Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 705/2019-T
Data da decisão: 2021-06-19  IVA  
Valor do pedido: € 2.691.050,01
Tema: IVA – Competência do Tribunal Arbitral; Pro-rata.
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SUMÁRIO:

 

I              Estando em causa uma pretensão formulada em processo de impugnação judicial que se encontrava pendente de decisão em primeira instância nos tribunais tributários na vigência do 11.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 81/2018 de 15 de Outubro, referindo-se o seu objecto a um acto integrante do elenco formulado no art.º 2.º do RJAT, e contendo-se a pretensão dentro do valor relativamente ao qual a AT se vinculou à arbitragem (cfr. art.º 3.º, n.º 1, da Portaria n.º 112-A/2011 de 22 de Março), nada obstará à competência material do Tribunal arbitral.

II             É admissível o recurso ao mecanismo de revisão oficiosa, no prazo de 4 anos após a respectiva liquidação, ainda que esteja em causa a alteração de métodos de dedução de IVA.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

 

1             No dia 21 de Outubro de 2019, o A..., S.A., NIPC..., com sede Rua .. ..., ...-... Porto, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade do acto tributário de autoliquidação de IVA, efectuada na Declaração Periódica de IVA referente ao período de 12/2008, com o n.º..., no valor de € 2.691.050,01, bem como das decisões do pedido de revisão oficiosa e do recurso hierárquico que tiveram aquele acto como objecto.

 

2             Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, que deveria ter sido incluído no numerador e no denominador do pro rata da dedução o montante relativo à operação de alienação de 49,9% da participação social que detinha no B... ("B...") à sociedade C..., S.A., entidade estabelecida em Angola.

 

3             No dia 22-10-2019, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

4             A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

5             Em 10-12-2019, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

6             Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 13-01-2020.

 

7             No dia 17-02-2020, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se (por excepção e) por impugnação.

 

8             Ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º, e n.º 2 do art.º 29.º, ambos do RJAT, foi dispensada a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.

 

9             Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, abstiveram-se as partes de o fazer.

 

10           Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no art.º 21.º/1 do RJAT, com as prorrogações determinadas de acordo com o disposto no número 2 daquele artigo.

 

11           O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

1             A Requerente é uma instituição de crédito cujo objecto social consiste na realização de operações financeiras, ao abrigo do artigo 4.° do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro.

2             A actividade desenvolvida pela Requerente, no âmbito do seu objecto social, compreende tanto operações que não conferem o direito à dedução do IVA como operações que conferem esse mesmo direito, nos termos previstos pela redacção do artigo 20.º do Código deste imposto.

3             Uma parte dos bens e serviços adquiridos pela Requerente é utilizada, simultaneamente, em operações que conferem o direito à dedução e em operações que não conferem esse mesmo direito, configurando assim recursos de "utilização mista".

4             Para possibilitar a determinação do quantum de IVA dedutível, por referência ao IVA incorrido nesses mesmos recursos - de utilização mista -, a Requerente utiliza dois métodos distintos de apuramento, a saber: o método da percentagem de dedução ("pro rata") e o método da afetação real, de harmonia com o disposto no artigo 173.º da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de Novembro ("Directiva IVA") e no artigo 23.º do Código do IVA.

5             No período de 2008, a Requerente aplicava o método de dedução directa nas áreas de medalhística e numismática, entre outras, por serem áreas de negócio específicas, as quais permitiam a clara identificação dos respectivos inputs exclusivamente afectos a estas actividades.

6             Na declaração periódica relativa ao período 2008/12 inicialmente entregue a 06/02/2009, a Requerente apurou uma percentagem de dedução de 6%.

7             Após uma revisão de procedimentos, a mesma alterou a percentagem de dedução a aplicar para 20%, incluindo no respectivo cálculo o montante da amortização de capital incluído nas rendas cobradas nos contratos de leasing e ALD, o que originou a inscrição de uma regularização a seu favor, no campo 40, da DP de substituição de 2008/12, entregue a 04/02/2011, no valor de €5.016.928,20, ou seja, superior em €4.094.627,58 (4.094.627,58 = €4.129.808,88 – €36.172,88 + €991,58) ao montante constante da primeira declaração entregue em 06/02/2009, ou seja, € 922.300,62.

8             A autoliquidação consubstanciada naquela declaração de substituição entregue pela Requerente foi objecto de correcção, na parte relativa ao montante regularizado no concernente campo 40, por alteração da percentagem de dedução inicialmente apurada nos termos antes expostos, tendo sido considerado pelos SIT não caber razão ao Sujeito Passivo devendo manter-se a percentagem de dedução por si inicialmente apurada de 6%, ao invés daquela outra percentagem de dedução de 20%.

9             A liquidação adicional que se seguiu à correcção referida foi objecto de uma Reclamação Graciosa cuja decisão de indeferimento foi objecto de Recurso Hierárquico, sendo aquele acto tributário objecto do processo de impugnação judicial n.º .../14...BEPRT do TAF do Porto.

10           No âmbito de uma revisão interna de procedimentos, a Requerente considerou que, no momento do cálculo do pro rata, cometeu um erro de enquadramento, entendendo que não foram observadas as regras prescritas pelo n.º 4 do artigo 23.º do Código do IVA.

11           No ano 2008, a Requerente alienou 49,9% da participação social que detinha, à data, no Banco B..., pelo valor de USD 475.000.000,00, correspondente, à data, a € 350.606.602,72.

12           Esta alienação foi efectuada à sociedade C... S.A., entidade estabelecida em Angola, que passou assim a deter aquela participação.

13           A Requerente entendeu que a operação descrita, configura uma operação financeira, isenta nos termos do disposto na alínea e) do n.º 27 do artigo 9.° do Código do IVA, cujo destinatário se encontra estabelecido fora do território da União Europeia, conferindo o direito à dedução nos termos previstos pelo parágrafo v) da alínea b) do n.º 1 do artigo 20.º do Código do IVA.

14           De acordo com tal enquadramento, o montante da contrapartida auferida pela Requerente com a realização da referida operação deveria ter sido incluído no cálculo do seu pro rata, figurando tanto no numerador como no denominador da fórmula consagrada no n.º 4 do artigo 23.º do Código do IVA.

15           Ainda de acordo com tal enquadramento, resultaria um valor adicional de € 350.606.602,72 a incluir quer no denominador, quer no numerador da fracção de cálculo do pro rata, referente a 2008, resultando numa percentagem de dedução adicional de 9%, num valor total de € 2.691.050,01 de imposto.

16           Tendo em vista a regularização do erro descrito, a Requerente submeteu junto da Autoridade Tributária e Aduaneira ("AT") um pedido de revisão oficiosa, através do qual expôs a situação de facto em causa e peticionou a restituição do IVA que entendeu pago em excesso, no ano 2008, no valor de € 2.691.050,01

17           A Requerente foi notificada, através do Ofício n.º..., de 30 de Maio de 2014, do despacho de indeferimento do pedido de revisão oficiosa apresentado que, em termos genéricos, propugnou pela extemporaneidade do pedido de revisão em causa.

18           Por não concordar com a mesma, a Requerente deduziu recurso hierárquico do referido despacho, pugnando pela validade da sua pretensão e peticionando a restituição do imposto pago em excesso, no valor de € 2.691.050,01.

19           Nesta sequência, foi a Requerente notificada do Ofício n.º..., de 25 de Setembro de 2015, com o despacho de indeferimento do recurso hierárquico deduzido, proferido pela Directora Geral de Serviços do IVA.

20           Esta decisão de indeferimento assenta as suas conclusões, em suma, nos seguintes pontos:

20.a.i     A classificação do erro sub judice como "erro no apuramento do pro rata" e a consequente aplicação do n.º 6 do artigo 23.º do Código do IVA;

20.a.ii    A inaplicabilidade do n.º 2 do artigo 98.º do Código do IVA in casu;

20.a.iii   A inaplicabilidade do regime da revisão oficiosa previsto no artigo 78.º da LGT; e

20.a.iv   O Direito comunitário, a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo no Processo n.º 966/10 e o Ofício-Circulado n.º 30082, de 17 de Novembro de 2005.

 

A.2. Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13 , “o (...) relatório da inspecção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

B. DO DIREITO

 

a. da matéria de excepção

                Nos presentes autos a Requerida não apresentou contestação própria, remetendo a sua “a sua argumentação para a contestação oportunamente deduzida em sede de impugnação judicial n.º .../15...BEPRT, que correu termos no TAF do Porto.”.

                Na referida contestação, é arguida a excepção do erro na forma do processo, sustentando-se, em suma, que a forma processual adequada não seria a impugnação judicial, mas a acção administrativa especial.

                Diga-se, desde logo, que a excepção do erro na forma do processo não tem correspondente no processo arbitral tributário, onde existe uma única forma de processo, pelo que, desde logo, se poderia considerar não ser de atender à argumentação contida nessa parte da contestação deduzida em sede de impugnação judicial n.º .../15...BEPRT, que correu termos no TAF do Porto.

                Não obstante, para o caso de se entender que a mesma se deverá interpretar como correspondendo à excepção da incompetência material do tribunal arbitral, matéria de conhecimento oficioso e cuja violação é susceptível, nos termos da jurisprudência estabelecida pelo TCA-Sul, de gerar a nulidade da decisão arbitral por pronúncia indevida, passar-se-á a conhecer de tal questão.

                Dispõe o artigo 2.º do RJAT que:

“1 — A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:

a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;

b) A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais;”.

                Mais dispõe o art.º 10.º do RJAT que:

“1 — O pedido de constituição de tribunal arbitral é apresentado:

a) No prazo de 90 dias, contado a partir dos factos previstos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, quanto aos actos susceptíveis de impugnação autónoma e, bem assim, da notificação da decisão ou do termo do prazo legal de decisão do recurso hierárquico;

b) No prazo de 30 dias, contado a partir da notificação dos actos previstos nas alíneas b) e c) do artigo 2.º, nos restantes casos.”

                Como explica Carla Castelo Trindade , “Esta é a primeira questão que deve ficar clara: o objecto do processo arbitral é o acto de liquidação (...)”.

                Ou seja, e em suma, o artigo 2.º do RJAT toma como objecto da competência dos tribunais arbitrais, os actos primários (“actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta”), sendo os actos secundários unicamente relevantes como elementos proporcionadores da tempestividade da pretensão impugnatória, como resulta do artigo 10.º, n.º  1, al. a) daquele Regime, onde se impõe que os pedidos de constituição de tribunal arbitral sejam apresentados no prazo de 90 dias, contado a partir dos factos previstos nos n.º 1 e 2 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.

                Daí que no processo arbitral se esteja a sindicar a legalidade do acto de auto-liquidação de IVA do Requerente (objecto da competência dos tribunais arbitrais), sendo a ilegalidade dos actos de segundo e terceiro grau (decisões de reclamações graciosas, pedidos de revisão oficiosa e recursos hierárquicos) – cuja função no processo arbitral tributário é a de garantir a tempestividade da impugnação arbitral do acto de primeiro grau – meramente reflexa, derivada ou consequente da ilegalidade daquele acto primário, sendo um dever da AT anular aqueles, declarada a ilegalidade deste, por força do disposto no art.º 173.º, n.º 2, do CPTA, que impõe à Administração, em sede de execução do julgado, a obrigação de “anular, reformar ou substituir os atos consequentes, sem dependência de prazo”.

                Acresce que o presente processo foi cometido à arbitragem tributária, nos termos do art.º 11.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 81/2018, de 15 de Outubro, que dispõe, para além do mais, que “Os sujeitos passivos podem, até 31 de dezembro de 2019, submeter aos tribunais arbitrais tributários, dentro das respetivas competências, as pretensões que tenham formulado em processos de impugnação judicial que se encontrem pendentes de decisão em primeira instância nos tribunais tributários, e que nestes tenham dado entrada até 31 de dezembro de 2016”.

                Deste modo, estando em causa uma pretensão formulada em processo de impugnação judicial que se encontrava pendente de decisão em primeira instância nos tribunais tributários, referindo-se o seu objecto a um acto integrante do elenco formulado no art.º 2.º do RJAT, e contendo-se a pretensão dentro do valor relativamente ao qual a AT se vinculou à arbitragem (cfr. art.º 3.º, n.º 1, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março), nada obstará à competência material deste Tribunal Arbitral.

                Deste modo, e pelo exposto, sendo o objecto da presente acção arbitral o acto de autoliquidação de IVA, para cuja apreciação da legalidade este Tribunal é competente, nos termos da alínea a), do n.º 1, do art.º 2.º do RJAT, e sendo a acção arbitral tempestiva, nos termos do art.º 11.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 81/2018, de 15 de Outubro, nada obstará ao conhecimento do mérito da causa.

 

***

b. Do fundo da causa

                Conforme resulta quer das decisões da AT em sede graciosa, quer da contestação deduzida em sede de impugnação judicial n.º.../15...BEPRT, que correu termos no TAF do Porto, para cuja argumentação a Requerida remeteu nos presentes autos, entende aquela Autoridade que a Requerente estava impedida de alterar o pro-rata definitivo para o exercício de 2008, fixado na sua declaração periódica de IVA de Dezembro de 2008, nos termos do n.º 6 do artigo 23.º do Código do IVA, porquanto, no seu entender, e em suma, “a pretensão do Impugnante apenas podia ter sido efetivada, nos termos do n.º 6, do artigo 23.º, do CIVA, até à declaração do último período do ano a que respeitava, sendo ainda admissível o recurso à reclamação graciosa, nos termos do n.º 1, do artigo 131.º, do CPPT, o que não sucedeu.”.

                Esta matéria foi já objecto de aprofundada discussão, quer em sede arbitral, quer do Supremo Tribunal Administrativo, quer no âmbito do TJUE.

                Assim, e por exemplo, no processo arbitral n.º 919/2019-T, do CAAD , concluiu-se que “tendo em conta o artigo 9.º n.º 1 do Código Civil, aplicável ex vis artigo 11.º da LGT  – que, na data dos factos, e ao contrário do que invoca a Requerida, o artigo 23.º n.º 6 do Código do IVA não vedava ao Requerente a possibilidade de recorrer ao mecanismo de revisão oficiosa, no prazo de 4 anos após a respetiva liquidação, ainda que estivesse em causa a alteração de métodos de dedução de IVA (de prorata para afetação real), não podendo, de igual modo, ser admitida uma interpretação do Ofício Circulado n.º  30103, de 23.04.2008 neste sentido”.

Também a este propósito pode ver-se o Acórdão do STA de 12-05-2021, proferido no processo 01023/15.0BELRS, onde após sustentada análise da jurisprudência anterior se sumariou que:

“I– O legislador português fixou, no Código do IVA, dois conjuntos de prazos para efeitos do exercício do direito à dedução do IVA, consoante tal exercício se processe em termos normais ou patológicos.

II – Uma correcção motivada pela indevida utilização de um método legal de dedução, quando um outro método legal deveria ser aplicável, configura um forçoso erro de Direito (situação patológica), sendo tempestivo o pedido de correcção/revisão da auto-liquidação se efetuado no prazo de quatro anos.”

                Também no Ac. do TJUE de 30 de Abril de 2020, proferido no processo C 661/18 , se declarou que:

“1)      O artigo 173.°, n.° 2, alínea c), da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, lido à luz dos princípios da neutralidade fiscal, da segurança jurídica e da proporcionalidade, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que um Estado Membro que, ao abrigo dessa disposição, autoriza os sujeitos passivos a efetuar a dedução do imposto sobre o valor acrescentado (IVA) com base na afetação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços utilizados para efetuar tanto operações com direito à dedução como operações sem direito à dedução proíba esses sujeitos passivos de alterar o método de dedução do IVA após a fixação do pro rata definitivo.

2)      Os artigos 184.° a 186.° da Diretiva 2006/112, lidos à luz dos princípios da neutralidade fiscal, da efetividade e da proporcionalidade, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação nacional por força da qual é recusada a um sujeito passivo que efetuou deduções de imposto sobre o valor acrescentado (IVA) que incidiu sobre a aquisição de bens ou de serviços utilizados para efetuar tanto operações com direito à dedução como operações sem direito à dedução, segundo o método baseado no volume de negócios, a possibilidade de, após a fixação do pro rata definitivo em aplicação do artigo 175.°, n.° 3, desta diretiva, retificar essas deduções aplicando o método da afetação, numa situação em que:

        ao abrigo do artigo 173.°, n.° 2, alínea c), da referida diretiva, o Estado Membro em causa autoriza os sujeitos passivos a efetuar deduções de IVA com base na afetação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços utilizados para efetuar tanto operações com direito à dedução como operações sem direito à dedução;

        no momento em que optou pelo método de dedução, o sujeito passivo ignorava de boa fé que uma operação que considerava isenta, na realidade, não o estava;

        o prazo geral de caducidade fixado pelo direito nacional para regularizar as deduções ainda não terminou; ea alteração do método de dedução permite estabelecer com maior precisão a parte do IVA referente a operações com direito à dedução.”.

                Sob um ponto de vista mais geral, encontra-se igualmente pacificado que “O artigo 2.º alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011 viabiliza a apresentação de pedidos de pronúncia arbitral relativamente a actos de autoliquidação que tenham sido precedidos de pedido de revisão oficiosa.” , e que não é “inconstitucional a norma que considera os pedidos de revisão oficiosa equivalentes às situações em que existiu «recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», para efeito da interpretação da alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, encontrando-se tais situações, por isso, abrangidas pela jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD” .

                Face ao que já foi elaborado pela jurisprudência citada, a cujos fundamentos, mais não seja pela imposição de aplicação uniforme do Direito, nos termos do art.º 8.º, n.º 3 do CC, se adere, não restam dúvidas de que era admissível o recurso ao mecanismo de revisão oficiosa, no prazo de 4 anos após a respectiva liquidação, ainda que estivesse em causa a alteração de métodos de dedução de IVA.

 

***

                A defesa da Requerida no presente processo arbitral, argui ainda que “nunca veio o Impugnante oferecer qualquer tipo de prova dos factos constitutivos do direito que invoca, ónus esse que lhe cabia nos termos do disposto no artigo 74.º, da LGT”.

                Esta mesma linha de argumentação foi já objecto de apreciação no âmbito do citado processo arbitral n.º 919/2019T do CAAD, onde se concluiu que “não existe no caso qualquer motivo para desconsiderar os factos alegados pelo Requerente e os documentos juntos ao pedido, havendo de entender-se que foi efetuada a prova da existência dos factos de que depende o exercício do direito.” e que “a Administração, não só não impugnou especificadamente os factos articulados na petição, como não colocou em dúvida a veracidade dos documentos juntos, e não produziu qualquer meio de prova que permitisse pôr em causa a pretensão do Requerente, pelo que não pode dizer-se que tenha sido feita a prova, que incumbia à AT, da verificação dos pressupostos legais do não reconhecimento do direito à dedução de imposto.”.

                Do mesmo modo, no presente processo verifica-se que desde o pedido de revisão oficiosa (art.º 10.º; cfr. doc. 2 junto com o requerimento inicial), a Requerente alegou que é do conhecimento público e consta do seu relatório de contas de 2008 (disponível na internet), que alienou a naquele ano 49,9% da participação que detinha no B..., à sociedade C..., entidade estabelecida em Angola.

                Efectivamente, e para além do relatório de contas citado pela Requerente, é público e notório a existência e elementos fundamentais daquela alienação, que foi notícia nos meios de comunicação social , bem como a circunstância de a sociedade C... ser uma entidade estabelecida em Angola.

                Acresce ainda que, no processo arbitral n.º 195/2019T  do CAAD, no qual a Requerida foi, como não podia deixar de ser, parte, foi já dado como provado tal facto (cfr. ponto L. da matéria de facto provada naquele acórdão).

                Daí que, aqui, como no citado processo arbitral 919/2019T, se haja de concluir que “não pode ser admitido – contra factum proprium – o argumento da Requerida de que o Requerente não logrou apresentar a documentação de suporte que permitiria a prova suficiente, como fundamento de negação da revisão oficiosa.”.

 

*

                A Requerida, invoca, ainda, na sua defesa apresentada em sede de impugnação judicial n.º .../15...BEPRT, que correu termos no TAF do Porto, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido no processo n.º 0966/10, a 18/05/2011.

                Ressalvado o respeito devido a outras opiniões tal acórdão não tem o sentido que a Requerida lhe pretende atribuir, significando, unicamente, que o contribuinte não pode livremente escolher o período de tributação em que pretende efectivar o seu direito à dedução, devendo exercê-lo na declaração periódica correspondente ao momento em que aquele se forma, declaração essa que pode ser corrigida, posteriormente e dentro dos prazos legais, através dos meios adequados, no caso de o exercício daquele direito enfermar de erro de facto ou de direito.

 

*

                Assente, então, que não existe qualquer óbice à admissibilidade do recurso ao mecanismo de revisão oficiosa, no prazo de 4 anos após a respectiva liquidação, ainda que estivesse em causa a alteração de métodos de dedução de IVA (principal óbice levantado pela AT à procedência do pedido), e que se encontra suficientemente demonstrado que no ano de 2008, a Requerente alienou 49,9% da participação social que detinha, à data, no Banco B..., pelo valor de USD 475.000.000,00, correspondente, à data, a € 350.606.602,72, cumpre apreciar se daí resulta, ou não, um erro na autoliquidação objecto da presente acção arbitral.

                Esta matéria foi já objecto de aprofundada análise no âmbito do já citado processo arbitral n.º 195/2019 do CAAD, que trata, precisamente, da alienação pela ora Requereten, da participação de 2% no mesmo banco angolano, à mesma entidade sedeada em Angola, em termos que se subscrevem e se passam a transcrever:

“5. A questão que vem colocada é a de saber se a alienação da participação social de 2% que a Requerente detinha no B... a uma entidade de direito angolano, com sede em Angola, confere o direito à dedução do imposto sobre o valor acrescentado incorrido a montante por se tratar e uma operação isenta em que o destinatário se encontra estabelecido ou domiciliado fora da União Europeia.

Pretende a Requerente que a operação se encontra abrangida pela isenção de IVA constante do artigo 9.º, n.º 27), alínea e), do Código do IVA e confere o direito à dedução de imposto por se encontrar incluída no elenco das operações a que se refere o artigo 20.º, n.º 1, alínea b), subalínea V).

A referida disposição do artigo 9.º, n.º 27), alínea e), transpondo para a ordem interna a norma do artigo 135.º, n.º 1, alínea f), da Directiva IVA, isenta de imposto as "operações c serviços, incluindo a negociação, mas com exclusão da simples guarda e administração ou gestão, relativos a acções, outras participações em sociedades ou associações, obrigações e demais títulos, com exclusão dos títulos representativos de mercadorias e dos títulos representativos de operações sobre bens imóveis quando efectuadas por um prazo inferior a 20 anos”.

Por outro lado, o artigo 20.º do mesmo Código sob a epígrafe “Operações que conferem o direito à dedução”, na parte que mais interessa considerar, dispõe o seguinte:

1 - Só pode deduzir-se o imposto que tenha incidido sobre bens ou serviços adquiridos, importados ou utilizados pelo sujeito passivo para a realização das operações seguintes:

a) Transmissões de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas;

b) Transmissões de bens e prestações de serviços que consistam em:  (…)

V) Operações isentas nos termos dos n.ºs 27) e 28) do artigo 9.º, quando o destinatário esteja estabelecido ou domiciliado fora da Comunidade Europeia ou que estejam directamente ligadas a bens, que se destinam a ser exportados para países não pertencentes à mesma Comunidade;(…).

Do conjunto destas disposições resulta que o Código isenta de imposto as operações relacionadas com participações sociais (artigo 9.º, n.º 27), alínea e)), e, por outro lado, nos termos do transcrito artigo 20.º, há lugar ao direito à dedução não apenas em relação a operações tributáveis que implicam a liquidação de IVA (transmissões de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas), mas também quanto a outras operações activas que não dando origem à obrigação de liquidação de imposto, constam do elenco taxativo da alínea b), incluindo as operações financeiras enquadráveis na citada disposição do artigo 9.º, n.º 27), alínea e).

Do âmbito das operações abrangidas pela isenção prevista neste preceito excluem-se, como vimos, as operações que consistam na simples guarda e administração ou gestão de participações sociais. Por outro lado, a isenção de imposto apenas se reporta às situações que se encontram abrangidas pelo âmbito de incidência do IVA, devendo tomar-se em consideração, face à jurisprudência do TJUE, que a inclusão no âmbito de incidência não se verifica quando a aquisição, detenção ou alienação de participações sociais não seja feita no quadro de uma actividade económica de compra e venda de títulos ou não seja acompanhada de operações que visem uma intervenção directa na gestão ou administração das sociedades participadas (RUI LAIRES, Código do IVA e RITI. Notas e Comentários, Coordenação e Organização de Clotilde Celorico Palma e António Carlos dos Santos, Coimbra, 2014, págs. 145-146).

Entre a jurisprudência do TJUE que tem sufragado esse entendimento conta-se o acórdão de 29 de Outubro de 2009, proferido no Processo C-29/08 (acórdão SFK), que vem invocado pela Requerente na petição inicial.

 Nesse aresto discutia-se se os artigos 2.°, n.° 1, e 4.°, n.os 1 e 2, da Sexta Directiva e os artigos 2.°, n.° 1, e 9.°, n.° 1, da Directiva 2006/112 deviam ser interpretados no sentido de que constitui uma actividade económica abrangida pelo âmbito de aplicação das referidas directivas uma transmissão, pela sociedade mãe, da totalidade das acções de uma filial detida a 100% e da sua participação remanescente noutra sociedade controlada que detinha anteriormente a 100%, às quais prestou serviços sujeitos a IVA.

O Tribunal começou por chamar a atenção para a jurisprudência assente segundo a qual “a simples aquisição, a detenção e a venda de acções não constituem em si mesmas uma actividade económica na acepção da Sexta Directiva”, visto que “não implicam a exploração de um bem com vista à produção de receitas com um carácter de permanência, uma vez que a única retribuição destas operações é constituída por um eventual benefício na venda destas acções” (parágrafo 28). Vindo a esclarecer que “apenas os pagamentos que constituem a contrapartida de uma operação ou de uma actividade económica entram no âmbito de aplicação do IVA e assim não acontece com os que resultam da simples propriedade do bem, como é o caso dos dividendos e outros produtos de acções” (parágrafo 29).

No entanto, o Tribunal esclareceu – conforme se decidiu noutros casos - que a “situação é diferente quando a participação financeira numa sociedade é acompanhada pela interferência directa ou indirecta na gestão das sociedades em que se verificou a tomada de participação, sem prejuízo dos direitos que o detentor da participação tenha na qualidade de accionista ou de sócio, (…) na medida em que tal interferência implique a realização de transacções sujeitas ao IVA nos termos do artigo 2.° da Sexta Directiva, tais como o fornecimento de serviços administrativos, contabilísticos e informáticos” (parágrafo 30).

   Por outro lado, o Tribunal traz ainda à colação a jurisprudência reiterada no sentido de que “as operações relativas às acções ou participações em sociedades são abrangidas pelo âmbito de aplicação do IVA quando efectuadas no quadro de uma actividade comercial de negociação de títulos ou para efectuar uma interferência directa ou indirecta na gestão das sociedades em que se verificou a tomada de participação ou quando constituem o prolongamento directo, permanente e necessário da actividade tributável”, invocando a propósito os acórdãos de 20 de Junho de 1996, Wellcome Trust, C 155/94, Colect., p. I 3013, n.° 35, e Harnas & Helm, e a jurisprudência aí referida (parágrafo 31).

No caso em análise, o Tribunal de Justiça, partindo dos dados de facto de que dispunha, considerou que a SKF, na qualidade de sociedade mãe de um grupo industrial, se envolveu na gestão da filial e da sociedade controlada, fornecendo lhe, a título oneroso, diversas prestações de serviços de natureza administrativa, contabilística e comercial, em relação às quais estava sujeita a IVA.

E, nesse contexto, veio a concluir que a transferência da totalidade das acções detidas na filial e na sociedade controlada, realizada com vista à reestruturação de um grupo de sociedades pela sociedade mãe, “pode ser considerada uma operação de obtenção de receitas com carácter permanente de actividades que excedem o quadro da simples venda de acções”, dando relevo ao facto de a operação apresentar “um nexo directo com a organização da actividade exercida pelo grupo e constituir[r] assim o prolongamento directo, permanente e necessário da actividade tributável do sujeito passivo” (parágrafo 33).

O Tribunal decidiu, por conseguinte, que uma operação como a analisada no processo é abrangida pelo âmbito de aplicação do IVA.

6. A Requerente alega que a doutrina do acórdão SFK é igualmente aplicável no caso vertente, visto que na qualidade de sócio maioritário do B..., e sendo uma entidade com experiência consolidada no sector financeiro, prestou ao longo do tempo serviços de administração e gestão, consultoria, assistência técnica e de informática junto da entidade participada, que ascenderam, em 2016, ao valor global de € 1.743.000,00.  E foi neste contexto que, no ano de 2017, procedeu à alienação de 2% da participação social detida no B... .

Os elementos dos autos evidenciam que a Requerente prestou serviços de administração e gestão, bem como de consultoria e assistência técnica, ao B... . E a jurisprudência do TJUE aponta no sentido de que a alienação de participações sociais constitui uma actividade económica para efeito de incidência de IVA, não apenas quando se enquadre numa actividade comercial de negociação de títulos, mas também quando a participação financeira na sociedade seja acompanhada de intervenção directa ou indirecta na administração e gestão da sociedade participada.

Não releva para o caso que a Requerente não se encontre constituída como uma sociedade de gestão de participações sociais nem exerça a actividade económica de gestão de participações sociais. O que interessa reter é que a alienação de participação social não se reconduz a uma mera venda de acções que tenha tido contrapartida a correspondente vantagem financeira, mas está de algum modo relacionada com a intervenção na gestão e administração da sociedade participada sendo essa a circunstância que permite caracterizar a alienação como actividade económica para efeito de incidência do IVA.

Verificando-se que a situação se enquadra, nos sobreditos termos, na isenção do artigo 9.º, n.º 27), alínea e), do Código do IVA e confere direito à dedução de imposto por aplicação do disposto no artigo 20.º, n.º 1, alínea b), subalínea V), sempre haveria lugar à correcção da percentagem de dedução tal como foi requerido pelo sujeito passivo.”.

                Aderindo-se à fundamentação exposta, conclui-se, aqui como ali, pela necessária procedência do pedido arbitral.

 

***

                A Requerente formula, para além do pedido anulatório da autoliquidação de IVA objecto da presente acção arbitral, os pedidos de anulação da decisão do recurso hierárquico, e de reconhecimento do direito ao reembolso do imposto pago em excesso.

                Como se referiu já, o objecto da presente acção é a autoliquidação de IVA, cuja anulação imporá para a Administração, se necessário em sede de execução do julgado, a obrigação, de, nos termos do art.º 173.º, n.º 2, do CPTA,  “anular, reformar ou substituir os atos consequentes, sem dependência de prazo”, bem como, nos termos do n.º 1 daquele artigo e do art.º 24.º, n.º 1, al. b) do RJAT, de “reconstituir a situação que existiria se o ato anulado não tivesse sido praticado”, o que incluirá, para além do mais, a obrigação do pagamento de juros indemnizatórios, não peticionados na presente sede, se devidos, e na medida do devido.

                Face ao exposto, apenas será determinada, na presente decisão, pelos fundamentos previamente expostos, a anulação da autoliquidação objecto da presente acção arbitral.

 

***

C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar integralmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:

a             Anular parcialmente a autoliquidação de IVA da Requerente, referente ao período de 12/2008, com o n.º..., no valor de € 2.691.050,01;

b             Condenar a Requerida nas custas do processo, abaixo fixadas.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 2.691.050,01, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 34.578,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi totalmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 19 de Junho de 2021

 

O Árbitro Presidente

 

 

(José Pedro Carvalho)

 

 

 

O Árbitro Vogal

 

 

(Clotilde Celorico Palma)

 

 

 

O Árbitro Vogal

 

 

 

(Sofia Ricardo Borges, com a declaração de voto que segue)

 

 

 

 

 

 

Declaração de voto

 

Não acompanhamos, sempre com todo o devido respeito, o sentido da Decisão.

Desde logo não nos seria dado acompanhar o salto lógico que, quanto a nós, se dá quando se aprecia da questão referente à tempestividade/admissibilidade do Pedido de Revisão Oficiosa e, daí, se passa para decidir sobre a legalidade da autoliquidação. Na, quanto a nós, insuficiência de elementos – matéria de facto – para assim o poder fazer-se. Neste ponto note-se, a título de exemplo, e para além do mais que poderia referir-se:

                (i) como resulta dos autos que a Requerente havia submetido inicialmente a sua Declaração periódica com um apuramento de uma percentagem no cálculo do pro rata de 6%. O que não chega referir nos autos. Só após tendo então submetido Declaração de substituição em que alterou aquela percentagem de 6% para 20% (pela inclusão na respectiva fracção – no numerador e no denominador - do montante das rendas de leasing e ALD correspondentes a amortização de capital). E agora, ao colocar em crise a mesma autoliquidação, vindo considerar uma percentagem não já de 20% mas sim de 29%. Sem, porém, fazer referência a que para chegar a estar última percentagem (29%), pela qual pugna, tomou por base a nova percentagem (20%) que considerou via Declaração de substituição e que – como conhece e também não refere nestes autos - a AT não aceitou, tendo emitido liquidação correctiva, pendente de impugnação judicial em outros autos (como, na sua defesa, a Requerida expõe). O que, parece-nos, não foi devidamente tido em consideração ao decidir-se como se decidiu;

                (ii) como as regras sobre o valor extraprocessual das provas, quanto a nós, não foram, para se decidir como se fez, relevadas (no aproveitamento como se fez de prova considerada assente em outro processo distinto e findo);

                (iii) como ao partir-se para (e ao levar a cabo) a apreciação sobre a existência ou não de erro na dita autoliquidação se convoca a fundamentação de Decisão Arbitral em processo com um objecto, a nosso ver, essencialmente diferenciado daquele que é o objecto nos presentes autos (como afloraremos), ali sim sendo objecto do processo a apreciação da legalidade de uma (outra) autoliquidação.

 

Muito antes do que se referiu, porém, atentaríamos em duas questões, enquadráveis em matéria de excepção. Como segue.

O objecto destes autos é, afinal, o acto de indeferimento de Recurso Hierárquico (“RH”). RH que por sua vez versou sobre o acto de indeferimento do Pedido de Revisão Oficiosa. O presente processo não tem por objecto, e quanto a nós, a apreciação da legalidade do acto de liquidação (autoliquidação). A causa de pedir resulta clara ao longo dos articulados - cfr. Petição Inicial e PPA (e com ela, no mesmo sentido, o pedido com que se remata, a final, tal como vem articulado e no confronto com o que vem ali desenvolvido pela Requerente). Com efeito, não obstante a Requerente começar por fazer referência ao erro de enquadramento de uma operação em IVA que a terá levado, segundo alega, a apurar uma percentagem inferior à que deveria ter apurado no cálculo do pro rata na sua autoliquidação , passa de imediato a versar sobre os fundamentos do acto de indeferimento do RH. Como refere, havia sido notificada do indeferimento do pedido de revisão oficiosa “que, em termos genéricos, propugnou pela extemporaneidade do pedido (…)”, e “nesta sequência, foi agora notificada (…) [d]o despacho de indeferimento do resurso hierárquico (…)”, “não podendo a Requerente concordar, nem se conformar, com os fundamentos constantes do presente despacho (…) vem impugnar judicialmente aquela decisão”. E assim passa a explanar, rebatendo-os, um a um, os fundamentos da decisão de indeferimento. Assim prosseguindo até final do PPA .

Ora, todos esses fundamentos têm que ver apenas com as questões da tempestividade (decidindo-se no acto em causa pela extemporaneidade) e admissibilidade do meio administrativo (Revisão Oficiosa) em causa. Nunca se chegando a apreciar e/ou fundamentar sobre a validade do acto de liquidação (autoliquidação). Como aliás, se dúvidas houvesse, vem expressamente vertido no próprio acto em crise, a final (ponto 68. ), assim: “(…) tendo a decisão do pedido de revisão considerado que, tal como alegada, a pretensão do Recorrente não tinha sido acionada em tempo, não se procedeu a qualquer diligência instrutória tendente ao apuramento dos factos que suportam o pedido e respetivo enquadramento jurídico, designadamente no que concerne ao novo pro rata de dedução invocado.”

No acto que a Requerente coloca em crise - como objecto imediato, se se quiser (sem porém praticamente alegar, e menos ainda se propor produzir prova, a respeito do vício de violação de lei que inquinaria o acto de liquidação) - não se apreciou da legalidade do acto de liquidação (autoliquidação).

 

Pois bem.

Cfr. art.º 2.º, n.º 1 do RJAT, e no que aos presentes autos releva, a competência dos Tribunais Arbitrais compreende a apreciação das pretensões assim enumeradas pelo legislador: “a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação (…);”.

Sucede, desde logo, que a legalidade da autoliquidação, aqui, não vem, disse-mo-lo já, apreciada pela Requerida. Não é emitido a respeito, nos actos de segundo e terceiro grau, no caso, qualquer juízo.

Sendo que, como bem se refere na Decisão, o objecto do processo arbitral - com as devidas consequências, acrescentamos nós, para o âmbito de competência dos respectivos Tribunais – é o acto de primeiro grau, o acto, no nosso caso, de autoliquidação. Na mesma linha da Doutrina que assim o expõe, “não são arbitráveis os vícios próprios dos actos de indeferimento (…)”, que “só poderão ser trazidos para a jurisdição arbitral, na estrita condição de terem, eles próprios, apreciado a (i)legalidade do acto tributário que o sujeito passivo, verdadeira e efectivamente, pretende impugnar por via arbitral.”  Por todos, Jorge Lopes de Sousa , assim: “(…) Embora na al. a) do n.º 1 deste artigo 2.º apenas se faça referência explícita à competência dos tribunais arbitrais para declararem a ilegalidade de atos de liquidação (…), essa competência estende-se também a atos de segundo e terceiro graus que apreciem a legalidade desses atos primários, designadamente atos de indeferimento (…).”

Ora, não será por acaso que o legislador no art.º 2.º do RJAT determinou a competência dos Tribunais Arbitrais por referência aos actos que aí elencou.  E não será também por acaso que a entidade Requerida nos autos na Portaria de Vinculação  delimitou os actos a que aceitou vincular-se, entre o mais, assim: “(…) vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais (…) que tenham por objeto a apreciação das pretensões (…) com excepção das seguintes: a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos (…);”

Ultrapassada que se considera, por aqui, a questão da admissibilidade de esse recurso à via administrativa se fazer através de uma Revisão Oficiosa e não necessariamente através de uma Reclamação Graciosa, ainda assim, a teleologia da norma não deixará de ser, parece-nos consensual, a de se assegurar um primeiro “filtro” do acto da iniciativa dos contribuintes por parte da Administração. Antes de o mesmo chegar à apreciação pelo crivo dos Tribunais. Precisamente porque naqueles actos ali identificados (art.º 2.º, al. a) da Portaria) a Administração não terá tido, ainda, qualquer intervenção. E é assim também que, neste quadro, os actos de segundo e terceiro grau de indeferimento expresso “poderão ser apreciados pela jurisdição arbitral, na medida em que eles próprios apreciem a (i)legalidade do acto tributário de primeiro grau (...)”.

Também não deixando de vir em coerência com o que antecede, dispõe o art.º 97.º, n.º 1, al. d) do CPPT que “O processo judicial tributário compreende: A impugnação dos actos administrativos em matéria tributária que comportem a apreciação da legalidade do acto de liquidação;”

A respeito escreve Jorge Lopes de Sousa assim: “Porém, no que concerne aos actos proferidos em processo de revisão oficiosa (…), a impugnação judicial só será o meio processual adequado quando o acto a impugnar contiver efectivamente a apreciação da legalidade de um acto de liquidação. Se no acto praticado em processos desse tipos não se chegou a apreciar a legalidade do acto de liquidação, por haver qualquer obstáculo a tal conhecimento (como a intempestividade ou (…)), o meio de impugnação adequado será a acção administrativa especial, como decorr do preceituado no n.º 2 deste art. 97.º, pois se tratará de um acto que não aprecia a legalidade de um acto de liquidação. (...)”.

E é assim, este racional assente, que no processo arbitral n.º 117/2013-T se decide conhecer do mérito após analisar-se o acto de indeferimento aí em causa e se concluir - diferentemente do que será permitido concluir nos presentes autos, parece-nos – que se admite na fundamentação desse acto de indeferimento que a pretensão da ali requerente poderia ter acolhimento se tivesse sido formulada dentro de um dado prazo. O que traria ínsito, conclui-se ali, que o acto de autoliquidaçao seria ilegal. Conclusão esta que, quanto a nós, não é passível de retirar-se nos presentes autos. Pelo já exposto.

 

Não poderá, desde logo assim contextualizado, como terá que o ser, o Tribunal ir conhecer do mérito (do vício de lei quanto ao acto de autoliquidação) e, mais, em primeira mão ir apreciar daquilo que a Administração previamente não apreciou. Parece-nos. A Administração não apreciou ainda, diga-se, da legalidade do acto de autoliquidação de que nos autos se fala.

 

E, diga-se também, nos autos só dispomos - com referência ao dito acto de autoliquidação – de alegações da Requerente. Nada mais tendo sido aportado aos autos a esse respeito. Nem a documentação que juntou se destina a fazer (nem faz) prova a esse respeito, nem a Requerente sequer se propôs fazer tal prova. A documentação junta limita-se aos articulados interpostos pela ora Requerente nos dois procedimentos administrativos e, bem assim, aos despachos de indeferimento emitidos nesses procedimentos. No mais, consta apenas a Declaração Periódica, de substituição, do período 2008/12, submetida pela Requerente a 04.02.2011.

 

A competência do Tribunal é de conhecimento oficioso, questão de Ordem Pública que precede o conhecimento de todas as outras. Da competência do Tribunal, como pressuposto processual que é, depende a possibilidade e o dever do juíz de se pronunciar sobre a procedência ou improcedência do pedido. Estabelece o art.º 13.º do ETAF , quanto ao conhecimento da competência e do âmbito da jurisdição, que “O âmbito da jurisdição administrativa e a competência dos tribunais administrativos em qualquer das suas espécies, é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria”. Dispõe, por sua vez, o CPC - art.º 96.º, al. a) - que a infracção das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal, e quanto ao respectivo regime de arguição - art.º 97.º, n.º 1 - que a mesma pode ser arguida pelas partes e deve ser suscitada oficiosamente pelo Tribunal. A incompetência absoluta do tribunal constitui excepção dilatória (cfr. art.º 577.º, al. a) do CPC). As excepções dilatórias obstam a que o Tribunal conheça do mérito da causa, conduzem à absolvição da instância  (cfr. art.º 576.º, n.º 2) e são de conhecimento oficioso (cfr. art.º 578.º).

Afigura-se-nos verificar-se a excepção em causa, conducente à absolvição da Requerida da instância.

 

E não cremos, por outro lado, que pelo Diploma legal que veio permitir a migração dos processos para a Arbitragem fique invalidado o que antecede. Pois que também ali na acção judicial então pendente o Tribunal viria ainda, supõe-se, a apreciar da mesma excepção, tendo em vista o art.º 97.º do CPPT já referido. Como inclusive suscitado na Contestação pela Requerida.

 

Em todo o caso, e a terminar, ainda se refira.

Ao que se viu, a mesma autoliquidação é objecto de outro processo de impugnação (que versará sobre a liquidação correctiva emitida pela Requerida pela qual se volta a considerar a percentagem ser de 6%).

Para conhecer do vício de violação de lei da autoliquidação, parece-nos, carecia-se de matéria de facto aqui não consolidada.

A autoliquidação que se decide anular não foi, antes, apreciada pela Administração.

É o Tribunal quem aqui, neste contexto, pela primeira vez a aprecia.

Na Portaria de Vinculação a entidade Requerida expressamente delimitou a sua vinculação neste tipo de actos àqueles precedidos por apreciação Administrativa, como vimos.

 

Sempre haveria, parece-nos, em qualquer caso, ainda se diga, falta de condições de procedência do pedido, de anulação do acto de autoliquidação, por não provado o vício. Recorde-se que estamos a tratar de direito à dedução, direito que a Requerente pretende ver-lhe reconhecido, e que assim lhe competia provar. E que, em todo o caso, não resulta quanto a nós provado nos presentes autos.

 

Sofia Ricardo Borges