sendo admitido, no entanto, um direito à dedução a favor do sujeito passivo, mesmo na falta de uma relação directa e imediata entre uma determinada operação a montante e uma ou várias operações a jusante com direito a dedução, quando os custos dos serviços em causa sejam parte das despesas gerais deste último e sejam, enquanto tais, elementos constitutivos do preço dos bens fornecidos ou dos serviços prestados pelo mesmo, sendo que a decisão de não incluir estes custos no preço das operações tributáveis, mas unicamente no preço das operações isentas, não pode ter qualquer repercussão nesta conclusão de facto e que o resultado dessas operações económicas não é pertinente, à luz do direito à dedução, na condição de a própria actividade estar sujeita a IVA.
Ressalva, no entanto, o TJUE que o âmbito desse direito à dedução varia em função do uso a que os bens e os serviços em causa se destinam, já que, ao passo que, para os bens e serviços destinados a serem utilizados exclusivamente para realizar operações tributáveis, os sujeitos passivos estão autorizados a deduzir a totalidade do imposto que incidiu sobre bens ou serviços que lhes tenham sido fornecidos ou prestados, para os bens e serviços destinados a uso misto, resulta do artigo 173.º, n.º 1, da Directiva IVA que o direito à dedução se limita à parte do IVA que é proporcional ao valor respeitante às operações que conferem direito à dedução realizadas através desses bens ou serviços, e que nos termos do artigo 173.º, n.º 2, alínea c), da referida Directiva, os Estados-Membros podem autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços.
A este propósito, recordando o Acórdão Banco Mais, acrescenta o TJUE que qualquer Estado-Membro que decida autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços deve garantir que as modalidades de cálculo do direito à dedução permitam estabelecer com a maior precisão a parte do IVA relativa às operações que conferem direito à dedução, dado que o princípio da neutralidade fiscal, inerente ao sistema comum do IVA, exige que as modalidades do cálculo da dedução reflictam objectivamente a parte real das despesas efectuadas com a aquisição de bens e serviços de utilização mista que pode ser imputada a operações que conferem direito à dedução, sendo que o método escolhido não tem necessariamente de ser o mais preciso possível, mas deve poder garantir um resultado mais preciso do que aquele que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios.
Ainda a propósito do Acórdão Banco Mais, refere o TJUE que o cálculo do direito à dedução em aplicação do método baseado no volume de negócios, que tem em conta os montantes relativos à parte das rendas que os clientes pagam e que servem para compensar a disponibilização dos veículos, leva a determinar um pro rata de dedução do IVA pago a montante menos preciso do que o resultante do método baseado apenas na parte das rendas correspondente aos juros que constituem a contrapartida dos custos de financiamento e de gestão dos contratos suportados pelo locador financeiro, uma vez que estas duas actividades constituem o essencial da utilização dos bens e serviços de utilização mista destinada à realização das operações de locação financeira para o sector automóvel.
Conclui o TJUE que atendendo à natureza fundamental do direito à dedução, sempre que as modalidades de cálculo da dedução não tenham em conta uma afectação real e significativa de uma parte dos custos gerais a operações que confiram direito à dedução, não se pode considerar que tais modalidades reflictam objectivamente a parte real das despesas efectuadas com a aquisição dos bens e dos serviços de utilização mista que pode ser imputada a essas operações, pelo que tais modalidades não são susceptíveis de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios.
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Sobre a presente questão este Tribunal concorda com a posição constante do acórdão arbitral proferido no processo n.º 646/2018-T, do CAAD, expressa nos seguintes termos:
“ (…), os sujeitos passivos têm o direito de planear a sua vida fiscal com um mínimo de certeza e segurança, e se à AT devem ser reconhecidos os poderes, conferidos por lei, para conformar, em concreto, os métodos e procedimentos para determinar o imposto devido, não se poderá, nem deverá, extender tais prerrogativas para o passado.
Acresce ainda que por respeito aos supra-referidos princípios da segurança e certeza jurídicas, bem como do disposto no n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA aplicável, ao determinar, nos termos do n.º 3 da mesma norma, a aplicação do método da afectação directa, necessariamente deveria a AT indicar “critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito”, sob pena de ser imposta ao sujeito passivo uma obrigação indeterminada e potencialmente de impossível cumprimento. Com efeito, não se deverá perder de vista que o âmbito do artigo 23.º do CIVA se reporta a recursos designados por promíscuos, ou seja, que não são passíveis de uma imputação directa com actividades sujeitas ou não sujeitas a imposto, pelo que, não admitindo a AT o método supletivo previsto na lei, deverá assistir-lhe o ónus de densificar os “critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito”, conforme aquela mesma lei prevê, e não simplesmente indicar que deve ser utilizado o método previsto no n.º 2 do artigo 23.º do CIVA, deixando o sujeito passivo na posição de ter de adivinhar quais os termos que, para a mesma AT, serão aceitáveis para a execução de tal método.
Diga-se, ainda, que não se poderá julgar que a imposição para o Requerente utilizar o método de afectação real, relativamente à actividade de concessão de crédito com reserva de propriedade por si exercida, resulta do Oficio-Circulado n.º 30103, ou de qualquer outra orientação administrativa.
Efectivamente, conforme é pacífico hoje, “As orientações administrativas veiculadas sob a forma de circular da Administração Tributária, não se impondo ao juiz senão pelo valor doutrinário que porventura possuam e carecendo de força vinculativa heterónoma para os particulares”.
Daí que, carecendo de força vinculativa heterónoma, não poderá retirar-se da Circular invocada pela AT qualquer vinculação para o Requerente.
Não está, assim, em causa desreconhecer a faculdade conferida à AT pelo artigo 23.º/3 do Código do IVA aplicável, nem, muito menos, as disposições comunitárias que legitimam a consagração no ordenamento nacional daquela faculdade, nos termos que emergem da jurisprudência do TJUE, mas simplesmente constatar que, in casu, a AT não utilizou, (…), a referida prorrogativa. Não quer isto dizer, assim, que não possa assistir razão substancial ao quanto pondera a AT relativamente às distorções que o método do pro rata seja susceptível de introduzir na tributação do Requerente em sede de IVA.
Não obstante, é notório, conforme resulta, de resto, dos factos provados, que a actividade de concessão de crédito com reserva de propriedade exercida pelo Requerente consome recursos comuns, e que a modalidade utilizada (crédito com reserva de propriedade) implica a utilização de recursos determinados, e porventura adicionais, em relação à simples concessão de crédito sem garantia, ou com outros tipos de garantia (como fiança, por exemplo).
Por outro lado, como não é questionado, o regime regra do artigo 23.º é o constante do n.º 1, consistindo o regime do n.º 2 uma alternativa a utilizar por opção do sujeito passivo ou por imposição da AT. “
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Tendo em conta o entendimento expresso no acórdão arbitral supra referido importa salientar que dos factos provados nos autos resulta que a actividade de concessão de crédito com reserva de propriedade exercida pelo Requerente utiliza e consome um conjunto de recursos que compõem a sua estrutura.
Ora, o art.º 168.º da Directiva IVA, prescreve que quando “os bens e os serviços
sejam utilizados para os fins das suas operações tributadas, o sujeito passivo tem direito, no
Estado-Membro em que efectua essas operações, a deduzir do montante do imposto de que é
devedor” .
Deverá ser neste contexto que o regime do pro rata deverá ser entendido, ou seja, se
bens ou serviços forem utilizados para os fins das suas operações tributadas, o sujeito passivo
tem direito a deduzir do montante do imposto de que é devedor.
Daí que o CIVA disponha, no seu art.º 19.º, em conformidade e para além do mais, que
“Para apuramento do imposto devido, os sujeitos passivos deduzem (...) ao imposto incidente
sobre as operações tributáveis que efectuaram: a) O imposto devido ou pago pela aquisição
de bens e serviços a outros sujeitos passivos” .
Assim, quando o art.º 173.º da Directiva diz que “No que diz respeito aos bens e aos
serviços utilizados por um sujeito passivo para efectuar tanto operações com direito à
dedução, referidas nos artigos 168.º, 169.º e 170.º” , e o art.º 23.º do CIVA refere,
correspondentemente, que “Quando o sujeito passivo, no exercício da sua actividade, efectuar
operações que conferem direito a dedução” , tal se deva entender como reportando a operações
referidas, respectivamente, no art.º 168.º e 19.º.
Ora as operações realizadas a jusante pelo Requerente em questão no caso,
designadamente as operações de venda de veículos, não são entendidas, pela AT como operações que sejam abrangidas pelas excepções ao direito à dedução, nem que não sejam tributadas. Daí que não deva ser legítimo à AT precludir – seja pelo método da imputação directa, se possível, ou pelo método do pro rata, subsidiariamente – o direito à dedução do sujeito passivo que realiza tais operações.
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No caso, pretende a AT fazer-se valer do disposto no n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA, isto é, da existência de “distorções significativas na tributação” para legitimar a imposição de condições especiais.
Ora, dispõe o artigo 74.º da LGT que: “O ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque.”.
No caso, pretendendo a AT aplicar o disposto no n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA, nos termos do n.º 3, alínea b) do mesmo artigo, e sendo aquela uma norma que impõe obrigações adicionais ao contribuinte, é àquela Autoridade que cabe o ónus de prova da verificação dos requisitos legais da sua actuação, ou seja, o ónus de demonstrar os factos constitutivos do direito que pretende fazer valer, designadamente, o direito de impor condições especiais, pressupostos esses em que avulta, no que para o caso releva, a ocorrência de “distorções significativas na tributação”.
Com efeito, o que está em causa é que, para a imposição da utilização do método de afectação directa com “condições especiais”, e face à redacção do artigo 23.º, n.º 2, do CIVA (conjugado com a alínea b) do seu n.º 3), impõe-se a constatação de uma determinada realidade de facto, que é a verificação de distorções significativas na tributação na utilização do pro rata (cfr. a citada al. b) do n.º 3 do art.º 23.º do CIVA).
Ora, a demonstração de tal realidade não poderá deixar de ser entendida, julga-se, como um ónus da AT, que esta não pode transferir para o sujeito passivo.
Assim, estando assente que o imposto é dedutível (daí ser aplicável o art.º 23.º do CIVA, que pressupõe, justamente, que se esteja perante imposto qualificado como tal), o que está em causa é a forma de cálculo desse imposto, ou, dito de outro modo, se o mesmo se há-de apurar pelo método do pro rata, conforme entende o contribuinte, ou de acordo com o método da afectação real com “condições especiais”, como entende a AT.
Note-se, ainda, que, não está em causa apurar se o referido método da afectação real com “condições especiais” é o adequado para evitar distorções na concorrência.
Está em causa, isso sim, apurar se se verificam os pressupostos para a AT exercer o seu direito, de impor aos contribuintes a utilização do método da afectação real com “condições especiais” nos termos da al. b) do n.º 3 do art.º 23.º do CIVA.
Assim, a jusante do ónus da prova que incide sobre o contribuinte quanto aos factos que constituem o fundamento do seu direito à dedução, e a montante do ónus da prova que igualmente assiste àquele de demonstrar que o método da afectação real com “condições especiais” imposto pela AT, não é adequado a evitar, ou agrava, as “distorções na concorrência”, situa-se o ónus da prova daquela de que, no caso, “a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza a distorções significativas na tributação”.
Nesta matéria, e desde logo, não se vislumbra como se poderá, a partir do texto da norma do art.º 23.º, n.º 3, al. b) em causa, que prescreve que “A administração fiscal pode obrigar o sujeito passivo a proceder de acordo com o disposto no número anterior: (...) b) Quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza a distorções significativas na tributação.”, se possa ler no sentido de que “A administração fiscal pode obrigar o sujeito passivo a proceder de acordo com o disposto no número anterior: (...) b) Quando não se demonstrar que a aplicação do processo referido no n.º 1 não conduza a distorções significativas na tributação”.
Por outro lado, cumpre também notar as diferenças de redacção da norma ora em análise (art.º 23.º, n.º 3, al. b)), em relação à norma precedente (art.º 23.º, n.º 2), não se podendo deixar, em caso algum, de ter presente que é naquela, e não nesta, que a AT funda em primeira linha a sua pretensão.
Ora, enquanto a segunda daquelas normas (art.º 23.º, n.º 2) menciona a verificação (“se verificar que provocam”), e a possibilidade de verificação (“que podem provocar”) de distorções significativas na tributação, a primeira, tem, exclusivamente como pressuposto que “a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza a distorções significativas na tributação”, o que não são, claramente, julga-se expressões equivalentes, uma vez que a expressão “conduza” implica uma efectividade substancialmente mais reforçada que a mera possibilidade, denotada pela expressão “que podem provocar”.
No entanto, no caso, o máximo que se pode retirar da fundamentação do RIT, e ainda assim de forma conclusiva e não consubstanciada em factos concretos – é a alegação da possibilidade de conduzir a distorções significativas na concorrência.
Todavia, o pressuposto da norma do art.º 23.º, n.º 3, al. b), não é a possibilidade (“que possa conduzir”), mas a efectividade (que “conduza”) de conduzir a distorções significativas na concorrência.
E, ainda assim e como sublinha o Requerente, as considerações em que a AT se funda, nem sequer em abstracto serão, ressalvado o respeito devido, susceptíveis de fundar aquele juízo de verificação de distorções na concorrência.
Com efeito, nem, para efeitos de sujeição a IVA, é relevante o propósito lucrativo da operação ou a de a mesma se enquadrar no “cerne” da actividade do sujeito passivo, nem se demonstra – pelo contrário – que as operações de CRP não consumam recursos mistos, sendo que são, essencialmente, estes os argumentos em que a AT funda as correcções que efectivou.
Do mesmo modo, o exemplo constante do RIT, relativamente à diferença de tratamento de uma entidade que se dedique ao crédito ao consumo e uma outra que se dedique ao CRP não se tem por pertinente, dado que a situação e a actividade não é, evidentemente, a mesma, implicando, como de resto resulta dos factos dados como provados, a actividade de CRP o consumo de recursos adicionais, e que o mesmo exemplo é susceptível de ser transposto para uma entidade como a Volkswagen Financial Services, sendo que o TJUE validou, expressamente, tal situação.
Daí que, no caso, nem em abstracto, nem, muito menos em concreto, se descortina qualquer suporte fáctico para a conclusão, necessária à formação do direito da AT a obrigar o Requerente a proceder de acordo com o disposto no n.º 2 do art.º 23.º do CIVA, de que a aplicação do processo referido no n.º 1 do mesmo artigo conduza a distorções significativas na tributação.
Ora, não se apurando tal substrato fáctico, e tendo presente o disposto no artigo 74.º/1 da LGT e 100.º, n.º 1, do CPPT, ter-se-á de concluir pela anulação do acto tributário na parte que tem subjacente a aplicação das “condições especiais”, impostas pela Circular n.º 30108, procedendo o pedido arbitral.
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Face ao exposto, o Tribunal considera que as liquidações adicionais de IVA objecto da presente acção arbitral enfermam de erro nos pressupostos, na parte em que desconsideraram o valor da transmissão das viaturas relativas à actividade de concessão de crédito com reserva de propriedade do numerador e denominador da percentagem de dedução aplicada ao IVA incorrido pelo Requerente nos recursos de utilização mista.
Nestes termos, o Tribunal Arbitral considera procedente, nesta parte, o pedido de pronúncia arbitral.
3.2. Indemnização por prestação de garantia indevida
Como resulta do probatório, em 13.4.2015 o Requerente apresentou uma garantia bancária consubstanciada sob o documento nº 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral, com a finalidade de suspender a execução fiscal instaurada para cobrança da quantia objecto das liquidações subjacentes, pedindo nesta sequência que a Requerida seja condenada em indemnização pela garantia indevidamente prestada.
Na autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, concedida pelo artigo 124º da Lei nº 3-B/2010, de 28 de Abril, proclama-se, como directriz primacial da instituição da arbitragem como forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária, que “o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária.”
Embora o artigo 2º, nº 1, alíneas a) e b) do RJAT utilize a expressão “declaração de ilegalidade” para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam junto do CAAD, e não faça referência a decisões constitutivas (anulatórias) e condenatórias, deverá entender-se, em sintonia com a referida autorização legislativa, que se compreendem nas suas competência s poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários em relação aos actos cuja apreciação de legalidade se insere nas suas competências.
Apesar de o processo de impugnação judicial ser essencialmente um processo de mera anulação (artigos 99º e 124º do CPPT), pode nele ser proferida condenação da administração tributária no pagamento de juros indemnizatórios e de indemnização por prestação de garantia indevida.
Relativamente ao pedido de condenação no pagamento de indemnização por prestação de garantia indevida, o art.º 171º do CPPT estabelece que “a indemnização em caso de garantia bancária ou equivalente indevidamente prestada será requerida no processo em que seja controvertida a legalidade da dívida exequenda”, e que “a indemnização deve ser solicitada na reclamação, impugnação ou recurso ou em caso de o seu fundamento ser superveniente no prazo de 30 dias após a sua ocorrência”.
Assim, é inequívoco, que o processo de impugnação judicial abrange a possibilidade de condenação no pagamento de garantia indevida e até é, em princípio o meio processual adequado para formular tal pedido, o que se justifica por evidentes razões de economia d, pois o direito a indemnização por garantia indevida depende do que se decidir sobra a legalidade ou ilegalidade do acto de liquidação.
O pedido de constituição do tribunal arbitral tem como corolário passar a ser no processo arbitral que ser discutida a “legalidade da dívida exequenda”, pelo que, como resulta do teor expresso daquele nº 1 do referido art.º 171º do CPPT, é também o processo arbitral adequado para apreciar o pedido de indemnização por garantia indevida.
Aliás, a cumulação de pedidos relativos ao mesmo acto tributário está implicitamente pressuposta no art.º 3º do RJAT, ao falar em “cumulação de pedidos, ainda que, relativos a diferentes actos”, o que deixa perceber que a cumulação de pedidos também é possível relativamente ao mesmo acto tributário e os pedidos de indemnização por juros indemnizatórios e de condenação por garantia indevida são susceptíveis de ser abrangidos por aquela fórmula, pelo que uma interpretação neste sentido tem, pelo menos, o mínimo de correspondência verbal exigido pelo nº 2 do art.º 9º do Código Civil.
O regime do direito a indemnização por garantia indevida consta do art.º 53º da LGT, que estabelece o seguinte:
Artigo 53º
Garantia em caso de prestação indevida
1.O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição que tenham como objecto a dívida garantida.
2. O prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo.
3. A indemnização referida no número 1 tem como limite máximo o montante resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios prevista na presente e pode ser requerida no próprio processo de reclamação ou impugnação judicial, ou autonomamente.
4.A indemnização por prestação de garantia indevida será paga por abate à receita do tributo do ano em que o pagamento de efectuou.
Resulta do no número anterior a ilegalidade do despacho de indeferimento da reclamação graciosa e dos actos tributários subjacentes, e a consequente anulação dos mesmos, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito por parte da Requerida.
Nesse pressuposto, fica a Requerida condenada a restituir ao Requerente as despesas incorridas com a prestação da garantia bancária indevidamente prestada, que se venham a apurar, se necessário em execução de julgado.
3.3. Questões de conhecimento prejudicado
Sendo de julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral com fundamento em vícios de violação de lei, que asseguram estável e eficaz tutela dos interesses do Requerente, fica prejudicado, por ser inútil, o conhecimento de outras questões colocadas, de harmonia com o disposto nos artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (“CPC”), subsidiariamente aplicável por força do disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.
4. Decisão
Termos em que o Tribunal Arbitral decide:
A) Julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral, anulando-se, em consequência, o despacho de indeferimento da reclamação graciosa e os actos de liquidação adicional de IVA n.ºs 2015... e 2015..., no valor total de € 989.873,74, e correspondentes liquidações de juros compensatórios n.ºs 2015... e 2015..., no valor total de € 79.347,85;
B) Condenar a Requerida no pagamento de indemnização por prestação de garantia indevida;
C) Condenar a Requerida nas custas do presente processo, por ser a parte vencida e ter dado causa ao presente processo.
5. Valor do Processo
Em conformidade com o disposto no artigo 306.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, 97.º-A do CPPT e artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o valor do pedido é fixado em € 1.061.537,75 (um milhão, sessenta e um mil, quinhentos e trinta e sete euros e setenta e cinco cêntimos).
6. Custas
Custas a cargo da Requerida no montante de € 14.688,00 de acordo com o artigo 12.º, n.º 2 do RJAT e do artigo 4.º, n.º 4 do Regulamento de Custas dos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I anexa a este último.
Lisboa, 15 de Agosto de 2021
(O texto da presente decisão foi elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, da alínea e) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT) regendo-se a sua redacção pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990)
Os árbitros
José Pedro Carvalho (Presidente)
Magda Feliciano (Vogal)
Cristina Aragão Seia (Vogal)