Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 784/2020-T
Data da decisão: 2021-07-17  IRS  
Valor do pedido: € 1.048,99
Tema: IRS – Regime simplificado – Coeficientes – Prestações de Serviços
Versão em PDF

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I. RELATÓRIO

 

                1. A..., contribuinte n.º..., com residência na ..., n.º..., ...,  ..., ..., veio, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 10.º, n.º 2, todos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), e do artigo 11.º, n.º 2, do Decreto Lei n.º 81/2018, de 15 de outubro, e após indeferimento de reclamação graciosa,  requerer a constituição de tribunal arbitral, com vista à declaração de ilegalidade da liquidação de IRS n.º 2020..., relativa aos rendimentos auferidos em 2019.

 

1.1.  O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 29 de dezembro de 2020.

1.2. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como o signatário como árbitro, nomeação aceite dentro do prazo legal.

1.3. Notificadas as partes dessa designação, não manifestaram vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

1.4. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação dada pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral foi constituído no dia 21 de maio de 2021.

1.5. Prolatado o despacho determinado pelo artigo 17.º, n.º 1, do RJAT, na redação dada pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, a Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou Resposta e juntou o Processo Administrativo.

1.6. Tendo, na Resposta, sido invocada a incompetência do CAAD e a errada indicação do valor da causa, determinou-se, por despacho de 15 de junho de 2021, a notificação do Requerente para exercício do direito ao contraditório.

1.7. O Requerente respondeu por requerimento de 17 de junho de 2021.

1.8. Na sequência, foi lavrado despacho dispensando a realização da reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e a produção de alegações, fixando-se o dia 15 de. Julho como data provável de prolação da decisão.

 

2. O tribunal arbitral foi regularmente constituído, ex vi o disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT.

 

3. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas, como determinado pelos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, não enfermando o processo de quaisquer nulidades.

 

 

 

II. Fundamentação

 

 

4. Matéria de facto

4.1. Factos Provados

Com interesse para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

4.1.1. O Requerente é árbitro de futebol, integrando o quadro de árbitros da Federação Portuguesa de Futebol.

4.1.2. O Requerente declarou em 19 de março de 2016 reinício de atividade, ficando abrangido pelo Regime Simplificado.

4.1.3. Em 28 de julho de 2017, o Requerente procedeu à alteração da sua atividade para “outras atividades desportivas” – CAE n.º 93192.

4.1.4. No dia 14 de abril de 2020, o Requerente apresentou a declaração Modelo 3 de IRS, tendo procedido ao preenchimento do Anexo B, referente aos “Rendimentos de Categoria B – Regime Simplificado”.

4.1.5. No quadro 3A do referido anexo, campo 08 – Código CAE (Rendimentos Profissionais, Comerciais e Industriais) –, o Requerente inseriu o Código 93192, “outras atividades desportivas”.

4.1.6. Nessa declaração, o Requerente fez constar do quadro 4A – Campo 404 – o valor de 11 342,68 €, a título de “rendimentos de prestações de serviços não previstos nos campos anteriores”.

4.1.7. A declaração apresentada foi selecionada para análise de divergências e o Requerente foi notificado para corrigir a sua declaração de IRS.

4.1.8. Em 7 de julho de 2020, o Requerente apresentou declaração de substituição, da qual fez constar, no quadro 4A do campo 403 do Anexo B – Rendimentos de atividades profissionais especificamente previstas na tabela do artigo 151.º do Código do IRS –, rendimentos no valor de 11 342,68 €, que eliminou do campo 404 da declaração.

4.1.9. Em 8 de julho de 2020, foi emitida a liquidação n.º 2020..., dela constando valor a reembolsar de 1 504,92 €.

4.1.10. Em 17 de agosto de 2020, o Requerente deduziu reclamação graciosa, discordando do enquadramento dos rendimentos da arbitragem de futebol no âmbito dos rendimentos de prestações de serviços previstos na tabela a que se refere o artigo 151.º do Código do IRS.

4.1.11. Por despacho de 19 de outubro de 2020, o Requerente foi notificado da decisão de indeferimento dessa reclamação.

 

4.2. Factos não provados

Não há factos relevantes para decisão da causa que não se tenham provado.

 

4.3. Motivação da matéria de facto

Considerando o disposto nos artigos 596.º, n.º 1 e 607.º, n.os 2 a 4, ambos do Código de Processo Civil (por remissão do disposto no artigo 29.º, n.º 1, do RJAT), incumbe ao Tribunal o dever de selecionar a matéria de facto pertinente para a decisão judicativa, tomando em consideração a causa de pedir que sustenta a pretensão dos Requerentes.

No caso sub judice, a decisão sobre os factos provados e não provados radicou, segundo o princípio da livre apreciação da prova, no acervo documental presente nos autos e, bem assim, na alegação de factos cuja verificação não foi controvertida, questionada ou posta em causa.

 

5. Matéria de direito

5.1. Questões Prévias

5.1.1. Incompetência do Tribunal

Na sua Resposta, a Requerida invoca a “incompetência do Tribunal em razão da matéria e da Hierarquia”, estribando-se na seguinte motivação:

“(...)

15.

O Requerente solicita a constituição do Tribunal Arbitral com vista à obtenção da declaração de ilegalidade da liquidação de IRS do ano de 2019, em virtude do enquadramento efetuado pela Administração Tributária, dos rendimentos da categoria B auferidos na atividade de árbitro de futebol e observador de futebol pelo Requerente, no campo 403, do quadro 4 do anexo B.

16.

Da leitura do requerimento inicial e documentos anexos, conclui-se que o pedido em apreço se reconduz a um pedido de decisão arbitral que determine que os rendimentos da atividade de árbitro mencionados na declaração modelo 3 de IRS, no anexo B, quadro 4 A sejam inscritos no campo 404.

17.

O artigo 13.º do CPTA, conjugado com o artigo 18.º do CPPT e com o artigo 101.º e seguintes do CPC estabelecem que a infração das regras de competência em razão da matéria e da hierarquia determinam a incompetência absoluta do tribunal.

18.

A incompetência absoluta pode ser arguida pelas partes e deve ser suscitada pelo tribunal em qualquer estado do processo, enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa.

19.

O âmbito da jurisdição arbitral tributária encontra-se delimitado pelo disposto no artigo 2.º do RJAT que, no seu n.º 1.º, estabelece os critérios de repartição material.

20.

Assim, nos termos do artigo 2.º do RJAT a competência dos tribunais arbitrais restringe-se à:

             declaração de ilegalidade de atos tributários de liquidação, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamentos por conta;

             declaração de ilegalidade de atos de determinação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de determinação da matéria coletável e de fixação de valores patrimoniais.

21.

A competência do tribunal determina-se pelo pedido do autor e da causa de pedir em que o mesmo se apoia, expressos na petição inicial, não dependendo nem da legitimidade das partes, nem da procedência da ação, constituindo a violação das regras de competência absoluta do tribunal em razão da matéria, exceção dilatória.

22.

Verificando-se tal exceção fica imediatamente prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas pelos requerentes na petição inicial e implica a absolvição da entidade demandada.

23.

No caso em apreciação, o ato objeto do litígio não pode ser qualificado como um ato de fixação da matéria tributável que dá origem à liquidação de tributo para efeitos da alínea b), do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT.

24.

O que se confronta aqui é o enquadramento dos rendimentos da atividade de árbitro da categoria B no campo 403 e não no campo 404, como o Requerente pretende.

25.

O ato sindicado não integra o elenco potencial dos atos de fixação de matéria tributável ou matéria coletável na medida em que não aplica um conjunto de fatores, objetivos ou subjetivos, que conduzam à liquidação do correspondente tributo, localizando-se, antes, a “montante” da fixação da matéria tributável.

26.

O Requerente pretende a declaração de ilegalidade da decisão da Administração Tributária de alteração do enquadramento dos rendimentos da categoria B, da atividade de árbitro de futebol.

27.

Este procedimento de “enquadramento fiscal” sendo prejudicial relativamente ao “ato de liquidação” propriamente dito, não se confunde, no entanto, com o ato de fixação da matéria tributável.

28.

O pedido tão só́ concretiza a declaração de erro da Administração Tributária no enquadramento dos rendimentos no campo 403 e não no campo 404, o que, tendo em conta a matéria a sindicar, não é suscetível de resolução por via arbitral.

29.

O meio próprio para impugnar estes atos, que não comportam a apreciação da legalidade de atos de liquidação e que também não são atos de fixação da matéria tributável ou da matéria coletável não é a impugnação judicial, mas sim a ação administrativa especial (alínea p), do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT e artigo 37.º e seguintes do CPTA).

30.

Estamos perante um ato da administração tributária que não integra os atos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, pelo que, deve o Tribunal Arbitral julgar procedente a exceção invocada de incompetência absoluta do foro arbitral, em razão da matéria e, em consequência, rejeitar o pedido de pronúncia arbitral, absolvendo a AT da instância.

(...)”.

 

Notificado para se pronunciar sobre a matéria da exceção, o Requerente contraditou o entendimento da Autoridade Tributária e Aduaneira pugnando pela inexistência de qualquer vício determinante da incompetência do Tribunal.

A matéria da exceção concretamente em causa nos presentes autos tem sido equacionada de forma recorrente em diversos processos em que se discute matéria análoga – cf., entre outros, os Processos n.os 886/2019-T, 22/2020-T, 28/2020-T, 55/2020-T – tendo aí sido julgada improcedente por estar em causa a impugnação de um ato de liquidação de imposto integrável na esfera de delimitação de competência recortada pelo artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT. Tal juízo decisório não merece censura: com efeito, a questão do enquadramento e qualificação fiscal de um rendimento em sede de liquidação constitui matéria de interpretação e aplicação da lei, passível de fundamentar a impugnação do ato de liquidação, tal como sucede no caso sub judicio, pelo que a questão relativa à legalidade da aplicação do disposto no artigo 31.º do Código do IRS consubstancia um problema que contende com a legalidade da liquidação, sendo que o mesmo fundamento idóneo de impugnação daquela, vigorando o princípio da impugnação unitária.

Improcede, assim, a invocada incompetência deste Tribunal Arbitral.

 

5.1.2. Valor do pedido

A Requerida contesta igualmente o valor do processo atribuído pelo Requerente, sustentando que o mesmo deve ser fixado pelo valor de 1 504,92 €, por ser esse, no seu entendimento, o valor que resulta da liquidação cuja anulação se peticiona e não o valor de 1 048,99 €, correspondente ao que acresceria ao valor da liquidação enquanto montante adicional de reembolso na procedência do pedido.

De acordo com o artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, quando esteja em causa a impugnação de atos de liquidação, o valor da causa deve corresponder ao da “importância cuja anulação se pretende”. Tal como se explicitou na decisão proferida no Processo n.º 49/2020-T, esse valor “não tem que corresponder literal e necessariamente ao valor constante da liquidação, podendo antes abranger, além deste, como sucede no caso concreto, o valor respeitante ao imposto em causa que já tenha sido pago e se considere passível de reembolso no caso de procedência da ação. Assim é, desde logo, porque esse reembolso só terá lugar se a anulação se reportar, nos seus efeitos, também ao montante que já tenha sido pago por conta do imposto, por via da reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, nos termos previstos no artigo 100.º da LGT. Esta interpretação é a que melhor se adequa à referência feita na alínea e) do n.º 2 do artigo 10.º, do RJAT, à ‘indicação do valor da utilidade económica do pedido’, como um dos requisitos do pedido de constituição do tribunal arbitral a apresentar pela Requerente, referência essa que pode ser legitimamente interpretada como ‘uma definição (ainda que apenas ligeiramente) mais detalhada do conceito do valor do pedido constante do artigo 5.º’ do RJAT”.

De acordo com tal critério, o valor do processo deve ser fixado em 2 553,91 €, correspondente ao montante que o Requerente considera ser-lhe devido em sede de reembolso de IRS face à anulação da liquidação.

 

5.2. Questão decidenda

A questão material controvertida nos autos prende-se com saber se os rendimentos auferidos no exercício, por conta própria, da atividade de árbitro estão abrangidos pelo coeficiente previsto no artigo 31.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRS, para efeitos de determinação da matéria coletável de acordo com o regime simplificado.

Vejamos.

 

5.3. Fundamentos jurídicos

5.3.1. Regime Simplificado e coeficientes

Na sua redação originária, a determinação da matéria tributável no âmbito do regime simplificado estava associada à aplicação dos indicadores objetivos de atividade de base técnico-cientítica, cuja entrada em cena no sistema fiscal português constou dos artigos 87.º, alínea c), e 89.º da LGT.

Com esse regime, o legislador apontava a uma predeterminação da matéria tributável, construída sob as vestes de um rendimento normal que se substituía ao rendimento efetivamente obtido pelo sujeito passivo.

A inexistência desses indicadores e a vontade de promover uma simplificação da determinação dos rendimentos líquidos da Categoria B levaram o legislador à criação de um regime transitório no âmbito do qual tais rendimentos seriam determinados por aplicação de coeficientes. Assim, enquanto que, no artigo 31.º, n.º 1, do Código do IRS, o legislador dispunha que “[a] determinação do rendimento tributável resulta da aplicação de indicadores objetivos de base técnico-científica para os diferentes sectores de atividade”, no n.º 2 esclarecia-se que “[a]té à aprovação dos indicadores mencionados no número anterior, ou na sua ausência, o rendimento tributável é o resultante da aplicação do coeficiente de 0,20 ao valor das vendas de mercadorias e de produtos e do coeficiente de 0,65 aos restantes rendimentos provenientes desta categoria, excluindo a variação de produção, com o montante mínimo igual a (euro) 3125”.

Esta construção manteve-se até à reforma da tributação das pessoas singulares promovida pela Lei n.º 82-E/2014, de 31 de dezembro, a partir da qual deixou de prever-se a determinação simplificada com base em indicadores e a “conversão” em modelo próprio do outrora “transitório” regime simplificado, desenvolvendo-se o elenco dos coeficientes previstos.

Significa esta evolução que o legislador deixou de ter a pretensão de determinar globalmente o rendimento tributável de acordo com uma predeterminação normativa e limitou a relevância do regime simplificado à componente negativa da matéria tributável em que os custos são parametrizados por interferência de um coeficiente aplicável ao valor ilíquido dos rendimentos: não se trata, aqui, de estabelecer um limite à relevância de custos realmente verificados, nem de limitar qualitativamente os gastos suscetíveis de relevarem como tal, mas apenas de fixar invariavelmente através de um coeficiente a componente negativa do rendimento tributável numa relação percentual face aos rendimentos ilíquidos obtidos – cf., sobre a predeterminação de custos, LORIS TOSI, Le predeterminazioni normative nell’imposizione reddituale – Contributo alla trattazione sistematica dell’imposizione su basi forfettarie, Milão, 1999, pp. 174-220.

                Enquanto elementos de determinação do rendimento líquido, e não obstante o regime simplificado não ter natureza obrigatória, os coeficientes devem ser estabelecidos com base numa racionalidade que considere a sua adequação finalística e funcional, designadamente, fazendo variar o seu valor consoante a tipologia de rendimentos em função da sua origem uma vez que, de acordo com o il quod plerumque accidit, o peso dos custos na obtenção do rendimento não será similar em todas as atividades geradoras de rendimentos da Categoria B.

                Essa preocupação esteve logo presente na construção inicial do regime, distinguindo-se entre as vendas de mercadorias e os serviços prestados no âmbito de atividades hoteleiras e similares, restauração e bebidas, a que se aplicava o coeficiente 0,20, e os demais rendimentos aos quais se aplicaria o coeficiente 0,65.

                Em momentos sucessivos, o legislador afinou ainda mais a dinâmica dos coeficientes, diferenciando entre diferentes tipologias de rendimentos. No caso dos rendimentos decorrentes de prestações de serviços, o legislador, para além das prestações de serviços efetuadas no âmbito de atividades hoteleiras e similares, restauração e bebidas, com exceção do alojamento local, considerou de forma diferenciada os rendimentos “das atividades profissionais especificamente previstas na tabela a que se refere o artigo 151.º”, aos quais se aplica o coeficiente 0,75 (alínea b) do n.º 1 do artigo 31.º do Código do IRS), e rendimentos de outras prestações de serviços, “não previstos nas alíneas anteriores”, para os quais se encontra previsto o coeficiente 0,35 (alínea b) do n.º 1 do artigo 31.º do Código do IRS), tornando necessária a prospeção interpretativa-aplicativa subjacente à qualificação e integração dos rendimentos nas referidas alíneas.

 

5.3.2. Coeficiente aplicável aos rendimentos auferidos no exercício, por conta própria, da atividade de árbitro de futebol

Não é pacífica a jurisprudência deste Centro de Arbitragem sobre esta matéria: nos Processos n.os 510/2017-T, 704/2019-T, 829/2019-T, 22/2020-T e 421/2019-T – aqui após procedência de recurso para uniformização de jurisprudência –, entre outros, decidiu-se os rendimentos circunstancialmente em causa não se encontram abrangidos pelo coeficiente previsto no artigo 31.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRS, porquanto a atividade de árbitro não se encontra prevista na tabela de atividades a que se refere o artigo 151.º do Código do IRS; nos Processos n.os 421/2019-T, 750/2019-T, 886/2019-T, 55/2020-T, entre outros, decidiu-se em sentido oposto, considerando-se que “o árbitro deve ser considerado um desportista”, o que determinaria a inclusão dessa atividade sob respaldo da referida tabela e coeficiente.

Sobre a matéria, decidiu o Supremo Tribunal Administrativo, em acórdão de 9 de dezembro de 2020, tirado em recurso de uniformização de jurisprudência, que “não constando a atividade de árbitro especificamente prevista na tabela a que se refere o artigo 151.º do Código do IRS, não lhe poderá ser aplicável o artigo 31.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRS”.

Esse juízo foi prolatado com base nos fundamentos que infra se transcrevem:

“[...]

O artigo 31.º do Código do IRS prevê os coeficientes aplicáveis para a determinação do rendimento tributável dos Sujeitos Passivos tributados ao abrigo do regime simplificado em IRS. Nos presentes autos, discute-se qual desses coeficientes é aplicável ao Recorrente marido por referência aos rendimentos obtidos enquanto árbitro de futsal no ano fiscal de 2017.

A este respeito, importa começar por referir que em matéria de incidência tributária e de aplicação de taxas de tributação não há, por definição, lacunas. Mercê do especial vigor que o princípio da legalidade assume neste domínio na sua vertente de tipicidade tributária (artigo 103.º n.º 2 da Constituição), as taxas de tributação apenas podem ser utilizadas nas situações que concretamente se insiram na previsão da norma aplicável. A integração analógica encontra-se vedada nestas matérias mercê do princípio constitucional da legalidade, sendo a afirmação concordante do legislador ordinário nesse sentido mero corolário daquela norma constitucional (vide, a este respeito, o n.º 4 do artigo 11.º da Lei Geral Tributária).

Não se encontra, porém, constitucionalmente vedada a possibilidade de interpretação extensiva, pelo que se se concluir que a letra da lei se quedou aquém do seu espírito, haverá que adequar a letra ao respectivo espírito por via da interpretação extensiva (sobre a interpretação extensiva na doutrina tradicional, pressuposta pelo nosso legislador, cfr. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 13.ª reimpressão, Coimbra, Almedina, 2002, pp. 185/186).

Pressuposto para assim operar é, contudo, a demonstração de que o legislador minus dixit quam voluit, in casu, que quando o legislador se refere a Desportistas no Código 1323 da tabela do artigo 151.º do Código do IRS quer abarcar não apenas os desportistas em sentido estrito mas, também, outras actividades profissionais incluídas na actividade desportiva, como é o caso dos árbitros.

Senão, vejamos.

Com a Lei do Orçamento do Estado para 2014 (Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro), que entrou em vigor a 1 de Janeiro desse ano, os coeficientes aplicáveis aos rendimentos resultantes do exercício de actividades profissionais passaram a estar indexados ao exercício das actividades profissionais previstas na tabela de actividades do artigo 151.º do Código do IRS, prevendo-se no n.º 2 do artigo 31.º desse mesmo Código, e na parte que aqui nos interessa, a aplicação do coeficiente de 0,75 aos “rendimentos das atividades profissionais constantes da tabela a que se refere o artigo 151.º” e o coeficiente de 0,10 aos “subsídios destinados à exploração e restantes rendimentos da categoria B não previstos nas alíneas anteriores” (nosso sublinhado).

Com a republicação do Código do IRS operada pela Lei n.º 82-E/2014, de 31 de Dezembro, que entrou em vigor a 1 de Janeiro de 2015, a redacção do artigo 31.º daquele Código foi alterada, passando a prever-se no respectivo n.º 1 a aplicação de um coeficiente de “0,75 aos rendimentos das atividades profissionais especificamente previstas na tabela a que se refere o artigo 151.º” (nosso sublinhado).

Portanto, a partir de 2015, o legislador fiscal passou a prever expressamente que o coeficiente de 0,75 apenas pode ser aplicado às actividades profissionais especificamente previstas na tabela do artigo 151.º do Código do IRS. Assim, e presumindo que o legislador fiscal soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (tal como resulta do disposto no n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil, aplicável ex vi alínea d) do artigo 2.º da Lei Geral Tributária), não se pode senão concluir que o coeficiente de 0,75 só pode ser aplicado às actividades concreta e indubitavelmente previstas naquela tabela, aplicando-se o coeficiente residual de 0,35 às actividades aí não especificamente previstas.

Percorrido o elenco da tabela do artigo 151.º do Código do IRS, não se vislumbra a referência específica à actividade profissional de árbitro de desportos. Contudo, e como vimos já, é entendimento da decisão arbitral recorrida que a actividade profissional de árbitro de futsal se subsume “de forma natural, imediata e logicamente transparente, ao conceito de Desportista, da Tabela de atividades do artigo 151.º do CIRS, Anexo I”. Mas sem razão.

A actividade profissional de desportista está incluída no Grupo 3421 – Atletas e Desportistas de Competição da Classificação Portuguesa das Profissões (editada em 2010 pelo Instituto Nacional de Estatística, I.P.), prevendo-se no sub-grupo 3421.3 – Outros atletas e desportistas de competição (que não sejam especificamente futebolistas e ciclistas) que a actividade de desportista compreende as seguintes tarefas e funções:

· “Executar exercícios físicos adequados e complementares à respectiva modalidade, individualmente ou por orientação do treinador, a fim de desenvolver e manter o rendimento máximo das suas aptidões físicas;

· Treinar individualmente ou em grupo para melhorar a técnica e tácticas a adoptar;

· Participar, individualmente ou como membro de uma equipa, em competições ou exibições de uma determinada modalidade desportiva;

· Cumprir regras e pôr em prática as orientações do treinador”.

Por sua vez, a actividade profissional de árbitro (juíz) de desportos encontra-se prevista no Código 3422.2 daquela Classificação Portuguesa das Profissões, incluindo a realização das seguintes funções:

· “Dirigir encontros desportivos, aplicar as respectivas leis e velar pela sua observância

· Verificar se o local das provas apresenta as condições requeridas e identificar os participantes, certificando-se se têm autorização de participação

· Estabelecer, antes dos encontros, com os auxiliares a coordenação que deve existir entre eles para uma boa observação dos lances

· Dar início, na hora determinada, aos encontros e cronometrar o tempo de jogos

· Vigiar o desenrolar do encontro e aplicar as penalidades correspondentes às infracções cometidas e assinalar os golos ou pontos marcados

· Participar superiormente faltas graves dos atletas ou dirigentes e elaborar relatórios dos encontros arbitrados”.

E assim é.

O envolvimento e a importância dos árbitros para a realização dos eventos desportivos não pode ser considerada como factor determinante para julgar que tais profissionais são, eles próprios, desportistas, sob pena de terem de ser considerados como desportistas todos quanto estão envolvidos no fenómeno desportivo: não só os árbitros, mas também os médicos, os dirigentes, os empresários, e outros agentes desportivos previstos na Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto (Lei n.º 5/2007, de 16 de Janeiro). Com efeito, mais do que o envolvimento no fenómeno desportivo e a qualificação como agente desportivo, o que releva para incluir um determinado profissional na tabela do artigo 151.º do Código do IRS é a actividade concreta e especificamente por ele exercida. Tal como reconhece a Recorrida nas suas contra-alegações, “a aplicação dos coeficientes para determinação do rendimento tributável de serviços prestados, em sede de categoria B com aplicação das regras do regime simplificado, efetua-se pela verificação da atividade REALMENTE e ESPECIFICAMENTE exercida”.

Não se podendo negar a preparação e destreza física exigida a um árbitro de futsal (encontrando-se naturalmente previsto o respectivo acesso à medicina desportiva nos termos do artigo 40.º n.º 4 da Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto), nem a sua relevância para a realização dos eventos desportivos desse desporto, tais circunstâncias não são suficientes para considerar o árbitro como um desportista. A função do árbitro é muito clara: dar início e cronometrar o jogo, verificar as condições para a sua realização, identificar os participantes, dirigir e ajuizar o encontro. A sua função não é a de competir em conjunto os demais elementos da sua equipa e contra a equipa adversária, cumprindo as regras impostas pelo treinador e obedecendo aos critérios definidos pelo juiz do jogo (v.g., o próprio árbitro).

De maneira que, tal como resulta da alínea a) do probatório fixado na sentença recorrida, o Recorrente marido declarou o “seu início de atividade no dia 30-05-2016, no Código CAE 93192 – Outras Atividades Desportivas, N.E., tendo optado pelo regime simplificado para efeitos de tributação em sede de IRS dos seus rendimentos da categoria B. (cfr. documento n.º 2.)”. Portanto, na sua declaração de actividade, o Recorrente marido não se enquadrou no Código 1323 – Desportistas da tabela do artigo 151.º do Código do IRS mas, alternativamente, na Classificação das Actividades Económicas Portuguesas por Ramos de Actividade (CAE) 93192 – Outras Atividades Desportivas, N.E., que compreende diversas actividades desportivas não particularmente especificadas noutros CAE, como é o caso dos “ produtores e promotores de acontecimentos desportivos com ou sem instalações; promoção de eventos desportivos; atletas, árbitros, cronometristas e de outros desportistas independentes; estábulos, canis e garagens, relacionados com a actividade desportiva; apoio à pesca e caça recreativas e desportivas; e dos guias de montanha. Inclui a gestão de zonas de caça e pesca”.

Assim, e por não considerar as suas funções profissionais como subsumíveis no conceito estrito de Desportista, o Recorrente marido enquadrou-se no ramo mais amplo de actividade desportiva não especificada, previsto no CAE 93192. E assim o fez em cumprimento do disposto no artigo 151.º do Código do IRS, que prevê precisamente que “as actividades exercidas pelos sujeitos passivos do IRS são classificadas, para efeitos deste imposto, de acordo com a Classificação das Actividades Económicas Portuguesas por Ramos de Actividade (CAE), do Instituto Nacional de Estatística, ou de acordo com os códigos mencionados em tabela de actividades aprovada por portaria do Ministro das Finanças” (nosso sublinhado).

Como tal, não se pode concluir pela aplicação do coeficiente de 0,75 ao caso dos autos mas, ao invés, do coeficiente de 0,35, previsto para as actividades profissionais não especificamente previstas na tabela do artigo 151.º do Código do IRS. E sem que isso viole o princípio da igualdade e da capacidade contributiva, porque já se demonstrou que não é curial proceder a uma interpretação extensiva da actividade profissional de desportista na medida em que as funções e tarefas exercidas por um árbitro não se incluem concretamente nesse conceito. Sem esquecer que é o próprio legislador que, no artigo 48.º da Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto, prevê que “o regime fiscal para a tributação dos agentes desportivos é estabelecido de modo específico e, no caso dos praticantes desportivos, de acordo com parâmetros ajustados à natureza de profissões de desgaste rápido” (nosso sublinhado).

Tudo quanto justifica o provimento do recurso, uniformizando-se jurisprudência no sentido de não constando a atividade de árbitro especificamente prevista na tabela a que se refere o artigo 151.º do Código do IRS, não lhe poderá ser aplicável o artigo 31.º, n.º 1, alínea b) do Código do IRS.

[...]”.

 

Pela bondade jurídica da fundamentação supra transcrita, aqui se reitera a argumentação vertida no aresto do STA, concluindo-se pela procedência do pedido de pronúncia arbitral.

 

6. Decisão

 

Destarte, atento o exposto, este Tribunal Arbitral decide:

a)            Julgar improcedente a exceção de incompetência invocada pela Requerida;

b)           Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, anulando-se a decisão de indeferimento da reclamação graciosa e a liquidação de IRS n.º 2020...;

c)            Condenar a Requerida ao pagamento das custas processuais.

 

7. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, e com os fundamentos referidos spura, atribui-se ao processo o valor de 2 553,91 €.

 

8. Custas

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em  612,00 €, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.

 

Lisboa, 17 de julho de 2021,

 

João Pedro Rodrigues

 

Notifique-se.