Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 272/2020-T
Data da decisão: 2020-11-27  ISV  
Valor do pedido: € 996,02
Tema: ISV - Artigo 11º do CISV – Conformidade com o artigo 110º do TFUE – Veículos usados provenientes de outros Estados-Membros.
Versão em PDF

DECISÃO ARBITRAL

 

I. Relatório

1. No dia 20-5-2020, o sujeito passivo A..., contribuinte nº..., apresentou um pedido de constituição do tribunal arbitral singular, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), tendo em vista a declaração de ilegalidade da liquidação de ISV resultante da Declaração Aduaneira de Veículo DAV nº 2020/... de 25/3/2020 (Alfândega de Alverca) no valor de € 3.457,91, referente ao veículo ... matrícula ..., solicitando a anulação parcial dessa liquidação quanto ao valor de € 996,02 e a consequente restituição dessa importância.

2. Nos termos do n.º 1 do artigo 6.º do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem designou o árbitro ora signatário, disso notificando as partes.

3. O tribunal encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objecto do processo.

4. Os fundamentos que sustentam o pedido de pronúncia arbitral do Requerente são em súmula, os seguintes:

4.1. O Requerente introduziu em Portugal em 3 de Março de 2020 uma viatura admitida do Luxemburgo marca ... modelo ... a diesel com data de primeira matrícula 24-10-2013 que adquiriu ao seu filho, residente no Luxemburgo.

4.2. O processo de legalização foi iniciado a 20 de Março de 2020 junto da AT-Alfândega de Alverca, com o nº DAV 2020/... .

4.3. O Requerente procedeu à liquidação do ISV a 23 de Março de 2020, de acordo com os valores constantes na DAV: Componente de cilindrada: € 4.494,70 - Desconto Idade (60%) € 2.696,82€ = € 1.797.88€ Componente Ambiental: € 1.660,03 Imposto liquidado: € 3.457,91.

4.4. Em 14 de Abril de 2020 o Requerente procedeu à liquidação do DUC com o número de processo 2020... e em 21 de Abril de 2020 procedeu ao correspondente registo automóvel através do pedido nº .../2020, tendo sido atribuída ao veículo a matrícula ... .

4.5. Entende o Requerente que o Imposto cobrado em sede de ISV, nomeadamente não estabelecendo uma desvalorização equivalente à idade do veículo na componente ambiental, vai contra o direito comunitário, contrariando o disposto no artigo 110º do TFUE.

4.6. Neste sentido, e porque existe jurisprudência na decisão arbitral do CAAD -Processo n.º 572/2018-T, considera o Requerente que deve reclamar a devolução do valor de € 996,02 resultante da aplicação equivalente ao desconto relativo à idade do veículo ou seja 60% sobre o valor cobrado na componente ambiental de € 1.660,03.

4.7. A Autoridade Tributária e Aduaneira indeferiu a sua pretensão, alegando que a interpretação do artigo 110º do TFUE não pode deixar de ser efectuada à luz no disposto no Artigo 191º do mesmo Tratado, que releva para as preocupações ambientais e consequentemente a diminuição das emissões de CO2.

4.8. Para além da existência de jurisprudência em outros casos apreciados pelo CAAD como no exemplo “CAAD - Processo n.º: 572/2018-T”, o Requerente contesta a interpretação da AT- Alfândega de Alverca, pois em nenhum escalão do Imposto (ISV) mesmo no escalão com taxas de CO2 mais baixas existe depreciação pela idade do veículo, colocando sempre em desigualdade a compra de um veículo usado em Portugal face ao mesmo veículo, se admitido com proveniência num país comunitário.

4.9. Neste sentido, o Requerente reitera a sua pretensão de reclamar a devolução do valor de € 996,02, resultante da aplicação equivalente ao desconto relativo à idade do veículo, ou seja 60% sobre o valor cobrado na componente ambiental de1.660,03€.

5. Por seu turno, a Requerida Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, na qual se defendeu, em súmula, nos seguintes termos:

5.1. Conforme resulta dos elementos constantes do Processo Administrativo (PA), constituído pelos procedimentos atinente à Declaração Aduaneira de Veículo (DAV) 2020/..., de 25.03.2020, e processo de reclamação graciosa nº ...2020..., de 05.05.2020, relativos a Imposto Sobre Veículos (ISV),  com referência ao veículo automóvel com as características descritas na declaração, foi aquela apresentada na referida estância aduaneira, por transmissão electrónica de dados, para introdução no consumo do veículo, ligeiro de passageiros, usado, proveniente do Luxemburgo.

5.2. Com referência à mencionada DAV, apresentada pelo Requerente, operador sem estatuto, foi declarado o veículo da marca ..., modelo..., a gasóleo, cujas características constam das inscrições dos Quadros E, F e G, referentes às características do veículo, apresentação do veículo e matrículas anteriores, para os quais se remete.

5.3. Quanto ao veículo em questão constata-se que, para efeitos de aplicação da tabela D prevista no n.º 1 do artigo 11.º do CISV, o veículo se insere no escalão da tabela de “Mais de 6 a 7 anos” de uso, tendo sido aplicada a percentagem de redução correspondente, de 60%, conforme resulta da referida tabela (cf. teor da DAV junto ao PA).

5.4. No Quadro E da DAV, atinente às características do veículo, consta, na casa 50, relativa à Emissão de Gases CO2, o valor de 114 g/Km, indicado na pág. 1 da DAV.

5.5. O cálculo do imposto sobre veículos, que consta do Quadro R da DAV, foi efectuado com recurso à tabela A, aplicável aos veículos ligeiros de passageiros, e calculado o ISV atendendo à componente cilindrada e à componente ambiental, nos termos do artigo 7.º do CISV, tendo, igualmente, sido deduzida a percentagem de redução correspondente, conforme o disposto na tabela D constante do n.º 1 do artigo 11.º do CISV, prevista para os veículos usados, em função do número de anos de uso do veículo (cf. consta da respetiva DAV).

5.6. A liquidação do imposto, relativa ao veículo identificado na DAV, foi efectuada em 20.03.2020, e conforme indicado nos Quadros T e V da DAV, constando desta, igualmente, a identificação do acto de liquidação (n.º 2020/..., de 20.03.2020), bem como a data, montante e termo final do prazo de pagamento (03.04.2020), e a identificação do autor do acto.

5.7. Em 05.05.2020 o Requerente apresentou reclamação graciosa do acto de liquidação junto da Alfândega de Alverca (processo de reclamação graciosa nº ...2020..., de 05.05.2020) que veio a ser objeto de indeferimento por despacho datado de 07.09.2020 do director daquela alfândega.

5.8. Na pendência do procedimento de reclamação graciosa, antes de ser proferida decisão final, em 20.05.2020 o Requerente apresentou junto da Instância Arbitral o presente pedido de constituição de tribunal arbitral, peticionando a anulação parcial da liquidação de ISV e o reembolso do montante de 996,02 €.

5.9. Estando em causa, nos presentes autos, a admissão de veículo usado, oriundo de outro Estado-Membro, no caso, o Luxemburgo, deve atender-se, especificamente, ao artigo 11.º do CISV na redação atualmente em vigor, o qual já foi sujeito a alterações desde a entrada em vigor do diploma que aprovou o mesmo código.

5.10. Não obstante o artigo 11.º do CISV tenha sido objeto de várias alterações desde a sua entrada em vigor, para o caso em apreço releva, particularmente, a redação atual introduzida pela Lei n.º 42/2016, de 28.12.2016 (Lei do OE para 2017), a qual procedeu ao alargamento das percentagens de redução da tabela D, tendo sido criado o escalão “até um ano”, a que corresponde uma percentagem de redução de 10%, sendo ainda criados novos escalões a partir dos cinco anos de uso, com percentagens de redução que atingem os 80% para veículos com mais de 10 anos, permitindo estabelecer uma maior correspondência entre a desvalorização comercial média sofrida pelos veículos usados no mercado nacional e o seu nível de tributação, em sede de ISV, que na redação anterior se cifrava no máximo de 52 % para veículos com mais de 5 anos de uso.

5.11. Relevando, também, no contexto da tributação automóvel, o disposto no artigo 1.º do CISV, de acordo com o qual o imposto sobre veículos obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam nos domínios do ambiente, infraestruturas viárias e sinistralidade rodoviária, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária.

5.12. Não obstante o disposto no artigo 110.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE), há ainda que considerar a previsão do artigo 191.º do TFUE, que consagra, expressamente, que a política da União no domínio do ambiente contribuirá para a prossecução dos objectivos da preservação, a proteção e a melhoria da qualidade do ambiente, da protecção da saúde das pessoas e a promoção, no plano internacional de medidas destinadas a enfrentar os problemas regionais ou mundiais do ambiente e designadamente, a combater as alterações climáticas, acrescentando o nº2 que a política da União se baseará nos princípios da precaução e da acção preventiva, da correcção, prioritariamente na fonte, dos danos causados ao ambiente e do poluidor-pagador.

5.13. Resultando ainda do art. 66º, nº2, da Constituição que incumbe ao Estado: a) prevenir e controlar a poluição; f) Promover a integração de objectivos ambientais nas várias políticas de âmbito sectorial; h)  Assegurar que a política fiscal compatibilize desenvolvimento com protecção do ambiente e qualidade de vida.

5.14. No caso concreto o imposto foi calculado de acordo com o previsto no artigo 7.º. do CISV, tendo sido aplicada uma redução para a componente ambiental nos termos deste artigo, não tendo sido aplicada outra/nova redução à componente ambiental porque tal redução não se encontra prevista no artigo 11.º do CISV, ao contrário do estabelecido para a componente cilindrada, que prevê uma redução em função dos “anos de uso” de acordo com a tabela D.

5.15. Não obstante a alteração ao artigo 11.º do CISV ter surgido após o acórdão proferido no Processo n.º C- 200/15 do TJUE, este não se pronuncia, em concreto, sobre a matéria em causa nos presentes autos, designadamente quanto à questão da percentagem de redução de ISV aplicável a veículo usado incidir apenas sobre o elemento específico de tributação (cilindrada), e não sobre a componente ambiental do ISV, limitando-se aquele a analisar a questão da determinação do valor tributável dos veículos usados provenientes de outro Estado-Membro, introduzidos no território nacional, no sentido de afirmar que um sistema relativo ao cálculo da desvalorização dos veículos que não tem em conta a sua desvalorização antes destes atingirem um ano, nem a desvalorização que seja superior a 52 % no caso de veículos com mais de cinco anos, não cumpre as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º do TFUE.

5.16. Sendo que, tal opção legislativa, pretendendo imprimir coerência entre a tributação dos veículos novos e veículos usados, não contraria o direito comunitário nem aquela decisão do TJUE, antes visa respeitar as orientações comunitárias em matéria da redução das emissões de CO2, tendo em vista o cumprimento das responsabilidades ambientais assumidas no âmbito do Protocolo de Quioto.

5.17. O modelo de fiscalidade automóvel vigente em Portugal está em sintonia com o espírito do art. 191º TFUE, na medida em que a tributação das emissões de dióxido de carbono nos veículos novos e usados pode entender-se como uma acção preventiva, destinada a evitar a degradação do ambiente, sujeitando os consumidores ao pagamento de um montante de imposto que depende do grau poluidor do automóvel, no estrito cumprimento do princípio do poluidor-pagador.

5.18. A componente ambiental do ISV existe para compensar um conjunto vasto de emissões poluentes dos veículos, incluindo o dióxido de carbono (CO2), o monóxido de carbono (CO), o óxido de azoto (NOx), hidrocarbonetos (HC), partículas (PM), hidrofluorocarboneto 134ª (HFC-134ª), metano (CH4), e protóxido de azoto (N2O).

5.19. Não se trata de criar nenhum obstáculo ao regular funcionamento do mercado único, mas sim de respeitar os compromissos nacionais e internacionais assumidos pelo Estado Português em matéria de defesa do ambiente, bem como pelos Estados-Membros, no acordo de Paris sobre as alterações climáticas, designadamente a neutralidade carbónica em 2050.

5.20. A interpretação do Requerente, ao defender a aplicação da mesma percentagem de redução aplicável à componente cilindrada, pugna igualmente pela aplicação de um benefício fiscal que não se encontra previsto na lei, o que, desde logo, é inconstitucional, posto que, face, ao n.º 2 do artigo 103.º da CRP, os impostos são criados por lei, determinando esta igualmente a incidência, taxa, benefícios fiscais e garantias dos contribuintes, verificando-se, assim, uma violação desta norma constitucional, bem como uma desaplicação do artigo 66.º da CRP.

5.21. Concluindo-se que a liquidação de ISV, que aplicou o artigo 11.º do CISV, foi efetuada em conformidade com a lei nacional e o direito comunitário, cumprindo, designadamente, o disposto nos artigos 110.º e 191.º do TFUE e nos artigos 66.º e 103.º da Constituição.

5.22. Destarte, tendo o acto impugnado sido efectuado de acordo com o direito nacional e comunitário, não enferma de qualquer vício, devendo, consequentemente, a liquidação, na parte que vem impugnada, efectuadas pela identificada alfândega, manter-se na ordem jurídica.

5.23. Da interpretação do artigo 11.º do CISV defendida pelo Requerente resulta uma violação do princípio da legalidade consagrado no artigo 266.º (Princípios fundamentais) da Constituição da República Portuguesa (CRP), o qual, além de estabelecer, no n.º 1, que a administração pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos, impõe aos órgãos e agentes administrativos a subordinação à Constituição e à lei, devendo atuar no exercício das suas funções com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé (n.º 2).

5.24. Concomitantemente, no que concerne ao princípio da legalidade tributária, nos termos do artigo 8.º da Lei Geral Tributária, estão sujeitos a este princípio a incidência, a taxa, os benefícios fiscais, as garantias dos contribuintes, bem como a liquidação e cobrança dos tributos.

5.25. Ora, no caso concreto a administração tributária agiu nos termos da lei, de acordo com as normas de incidência, taxas e liquidação do imposto em causa, não podendo ter atuado de modo diferente, face ao direito constituído sob pena de violar os referidos princípios da legalidade e da justiça tributária, da igualdade e da segurança jurídica.

5.26. Assim, relativamente à liquidação ora impugnada, a mesma foi efectuada de acordo com as normas aplicáveis em vigor, o artigo 7.º e o artigo 11.º do CISV

5.27. Mas, sustentando o Requerente a anulação parcial dos actos de liquidação, face à actual redação do artigo 11.º, introduzida pela Lei do OE para 2017, lei de valor reforçado, não é possível extrair da norma a aplicação de uma nova redução, além da prevista no artigo 7.º do CISV, atinente à componente ambiental.

5.28. De facto, não se retira da letra da lei, no caso, do artigo 11.º do CISV, ou de outra norma do mesmo código, a aplicação da redução prevista na admissão de veículos usados, para a componente cilindrada, à componente ambiental, além da que já é aplicada por força do artigo 7.º.

5.29. Nesta medida, a interpretação da Requerente ofende claramente o princípio da equivalência previsto no artigo 1.º do CISV, sobre o qual assenta o atual modelo de tributação automóvel, e o artigo 9.º, alínea e) e artigo 66.º, n.º 1 e n.º 2, ambos da CRP, ocorrendo uma violação do princípio constitucional do Estado de direito ambiental.

5.30. Na elaboração do CISV foram considerados os referidos princípios constitucionais, estando subjacentes, designadamente, nos artigos 1.º e 11.º do CISV, não podendo afastar-se a aplicação deste artigo, impondo-se que se afira a sua conformidade com os princípios constitucionais consagrados no artigo 9.º e 66.º da CRP, até porque está em causa matéria de reserva de lei (âmbito de reserva legislativa da Assembleia da República).

5.31. Acrescendo que, a interpretação defendida pela Requerente, posto que defende a aplicação de uma fórmula de cálculo, com atribuição de uma redução não prevista na tabela D do artigo 11.º, acrescenta uma redução à componente ambiental que não está consagrada na letra da lei, que não foi querida pelo legislador, consubstancia assim, também nesta parte, uma violação dos princípios constitucionais aludidos, da legalidade e da justiça tributária, da igualdade e da certeza e segurança jurídica.

5.32. Por outro lado, a aplicação de tal redução, não prevista na lei, não pode deixar de se considerar como um benefício fiscal que não se encontra previsto na lei e que é inconstitucional face ao disposto no n.º 2 do artigo 103.º da CRP, que estabelece que os impostos são criados por lei, determinando esta igualmente a incidência, taxa, benefícios fiscais e garantias dos contribuintes, que coloca igualmente a Requerente em situação de vantagem face aos demais sujeitos passivos, criando também, nesta parte, uma situação de desigualdade fiscal.

5.33. Ademais, a pretensão da Requerente também olvida que estamos perante um imposto sobre o consumo não harmonizado, e que a tributação do consumo visa adaptar a estrutura do consumo à evolução das necessidades do desenvolvimento económico e da justiça social, devendo onerar os consumos de luxo, conforme o consagrado no n.º 4 do artigo 104.º da CRP.

5.34. E, sendo um dos princípios gerais da interpretação das normas jurídicas e “critério de interpretação” o da interpretação conforme à Constituição, de acordo com este critério, no caso de o intérprete, mediante a aplicação dos elementos interpretativos, chegar a mais do que um sentido possível a atribuir a um preceito normativo, deve preferir aquele que mais se adeque à Constituição.

5.35. Não podendo, assim, deixar de se considerar o artigo 204.º da CRP, que impõe que os tribunais não apliquem normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados.

5.36. Por outro lado, ao defender a ilegalidade das liquidações por entender que existe uma desconformidade do artigo 11.º do CISV com o artigo 110.º do TFUE, a Requerente, além de violar, por via de tal interpretação, os já referidos princípios, consagrados na nossa Lei Fundamental, viola ainda, por via da desaplicação do artigo 11.º do CISV na redação actualmente em vigor, uma violação do princípio do acesso ao direito à tutela jurisdicional efectiva.

5.37. De facto, tendo a Requerente recorrido à arbitragem tributária para impugnar as liquidações, a administração encontra-se coartada no seu direito de reacção face aos limitados meios de recurso perante a prolação de uma decisão arbitral desfavorável, em geral e, concretamente, quanto ao recurso de decisão que desaplica norma nacional com fundamento em violação de princípio de direito da União Europeia.

5.38. É que o RJAT prevê tão somente três tipos de reações recursórias, sendo eles o recurso para o Tribunal Constitucional, o recurso para uniformização de jurisprudência e a impugnação arbitral, com base nas nulidades elencadas no artigo 28.º, n.º 1 do RJAT.

5.39.Ora, defendendo a Requerente a violação de um princípio do TFUE no caso concreto, e prevendo o RJAT que o recurso para o Tribunal Constitucional só pode ter como fundamento as alíneas a) e b) do artigo 70.º da Lei do TC, não há dúvida que, a vingar tal interpretação, estamos perante uma violação do princípio do livre acesso aos tribunais.

5.40. Verifica-se, pois, face ao disposto nos artigos 20.º, n.º 1 e n.º 4 e 266.º, todos da CRP, a violação dos princípios do Estado de Direito e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva.

5.41. Em face do exposto, a interpretação do Requerente do artigo 11.º do CISV viola os princípios, acima mencionados, da legalidade e da legalidade fiscal, da justiça tributária, da igualdade e da certeza e segurança jurídica, do Estado de direito ambiental e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, impondo-se a apreciação da constitucionalidade de tal entendimento, o qual, desde já, reputamos de inconstitucional, não podendo por isso, ser aplicado no caso concreto.

6. Em 30/9/2020 foi proferido despacho arbitral, dispensando a reunião prevista no art. 18º do RJAT por não estarem preenchidas as circunstâncias que justificam a sua realização, podendo as partes requerer que a mesma tivesse lugar, o que estas não fizeram.

 

II – Factos provados

7. Com base na prova documental constante do processo administrativo junto aos autos pela Requerida, consideram-se provados os seguintes factos, com interesse para a decisão da causa:

7.1. O Requerente apresentou a Declaração Aduaneira de Veículo DAV nº 2020/... de 25/3/2020 (Alfândega de Alverca) no valor de € 3.457,91, referente ao veículo..., modelo..., a gasóleo, oriundo do Luxemburgo, a que foi atribuída a matrícula ... .

7.2. Para efeitos de aplicação da tabela D prevista no n.º 1 do artigo 11.º do CISV, o veículo da marca ..., ..., a gasóleo, insere-se no escalão da tabela de “Mais de 6 a 7 anos” de uso, tendo sido aplicada a percentagem de redução correspondente, de 60%, conforme resulta da referida tabela.

7.3. No Quadro E da DAV (características do veículo), consta, na casa 50, quanto à Emissão de Gases CO2, respetivamente, o valor de 114 g/Km.

7.4. A liquidação do imposto, relativa ao veículo identificado na DAV, foi efectuada em 20.03.2020, e conforme indicado nos Quadros T e V da DAV, constando desta, igualmente, a identificação do acto de liquidação (n.º 2020/..., de 20.03.2020), bem como a data, montante e termo final do prazo de pagamento (03.04.2020), e a identificação do autor do acto.

7.5. O imposto em causa foi pago pelo Requerente.

7.6. Em 05.05.2020 o Requerente apresentou reclamação graciosa do acto de liquidação junto da Alfândega de Alverca (processo de reclamação graciosa nº ...2020..., de 05.05.2020) que veio a ser objeto de indeferimento por despacho datado de 07.09.2020 do director daquela alfândega.

7.7. Na pendência do procedimento de reclamação graciosa, antes de ser proferida decisão final, em 20.05.2020 o Requerente apresentou junto da Instância Arbitral o presente pedido de constituição de tribunal arbitral, peticionando a anulação parcial da liquidação de ISV, com fundamento na violação do art. 110º TFUE e o reembolso do montante de 996,02 €.

 

III - Factos não provados

8. Não há factos não provados com relevo para a decisão da causa.

 

IV - Do Direito

9. São as seguintes as questões a examinar no presente processo.

- Da ilegalidade da liquidação de ISV.

- Da inconstitucionalidade da interpretação do artigo 11.º do CISV em conformidade com o artigo 110.º do TFUE.

Examinar-se-ão assim essas questões:

 

DA ILEGALIDADE DA LIQUIDAÇÃO DE ISV.

10. Sustenta ainda a Requerente existir ilegalidade na liquidação de ISV, uma vez que a disposição do art. 11º do CISV contraria o art. 110º do Tratado de Funcionamento da União Europeia.

Vejamos:

O art. 110º do Tratado de Funcionamento da União Europeia dispõe expressamente o seguinte:

"Nenhum Estado-Membro fará incidir, directa ou indirectamente, sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidam, directa ou indirectamente, sobre produtos nacionais similares. Além disso, nenhum Estado-Membro fará incidir sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas de modo a proteger indirectamente outras produções".

Dispõe o artigo 11.º, nº1, do CISV o seguinte:

O imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados membros da União Europeia é objeto de liquidação provisória nos termos das regras do presente Código, com exceção da componente cilindrada à qual são aplicadas as percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respetiva, as quais estão associadas à desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional:

TABELA D

 

Esta redacção do art. 11º, nº1, do CISV foi introduzida pela Lei 42/2016, de 27 de Dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 2017), surgida após o Acórdão do Tribunal de Justiça (Sétima Secção) de 16 de junho de 2016, emitido no processo C-200/15 relativo à acção incumprimento interposta pela Comissão Europeia contra a República Portuguesa no qual se declarou a desconformidade da anterior redacção desta disposição com o art. 110º TFUE, nos seguintes termos:

"A República Portuguesa, ao aplicar, para efeitos da determinação do valor tributável dos veículos usados provenientes de outro estado-membro, introduzidos no território de Portugal, um sistema relativo ao cálculo da desvalorização dos veículos que não tem em conta uma desvalorização antes de estes atingirem um ano, nem a desvalorização que seja superior a 52% no caso de veículos com mais de cinco anos, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do art. 11º do TFUE (…)Este artigo (110º do TFUE) é violado sempre que a imposição que incide sobre o artigo importado e a que incide sobre o produto nacional similar são calculados de forma diferente e segundo modalidades diferentes que conduzam, ainda que apenas em certos casos, a uma imposição superior do produto importado (acórdão de 22 de fevereiro de 2001, Gomes Valente, C-393/98, EU: C:2001:109, nº 21; de 19 de setembro de 2002, Tulliasiames e Siilin, C-101/00, EU: C:2002:505, nº  53; e de 20 de setembro de 2007, Comissão/Grécia, C-74/06, EU:C:2007:534, nº 25)” (nº 24 dos fundamentos do acórdão). Assim, a cobrança, por um Estado-Membro, de um imposto sobre os veículos usados provenientes de outro Estado-membro é contrária ao artigo 110º. do TFUE, quando o montante do imposto, calculado sem tomar em conta a depreciação real do veículo, exceda o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional (v., designadamente, acórdãos de 9 de março de 1995, Nunes Tadeu, C-345/93, EU:C:1995:66, n.º 20, e de 22 de fevereiro de 2001, GomesValente, C-393/98, EU:C:2001:109, n.º 23)” (nº 25 dos fundamentos do acórdão).“ (…) Mais precisamente, um Estado-Membro não pode cobrar um imposto sobre os veículos usados importados, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares, disponíveis no mercado nacional. O valor do veículo usado importado utilizado pela Administração como base de tributação deve refletir fielmente o valor de um veículo similar já registado no território nacional (v. acórdão de 20 de setembro de 2007, Comissão/Grécia, C-74/06, EU:C:2007:534, n.ºs 27 e 28 (…) ".

Sucede, porém, que a actual redacção do art. 11º do CISV mantém uma diferenciação com os valores do ISV aplicáveis aos veículos nacionais, e que constam do art. 7º CISV e tabelas anexas, dado que o legislador, em conformidade com o acima referido acórdão do TJUE, alargou as percentagens de redução ao primeiro ano de uso do veículo, prolongando-a até aos 10 e mais anos de uso, mas introduziu uma outra alteração diferenciadora em relação aos veículos com origem noutros Estados-Membros, com impacto no cálculo do ISV, uma vez que a actual redacção do art. 11º CISV limita a aplicação das percentagens de redução apenas à componente cilindrada, excluindo-a da componente ambiental (emissão de CO2), ao contrário do que sucede com os veículos usados já matriculados no território nacional.

Por esse motivo, a jurisprudência deste CAAD tem decidido uniformemente que a actual redacção do art. 11º CISV viola o disposto no art. 110º TFUE (cfr. as decisões dos processos 572/2018-T, 346/2019-T, 348/2019-T, 350-2019-T, 459/2019-T e 660/2019-T).

É claramente essa a solução desta questão, uma vez que as normas do Direito da União Europeia, no caso o art. 110º TFUE, têm efeito directo e primado sobre o Direito Nacional, não podendo assim o art. 11º CISV contrariar aquela disposição. Ora, existe uma clara violação do artigo 110.° TFUE sempre que o montante de imposto que incide sobre um veículo usado proveniente de outro Estado-Membro exceda o montante residual do referido imposto incorporado no valor dos veículos usados similares já matriculados no território nacional, o que é o caso.

Quanto à justificação apresentada pela Requerida que a diferenciação na tributação resulta de razões ambientes, a mesma não pode proceder. Como se escreveu na Decisão no processo 660/2019-T "decorre da jurisprudência do TJUE e da própria sistemática do TFUE que, ao contrário do que indica a AT, a norma do artigo 110.º do TFUE é imperativa e sobrepõe-se às normas de cariz ambiental do artigo 191.º do TFUE. Assim, ainda que um EM utilize componente ambientais na determinação do cálculo do regime de tributação de veículos, nunca poderá, com base nessa componente, agravar a tributação de veículos usados provenientes de outros EM face aos veículos usados já matriculados em território nacional". Tal "equivale a dizer que não decorre da legislação aplicável que as regras e princípios ambientais constantes do artigo 191.º do TFUE e artigo 66.º da CRP prevaleçam sobre a regra do artigo 110.º do TFUE que é imperativa para os EM".

É manifesta assim a ilegalidade da liquidação de ISV impugnada, tendo razão o Requerente nesta questão.

 

- DA INCONSTITUCIONALIDADE DA INTERPRETAÇÃO DO ART. 11º DO CISV EM CONFORMIDADE COM O ARTIGO 110º DO TFUE.

11. Veio ainda a Requerida alegar que a desaplicação do artigo 11.º do CISV resulta numa violação do princípio da legalidade consagrado no artigo 266.º da CRP e do disposto nos artigos 20.º, n.º 1 e n.º 4, 66º, e 266.º, todos da CRP, i.e. violação dos princípios do Estado de Direito ambiental e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva.

É manifesto que tal não sucede, sendo de salientar que, nos termos do art. 8º, nº4 da Constituição, "as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático". Não é assim possível aos tribunais, salvo em caso de violação dos princípios fundamentais do Estado de direito democrático, que in casu não se verificam, recusar a aplicação de normas do Direito da União Europeia invocando disposições do Direito Interno Português.

Relativamente à invocação da limitação dos recursos em sede da arbitragem tributária, tal resulta da vinculação da Administração Tributária à jurisdição do CAAD resultante da Portaria 112-A/2011, de 22 de Março, com as alterações resultantes da Portaria 287/2019, de 3 de Outubro, e ao regime instituído no RJAT que este Tribunal Arbitral tem que observar. É por isso que tem o dever de apreciar a legalidade dos actos tributários de liquidação de ISV aqui em causa, limitado e no âmbito da competência que lhe é conferida pelo artigo 2.º n.º s 1 e 2 do RJAT, não se verificando qualquer inconstitucionalidade nessa sua competência. Na verdade, a existência de tribunais arbitrais é reconhecida pelo art. 209º, nº2, da Constituição.

 

V – Decisão

 

Nestes termos, julga-se procedente o pedido de anulação parcial da liquidação de ISV resultante da Declaração Aduaneira de Veículo DAV nº 2020/... de 25/3/2020 (Alfândega de Alverca), anulando-se parcialmente a referida liquidação quanto ao valor de de € 996,02.

Julga-se procedente o pedido de reembolso do ISV condenando-se a Requerida a restituir ao Requerente a quantia de € 996,02.

Fixa-se ao processo o valor de € 996,02 (novecentos e noventa e seis euros e dois cêntimos) e o valor da correspondente taxa de arbitragem em € 306,00 nos termos da Tabela I do Regulamento de Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, condenando-se a Requerida nas custas do processo.

 

Lisboa, 27 de Novembro de 2020

 

O Árbitro

(Luís Menezes Leitão)