DECISÃO ARBITRAL
I – RELATÓRIO
1. No dia 22 de Dezembro de 2020, A..., portador do cartão de cidadão n.º ..., com residência na Rua ..., n.º..., ..., em ..., e número de identificação fiscal n.º ... (doravante Requerente), apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante, abreviadamente designado RJAT), com as alterações subsequentes, e da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
1.1. Pretende o Requerente a pronúncia deste Tribunal Arbitral sobre:
- A declaração de ilegalidade da liquidação de Imposto sobre Veículos (ISV) n.º 2020/..., de 23 de Setembro de 2020, no montante de € 9.178,14, consubstanciada na Declaração Aduaneira de Veículo (DAV) n.º 2020/..., datada de 26 de Setembro de 2020 e respectiva anulação parcial;
- A condenação da AT na restituição do montante indevidamente pago acrescido do pagamento dos juros indemnizatórios devidos nos termos do artigo 43.º da Lei Geral Tributária (LGT).
1.2. É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”.
2. O pedido de constituição de Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação com a notificação da AT, em 29 de Dezembro de 2020.
3. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o signatário como árbitro do Tribunal Arbitral, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
3.1. Em 3 de Maio de 2021, as Partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas b) e c), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
3.2. Assim, em conformidade com o preceituado do artigo 11.º, n.º 1, na alínea c) do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 21 de Maio de 2021.
4. O Requerente sustenta, no essencial, o pedido de pronúncia arbitral na ilegalidade do artigo 11.º do Código do Imposto Sobre Veículos (ISV), por violação do artigo 110.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE), alegadamente por não ter sido considerada a percentagem de redução devida pelo tempo de uso dos veículos quanto à componente ambiental, sustentando, a anulação na parte da liquidação referente a esta componente.
4.1. Defende o Requerente a aplicação à componente ambiental da mesma percentagem de redução que foi aplicada à componente cilindrada, no caso de 80%, requererendo a anulação parcial da liquidação de ISV, bem como o pagamento de juros indemnizatórios.
5. No dia 13 de Junho de 2021, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua Resposta, tendo remetido, na mesma data, a este Tribunal Arbitral cópia do processo administrativo.
5.1. A defesa da AT por impugnação, expressa na Resposta e nas alegações, pode ser sintetizada no seguinte:
a) Entende a AT que não assiste razão ao Requerente porquanto, tratando-se de veículos ligeiros de passageiros, usados, movidos a gasóleo, com emissão de gases CO2, os serviços aduaneiros efectuaram o cálculo do imposto devido, por aplicação da tabela A prevista no artigo 7.º, n.º 1, alínea a) do Código do ISV com a redução por anos de uso prevista na tabela D no n.º 1 do artigo 11.º do Código do ISV para a componente cilindrada.
b) Com efeito, defende a AT que o Requerente põe em causa, não a liquidação, mas a redacção do artigo 11.º do Código do ISV, à data da liquidação.
c) Não obstante a alteração ao artigo 11.º do Código do ISV tenha surgido após o acórdão proferido no Processo n.º C- 200/15 do TJUE, este não se pronuncia, em concreto, sobre a matéria em causa, designadamente quanto à questão da percentagem de redução de ISV aplicável a veículo usado incidir apenas sobre o elemento específico de tributação (cilindrada), e não sobre a componente ambiental do ISV, limitando-se aquele a analisar a questão da determinação do valor tributável dos veículos usados provenientes de outro Estado-Membro, introduzidos no território nacional, no sentido de afirmar que um sistema relativo ao cálculo da desvalorização dos veículos que não tem em conta a sua desvalorização antes destes atingirem um ano, nem a desvalorização que seja superior a 52% no caso de veículos com mais de cinco anos, não cumpre as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º do TFUE.
d) O modelo de tributação do ISV, resultante da aprovação do Código do ISV pela Lei n.º 22-A/2007, de 29 de Junho, foi norteado por preocupações ambientais com respeito pelas diretrizes emanadas pelas instâncias comunitárias e pelos compromissos assumidos no âmbito do Protocolo de Quioto e, mais tarde, pelo Acordo de Paris.
e) Acrescendo que o estabelecido no artigo 191.º do TFUE, tendo surgido depois do artigo 90.º do TCE (anterior 110.º do TFUE), exige que se proceda a uma interpretação actualista, no que concerne ao enquadramento da questão sub judice, que deve atender aos elementos sistemático e teleológico, porquanto, naquele dispositivo, afirma-se, expressamente, no n.º 1, que a política da União, no domínio do ambiente, contribuirá para a prossecução, entre outros, da preservação, da proteção e a melhoria da qualidade do ambiente, não podendo o artigo 110.º do TFUE ser interpretado nos termos defendidos pelo Requerente.
f) Assim, a interpretação do artigo 110.º do TFUE deve ser efectuada à luz do disposto no artigo 191.º do mesmo Tratado, sob pena de conflitualidade e desarmonia entre as duas normas, a não ser que o TJUE, em sede de interpretação, venha defender a existência de tal violação e que a norma do artigo 110.º do TFUE tem valor superior ao previsto no artigo 191.º quanto à proteção e a melhoria da qualidade ambiental.
g) A alteração ao artigo 11.º do Código do ISV encontra-se, assim, também, em consonância com o disposto no artigo 1.º do mesmo Código, que consagra o “princípio da equivalência”, nos termos do qual o Imposto sobre Veículos procurado onerar os sujeitos passivos na medida dos custos que estes provocam nos domínios do ambiente, infraestruturas viárias e sinistralidade rodoviária, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária.
h) Assim, em nome da unidade e da coerência do modelo de tributação automóvel vigente em Portugal, a não aplicação da totalidade da componente ambiental aos veículos usados violaria os princípios suprarreferidos, tornando-se fonte de graves injustiças, já que beneficiaria claramente os veículos usados em detrimento dos novos, sem que para tal se encontrem razões válidas, pelo que, destinando-se a componente ambiental a compensar os efeitos nefastos de qualquer redução em função da depreciação comercial ou dos anos de uso do automóvel, dado que o potencial poluidor do automóvel não diminui com a sua idade, muito pelo contrário, agrava-se, a mesma não deve ser objecto de qualquer redução pois representa o “custo de impacte ambiental”, sendo o seu objectivo orientar a escolha dos consumidores para uma maior seletividade na compra dos automóveis, em função do seu grau poluidor.
i) Ora, o disposto no artigo 11.º do Código do ISV não obsta à admissão de veículos usados em território nacional, nem tampouco visa impedir a realização de negócios jurídicos de compra e venda de veículos automóveis pois, diariamente, continuam a ser processadas inúmeras declarações aduaneiras de veículos (DAV) de regularização fiscal de veículos em território nacional, provenientes de outros Estados-Membros.
j) Conclui a AT que a liquidação de ISV em apreço está conforme com a lei e o direito, cumprindo, designadamente, o disposto nos artigos 110.º e 191.º do TFUE, no artigo 66.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e no artigo 11.º do Código do ISV.
6. Por despacho de 14 de Junho de 2021, foram as Partes notificadas da decisão do Tribunal Arbitral de dispensar a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, e convidadas a produzir alegações escritas, tendo sido fixado a data-limite para a prolação da decisão arbitral.
7. As Partes apresentaram alegações escritas, nas quais mantiveram as suas posições.
II – SANEADOR
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objecto do processo (cfr. artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º do RJAT).
O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cfr. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
O processo não enferma de nulidades.
III – FUNDAMENTAÇÃO
III-1. DE FACTO
§1. Factos provados
Com interesse para a decisão a proferir nos presentes autos consideram-se provados os seguintes factos:
a) Em 21 de Setembro de 2020, o Requerente introduziu em Portugal, com origem na República Checa, o veículo automóvel ligeiro de passageiros usado da marca..., modelo..., movido a gasóleo, motor n.º..., n.º de quadro ..., cilindrada 1968 cc, de cor cinzenta, com a matrícula definitiva ..., atribuída em 4 de Janeiro de 2010.
b) Em 26 de Setembro de 2020, o Requerente apresentou junto da Delegação Aduaneira da Figueira da Foz, através de representante indireto, a Declaração Aduaneira de Veículo (DAV) n.º 2020/...para introdução no consumo do veículo, tendo inscrito nos Quadros F e G (referentes à apresentação do veículo e matrículas anteriores), que o mesmo era uma viatura usada proveniente da República Checa, com 112.111 quilómetros percorridos.
c) No Quadro E da referida DAV, consta o valor de 0,0002 g/km (emissão de partículas) e o valor de 158/km (emissão de gases CO2).
d) No Quadro G da referida DAV, consta a data da primeira matrícula atribuída em 4 de Janeiro de 2010.
e) No Quadro R da referida DAV, o cálculo do ISV foi efectuado pela AT com recurso à aplicação da tabela relativa aos veículos ligeiros de passageiros (Tabela A), pelo valor total de € 9.178,14.
f) Ainda no Quadro R da referida DAV, no que respeita à parte do ISV incidente sobre a componente ambiental não foi aplicada qualquer percentagem de dedução.
g) Em 25 de Setembro de 2020, o Requerente procedeu ao pagamento da totalidade do ISV, no montante de € 9.178,14, tendo sido atribuída ao veículo a matrícula portuguesa n.º ... .
h) Em 22 de Dezembro de 2020, o Requerente, apresentou o presente pedido de constituição de tribunal arbitral, peticionando a anulação parcial da liquidação de ISV nos termos peticionados e o pagamento de juros indemnizatórios.
§2. Factos não provados
Com relevo para a apreciação e decisão da causa, não resultam factos não provados.
§3. Fundamentação dos factos provados
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, à face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
No tocante à matéria de facto provada, a convicção do Tribunal Arbitral fundou-se nos factos articulados pelas Partes, cuja aderência à realidade não foi posta em causa, e na análise crítica da prova documental, que consta dos autos, incluindo o processo administrativo.
III- 2. DE DIREITO
§1. Da liquidação do ISV
De acordo com o disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do Código do ISV, estão sujeitos a este imposto, no seu regime regra, nomeadamente, “os veículos automóveis ligeiros de passageiros (…)”, sendo “sujeitos passivos do imposto os operadores registados, os operadores reconhecidos e os particulares (…) que procedam à introdução no consumo dos veículos tributáveis, considerando-se como tais as pessoas em nome de quem seja emitida a declaração aduaneira de veículos” (cfr. artigo 3.º, n.º 1, do Código do ISV).
Nos termos do disposto no artigo 5.º do Código do ISV, “constitui facto gerador do imposto o fabrico, montagem, admissão ou importação dos veículos tributáveis em território nacional, que estejam obrigados à matrícula em Portugal”, sendo que, para este efeito, de acordo com o n.º 3, alínea a), do mesmo artigo, “(…) entende-se por admissão, a entrada de um veículo originário ou em livre prática noutro Estado-Membro da União Europeia em território nacional”.
No que diz respeito à exigibilidade do imposto, de acordo com o disposto no artigo 6.º, n.º 1, alínea b, do Código do ISV, “o imposto torna-se exigível no momento da introdução no consumo, considerando-se esta verificada (…) no momento da apresentação da declaração aduaneira de veículos pelos particulares”, sendo que “a taxa de imposto a aplicar a que estiver em vigor no momento em que este se torna exigível” (cfr. artigo 6.º, n.º 3, do Código do ISV).
Quanto à introdução no consumo, estabelece o artigo 17.º, n.º 1, do referido Código que “a introdução no consumo e a liquidação do imposto são tituladas pela declaração aduaneira de veículos (DAV)”, sendo que nos termos do n.º 3, “para efeitos de matrícula, os veículos automóveis ligeiros (…) ficam sujeitos ao processamento da DAV”.
No que respeita às taxas a aplicar para efeito de cálculo do ISV, estas não incidem sobre o valor do automóvel, mas têm por base os centímetros cúbicos por cilindrada (cm3) (componente cilindrada) e os gramas de CO2 por quilómetro (componente ambiental), sendo que foram estruturadas em taxa normal, taxa intermediária e taxa reduzida e taxa para veículos usados, nos termos do disposto nos artigos 7.º a 11.º do Código do ISV.
No que diz respeito à tributação em sede de ISV, as taxas aplicáveis têm por base tributável uma componente cilindrada e uma componente ambiental, sendo que a primeira componente prevê uma taxa a aplicar consoante a cilindrada e o tipo de veículo e a segunda componente estabelece uma discriminação positiva entre os veículos a gasolina e os veículos a gasóleo, prevendo uma tributação progressiva em função do nível de CO2 g/km.
Com especial relevância para o caso, o artigo 11.º do Código do ISV dispõe sobre o cálculo do ISV devido por veículos usados portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados-Membros da União Europeia, sendo por isso relevante na liquidação do ISV do veículo.
A referida norma, aplicável aos veículos portadores de matrículas comunitárias, com vista a contemplar no cálculo do imposto devido a desvalorização comercial média dos veículos usados, prevê uma redução percentual pelo número de anos de uso do veículo (no caso em apreço, mais de 10 anos, ou seja 80%), mas apenas na componente cilindrada, deixando de lado a componente ambiental.
O que conduz a que a norma em causa, aplicada na liquidação em apreço, preveja uma cobrança de ISV sobre os veículos “importados” de outros Estados-Membros da União Europeia determinado com base em valor superior ao valor real do veículo onerando-os com uma tributação superior à que é aplicada aos veículos usados similares disponíveis no mercado nacional.
A própria Comissão Europeia tem levantado diversas questões sobre a legalidade da carga fiscal incidente sobre os veículos usados em Portugal, tal como o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) tem produzido abundante jurisprudência sobre o tema.
Em 2006, o TJUE analisou a compatibilidade do sistema de tributação automóvel Húngaro com o Direito da União Europeia, no Acórdão do TJUE, de 5 de Outubro de 2006 (C-90/05), no caso Nádasdi, analisando então a questão ambiental face aos impostos automóveis aplicáveis dentro do espaço da União Europeia, acabando por referir que “(...) o sistema fiscal Húngaro ignorava a desvalorização do veículo e tratava de forma igualitária todos os veículos que tivessem a mesma motorização e comportamento ambiental”,
Para terminar declarando que “o artigo 90.º, primeiro parágrafo, CE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a um imposto (…) [que] quando se aplique a veículos usados importados de outros Estados-Membros, ultrapasse o montante do referido imposto contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no Estado-Membro de importação.”,
Com base nesta jurisprudência, a Decisão Arbitral n.º 572/2018-T do CAAD conclui que “(...) no âmbito de um regime fiscal relativo à automóvel, critérios como o tipo de motor, a cilindrada e uma classificação assente em factores ambientais constituem critérios objectivos e possam ser utilizados no sistema de tributação, da sua utilização não poder resultar discriminação e o imposto que vier a ser apurado não poder onerar mais os produtos provenientes de outros EM do que os produtos nacionais similares, implicando que a cobrança por um EM de um imposto sobre os veículos usados provenientes de outro EM é contrária ao artigo 110.º do TFUE quando o montante do imposto, calculado sem tomar em conta a depreciação real do veículo, exceda o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional.”.
Mais acrescentando que “em 2009, interpretando o mesmo artigo 110.º do TFUE, o TJUE, no Acórdão de 19 de Março de 2009 (que opôs a Comissão Europeia à Finlândia), considerou que este artigo visa garantir a perfeita neutralidade das imposições internas no que se refere à concorrência entre produtos que já se encontrem no mercado nacional e produtos importados, de um modo que não pode, em caso algum, ter efeitos discriminatórios”.
Resumindo, fruto de diversas reclamações, a Comissão Europeia instaurou o processo por infracção n.º 2009/2296 contra a República Portuguesa, com base no facto de não ser tida em conta a depreciação dos veículos para efeitos do cálculo da componente ambiental do ISV, que originou a alteração ao Código do ISV, introduzida pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro de 2012, que aprovou o Orçamento do Estado para 2011, ficando, no entanto, resolvida apenas uma parte da ilegalidade, não sanando a ilegalidade que dizia respeito à desvalorização dos veículos até ao final do 1.º ano de uso e após os 5 anos de uso.
Da leitura do artigo 110.º do TFUE não podem restar dúvidas de que este se “opõe a que um Estado-Membro aplique aos veículos usados importados de outro EM um sistema de tributação em que o imposto que incide sobre esses veículos não atenda à depreciação real do veículo e não permita garantir sempre que o montante do imposto que fixa não excede o montante do imposto residual incorporado no valor de um veículo usado similar já matriculado no território nacional”, cfr. Decisão Arbitral n.º 776/2019-T do CAAD, de 26 de Março de 2020.
Face à manutenção da divergência nos cálculos de ISV entre os veículos usados matriculados em Portugal e os veículos usados provenientes de outros Estados-Membros da União Europeia, e consequente tratamento desigual destes últimos, a Comissão Europeia moveu contra Portugal um novo processo por infracção, no sentido de defender que era censurável que o artigo 11.º do Código do ISV não contabilizasse no cálculo do ISV incidente sobre veículos usados nenhuma desvalorização até o veículo ter mais de um ano de tempo de uso, nem considerasse nenhuma diminuição do valor real para os veículos com mais de cinco anos de utilização, processo que culminou com a prolação do Acórdão do TJUE (C-200/15), de 16 de Junho de 2016.
Posteriormente, através da Lei n.º 42/2016, de 28 de Dezembro, alterada a redacção do artigo 11.º do Código do ISV, passando a ser considerada a desvalorização do veículo a que a mesma se refere, mas apenas quanto à componente cilindrada, ficando excluída qualquer redução no que diz respeito à componente ambiental.
Conforme reconhece a Comissão Europeia, através de comunicado de 24 de Janeiro de 2019, “este Estado-Membro não [tem] em conta a componente ambiental do imposto de matrícula aplicável aos veículos usados importados de outros Estados-Membros para fins de depreciação. A Comissão considera que a legislação portuguesa não é compatível com o artigo 110.º do TFUE, na medida em que os veículos usados importados de outros Estados-Membros são sujeitos a uma carga tributária superior em comparação com os veículos usados adquiridos
no mercado português, uma vez que a sua depreciação não é plenamente tida em conta.”.
Com efeito, o artigo 11.º do Código do ISV, aplicável ao cálculo do ISV dos veículos portadores de matrículas comunitárias introduzidos no mercado português, com vista a considerar a desvalorização comercial média dos veículos usados no mercado nacional, prevê uma redução percentual pelo número de anos de uso do veículo, mas apenas na componente cilindrada, deixando de lado a componente ambiental.
O que conduz a que sobre os veículos “importados” seja cobrado um imposto determinado com base em valor superior ao valor real do veículo, onerando-os com uma tributação superior à que é aplicada aos veículos usados similares disponíveis no mercado nacional.
Ou seja, um veículo com as mesmas características é, naturalmente, igualmente poluidor, quer tenha sido introduzido no mercado português via “importação”, quer seja um veículo com primeira inscrição em Portugal.
Nestes termos, entende este Tribunal Arbitral que o artigo 11.º do Código do ISV não está em conformidade com o direito comunitário, designadamente, com o disposto no artigo 110.º do TFUE (aplicável por força do artigo 8.º, n.º 4 da CRP), pelo que determina este Tribunal Arbitral que será de anular parcialmente o acto tributário de ISV objecto do pedido porquanto o mesmo padece de ilegalidade na parte em que não considerou aplicável a redução de ISV relativa à componente ambiental, em conformidade com o disposto no artigo 110.º do TFUE.
§2. Dos juros indemnizatórios
A par do pedido de declaração de anulação parcial da liquidação de ISV identificada no processo, o Requerente peticiona ainda juros indemnizatórios, ao abrigo do disposto no artigo 43.º da LGT.
No que diz respeito ao pagamento de juros indemnizatórios, de acordo com o disposto no artigo 24.º, n.º 5, do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, daqui resultando que uma decisão arbitral não se limita à apreciação da legalidade do acto tributário.
De igual modo, de acordo com o disposto no artigo 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT, deverá ser entendido que o pedido de juros indemnizatórios é uma pretensão relativa a actos tributários (v.g. de liquidação), que visa explicitar/concretizar o conteúdo do dever de “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito”.
Como refere JORGE LOPES DE SOUSA “insere-se nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD a fixação dos efeitos da decisão arbitral que podem ser definidos em processo de impugnação judicial, designadamente, a anulação dos actos cuja declaração de ilegalidade é pedida, a condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento de juros indemnizatórios (…)”.
Assim, nos processos arbitrais tributários pode haver lugar ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do disposto nos artigos 43.º, n.º 1 e n.º 2, e 100.º da LGT, quando se determine que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
Nestes termos, o direito a juros indemnizatórios dependerá sempre da verificação de um erro imputável aos serviços da AT, do qual tenha resultado um pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
Na sequência da declaração de ilegalidade parcial do acto de liquidação de ISV identificado, na medida do peticionado pelo Requerente, e nos termos do disposto no artigo 24.º, n.º 1, alínea b) do RJAT (em conformidade com o que aí se estabelece), “a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito”, pelo que terá de haver lugar ao reembolso parcial do montante pago pelo Requerente, relativos ao ISV na parte em que a liquidação se deve considerar anulada, como forma de se alcançar a reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade já assinalada.
Assim, face ao estabelecido no artigo 61.º do CPPT, estando preenchidos os requisitos do direito a juros indemnizatórios, o Requerente terá direito a juros indemnizatórios, à taxa legal, calculados sobre a quantia de ISV paga indevidamente, os quais serão contados de acordo com o disposto no artigo 61.º, n.º 3, do CPPT, ou seja, desde a data do pagamento do imposto indevido até à data da emissão da respectiva nota de crédito.
V - DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:
a) Julgar procedente o pedido de anulação parcial da liquidação de ISV identificada no pedido arbitral, determinando-se a sua anulação parcial e ordenando-se o reembolso ao Requerente da quantia paga em excesso;
b) Condenar a AT no pagamento de juros indemnizatórios, calculados nos termos legais, em conformidade com o peticionado;
c) Condenar a AT no pagamento integral das custas do presente processo.
VI - VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em € 6.641,61 (seis mil, seiscentos e quarenta e um euros e sessenta e um cêntimos), nos termos do disposto nos artigos 299.º, n.º 1 e 259.º, n.º 1, do CPC, aplicáveis por força do artigo 29.º, n.º1, alínea e) do RJAT, e, bem assim, do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
VII - CUSTAS
Ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, e nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 612,00 (seiscentos e doze euros), a cargo da AT.
Notifique-se.
Lisboa, 14 de Julho de 2021
O Árbitro
(Hélder Faustino)
A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia antiga.