SUMÁRIO:
A fixação da matéria coletável em 50% apenas para as mais‑valias realizadas por sujeitos passivos residentes em Portugal, e não para os sujeitos passivos residentes noutro Estado-Membro da União Europeia que não optaram pelo regime de tributação previsto no artigo 72.º do Código do IRS, constitui uma restrição aos movimentos de capitais, proibida pelo artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.
DECISÃO ARBITRAL
I – Relatório
1. A..., contribuinte fiscal n.º ..., e B..., contribuinte fiscal n.º ..., ambos casados entre si e com domicílio fiscal em ... ..., ..., França (adiante “Requerentes”), requereram a constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, para apreciar a legalidade dos actos de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) n.ºs ... e nota de liquidação de acerto n.º ..., relativamente ao Requerente marido e liquidações nºs ..., ... e ..., relativamente à Requerente mulher, todas relativas ao ano de 2019, requerendo a anulação parcial do imposto, no valor total de 7.739,68, acrescido de juros indemnizatórios.
Em substância, os Requerentes alegam que a tributação sobre a totalidade da mais-valia que realizaram é incompatível com o Direito da União Europeia, em particular, com a liberdade de circulação de capitais, estabelecida no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia “na medida em que não houve aplicação do regime de exclusão de tributação de mais-valias imobiliárias em 50%, conforme previsto no artigo 43º n.º 2 do Código do IRS, a residentes fiscais noutro Estado-Membro da União Europeia.”, trazendo, para o efeito, à colação os acórdãos do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) no processo C-443/06, de 11 de outubro de 2017, do Supremo Tribunal Administrativo (STA) nos processos n.º 439/06, de 16 de janeiro de 2008, e n.º 1172/14, de 3 de fevereiro de 2016, assim como as decisões do CAAD proferidas no âmbito dos processos n.º 45/2012-T, de 05/06/2012, n.º 127/2012-T, de 14/05/2013, n.º 748/2915, de 27/07/2016, n.º 89/2017-T, de 05/07/2017, n.º 520/2017, de 04/06/2018, n.º 617/2017-T, de 22/06/2018, n.º 644/2017-T, de 30/05/2018 e n.º 800/2019-T, de 19/10/2020.
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (Autoridade Tributária).
Na sua resposta, a Autoridade Tributária, em sede de impugnação, refere que tendo em conta o teor do Acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias de 2007OUT11, e no sentido de adaptar a legislação nacional à decisão nele sufragada, foi aditado ao artigo 72º do Código do IRS, pela Lei n.º 67-A/2007, de 31/12, o n.º 7 (atual n.º 9), cujo teor à data dos factos, era o seguinte: «9 - Os residentes noutro Estado membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em matéria fiscal, podem optar, relativamente aos rendimentos referidos nas alíneas a) e b) do n.º 1 e no n.º 2, pela tributação desses rendimentos à taxa que, de acordo com a tabela prevista no n.º 1 do artigo 68.º, seria aplicável no caso de serem auferidos por residentes em território português.» Por sua vez, o n.º 8 (atual n.º 10) do mesmo artigo e diploma legal, também aditado pela Lei n.0 67-A/2007, de 31/12, prescrevia, à data dos factos, que: «10- Para efeitos de determinação da taxa referida no número anterior são tidos em consideração todos os rendimentos, incluindo os obtidos fora deste território, nas mesmas condições que são aplicáveis aos residentes.»
Refere também a Autoridade Tributária que, consultada a declaração de rendimentos Modelo 3 de IRS entregue por cada um dos Requerentes, verifica-se que estes podiam ter optado pela tributação como residentes em território português e assim beneficiar do pretendido, mas não o fizeram.
Por outro lado, a Autoridade Tributária sublinha que o quadro legal (bem como a obrigação declarativa) já não é aquele que existia à data do Acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, tendo em conta que foi efetuada a alteração à lei por força do aditamento dos n.º 7 e 8 (atuais 9 e 10) ao artigo 72 ° do Código do IRS, pela Lei n.º 67-A/2007, de 31/12.
A Autoridade Tributária cita ainda as conclusões do advogado-geral, de 19 de novembro de 2020, no âmbito do Processo prejudicial C-388/19 (Processo CAAD nº 598/2018-T), bem como a declaração de voto do Exmo. Senhor Conselheiro Gustavo Lopes Courinha, no Processo 75/20BALSB (Recurso para uniformização da decisão arbitral proferida pelo Centro de Arbitragem Administrativa), da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, que admitem uma tributação das mais-valias diferenciada entre residentes e não residentes, sem que isso consubstancie uma violação do artigo 63.º do TFUE.
A Autoridade Tributária admite, por fim, que se possa questionar através de reenvio prejudicial a interpretação do direito europeu aplicável ao caso concreto.
2. No seguimento do processo, os Requerentes responderam ao pedido de suspensão da instância e reenvio prejudicial formulado pela Autoridade Tributária, pronunciando-se pela sua improcedência.
Por despacho arbitral de 17 de Junho de 2021, foi determinada a dispensa da reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e prosseguimento do processo para alegações.
Apenas vieram os Requerentes apresentar alegações, mantendo a sua anterior posição.
3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Requerida nos termos regulamentares.
Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.°da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral singular foi constituído em 03 de Maio de 2021.
II – Saneamento
4. O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.
O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, uma vez que foi apresentado no prazo previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
Não há exceções ou questões prévias a apreciar.
O processo não enferma de nulidades.
Cabe apreciar e decidir.
III – Fundamentação
5. Os factos relevantes para a decisão da causa tidos como assentes são os seguintes:
A) No ano de 2019, os Requerentes residiam em França.
B) Em setembro de 1991, os Requerentes herdaram por óbito de C..., uma quota-parte de 0,8%, do prédio urbano, composto de casa de habitação composta de rés-do-chão e primeiro andar, sito em Bemposta, freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ..., e inscrito sob a respetiva matriz pelo artigo 416, da referida freguesia, a cuja quota-parte correspondia o valor patrimonial de € 3,58.
C) Em Janeiro de 1993, por Escritura Pública de Partilha, os Requerentes adquiriram a nua propriedade do referido imóvel, correspondente a uma quota-parte de 93%, do referido imóvel, cujo usufruto ficou reservado à mãe do Requerente, D..., a que correspondeu um valor de aquisição de € 40,06.
D) Em Outubro de 2017, faleceu a referida D..., pelo que se extinguiu o usufruto que lhe cabia do referido imóvel, e os Requerentes adquiriram na referida data, a restante quota-parte de 6,20% do referido imóvel que tendo em conta o VPT do referido prédio correspondia ao valor de € 1.640,00.
E) No dia 20/02/2019, por Escritura Pública de Compra e Venda outorgada no Cartório Notarial de ..., os Requerentes alienaram o referido imóvel pelo valor de € 71.000,00.
F) No dia 26/06/2020 o Requerente marido submeteu, na qualidade de sujeito passivo não residente, a declaração de Modelo 3 de IRS de 2019, em separado do seu cônjuge, tendo sido emitida a respetiva nota de liquidação n.º ..., com o valor a pagar de € 7.939,83.
G) O Requerente marido foi notificado para suprir divergências, o que fez no dia 30/07/2020, tendo entregue nova Declaração de Substituição, a qual deu origem à emissão da respetiva nota de liquidação n.º ..., no valor de € 7.739,68, acompanhada da respetiva demonstração de acerto de contas, pago no dia 26/08/2020.
H) Por sua vez, a Requerente mulher no dia 26/06/2020 submeteu, na qualidade de sujeito passivo não residente, a declaração de Modelo 3 de IRS de 2019, em separado do seu cônjuge, tendo sido emitida a respetiva nota de liquidação n.º ..., com o valor a pagar de € 7.939,83.
I) Da referida entrega foi a Requerente notificada para suprir divergências, o que fez, procedendo igualmente à substituição da Declaração de IRS, no dia 29/07/2020, a qual deu origem a uma liquidação com nota de cobrança no valor de € 4.912,30, n.º liquidação ..., com a respetiva demonstração de contas,
J) Na mesma data foi a Requerente notificada para suprir novamente divergências detetadas na Declaração de IRS ora apresentada, o que fez no dia 30/07/2020, tendo entregue nova Declaração de Substituição a qual deu origem à emissão da respetiva nota de liquidação n.º ..., no valor adicional ao anterior de € 2.827,38, acompanhada da respetiva demonstração de acerto de contas.
K) O valor total a pagar pela Requerente foi de € 7.739,68, pago no dia 26/08/2020.
L) O pedido arbitral deu entrada em 19 de Novembro de 2020.
O tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária, evidenciando-se que existe o consenso das partes quanto à mesma.
Factos não provados
Não existem factos não provados que tenham relevância para a decisão da causa.
Matéria de direito
5. A questão essencial em debate é a de saber se a não aplicação, a cidadãos da União Europeia não residentes em Portugal, do regime de exclusão de tributação de 50% das mais-valias imobiliárias, previsto no n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS e aplicável a contribuintes residentes, é ou não incompatível com a liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE).
A Autoridade Tributária defende, em resumo, que a alteração operada por via da introdução dos atuais n.ºs 9 e 10 do artigo 72.º, do Código do IRS, veio permitir que, tanto residentes como não residentes, beneficiem do regime previsto no artigo 43.º, n.º 2 (consideração do saldo da mais-valia em apenas 50% do seu valor), do mesmo Código, desde que optem pelo englobamento dos rendimentos obtidos tanto em Portugal como fora deste território, opção essa que, no caso em apreço, não foi exercida pelos Requerentes.
Do ponto de vista dos Requerentes, o disposto no artigo 43º, n.º 2 do Código do IRS, ao limitar a tributação a 50% do saldo apurado entre mais-valias e menos-valias realizadas apenas para os residentes em Portugal e não para os não residentes, para efeitos de determinação da matéria coletável em IRS, constitui uma restrição aos movimentos de capitais, proibida expressamente pelo artigo 63.º do TFUE.
Por outro lado, sublinham os Requerentes que mesmo após as alterações introduzidas pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de dezembro, com o objetivo de adequar o sistema tributário nacional à decisão proferida pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) no processo C-443/06, se mantém o efeito discriminatório decorrente da diferenciação dos regimes aplicáveis a residentes e a não residentes.
Sobre a questão em discussão, o TJUE pronunciou-se recentemente sobre a mesma, em sede de reenvio prejudicial, no âmbito do caso MK (C-388/19, de 18 de março de 2021), com origem num Tribunal Arbitral constituído sob a alçada do CAAD.
No âmbito do referido processo, questionava-se se os artigos 18.° e 63.° a 65.° do TFUE devem ser interpretados no sentido de que se opõem à regulamentação de um Estado Membro que, para permitir que as mais valias provenientes da alienação de imóveis situados nesse Estado Membro, por um sujeito passivo residente noutro Estado Membro, não sejam sujeitas a uma carga fiscal superior à que seria aplicada, para esse mesmo tipo de operação, às mais valias realizadas por um residente do primeiro Estado Membro, faz depender da escolha do referido sujeito passivo o regime de tributação aplicável.
Tendo começado por afastar a relevância do artigo 18.º TFUE de acordo com o critério da especialidade, o TJUE utilizou a seguinte fundamentação que, pela sua clareza se transcreve:
«26. No caso em apreço, resulta do pedido de decisão prejudicial que, tratando se de mais valias realizadas no momento da alienação onerosa de um bem imóvel situado em Portugal, o artigo 43.°, n.° 2, e o artigo 72.°, n.° 1, do CIRS previam regras de tributação diferentes consoante os sujeitos passivos do imposto sobre o rendimento residissem ou não no território desse Estado Membro.
27. Em especial, nos termos do artigo 43.°, n.° 2, do CIRS, as mais valias realizadas por residentes no momento da alienação de bens imóveis situados em Portugal eram apenas consideradas em 50 % do seu valor. Em contrapartida, para os não residentes, o artigo 72.°, n.° 1, do CIRS previa a tributação dessas mesmas mais valias sobre a totalidade do seu montante à taxa autónoma de 28%.
28. Daqui decorre que, em aplicação destas disposições, a matéria coletável deste tipo de mais valias não era a mesma para os residentes e para os não residentes. Assim, no que diz respeito à venda de um mesmo bem imóvel situado em Portugal, no caso de realização de mais valias, os não residentes estavam sujeitos a uma carga fiscal superior àquela que era aplicada aos residentes, encontrando se, portanto, numa situação menos favorável que estes últimos (v., neste sentido, Acórdão de 11 de outubro de 2007, Hollmann, C 443/06, EU:C:2007:600, n.° 37).
29. Com efeito, enquanto, por força do artigo 72.°, n.° 1, do CIRS, um não residente era tributado a uma taxa de 28 % aplicada sobre a matéria coletável correspondente à totalidade das mais valias realizadas, a consideração de apenas metade da matéria coletável das mais valias realizadas por um residente permitia que este beneficiasse sistematicamente de uma carga fiscal inferior a esse título, qualquer que fosse a taxa de tributação aplicada à totalidade dos seus rendimentos, uma vez que, segundo as observações apresentadas pelo Governo português, os rendimentos dos residentes estavam sujeitos a um imposto de acordo com uma tabela de taxas progressivas cujo escalão mais elevado era de 48 %, isto embora se pudesse aplicar uma taxa adicional de solidariedade de 2,5 % a rendimentos coletáveis de 80 000 euros a 250 000 euros e de 5 % acima desse valor.
30. Ora, no Acórdão de 11 de outubro de 2007, Hollmann (C 443/06, EU:C:2007:600, n.° 40), o Tribunal de Justiça já teve a oportunidade de declarar que a fixação, pelo artigo 43.°, n.° 2, do CIRS, de uma matéria coletável de 50 % para as mais valias realizadas apenas por sujeitos passivos residentes em Portugal, e não por sujeitos passivos não residentes, constituía uma restrição aos movimentos de capitais, proibida pelo artigo 63.° TFUE.
31. Esta constatação não é posta em causa pelo n.° 44 do Acórdão de 19 de novembro de 2015, Hirvonen (C 632/13, EU:C:2015:765), no qual o Tribunal de Justiça declarou que uma diferença de tratamento entre contribuintes não residentes e contribuintes residentes, que consiste em sujeitar os rendimentos brutos dos primeiros a uma tributação a título definitivo a uma taxa única, através de retenção na fonte, ao passo que os rendimentos líquidos dos segundos são tributados de acordo com uma tabela progressiva que inclui um abatimento de base, é compatível com o direito da União, na medida em que essa constatação está sujeita, todavia, à condição de a taxa única não ser mais elevada do que a taxa resultante da aplicação efetiva para o interessado da tabela progressiva aos rendimentos líquidos que excedem o abatimento de base. Ora, no caso em apreço, como resulta do n.° 29 do presente acórdão, o regime de tributação diferenciado em causa conduz a que os não residentes sejam sistematicamente sujeitos a uma carga fiscal superior à aplicada aos residentes aquando da realização de mais valias sobre a venda de imóveis.
32. Nestas condições, a fixação da matéria coletável em 50 % para as mais valias realizadas por todos os sujeitos passivos residentes em Portugal, e não para os sujeitos passivos não residentes que optaram pelo regime de tributação previsto no artigo 72.°, n.° 1, do CIRS, constitui uma restrição aos movimentos de capitais, proibida pelo artigo 63.°, n.° 1, TFUE.»
Quanto à existência de uma justificação para as restrições à livre circulação de capitais à luz do artigo 65.°, n.os 1 e 3, do TFUE, o TJUE recorreu à fundamentação que se transcreve:
«36. Ora, no caso em apreço, a diferença de tratamento entre os sujeitos passivos residentes e os sujeitos passivos não residentes prevista pela regulamentação portuguesa diz respeito a situações objetivamente comparáveis. Além disso, esta diferença de tratamento não é justificada por uma razão imperiosa de interesse geral.
[...]
39. Esta constatação não é posta em causa pela ratio legis do artigo 43.°, n.° 2, do CIRS, que prevê o abatimento de 50 % aplicável às mais valias realizadas pelos residentes, que, segundo o Governo português, consiste em evitar a tributação excessivamente onerosa desses rendimentos considerados anormais e fortuitos, na medida em que nada permite excluir que essa consideração não possa vir a dizer respeito aos sujeitos passivos não residentes.»
Por último, quanto à opção de tributação segundo as mesmas modalidades que os residentes, o TJUE apresentou a seguinte fundamentação:
«42. Antes de mais, há que salientar que a possibilidade de as pessoas residentes na União ou no EEE optarem, ao abrigo do artigo 72.°, n.os 9 e 10, do CIRS, por um regime de tributação análogo ao aplicável aos residentes portugueses e, assim, beneficiarem do abatimento de 50 % previsto no artigo 43.°, n.° 2, desse código permite a um contribuinte não residente, como MK, escolher entre um regime fiscal discriminatório, a saber, o previsto no artigo 72.°, n.° 1, do CIRS, e outro que não o é.
43. Ora, cumpre frisar a este respeito que, no caso em apreço, essa escolha não é suscetível de excluir os efeitos discriminatórios do primeiro desses dois regimes fiscais.
44. Com efeito, o reconhecimento de um efeito dessa natureza à referida escolha teria por consequência validar um regime fiscal que continuaria, em si mesmo, a violar o artigo 63.° TFUE em razão do seu caráter discriminatório (v., neste sentido, Acórdão de 18 de março de 2010, Gielen, C 440/08, EU:C:2010:148, n.° 52).
45. Por outro lado, como o Tribunal de Justiça já teve ocasião de precisar, um regime nacional que limite uma liberdade fundamental garantida pelo Tratado FUE, no caso em apreço a livre circulação de capitais, é incompatível com o direito da União, mesmo que a sua aplicação seja facultativa (v., neste sentido, Acórdão de 18 de março de 2010, Gielen, C 440/08, EU:C:2010:148, n.° 53 e jurisprudência referida).
46. Daqui resulta que a escolha concedida, no litígio no processo principal, ao contribuinte não residente, de ser tributado segundo as mesmas modalidades que as aplicáveis aos contribuintes residentes, não é suscetível de tornar a restrição constatada no n.° 32 do presente acórdão compatível com o Tratado.»
No respeito pela primazia do direito da União Europeia sobre o direito nacional e pela autoridade interpretativa do TJUE, e tendo presente a proximidade dos factos e a identidade das normas analisadas no caso MK (C-388/19), acolhe o presente tribunal o entendimento propugnado pelo TJUE, considerando que a norma do n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS estabelece uma discriminação injustificada entre residentes e não residentes relativamente à tributação de mais-valias provenientes da alienação de bens imóveis situados em Portugal, incompatível com o artigo 63.º do TFUE.
Reenvio prejudicial
Do exposto decorre, com clareza, ser desnecessário o recurso ao reenvio prejudicial ou à suspensão da instância, não subsistindo, pois, quaisquer dúvidas de que as liquidações objeto do presente pedido de pronúncia arbitral, na parte que consideram como base tributável o valor total das mais-valias realizadas pelos Requerentes no ano fiscal de 2019, enfermam de ilegalidade por violação do direito da União Europeia, tal como declarado pelo TJUE.
Do direito a juros indemnizatórios
A par da anulação dos atos de liquidação, e consequente reembolso das importâncias indevidamente cobradas, os Requerentes solicitam ainda que lhes seja reconhecido o direito a juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43.º da Lei Geral Tributária (LGT).
Com efeito, nos termos da norma do n.º 1 do referido artigo, serão devidos juros indemnizatórios "quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido." Para além dos meios referidos na norma que se transcreve, entendemos que, conforme decorre do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, o direito aos mencionados juros pode ser reconhecido no processo arbitral e, assim, se conhece do pedido.
O direito a juros indemnizatórios a que alude a referida norma da LGT pressupõe que haja sido pago imposto por montante superior ao devido e que tal derive de erro, de facto ou de direito, imputável aos serviços da Autoridade Tributária.
No caso dos autos, é manifesto que, na sequência da ilegalidade dos atos de liquidação, pelas razões que se apontaram anteriormente, os Requerentes efetuaram o pagamento de importâncias manifestamente indevidas.
Resulta, também, dos autos, que a ilegalidade dos atos de liquidação objeto do presente processo é diretamente imputável à Requerida, que, por sua iniciativa, os praticou sem suporte legal, padecendo de errada aplicação das normas jurídicas ao caso concreto.
Reconhece-se, assim, aos Requerentes o direito aos juros indemnizatórios peticionados, contados, à taxa legal, sobre os montantes indevidamente cobrados, desde a data do respetivo pagamento até ao momento do efetivo reembolso (cfr. LGT, art. 43.º, n.º 1 e CPPT, art. 61.º).
IV – Decisão
Termos em que o Tribunal Arbitral decide julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, consequentemente, determinar a anulação parcial dos atos de liquidação impugnados conforme pedido, com o consequente reembolso das importâncias indevidamente cobradas, acrescidas dos correspondentes juros indemnizatórios, contados nos termos legais.
V - Valor do processo
Os Requerentes indicaram como valor da causa o montante de € 7 811,78, que corresponde ao imposto indevidamente pago, no valor total de € 7.739,68, acrescido de € 72,10 a título de juros indemnizatórios determinados à data da submissão do pedido arbitral.
O artigo 97.º-A do CPPT, sob a epígrafe “valor da causa”, determina no seu n.º 1 o valor atendível quando seja impugnada a liquidação, caso em que o valor a considerar é o da “importância cuja anulação se requer” (alínea a)).
Constata-se, assim, que o valor a considerar, nos casos em que se impugna a liquidação, como é a situação presente, corresponderá ao valor da prestação pecuniária que se pretende ver anulada.
Ou seja, mesmo que se cumulem pedidos com o pedido de anulação da liquidação (v. g., pagamento de juros indemnizatórios), o valor da causa é sempre o valor da liquidação na parte impugnada.
Assim sendo, fixa-se o valor da causa no montante de € 7.739,68.
VI – Custas
Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 612,00, que fica a cargo da Requerida.
Notifique-se
Lisboa, 11 de Agosto de 2021,
O Árbitro
Francisco Melo