SUMÁRIO:
I. Estabelece o artigo 88.º, n.º 1, do CIRC, na redação da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, que «as despesas não documentadas são tributadas autonomamente, à taxa de 50 %, sem prejuízo da sua não consideração como gastos nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º-A»;
II. As despesas não documentadas a que se refere o artigo 88.º, n.º 1, do CIRC são em concreto saídas de meios financeiros do património da empresa sem um documento de suporte que permita apurar o seu destino ou o seu beneficiário. Este entendimento é o que melhor garante o sentido útil e a finalidade regulatória do preceito em causa, portanto o entendimento que adequadamente valora o elemento finalístico da lei.
DECISÃO ARBITRAL
O Árbitros Fernanda Maçãs (Árbitro Presidente), Dr. Paulo Ferreira Alves e Dra. Sofia Ricardo Borges (árbitro vogais), designados no Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral, acordam:
I. RELATÓRIO
1. A..., LDA., pessoa coletiva n.º..., com sede na ..., notificada do ato de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) n.º 2019..., praticado em 2 de outubro de 2019, pela Senhora Diretora-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira, com referência ao exercício de 2016, do qual resulta imposto a pagar no valor de € 64.945,48, dos atos de liquidação de Juros Compensatórios n.ºs 2019... (no valor de € 280,48) e 2019 ... (no valor de € 5.421,21), a que corresponde a Demonstração de Acerto de Contas n.º 2019 ... (Compensação n.º 2019 ...), da qual resulta o valor a pagar de € 68.201,69, veio apresentar Pedido Arbitral, com vista a impugnar as referidas liquidações adicionais.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida.
A Requerente não exerceu o direito à designação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT, e dos artigos 6.º e 7.º, do Código Deontológico do CAAD.
Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral coletivo ficou constituído em 5 de Agosto de 2020.
2. A Requerente sustenta a procedência do seu pedido, sumariamente, com base nos seguintes argumentos:
Vício de falta de fundamentação, porquanto, no ato de liquidação adicional de IRC n.º 2019 ... notificado não são explicitados todos os fundamentos, quer de facto, quer de direito, que determinaram a sua emissão, com violação do disposto no artigo 77.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária (“LGT”). Também não é feita remissão expressa para qualquer documento contemporâneo ou anterior a esse mesmo ato. A mesma falta de fundamentação estende-se à liquidação de juros compensatórios.
Falta de audiência prévia, por não ter sido notificada nos termos e para os efeitos previstos na alínea a), do n.º 1, do artigo 60.º da LGT.
Sem conceder e por mera cautela, argumenta, ainda, que, os referidos atos de liquidação enfermam de caducidade, uma vez que, de acordo como decorre do RIT, em causa está uma despesa do ano de 2008, no valor de € 125.000,00 sendo que a Administração Tributária tributou autonomamente este valor em 2016, apurando imposto a pagar no valor de € 62.500,00 o que viola o n.º 1 do artigo 45.º da LGT.
Quanto à ilegalidade da tributação autónoma argumenta a Requerente que, ao contrário do que sustentam os Serviços de Inspeção Tributária os factos que motivaram o pagamento do valor de € 125.000,00 são claros e encontram-se suportados em documentação apresentada pela Requerente, em especial na ata n.º 35, e nas explicações prestadas ao longo do procedimento de inspeção e que poderão, em sede de audiência de inquirição de testemunhas, ser, mais uma vez, confirmadas.
Não estamos perante uma despesa não documentada porque o referido valor de €125.000,00 diz respeito a um empréstimo contraído pela Requerente, junto do C..., para que os atuais sócios da Requerente adquirissem as quotas da Requerente, em 2008, ao Sr. B..., anterior sócio da sociedade.
Assim sendo, o empréstimo tem suporte documental, em especial na ata n.º 35 da sociedade, sendo que da referida ata e do Relatório de Gestão resulta que o empréstimo, no valor de € 125.000,00 foi contraído pela própria Requerente para que os novos sócios da Requerente pudessem adquirir as quotas da Requerente.
Daquela ata resulta também, inequivocamente, que os novos sócios ficaram obrigados a restituir os € 125.000,00 à Requerente no prazo de 15 anos, podendo este valor também ser restituído através da compensação de saldos credores existentes dos sócios e constantes na contabilidade.
Argumenta também a Requerente que suportes documentais tais como faturas ou documentos equivalentes não poderiam ser apresentados dado tratar-se de uma compra e venda de quotas, que não implica obrigatoriedade de emissão de qualquer suporte documental que não seja a ata. Se dúvidas existissem quanto ao efetivo beneficiário do referido valor, essas dúvidas ficariam dissipadas com a análise do cheque do C..., no valor de € 125.000, 00 emitido, em 5 de setembro de 2008, pela A..., aqui Requerente, a favor do antigo sócio da Requerente, o Sr. B..., sendo que tal cheque não era endossável.
Em suma, o cheque emitido em 5 de setembro de 2008, em conjugação com o ponto 2.2 da ata 35 e com o Relatório de Gestão, não deixam margem para quaisquer dúvidas: os novos sócios pagaram as quotas adquiridas aos antigos sócios através de um empréstimo contraído pela própria Requerente, tendo os sócios se vinculado à restituição do referido valor no prazo de 15 anos. Não estamos, por conseguinte, perante uma despesa não documentada, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 88.º, n.º1, do CIRC.
A Requerente termina pedindo, como decorrência da procedência do presente pedido de pronúncia arbitral, o reconhecimento do direito a indemnização pela garantia que, como se demonstrou, foi indevidamente prestada, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 53.º da LGT.
3. A Requerida, refuta a falta de fundamentação, porquanto os atos de liquidação de IRC e de juros compensatórios alicerçam-se num procedimento inspetivo, realizado ao período de tributação de 2016, anterior aos respetivos atos de liquidação, onde foram analisados um conjunto de factos e, no final do procedimento, foi elaborado um relatório final onde se explana, de forma organizada, clara, exaustiva e suficiente, quais os fundamentos e raciocínios (com documentos anexos) que presidem à correção em causa – e que determinam depois a liquidação de imposto e juros.
Quanto à falta de audição prévia, o contribuinte só deve ser ouvido antes da liquidação em caso de invocação de factos novos sobre os quais não se tenha pronunciado, o que manifestamente não ocorreu.
Quanto à caducidade do direito à liquidação, não faz parte da linha argumentativa dos Serviços de Inspeção Tributária no RIT, que "foi em 2008 que foi efetuada a alegada despesa não documentada"; pelo que, não deverá ser por referência àquele ano de 2008, mas ao ano do registo contabilístico que nos ocupa - 2016 - que deverá ser apurado se a AT ainda estava em tempo de liquidar IRC adicional, por referência àquele facto tributário.
No exercício de 2008 a Requerente alega ter contraído um empréstimo bancário junto do C..., para que os atuais sócios adquirissem as quotas ao senhor B..., anterior sócio da sociedade, pelo que deveria ter sido registado na rubrica dos sócios e não de outros devedores.
Este valor transitou na contabilidade da sociedade do exercício de 2008 até ao exercício de 2016, sem que se tenha verificado qualquer pagamento por parte dos novos sócios para amortização do empréstimo. No exercício de 2016 a sociedade anulou este valor do ativo por contrapartida de resultados transitados. Por conseguinte, apesar do alegado pagamento ter ocorrido no exercício de 2008, esse facto não teve qualquer efeito na determinação do lucro tributável, verificando-se apenas uma alteração entre contas do ativo, de depósitos bancários para outros devedores.
A operação registada no exercício de 2008, não foi reconhecida como uma despesa, não teve influência no resultado líquido do período, e a sociedade reconheceu essa dívida de terceiros na sua contabilidade até ao exercício de 2016.
Na tributação autónoma em IRC, o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa, não se estando perante um facto complexo, de formação sucessiva ao longo de um ano, mas perante um facto tributário instantâneo.
No caso que nos ocupa, estamos face a liquidação adicional de IRC, e tendo em conta que se trata da liquidação relativa ao ano fiscal de 2016, e porque o facto tributário ocorreu nesse exercício económico, o prazo de caducidade inicia-se em 31/12/2016, tendo o seu termo final em 31/12/2020.
Efetivamente, está aqui em causa, o movimento contabilístico 10.094.133, de 31/01/2016, que debita a conta 5619 e credita a conta 278210001, por € 125.000,00; isto é, está em causa um "perdão de dívida a devedor desconhecido" não documentado e que foi reconhecido contabilisticamente em 2016.
Quanto à alegada ilegalidade da Tributação Autónoma, o que se verifica em 2016, tal como já referido no PRIT- página 16 – é um dispêndio de meios monetários do SP, que afasta da esfera da empresa €125.000,00, não sendo o destino da respetiva importância determinado nem determinável, isto é, não sendo conhecida a operação subjacente, visto não existir qualquer documento de suporte admissível em face das ambiguidades existentes em documentos oficiais fornecidos pela ora Requerente.
Este movimento no montante de € 125.000,00 em 2016, que se encontra registado a débito na conta 5619 por contrapartida do crédito da conta 27810001 (Outros devedores), promove e efetiva uma redução dos capitais próprios no SP no valor de € 125.000,00. Assim, em virtude dos documentos existentes, houve a realização, por parte do SP, de uma despesa não documentada cuja natureza não é revelada.
4. Em 23 de novembro de 2020, deu-se a reunião prevista no artigo 18.º, do RJAT, assim como a inquirição de testemunhas indicadas pela Requerente, tudo conforme a ata junta aos autos, que se dá por reproduzida para todos os devidos e legais efeitos, tendo as partes sido notificadas para, querendo, apresentarem alegações. Determinou-se ainda naquela reunião a prorrogação por dois meses do prazo referido no artigo 21.º, n.º 1, do RJAT, a contar do término daquele, bem como a designação do dia 5 de abril de 2021 para o efeito de prolação da decisão arbitral.
5. As partes apresentaram alegações reiterando os argumentos anteriormente expostos.
II. SANEADOR
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 4.º, e 5.º, todos do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
O processo não enferma de nulidades.
Cumpre apreciar e decidir.
III. FUNDAMENTAÇÃO
III.1. Matéria de facto
Factos provados
Consideram-se provados os factos que seguem:
a) A Requerente é uma sociedade por quotas com o objecto social de fabrico de pão a retalho, fabricação de bolachas, biscoitos, tostas e pastelaria de conservação, pastelarias e casas de chá, atividade que desenvolve através da exploração da padaria “D...”;
b) A Requerida, em cumprimento da ordem de serviço n.º OI2019..., que teve por objecto o ano de 2016, levou a cabo com referência à Requerente ação de inspeção de âmbito geral;
c) O procedimento de inspeção teve início em 09.04.2019 e foi concluído em 16.09.2019;
d) Em resultado do procedimento de inspeção a Requerente foi notificada, pelo Ofício ...-2019 de 26.08.2019, emitido pela Direção de Finanças de Lisboa para querendo, em 15 dias, se pronunciar sobre o projeto de RIT, do qual resultava uma correção em IRC, exercício de 2016, no valor de € 62.500,00;
e) A 10.09.2019 a Requerente exerceu direito de audição sobre o Projeto de RIT por não se conformar com a projectada correcção;
f) Os SIT concluíram que a Requerente não produziu, em sede de direito de audição, qualquer prova que invalidasse a correcção proposta no Projecto de RIT, e o RIT veio a ser notificado à Requerente confirmando-se as correcções ali projectadas;
f) A Requerente foi posteriormente notificada da liquidação de IRC n.º 2019..., datada de 02.10.2019, referente ao exercício de 2016, com imposto a pagar no valor de € 64.945,48, e liquidações de Juros Compensatórios n.ºs 2019... (€ 280,48) e 2019... (€ 5.421,21), a que corresponde a Demonstração de Acerto de Contas n.º 2019... (Compensação n.º 2019...) com o valor total a pagar de € 68.201,69;
g) A Requerente não procedeu ao pagamento das liquidações de IRC e de Juros Compensatórios no prazo de pagamento voluntário e o Serviço de Finanças de ... instaurou processo de execução fiscal, n.º ...2019..., do qual resultava que o valor de garantia a prestar para suspensão do referido processo era de € 86.714,99;
h) A Requerente prestou, a 24.01.2020, garantia bancária n.º GAR/..., no valor € 86.714,99, emitida a 20.01.2020, pelo Banco E...;
i) No exercício de 2016 a contabilidade da Requerente regista com data de 31.01.2016 um movimento contabilístico, com o n.º 10.094.133, em que se credita a conta 278210001 (outros devedores) e, por contrapartida, debita a conta 5619 (resultados transitados), no montante de € 125.000,00;
j) O movimento contabilístico a crédito na conta 278210001 (outros devedores), reconhecido pela Requerente em 2016, promove a redução, então, dos capitais próprios da Requerente em € 125.000,00;
k) Não existe um documento de suporte ao referido movimento contabilístico;
l) A Requerente emitiu um cheque em 2008 a um dos antigos sócios, B..., pelo montante de € 125.000,00;
m) O antigo sócio B... era titular no capital social da Requerente de uma quota no valor nominal de € 4.000,00;
n) No que se refere à quota em m) supra, os actuais dois sócios da Requerente adquiriram as suas respectivas quotas pelo valor nominal de € 2.000,00 cada, resultantes da divisão em duas da quota de € 4.000,00 do até então sócio B...;
o) Não consta na contabilidade da Requerente qualquer registo de um empréstimo aos sócios no exercício de 2008, nem nos seguintes;
p) No Projeto de RIT, e depois no RIT, a Requerida considerou o montante de € 125.000,00 como despesa não documentada por não existência de documento de suporte e não comprovado o destino dado ao valor contabilizado;
q) O imposto apurado nos termos do Projeto de RIT é o correspondente à taxa de 50% sobre o montante de € 125.000,00;
r) A Requerente foi notificada do RIT no qual a Requerida manteve as correções propostas no respetivo Projeto;
s) Do RIT consta, entre o mais:
"Em 18/07/2018, na sequência do mail acima referido, foi solicitado justificação documental para o movimento contabilístico 10.094.133, de 31/01/2016, que debita a conta 5619 e credita a conta 278210001, por €125.000,00." (RlT páginas 6)
"111.8. Apreciação das justificações e documentos apresentados pelo SP
a. Na primeira abordagem ao assunto o SP transmitiu que « ... , consideramos que seja relevante, ... , justificar os mesmos: Os movimentos lá verificados dizem respeito, ... , essencialmente a correções efetuadas respeitantes a saldos que permaneciam muito antigos, ... )
b. Na única reunião com os sócios-gerentes a primeira explicação, para a movimentação a crédito dos €125.000,00 na conta 278210001 – B..., foi a de inicialmente a compra das quotas do Sr. B... ter sido efectuada através de um cheque pessoal do Sr. F... nesse montante.
c. Contactada, durante a reunião, a instituição financeira C... a mesma afirmou que o cheque inicial emitido por 125.000,00 era pertença da A..., LDA e havia sido assinado pelos dois sócios-gerentes.
d. Face a esse contraditado a justificação providenciada pelos sócios-gerentes sofreu um
desenvolvimento noutro sentido, ou seja: os € 125.000,00 iniciais afinal eram referentes à aquisição, ao Sr. B..., do terreno e edifício onde o SP (A..., LDA.) desenvolvia a sua actividade de panificação.
e. Posteriormente (24-04-2019) o SP vem informar que: «Em Agosto de 2008, foi vendida a entidade G..., Lda., pelos seus Sócios incluindo B..., a F... e H..., pelo valor de 125.000,00€.», e «Em 2016, procedeu-se à análise aprofundada dos saldos das contas da empresa, motivada pela futura alteração de Contabilista Certificado. Neste sentido verificou-se a existência de contas com saldo que não espelham a realidade da entidade A..., Lda. Apelando aos princípios contabilísticos realizou-se a regularização dos mesmos».
f. Mais tarde (19-07-2019) o Sr. I..., numa "presumida" representação da sociedade, vem alegar que «esta importância de 125.000€ diz respeito a um empréstimo da sociedade feito aos sócios atuais para compra das quotas ao anterior sócio. Tal empréstimo é e sempre foi considerado pelos atuais sócios como reembolsável à sociedade assim que tenhamos possibilidade financeira para tal.
g. Importa desde já mencionar que tal "empréstimo" não se encontra contabilizado em nenhuma conta da escrita do SP. Tanto assim que, o Sr. I,,,, alega na sua narrativa que «[o SP?] ofereceu como solução a reposição ou nas contas de 2019 ou mesmo substituindo as contas anteriores, desse valor, na conta dos atuais sócios para que estes restituam o valor emprestado à sociedade».
h. Para finalizar o SP, após notificação para o efeito, atesta que «.O saldo inicial constante nessa conta (na conta 268210001] diz respeito a um pagamento efetuado ao anterior sócio pela aquisição das participações sociais da empresa», «Não existe qualquer movimento subsequente excepto a passagem para resultados transitados, passagem esta que esta a gerar toda esta situação fiscal», «A origem dos fundos (125.000€) teve como total proveniência um crédito bancário contraído junto do banco C... . Esse financiamento foi creditado na conta da empresa e no mesmo dia foi debitado da conta da empresa com destino ao anterior sacio, conforme cheque bancário, ... »." (RIT páginas 12 e 13)
"Concluindo, existe um dispêndio de meios monetários do SP, que afasta da esfera da empresa €125.000,00, não sendo o destino da respetiva importância determinado nem determinável, isto é, não sendo conhecida a operação subjacente, visto não existir qualquer documento de suporte admissível em face das ambiguidades existentes em documentos oficiais fornecidos pelo SP.
Não é de menos recordar que este movimento no montante de € 125.000,00, que se encontra registado a débito na conta 5619 por contrapartida do crédito da conta 27810001, promove a efectiva uma redução dos capitais próprios no SP no valor de€ 125.000,00.
Assim, em virtude dos documentos existentes, houve a realização, por parte do SP, de uma despesa não documentada cuja natureza não é revelada." (RIT a páginas 16 e 26).
t) A 19.02.2020 a Requerente apresentou o PPA que originou o presente processo.
Factos não provados
- Não se provou que a Requerente tenha contraído um empréstimo em 2008 destinado à aquisição das suas próprias quotas;
- Não se provou que os novos sócios da Requerente tenham pago as quotas por si adquiridas aos antigos sócios através de um empréstimo contraído pela Requerente em 2008;
- Não se provou que o cheque de € 125.000,00 emitido pela Requerente em 2008 tenha servido de suporte a algum movimento contabilístico da Requerente;
- Não se provou o destino dos € 125.000,00 lançados a crédito na conta 278 (outros devedores) em 2016;
Com relevo para a decisão da causa não existem outros factos provados ou não provados.
Quanto à matéria de facto, o Tribunal não tem que pronunciar-se sobre tudo o alegado pelas Partes, cabendo-lhe o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. art.º 596.º do CPC).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas Partes e a prova documental junta, bem como o que consta do processo administrativo, tudo documentos que se dão por reproduzidos, e a prova testemunhal produzida, tudo ponderado e analisado criticamente, consideram-se assentes, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
III.2. Matéria de direito
Questões Previas: Caducidade do Direito de Liquidação
A Requerente alega caducidade do direito à liquidação do ato tributário, por entender que está em causa uma despesa do ano de 2008, e que a AT tributou autonomamente em 2016.
A Requerida, entende, que não se verificou a caducidade, porque o que está em causa, é o movimento contabilístico 10.094.133, de 31/01/2016, que debita a conta 5619 e credita a conta 278210001, por € 125.000,00, isto é, está em causa um "perdão de dívida a devedor desconhecido" não documentado e que foi reconhecido contabilisticamente em 2016.
Atendendo à posição das partes e à factualidade, compete analisar o regime jurídico-fiscal da caducidade em sede de IRC, em concreto determinar qual o prazo aplicável e se a AT procedeu à sua liquidação dentro desse prazo.
O regime da caducidade do direito à liquidação de impostos, encontra atualmente consagração no artº.45, da Lei Geral Tributária, “O direito de liquidar os tributos caduca se a liquidação não for validamente notificada ao contribuinte no prazo de quatro anos, quando a lei não fixar outro”, norma que vem pois consagrar um prazo de caducidade de quatro anos.
Mais nos diz no n.º 4, que “O prazo de caducidade conta-se, nos impostos periódicos, a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário e, nos impostos de obrigação única, a partir da data em que o facto tributário ocorreu (…)”.
Compete assim determinar qual o fato jurídico-tributário aqui em apreço, e conforme a factualidade, o facto em análise e com relevância tributaria é o movimento contabilístico 10.094.133, de 31/01/2016, que debita a conta 5619 e credita a conta 278210001, por € 125.000,00, procedendo a anulação com relevância tributária do crédito.
Na tributação autónoma em IRC, o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa ou prática do ato, não se estando perante um facto complexo, de formação sucessiva ao longo de um ano, mas perante um facto tributário instantâneo.
No caso que nos ocupa, estamos face a liquidação adicional de IRC, e tendo em conta que se trata da liquidação relativa ao ano fiscal de 2016, e porque o facto tributário ocorreu nesse exercício económico, o prazo inicia-se em 01/01/2017, tendo o seu termo final em 31/12/2020.
Nestes termos, o ato verifica-se em 2016, e a AT emitiu a liquidação adicional em 02-10-2019, referente ao IRC do período de 2016, pelo que se encontra dentro dos 4 anos legalmente previstos, pelo que não se verifica assim a caducidade do direito à liquidação.
1. Despesas não documentadas
De acordo com os factos e a posição das Partes expostas, a questão central carreada a dirimir pelo presente Tribunal Arbitral, versa sobre a apreciação da legalidade do ato de liquidação de Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas de 2016, com o número 2019..., referente ao ano de 2016, no valor total de € 68.201,69 por padecer de vício de violação de lei.
Para tanto e atenta a factualidade dada como provada e as normas legais em vigor à data dos fatos, cabe ao Tribunal apreciar o movimento contabilístico 10.094.133, de 31/01/2016, no qual a Requerente debita a conta 5619 e credita a conta 278210001 (Outros devedores), por € 125.000,00; o qual promove e efetiva uma redução dos capitais próprios no SP, operação ou movimento que em concreto é descrito como "perdão de dívida a devedor”.
Em suma, a AT relativamente à tributação autónoma sobre o valor de € 125.000,00, considerou a despesa não documentada e sujeita à taxa de tributação de 50%, nos termos do n.º 1 do artigo 88.º do CIRC, não tendo aceite como válida a justificação e prova apresentada pela Requerente.
Por seu turno, a Requerente, defende que não pode haver dúvidas quanto ao destino desse dinheiro referindo, “… os novos sócios pagaram as quotas adquiridas aos antigos sócios através de um empréstimo contraído pela própria Requerente…”, mais defende, que os SIT não aceitaram como válida esta justificação e apesar de reconhecerem a existência de um cheque a favor do senhor B... referem no relatório inspetivo que não “… se sabe a que título é que o mesmo foi emitido – não foi com certeza utilizado como meio de pagamento das quotas do Sr. B... pelos atuais sócios, visto que os mesmos as adquiriram pelo seu valor nominal conforme resulta da ata n.º 34.”
Compete assim, ao tribunal averiguar se o movimento constitui despesas não documentadas, e como tal sujeitas a tributação autónoma. Cabe delimitar, face aos fatos dados como provados se o perdão de dívida é a um devedor conhecido ou desconhecido.
Comecemos pela análise da questão controvertida, vejamos o que estabelece a legislação relevante para a apreciação do caso sub-judice.
Sobre as despesas não documentadas ou confidenciais, estabelece o artigo 88.º, n.º 1, do CIRC, na redação da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, que «as despesas não documentadas são tributadas autonomamente, à taxa de 50 %, sem prejuízo da sua não consideração como gastos nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º-A».
O conceito de «despesas» utilizado no artigo 88.º, n.º 1, do CIRC, não é definido neste Código e não coincide com o de «gastos», definido no artigo 23.º do CIRC (que inclui, designadamente, «perdas» e «ajustamentos»), pelo que deverá ser atribuído àquela expressão o alcance que tem na linguagem comum, de saída de dinheiro do património de uma empresa.
Não apresenta, assim, um nexo de conexão com a respetiva relevância como custos dedutíveis. Entendimento que resulta da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, como pode ver-se pelo acórdão do STA de 31-03-2016, processo n.º 0505/15, não faz depender a tributação autónoma baseada em despesas não documentadas da sua relevância como gastos para determinação do lucro tributável.
O referido acórdão, diz-nos: “O art.º 81.º do CIRC, na redacção vigente à data da tributação definia as diversas taxas que seriam utilizadas para tributação dos tipos de despesas ali enunciadas, sem haver qualquer dispositivo legal que determinasse que essa tributação só ocorreria se estas despesas houvessem sido tidas como custos fiscais da empresa para a determinação do seu lucro tributável. Admitindo-se que a finalidade da tributação autónoma apontada pela recorrente - reduzir a despesa fiscal evitando a fraude e evasão fiscais – seja um dos elementos considerados pelo legislador no estabelecimento desta regulamentação, essa finalidade não pode permitir, como aquela pretende que a interpretação do normativo em questão seja efectuada de molde a nele inserir um pressuposto legal sem qualquer assento no texto da lei, o que seria manifestamente desconforme com o disposto no art. 9.º do Código Civil.”
O Supremo Tribunal Administrativo anteriormente entendeu, no acórdão de 07-07-2010, proferido no processo n.º 0204/10, que “tratar-se-á de encargos ou despesas suportadas pelo sujeito passivo que em termos contabilísticos afectam o resultado líquido do exercício, diminuindo-o»: a apreciação da existência ou não da devida documentação e da confidencialidade da despesa é feita tendo por objecto o acto através do qual o sujeito passivo suporta o encargo ou a despesa que é susceptível de afectar o resultado líquido do exercício, para efeitos de determinação da matéria tributável de IRC. Isto é, o encargo não estará devidamente documentado quando não houver a prova documental exigida por lei que demonstre que ele foi efectivamente suportado pelo sujeito passivo e a despesa será confidencial quando não for revelado quem recebeu a quantia em que se consubstancia a despesa.” (nosso negrito)
No mesmo sentido, veja-se, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 19/04/2017 processo nº01320/16, o qual decidiu “não era possível efectuar uma tributação autónoma de tais despesas, insuficientemente documentadas porque a insuficiência da documentação não é legalmente equiparada à ausência de documentação das despesas. A terminologia empregue no art.º 23.º e 81.º é suficientemente esclarecedora de que o legislador estabeleceu diferença entre encargos não devidamente documentados e despesas não documentadas, reservando esta qualificação para as despesas que careçam em absoluto de comprovativo documental.”
Neste sentido, a jurisprudência arbitral já se pronunciou sobre a temática, na qual relevamos o processo n.º 486/2019-T, cuja fundamentação nos diz: “As despesas em questão são tributadas apenas porque são efectuadas, havendo mesmo a cargo do contribuinte a obrigação de as tornar aparentes na sua declaração de rendimentos. Se todas ou parte delas poderiam ter sido consideradas como custos da empresa para efeitos da determinação do seu lucro tributável, aumentando a despesa fiscal com a consequente diminuição do lucro tributável, e a empresa por decisão consciente, ou esquecimento, não as considerou desse modo na sua declaração de rendimentos, nem por isso, elas perdem a sua natureza de despesas tributáveis em sede de tributação autónoma, que, por definição é uma tributação destacável da tributação em sede de IRC.”
Entendimento, igualmente defendido anteriormente no voto de vencido proferido pelo Senhor Professor Doutor Manuel Pires no processo arbitral n.º 7/2011- T:
«(...) devem ser incluídas na tributação autónoma em causa não apenas as despesas não documentadas, contabilizadas como gastos, mas também aquelas com as mesmas características, isto é, não documentadas que, devendo ter sido reconhecidas na contabilidade, como gastos, embora fiscalmente não dedutíveis, não o foram e, portanto, não afectaram o resultado, não existindo razão excludente das vias que, embora não sejam ou possam não ser as mais evidentes, não deixam de implicar despesas não documentadas».
Neste sentido, e seguindo a jurisprudência, supra citada, as despesas não documentadas a que se refere o artigo 88.º, n.º 1, do CIRC são em concreto saídas de meios financeiros do património da empresa sem um documento de suporte que permita apurar o seu destino ou o seu beneficiário. Este entendimento é o que mais bem garante o sentido útil e a finalidade regulatória do preceito em causa, portanto o entendimento que adequadamente valora o elemento finalístico da lei.
Revelando-se, assim, de interesse para a presente causa a questão das distinção “despesas não documentadas e indevidamente documentadas”, v. os Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul de 08/05/2019 processo nº1119/16.1BELRA, e o processo nº 9941/16.2BCLSB de 13/12/2019. Como se escreveu neste último, “V. despesas não documentadas são aquelas em relação às quais não existe prova documental, embora não haja ocultação da sua natureza, origem ou finalidade. VI. Despesas indevidamente documentadas são aquelas em relação às quais existe alguma documentação de suporte, ainda que insuficiente. VII. Apenas as despesas não documentadas (e não as indevidamente documentadas) são passíveis de tributação autónoma.”
No presente caso, a documentação disponível constante dos autos, não permite reconstruir ou suportar a lógica argumentativa do Requerente para a operação de 2016 e da operação subjacente efetuada em 2008.
Neste sentido, e seguindo a jurisprudência, as despesas não documentadas a que se refere o artigo 88.º, n.º 1, do CIRC configuram em concreto saídas de meios financeiros do património da empresa sem um documento de suporte que permita apurar o seu destino ou o seu beneficiário.
Embora se conheça o destinatário do cheque emitido em 2008 e invocado pelo sujeito passivo nesta sede, este não demonstra qual o seu fim, os documentos e justificação por este apresentados não logram comprovar o destino invocado. A relevação contabilística do crédito é contraditória com os documentos existentes. Seguindo a lógica argumentativa da Requerente, os devedores deveriam ser os sócios F... e H... que receberam um empréstimo da sociedade para adquirir em 2008 a quota do sócio B... e não este.
Concluindo, desta forma que estamos perante uma despesa não documentada nos termos do artigo 88.º n.º1 do CIRC, e conforme prova e fatos provados, encontram-se preenchidos os requisitos legais das despesas não documentadas, e consequentemente, está sujeita a taxa de tributação autónoma.
2 - Quanto aos alegados vícios formais de falta de fundamentação e audiência prévia
Alega ainda vício de falta de fundamentação, porquanto, no ato de liquidação adicional de IRC n.º 2019 ... notificado não são explicitados todos os fundamentos, quer de facto, quer de direito, que determinaram a sua emissão, com violação do disposto no artigo 77.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária (“LGT”), o que se estende à liquidação de juros compensatórios.
Contra argumenta a Requerida que o ato de liquidação adicional em análise se alicerça num procedimento inspetivo, realizado ao período de tributação de 2016, anterior aos respetivos atos de liquidação, onde foram analisados um conjunto de factos e, no final do procedimento, foi elaborado um relatório final onde se explana, de forma organizada, clara, exaustiva e suficiente, quais os fundamentos e raciocínios (com documentos anexos) que presidem à correção em causa – e que determinam depois a liquidação de imposto e juros. Aliás, se dúvidas existissem quanto a esta matéria, as mesmas seriam eliminadas perante a minuciosa defesa apresentada pela Requerente, que demonstra ter percebido perfeitamente o iter cognitivo subjacente à decisão de liquidação proferida pela Requerida.
De igual modo, não assiste razão à Requerente quanto à falta de audição prévia, uma vez como bem refere a Requerida o contribuinte só deve ser ouvido antes da liquidação em caso de invocação de factos novos sobre os quais não se tenha pronunciado, o que manifestamente não ocorreu.
Em face de tudo isto, entende o Tribunal ser de improceder a pretensão da Requerente, concluindo pela legalidade do ato de liquidação e juros compensatórios.
3- Indemnização pela prestação indevida de garantia
A Requerente apresenta igualmente um pedido de indemnização pela prestação indevida de garantia.
Sobre este pedido, improcedendo o pedido principal da Requerente, e tendo-se decidido pela legalidade do ato de liquidação, improcede o pedido de indemnização pela prestação indevida de garantia.
DECISÃO
Termos em que, de harmonia com o exposto, decide-se neste Tribunal Arbitral:
a) Julgar improcedente o pedido arbitral formulado pela Requerente de declaração de ilegalidade do ato tributário de liquidação, em sede de Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, com o número 2019..., referente ao ano de 2016, no valor total de € 68.201,69.
b) Julgar improcedente o pedido de indemnização pela prestação de garantia bancária indevida.
Fixa-se o valor do processo em € 68.201,69 (sessenta e oito mil duzentos e um euros e sessenta e seis cêntimos), o valor da liquidação atendendo ao valor económico do processo aferido pelo valor das liquidações de imposto impugnadas, e em conformidade fixam-se as custas, no respetivo montante em 2.448,00 € (dois mil quatrocentos e quarenta e oito euros), a cargo da Requerente de acordo com o artigo 12.º, n.º 2 do Regime de Arbitragem Tributária, do artigo 4.ºdo RCPAT e da Tabela I anexa a este último. – n.º 10 do art.º 35º, e n.º 1, 4 e 5 do art.º 43º da LGT, art.º 5.º, n.º, al. a) do RCPT, 97.º-A, n.º 1, al. a) do CPPT e 559.º do CPC).
Notifique.
Lisboa, 19 de Fevereiro de 2021
Os Árbitros
Fernanda Maçãs (Presidente)
Dr. Paulo Ferreira Alves
Dra. Sofia Ricardo Borges