SUMÁRIO:
I – Nos termos da alínea e) do artigo 277.º do Código do Processo Civil (CPC), aplicável ex vi pela alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, a instância extingue-se com a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide.
II - O evento que torna inútil a apreciação do mérito da causa verificou-se depois da constituição do Tribunal Arbitral.
III - A anulação que o Requerente visava com o processo arbitral encontra-se atingida, pelo que, não oferece dúvida que a Decisão Arbitral que normalmente seria proferida, conhecendo do mérito da pretensão deduzida, se afigura destituída de qualquer efeito útil, pelo que não se justifica a sua prolação.
RELATÓRIO
A -PARTES
A..., titular do NIF..., com domicílio fiscal no ..., ..., C.P..., ...-... ..., em Olhão, doravante designada de Requerente ou sujeito passivo.
Autoridade Tributaria e Aduaneira, doravante designada por Requerida ou AT.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral, foi aceite pelo Presidente do CAAD, e desse modo o Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, no dia 25-02-2021, para apreciar e decidir o objeto do presente litígio, e automaticamente notificada a Autoridade Tributaria e Aduaneira, no dia 25-02-2021, conforme consta da respetiva ata.
O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico, designou o Árbitro Dr. Paulo Ferreira Alves, cuja nomeação foi aceite nos termos legalmente previstos.
Em 11-05-2021, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, nos termos do artigo 11.º n.º 1, alínea a) e b), do RJAT e dos Artigos 6.º e 7º do Código Deontológico, e não manifestaram vontade de recusar a designação do Árbitro.
Em conformidade, com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66B/2012, de 31 de dezembro, o Tribunal Arbitral singular, ficou regularmente constituído, em data de 31-05-2021.
Por despacho de 02-07-2021, a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT foi dispensada, e em sintonia com o previsto no artigo 113.º do CPPT, subsidiariamente aplicável, por força do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, foi dispensada a apresentação de alegações.
O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído é materialmente competente, nos termos dos art.ºs 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas (art.ºs 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art.º 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
O processo não enferma de vícios que o invalidem.
Do Pedido
O ora Requerente, peticiona a declaração de ilegalidade do ato tributário de liquidação em sede de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) n.º 2020..., referente ao exercício de 2018, no valor de 39.203,96€ (trinta e nove mil duzentos e três euros e noventa e seis cêntimos.), e a condenação da AT, na devolução ao Requerente do imposto pago, assim como dos juros de mora e custas processuais.
A Requerida, vem requerer a inutilidade superveniente da lide.
Questão previa, da inutilidade superveniente da lide
É suscitada na resposta da Requerida a questão prévia da inutilidade superveniente da lide, sustentando que o ato tributário sindicado foi anulado por despacho de 10/05/2021, pela Subdirectora-Geral do IR e das Relações Internacionais, assente na informação 192/21.
Nos termos do despacho, resulta a revogação do ato de liquidação visado nos autos com fundamento no facto do mesmo não ter sido precedido do direito de participação do R. na sua formação, data em que já se encontrava constituído este Tribunal Arbitral.
Conforme resulta da do despacho:
“45. É manifesto que a descrita notificação, não ofereceu, ao contribuinte, a possibilidade de justificar as razões que teriam mediado, a inscrição da intenção de reinvestimento do valor de realização, apurado na mais-valia em crise.
46. O autor foi, tão-somente, instado a proceder à expurgação dos elementos respeitantes ao dito reinvestimento.
47. Neste domínio, não podemos, portanto, deixar de subscrever os fundamentos aduzidos pelo autor.
Artigo 60.º
Princípio da participação
1 - A participação dos contribuintes na formação das decisões que lhes digam respeito pode efectuar-se, sempre que a lei não prescrever em sentido diverso, por qualquer das seguintes formas:
a) Direito de audição antes da liquidação
49. Como não foi outorgado o aludido direito de audição, em fase precedente à liquidação contestada.
50. E o caso, em juízo, não se enquadra em nenhuma das hipóteses de dispensa,
assinaladas nas normas do artigo 60º, nº 2 e 3 da LGT.
51. É forçoso concluir a anulação da liquidação vigente.”
Atendendo a anulação por parte da AT da liquidação em apreço, vejamos quais as consequências efeitos legais sobre os presentes autos.
Neste âmbito, importa compulsar o artigo 277.º, alínea e) do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, que determina que a instância se extingue com “a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide”.
A impossibilidade da lide ocorre quer em caso de morte ou extinção de uma das partes, quer por desaparecimento do objeto do processo ou extinção de um dos interesses em conflito.
A inutilidade superveniente da lide tem lugar quando, em virtude de novos factos ocorridos na pendência do processo, a decisão a proferir já não tenha qualquer efeito útil, ou porque não é possível dar satisfação à pretensão que o demandante pretende fazer valer no processo, ou porque o fim visado com a ação foi atingido por outro meio.
A pretensão formulada pelo Requerente, de anulação do ato tributário de liquidação de IRS e juros compensatórios, ficou prejudicada pela decisão administrativa de “revogação” daquele (artigo 79.º, n.º 1 da LGT), que produziu os seus efeitos já na pendência da instância arbitral. Estamos, desta forma, perante uma vicissitude superveniente que eliminou o objeto da pretensão impugnatória deduzida pelo Requerente [a liquidação adicional de IRS e juros].
Com efeito, com a anulação administrativa pela AT, os efeitos jurídicos dos atos tributários são destruídos com eficácia retroativa, de acordo com o disposto no artigo 171.º, n.º 3 do Código do Procedimento Administrativo (“CPA”), verificando-se uma impossibilidade superveniente da lide. Como refere a Decisão Arbitral de 4 de novembro de 2013, no processo n.º 31/2013-T, do CAAD, “torna-se impossível juridicamente anular o que já não existe”. Em consequência, deve extinguir-se a instância processual, por se encontrar desprovida de objeto, nos termos do disposto nos artigos 277.º, alínea e) e 611.º do CPC, aplicáveis por remissão do citado artigo 29.º, n.º 1 alínea e) do RJAT.
Poderia suscitar-se a dúvida sobre a tempestividade da anulação administrativa, atendendo a que já havia decorrido o prazo de 30 dias, a contar do conhecimento do pedido de constituição do Tribunal Arbitral, estabelecido no artigo 13.º, n.º 1 do RJAT para a AT proceder à “revogação, ratificação, reforma ou conversão do ato tributário cuja ilegalidade foi suscitada, praticando, quando necessário, ato tributário substitutivo”, estipulando o n.º 3 desta norma que, findo este prazo, “a administração tributária fica impossibilitada de praticar novo ato tributário relativamente ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário, imposto e período de tributação, a não ser com fundamento em factos novos”.
O preceito em apreço deve ser interpretado no sentido de que, uma vez transcorrido o mencionado prazo de 30 dias, a AT fica impedida de praticar um novo ato dispositivo que regule a relação jurídico-tributária, relativamente ao mesmo sujeito passivo, imposto e período de tributação, exceto com fundamento em factos novos. Porém, esta restrição não ocorre em caso de simples anulação administrativa do ato impugnado, desacompanhada de nova regulação da situação jurídica.
Nesta última hipótese, afigura-se não merecer tutela o princípio da estabilidade da instância subjacente às limitações legais à atuação administrativa no decurso de pendência jurisdicional, uma vez que a Parte vem, simplesmente, reconhecer que à outra assiste razão, com fundamento material na lei, e, nessa medida, permitir a resolução antecipada do litígio e consequente extinção da instância, com economia processual e de meios. Deixou de existir razão para a subsistência do litígio, pois, ainda que em momento superveniente, foi gerado consenso suportado na convergência das partes quanto ao regime legal aplicável.
Esta interpretação foi acolhida pelo Supremo Tribunal Administrativo em relação ao processo de impugnação judicial, que é regido pelo artigo 112.º do CPPT, o qual estabelece uma disciplina similar à do artigo 13.º, n.ºs 1 e 3 do RJAT, este último aplicável à ação arbitral tributária. Constituindo o processo arbitral tributário um meio alternativo à impugnação judicial, é inegável a manifesta identidade de razões, a que acresce o facto de o CPA e as normas sobre organização e processo nos tribunais administrativos e tributários serem de aplicação subsidiária ao processo arbitral tributário, por remissão do artigo 29.º n. º1, alíneas c) e d) do RJAT.
Sobre a aplicação do regime do CPA à “revogação” de atos administrativos em matéria tributária preconiza o Supremo Tribunal Administrativo, no Acórdão proferido em 15 de março de 2017, no processo n.º 449/14, que:
“A possibilidade legal de revogação dos atos administrativos em matéria tributária está prevista no art. 79º da LGT (a revogação é um ato que faz cessar ou elimina os efeitos de um ato anterior, com fundamento na sua inconveniência ou invalidade, estando o respetivo regime previsto nos arts. 138° a 146° do CPA).
Todavia, não constando da LGT nem do CPPT norma definidora do prazo para tal revogação, é incontroverso que hão-de acolher-se as regras constantes dos arts. 136º e ss. do CPA, que diretamente regulam a revogação dos atos administrativos [sendo que o CPA constitui legislação complementar e subsidiária ao direito tributário – arts. 2º, al. c), da LGT e 2º, al. d), do CPPT (Cfr., por todos, o ac. desta Secção do STA, de 15/5/2013, proc. nº 0566/12; bem como Leite Campos, Benjamim Rodrigues e Jorge de Sousa, Lei Geral Tributária Anotada e comentada, 4ª ed., 2012, anotação 1 ao art. 79º, p. 724 e Lima Guerreiro, Lei Geral Tributária, anotada, Editora Rei dos Livros, pág. 350, nota 7.)]. […]”
No mesmo sentido da aplicabilidade do regime da invalidade administrativa aos atos em matéria tributária voltou o Supremo Tribunal Administrativo a pronunciar-se no Acórdão de 17 de dezembro de 2014, relativo ao processo n.º 454/14.
Por outro lado, o artigo 168.º, n.º 3 do CPA determina que a anulação de atos que tenham sido objeto de impugnação jurisdicional, como é o caso, pode ter lugar até ao encerramento da discussão.
É, assim, de concluir pela tempestividade da anulação administrativa efetuada por despacho de 10 de maio de 2021 que, retira à lide arbitral o seu objeto, pelo que se julga extinta a instância processual, em conformidade com o disposto nos artigos 277.º, alínea e) e 611.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1 alínea e) do RJAT.
O evento que torna inútil a apreciação do mérito da causa verificou-se depois da constituição do presente Tribunal Arbitral Singular. A anulação que o Requerente visava com o presente processo arbitral encontra-se atingida, pelo que, não oferece dúvida que a Decisão Arbitral que normalmente seria proferida, conhecendo do mérito da pretensão deduzida, se afigura destituída de qualquer efeito útil, pelo que não se justifica a sua prolação.
Termos em que se julga verificada a inutilidade superveniente da lide em virtude da revogação do ato tributário por parte da Autoridade Tributária (aqui Requerida) e a sua consequente anulação.
Dos Juros Indemnizatórios.
Peticiona, ainda, o Requerente o pagamento de juros indemnizatórios.
Perante o exposto, entende o Tribunal Arbitral Singular que a revogação do ato por parte da Autoridade Tributária, aqui Requerida, demostra erro imputável aos serviços, uma vez que, reconheceram os serviços, pela revogação, que o ato era ilegal.
Na verdade, estando demonstrado que o Requerente pagou o imposto impugnado na parte superior ao que é devido, por força do disposto nos art.ºs 61.º do CPPT e 43.º da LGT, tem o Requerente direito aos juros indemnizatórios devidos, juros esses a serem contados desde a data do pagamento do imposto indevido (anulado) até à data da emissão da respetiva nota de crédito, contando-se o prazo para esse pagamento do início do prazo para a execução espontânea da presente decisão (art.º 61.º, n.ºs 2.ºa 5, do CPPTRIB), tudo à taxa apurada de harmonia com o disposto no n.º 4.ºdo artigo 43.º da LGT.
Dá-se assim provimento ao pedido da Requerente.
Decisão
Termos em que acorda o presente Tribunal em:
(i) Declarar extinta a presente instância arbitral, por inutilidade superveniente da lide.
(ii) Condenar a Requerida ao pagamento de juros indemnizatórios já vencidos relativos ao período, a contar desde o pagamento do imposto nos termos dos n.ºs 2.º a 5.º do art.º 61.º do CPPT à taxa apurada de harmonia com o disposto no n.º 4.º do art.º 43.º da LGT até integral e efetivo reembolso.
Fixa-se o valor do processo em 39.203,96€ atendendo ao valor económico do processo aferido pelo valor das liquidações de imposto impugnadas, e em conformidade fixa-se as custas, no respetivo montante em 1.836,00€ (mil oitocentos e trinta e seis euros), a cargo da Requerida de acordo com o artigo 12.º, n.º 2 do Regime de Arbitragem Tributária, do artigo 4.ºdo RCPAT e da Tabela I anexa a este último. – n.º 10 do art.º 35º, e n.º 1, 4 e 5 do art.º 43º da LGT, art.ºs 5.º, n.º1, al. a) do RCPT, 97.º-A, n.º 1, al. a) do CPPT e 559.º do CPC).
Notifique-se.
Lisboa, 13 de Julho de 2021
O Árbitro
Paulo Ferreira Alves