SUMÁRIO:
1.De acordo com a citada norma transitória do artigo 5.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30.11, os ganhos provenientes da alienação de direitos reais sobre bens imóveis, que não sejam terrenos para construção, só serão sujeitos a IRS quando a prévia aquisição desses mesmos imóveis tenha ocorrido a partir de 1 de janeiro de 1989, configurando um facto tributário de formação sucessiva integrado por dois momentos: o da aquisição e o da transmissão.
2.Os ganhos provenientes da alienação, em 2018, do prédio sub judice, adquirido como prédio rústico em 1980, estão excluídos de imposto por força da aplicação do mencionado regime transitório.
DECISÃO ARBITRAL
O árbitro Professor Doutor Jónatas Machado, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para constituir o presente Tribunal Arbitral, profere a seguinte decisão:
1. RELATÓRIO
1. A..., casado, reformado, titular do Cartão de Cidadão n.º..., Contribuinte Fiscal n.º ... (doravante Requerente), residente na ..., n.º..., ..., em Lisboa, veio, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, al. a), 3.º-A e 10º, n.º 1, al. a), do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, aprovado pelo Decreto-Lei n. º10/2011, de 20 de janeiro, requerer a constituição de Tribunal Arbitral e apresentar perante o mesmo Pedido de Pronúncia Arbitral ao abrigo do disposto nos artigos 95.º da Lei Geral Tributária, 99.º, al. a), do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT) e 140.º, n.º 1, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS), com vista à declaração de ilegalidade do despacho de indeferimento da Chefe de Divisão de Justiça Tributária da Direção de Finanças de Lisboa, por subdelegação e em substituição legal do Diretor de Finanças Adjunto, de 30.07.2020, que indeferiu o recurso hierárquico apresentado pelo ora Requerente, e a consequente anulação do ato de liquidação de IRS relativo ao ano de 2018, com o n.º 2019.... .
2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD, em 13.11.2020.
3. Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 2, alínea a), 6.º, n.º 1 e 11.º, n.º 1 do RJAT, o Conselho Deontológico deste Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) nomeou como árbitro singular o Professor Doutor Jónatas Machado, em 20.11.2020.
4. As partes foram devidamente notificadas dessa designação, à qual não opuseram recusa, nos termos conjugados dos artigos 11.º, n.º 1, alíneas b) e c) e 8.º do RJAT e 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
5. Por força do preceituado na alínea c) do n.º 1 e do n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 03.05.2021.
6.A AT, tendo para o efeito sido devidamente notificada, ao abrigo do disposto no artigo 17.º do RJAT, apresentou a sua resposta, a 01.06.2021, sustentando a improcedência do pedido.
7. Por não ter sido requerida pelas partes e ser considerada desnecessária, o Tribunal dispensou a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, concedendo um prazo para alegações finais, através de despacho de 01.06.2021.
8. O sujeito passivo apresentou as suas alegações finais a 18.06.2021, reiterando e complementando os argumentos apresentados, tendo a AT insistido nos seus argumentos em alegações apresentadas no dia 08.07.2021.
1.1 Descrição dos factos
9. Por escritura pública celebrada em 27.11.1980, o Requerente adquiriu, pelo valor de 20.000$00, correspondentes a 99,76€, 1/238,09 avos indivisos do prédio rústico sito no ..., ..., freguesia da ..., concelho de Almada, inscrito na Conservatória do Registo Predial de Almada sob o número ... e inscrito na matriz rústica sob o artigo ... da secção AK.
10. Este prédio rústico terá sido sujeito a um processo de legalização, com o respetivo loteamento e urbanização, na sequência do qual, em 1994, os 1/238,09 avos indivisos adquiridos pelo Requerente passaram a integrar um prédio urbano (terreno para construção), denominado “.../..., ...” que foi inscrito no artigo matricial urbano n.º ... da freguesia de ... .
11. Mais tarde, a denominação da localização deste prédio terá passado a ser “Rua ..., ..., .../..., freguesia da ...”, sendo que, com a união das freguesias da ... e ..., o artigo matricial deste prédio terá sido alterado do ... para o ... .
12. Em 12.06.2018, o Requerente vendeu o referido prédio adquirido em 1980 como rústico, tendo a Autoridade Tributária (AT) entendido que as mais-valias resultantes desta venda estão sujeitas a imposto enquadrado em rendimentos da categoria G, ao abrigo do disposto nos artigos 9º, n.º 1, al. a), e 10º, n.º 1, al. a), do Código do IRS (CIRS).
13. Em 2019, o Requerente apresentou declaração de IRS referente a 2018, na qual incluiu, no anexo G, o valor relativo à venda de um imóvel sito na Rua..., ..., ..., ..., ..., com o artigo matricial ... da freguesia de ..., tendo recebido a liquidação de IRS n.º 2019..., relativa ao ano de 2018, da qual resultava o valor a pagar de 11.299,67€.
14. O Requerente verificou que tal valor resultava de mais-valias apuradas na venda do referido imóvel, que em seu entender não estavam sujeitas a tributação, tendo apresentado, em 02.08.2019, uma declaração de substituição, corrigindo o seu lapso com a alteração dos valores do anexo G, relativos à venda do imóvel em questão, para o anexo G1, por ser este o adequado. Para não entrar em incumprimento, o Requerente procedeu ao pagamento da referida nota de liquidação do IRS em 13.08.2019, tendo apresentado, nesse mesmo dia, uma exposição/reclamação com os motivos pelos quais não concordava com a mesma.
15. Em 17.01.2020, a declaração de substituição de IRS apresentada pelo Requerente foi convolada em reclamação graciosa, a qual foi objeto de um projeto de decisão de indeferimento em 21.01.2020, tendo a AT entendido que o Requerente em 2018 não vendeu um terreno rústico, mas sim um prédio urbano, composto por um terreno para construção e como tal sujeito a mais-valias, não estando abrangido pela norma de não sujeição do n.º 1 do artigo 5º do Decreto-Lei 442-A/88 de 30.09, posição que, embora contestada em audição prévia, em 03.02,2020, foi reafirmada na decisão final, de 06.02.2020, que indeferiu a reclamação graciosa.
16. Tendo sido, em 05.03.2020, interposto recurso hierárquico dessa decisão, foi este, por decisão de 21.04.2020, alvo de uma proposta de indeferimento, em que se sustentava que o prédio urbano alienado em 2018 só surgiu na esfera jurídica do Recorrente, em 1994 – com inscrição na matriz diversa da estabelecida na escritura, e, portanto, inscrito já na vigência do CIRS – embora o respetivo valor de aquisição devesse ser o de 99,76€, que tinha quando em 1980 foi adquirido como prédio rústico.
17. Face a esta proposta de indeferimento, o Requerente, em 23.07.2020, exerceu mais uma vez o direito de audição prévia, tendo a AT mantido a decisão de indeferimento do recurso hierárquico, avançando o argumento novo segundo o qual “Nunca é possível aferir dos documentos juntos que os terrenos rústico e urbano, identificados pelo Recorrente, estejam interligados.”
1.2 Argumentos das partes
18. Os argumentos trazidos aos autos centram-se na questão de saber se as mais-valias imobiliárias geradas pela alienação, em 2018, do prédio inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... da freguesia da (extinta) ... do concelho de Almada do distrito de Setúbal adquirido em 1980, estão, ou não, sujeitas a tributação, à luz do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de novembro.
19. A Requerente sustenta a ilegalidade da liquidação com argumentos que a seguir se sintetizam:
a) O Decreto-Lei n.º 46373, de 09.06.1965, que aprovou o Código de Imposto de Mais-valias, no seu artigo 1º, sujeitava à incidência de imposto as operações enquadráveis nesse mesmo preceito, designadamente, “Transmissão onerosa de terreno para construção, qualquer que seja o título por que se opere, quando dela resultem ganhos não sujeitos aos encargos de mais-valia previstos no artigo 17.º da Lei n.º 2030, de 22 de Junho de 1948, ou no artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 41616, de 10 de Maio de 1958, e que não tenham a natureza de rendimentos tributáveis em contribuição industrial.”
b) O prédio em causa foi adquirido como rústico em 1980, não sendo terreno de construção, e mantinha essa natureza no momento de entrada em vigor do CIRS, em 01.01.1989, apenas passando a urbano em 1994, pelo que os ganhos provenientes da sua alienação estão excluídos de imposto por força da aplicação do regime transitório previsto no artigo 5º do DL 442-A/88, de 30.11, onde se dispunha que “Os ganhos que não eram sujeitos ao imposto de mais-valias, criado pelo código aprovado pelo Decreto-Lei n.º 46373, de 9 de junho de 1965, só ficam sujeitos ao IRS se a aquisição dos bens ou direitos de cuja transmissão provêm se houver efetuado depois da entrada em vigor deste Código.”
c) Este entendimento tem sido sufragado pela jurisprudência do STA e do CAAD , tendo aquela sustentado que “o que se pretendeu com a mudança de regime de tributação operada a partir de 1989 foi tributar em IRS, categoria G, todas as transmissões onerosas sobre imóveis; todavia, para evitar efeitos retroativos, estabeleceu-se que para serem tributadas tais transmissões era necessário que os bens abrangidos fossem adquiridos e alienados dentro da vigência da nova lei, com exceção daqueles que já eram antes tributados por força do CIMV, ou seja, os terrenos para construção, os quais passariam agora a ser tributados nos termos do Código do IRS” ;
d) O facto de o referido prédio ser urbano quando o Requerente o alienou não é relevante para apurar a incidência de imposto, pois essa qualidade foi adquirida em 1994, isto é, posteriormente à entrada em vigor do CIRS;
e) Cabendo ao contribuinte, ao abrigo do disposto no artigo 5º, n.º 2, do referido DL, o ónus da prova, o mesmo, em sede graciosa, juntou documentos comprovativos da aquisição do imóvel antes de 1989, que posteriormente, em 2018, alienou;
f) A invocação pela AT de um novo argumento na decisão do recurso hierárquico, impossibilitando o Requerente de se pronunciar e defender, em sede graciosa, do mesmo, viola um dos princípios basilares do nosso Estado de Direito Democrático, o princípio do contraditório, previsto no artigo 267.º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa e concretizado nos artigos 121.º do CPA e 60.º da LGT;
g) Não resulta da escritura pública de aquisição do imóvel pelo Requerente a declaração expressa de que se estava perante um terreno para construção – o que constitui condição sine qua non para que haja subsunção à definição de terreno para construção prevista no artigo 1º, § 2º, do CIMV;
h) Até 1994, a própria AT tributou este imóvel como prédio rústico, só passando a ser considerado e tributado como prédio urbano em 2008, quando lhe foi atribuído o n.º ... da União das freguesias de ... e de ...;
i) O CIVM, no seu artigo 1º, sujeita a imposto a transmissão onerosa de terrenos para construção – qualidade esta que o imóvel dos autos não tinha, pois o mesmo foi adquirido como rústico, tendo-se mantido assim até 1994, isto é, já depois da entrada em vigor do CIRS;
j) Dado que o prédio aqui em causa foi adquirido como rústico em 1980 e mantinha essa natureza no momento de entrada em vigor do CIRS, em 1989, os ganhos provenientes da sua alienação estão excluídos de imposto, por força da aplicação do regime transitório previsto no referido artigo 5º do DL 442-A/88, de 30.11.
20. A Requerida, ou AT, responde sustentando a improcedência do presente pedido de pronúncia arbitral com base nos seguintes argumentos:
a) O Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30.11, que aprovou o CIRS, aboliu o imposto de mais-valias regulado pelo CIMV (Decreto-Lei nº 46373, de 9/6/65), passando as mais-valias a ser tributadas em sede de IRS, na categoria G, passando a estar regulado que serão tributadas, em sede de IRS, todas as transmissões onerosas sobre imóveis (artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do CIRS);
b) O n.º 1 do art. 5º do Decreto-Lei nº 442-A/88, de 30.11, que aprovou o CIRS, e estabeleceu um “Regime transitório da categoria G”, foi alterado pelo Decreto-Lei n.º141/92, de 17 de Julho, passando a estipular que “os ganhos que não eram sujeitos ao imposto de mais-valias, criado pelo Código aprovado pelo Decreto-Lei nº 46 673, de 9 de junho de 1965, bem como os derivados da alienação a título oneroso de prédios rústicos afetos ao exercício de uma atividade agrícola ou da afetação destes a uma atividade comercial ou industrial, exercida pelo respetivo proprietário, só ficam sujeitos a IRS se a aquisição dos bens ou direitos a que respeitam tiver sido efetuada depois da entrada em vigor deste Código”, dispondo o n.º 2 que, «são havidos como terrenos para construção os situados em zonas urbanizadas ou compreendidos em planos de urbanização já aprovados e os assim declarados no título aquisitivo»;
c) O CIMV já tributava as transmissões dos “terrenos para construção”, nos termos do nº 1 do seu art. 1º ( “1.º Transmissão onerosa de terreno para construção, qualquer que seja o título por que se opere, quando dela resultem ganhos não sujeitos aos encargos de mais-valia (…))”;
d) A qualificação de “terreno para construção” advinha, nos termos do CIMV, conforme estipulado no § 2º do nº 4 do art. 1º deste normativo, do terreno estar integrado em zona urbanizada ou compreendida em zona urbanizada ou de tal qualificação resultar do “titulo aquisitivo”;
e) Embora o imóvel adquirido pelo Requerente em 27.11.1980 estivesse inscrito na matriz como “rústico”, extrai-se do texto do “titulo aquisitivo” (a escritura de aquisição de 1980) que este terreno, como, aliás, os demais alienados pelo mesmo instrumento notarial, estavam afetos à construção, razão pela qual, no texto da escritura é feita a advertência de que o registo do(s) prédio(s) construído(s) nesse(s) terreno(s) pode ser de difícil concretização;
f) O Requerente não produziu prova que demonstrasse que o terreno estava afeto “ao exercício de uma atividade agrícola ou da afetação destes a uma atividade comercial ou industrial, exercida pelo respetivo proprietário” – situação que, desde logo, o excluía da tributação das mais-valias ao abrigo do CIRS;
g) No caso em apreço, a transmissão do terreno inscrito na matriz rústica estava abrangida pela tributação de mais-valias ao abrigo do CIMV porquanto se tratava de um terreno para construção, por qualificação atribuída pelo título aquisitivo e, consequentemente, à luz das disposições transitórias do nº 1 do art. 5º do Decreto-Lei nº 442-A/87, fica também abrangida pela tributação das mais-valias ao abrigo do CIRS;
h) Aliás, é essa a fundamentação da decisão que recaiu sobre a reclamação graciosa e que foi depois confirmada em sede de recurso hierárquico, onde se lê, “(…) uma vez que os ganhos resultantes da alienação dos terrenos para construção já eram tributados no âmbito do Código do Imposto de Mais-valias, ficaram os mesmos sujeitos a tributação no domínio da categoria G do Código do IRS, nos termos da alínea a) do nº 5 do artigo 10º do CIRS”.
i) Quando a AT menciona que o prédio adquirido e o prédio alienado não são os mesmos, está a reportar-se ao facto das inscrições matriciais e a respetiva qualificação serem distintas, a AT não põe em causa que se trata do mesmo prédio, como à evidência resulta da liquidação das mais-valias tributadas;
j) O prédio passou a estar inscrito na matriz urbana em 1994, mas na aceção do CIMV ele sempre foi, pelo menos desde 1980, um “terreno para construção”;
k) A jurisprudência invocada pelo Requerente não afronta o ato de liquidação de IRS nº 2019..., controvertido nestes autos, visto que, no caso concreto, e ao invés do que aconteceu na factualidade sobre que se debruçaram aqueles arestos, o terreno do Requerente era já um “terreno para construção”, ao abrigo do CIMV;
l) O preço porque foi vendido o prédio e, consequentemente a sua valorização, não se compagina com um prédio afeto à agricultura, sendo do conhecimento público que os terrenos apenas têm sido valorizados nas últimas décadas se o seu destino for a construção, já que, pelo contrário, os terrenos agrícolas em certas zonas do país têm mesmo vindo a perder valor, motivado pelo abandono da atividade agrícola;
m) Era precisamente a valorização abrupta e inesperada dos terrenos em virtude da sua efetiva ou potencial afetação à construção que justificava a tributação em mais-valias já na vigência da legislação anterior;
n) Se o terreno (inicial) fosse destinado à agricultura, não tinha sido fracionado e disperso por vários comproprietários, pois isso inviabilizaria a sua utilização agrícola, tanto mais que é do conhecimento público que a área onde está implementado o terreno– a Aroeira – é uma área afeta à construção urbana.
1.3. Saneamento
21. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, nos termos n.º 1 do artigo 10.º do RJAT e as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e mostram-se devidamente representadas.
22. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído (artigos 5.º, n.º 2, 6.º, n.º 1, e 11.º do RJAT), e é materialmente competente (artigos 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT), de acordo com os fundamentos infra.
23. O processo não padece de nulidades podendo prosseguir-se para a decisão sobre o mérito da causa.
2 FUNDAMENTAÇÃO
2.1 Factos dados como provados
24. Com base nos documentos trazidos aos autos são dados como provados os seguintes factos relevantes para a decisão do caso sub judice:
a) Por escritura pública celebrada em 27.11.1980, o Requerente adquiriu, pelo valor de 20.000$00, correspondentes a 99,76€, 1/238,09 avos indivisos do prédio rústico sito no ..., ..., freguesia da ..., concelho de Almada, inscrito na Conservatória do Registo Predial de Almada sob o número ... e inscrito na matriz rústica sob o artigo ... da secção AK. (Documento 10)
b) Este prédio rústico foi sujeito a um processo de legalização, com o respetivo loteamento e urbanização, na sequência do qual, em 1994, os 1/238,09 avos indivisos adquiridos pelo Requerente passaram a integrar um prédio urbano (terreno para construção), denominado “.../...” que foi inscrito no artigo matricial urbano n.º ... da freguesia de ... (Documento 11 e 12)
c) Com a união das freguesias da ... e ..., o artigo matricial deste prédio foi alterado do ... para o ... . (Documento 13)
d) Em 12-06-2018, o Requerente vendeu o referido prédio adquirido em 1980 como rústico, tendo a AT entendido que as mais-valias resultantes desta venda estão sujeitas a imposto enquadrado em rendimentos da categoria G, ao abrigo do disposto nos artigos 9º, n.º 1, al. a), e 10º, n.º 1, al. a), do Código do IRS (CIRS). (Documento 14)
e) Quando adquirido pelo Requerente, o imóvel em causa não era terreno para construção, mas antes um prédio rústico, que apenas passou a urbano em 1994. (Documentos 10, 12, 15 e 16)
f) Em 2019, o Requerente apresentou declaração de IRS referente a 2018, na qual incluiu, no anexo G, o valor relativo à venda de um imóvel sito na Rua ..., ..., ..., ..., ..., com o artigo matricial... da freguesia de ..., tendo recebido a liquidação de IRS n.º 2019..., relativa ao ano de 2018, da qual resultava o valor a pagar de 11.299,67€. (Documentos 1 e 2)
g) O Requerente apresentou, em 02.08.2019, uma declaração de substituição com a alteração dos valores do anexo G, relativos à venda do imóvel em questão, para o anexo G1. (Documentos 1 e 2)
h) O Requerente procedeu ao pagamento da referida nota de liquidação do IRS em 13.08.2019, (Documentos 1)
i) O Requerente apresentou, nesse mesmo dia, uma exposição/reclamação com os motivos pelos quais não concordava com a referida liquidação de IRS (Documento 2)
j) Em 17.01.2020, a declaração de substituição de IRS apresentada pelo Requerente foi convolada em reclamação graciosa, a qual foi objeto de um projeto de decisão de indeferimento em 21.01.2020. (Documento 3)
2.2 Factos não provados
25. Com relevo para a decisão sobre o mérito não existem factos alegados que devam considerar-se como não provados.
2.3 Motivação
26. Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da matéria não provada (cf. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
27. Os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões objeto do litígio (v. 596.º, n.º 1, do CPC, ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
28. Assim, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
2.4 Questão decidenda
29. A questão central assenta na qualificação do imóvel alienado pelo Requerente, a saber, se o mesmo era rústico no momento da sua aquisição, em 1980, pelo sujeito passivo ou se se tratava de um terreno de construção e, como tal, já estava sujeito a tributação nos termos do disposto no artigo 1º, n.º 1, do CIMV.
30. Dos autos resulta que o prédio em causa foi adquirido como rústico em 1980, não sendo terreno de construção, estando inscrito na Conservatória do Registo Predial de Almada sob o número ... na matriz rústica sob o artigo ... da secção AK. Verifica-se, do mesmo modo, que o mesmo mantinha essa natureza no momento de entrada em vigor do CIRS, em 01.01.1989, apenas passando a urbano em 1994. Como tal, ele estava formalmente fora do alcance da norma de incidência do artigo 1.º do CIVM, que sujeitava a imposto a transmissão onerosa de terrenos para construção.
31. Assim sendo, os ganhos provenientes da alienação do prédio sub judice estão excluídos de imposto por força da aplicação do regime transitório previsto no artigo 5º do DL 442-A/88, de 30.11, onde, em nome precisamente do princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança, especialmente relevante no direito fiscal, se dispunha que “Os ganhos que não eram sujeitos ao imposto de mais-valias, criado pelo código aprovado pelo Decreto-Lei n.º 46373, de 9 de Junho de 1965, só ficam sujeitos ao IRS se a aquisição dos bens ou direitos de cuja transmissão provêm se houver efetuado depois da entrada em vigor deste Código.”
32. Este entendimento tem sido sufragado pela jurisprudência do STA e do CAAD , tendo aquela sustentado que “o que se pretendeu com a mudança de regime de tributação operada a partir de 1989 foi tributar em IRS, categoria G, todas as transmissões onerosas sobre imóveis; todavia, para evitar efeitos retroativos, estabeleceu-se que para serem tributadas tais transmissões era necessário que os bens abrangidos fossem adquiridos e alienados dentro da vigência da nova lei, com exceção daqueles que já eram antes tributados por força do CIMV, ou seja, os terrenos para construção, os quais passariam agora a ser tributados nos termos do Código do IRS” .
33. Não obstante o direito fiscal ser fortemente conformado pelo princípio da primazia da substância sobre a forma, os elementos carreados pela AT para sustentar que o terreno em causa – como, aliás, os demais alienados pelo mesmo instrumento notarial – estavam afetos à construção (v.g. parcelamento; ausência de prova de atividade agrícola, comercial ou industrial), apesar de, em abstrato, não serem destituídos de alguma plausibilidade, não se revelam, aos olhos deste tribunal, como suficientemente seguros e cogentes para poderem infirmar a inscrição e descrição do prédio como rústico constante do registo e do contrato de compra e venda, de 1980, qualificação essa que releva no plano dos valores de previsibilidade e calculabilidade inerentes ao princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos, ínsito no princípio do Estado de direito, cujas refrações no direito fiscal encontram consagração, nomeadamente, na proibição de retroatividade de leis fiscais do artigo 103.º/3 da CRP.
34. Além disso, a inscrição e descrição do prédio como rústico condicionou, inevitavelmente, o valor da sua aquisição pelo sujeito passivo e a expectativa de utilização e afetação económica, tendo inclusivamente justificado a advertência notarial, constante do contrato de compra e venda, de 1980, acerca das dificuldades de registo de qualquer prédio urbano que o sujeito passivo eventualmente quisesse construir nesse terreno então adquirido, precisamente por se tratar de um prédio rústico.
35. Acresce que, até 1994, a própria AT tributou este imóvel como prédio rústico, só passando a ser considerado e tributado como prédio urbano em 2008, quando lhe foi atribuído o n.º ... da União das freguesias de ... e de ..., dificilmente se podendo compreender um qualquer venire contra factum proprium neste domínio. A AT reconheceu expressamente que, ao tempo da sua aquisição pelo Requerente, se tratava de um prédio rústico, tendo-o tributado como tal. Ou seja, em 1980, e pelo menos até 1994, o prédio foi qualificado como rústico, na perspetiva do sujeito passivo, na perspetiva da AT e no quadro das relações jurídicas tributárias existentes entre um e outra. O presente Tribunal Arbitral limita-se a retirar daí as devidas consequências jurídico-tributárias para o ano de 2018.
36. Em face do exposto, deve este Tribunal Arbitral determinar a anulação do ato de liquidação de IRS n.º 2019..., referente ao ano de 2018, com o consequente reembolso ao Requerente do valor pago indevidamente.
37. Nos termos do n.º 5 do artigo 24.º, do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, dispondo os n.ºs 1 e 2 do artigo 43.º, e artigo 100.º, da LGT, que há lugar ao pagamento de juros indemnizatórios quando se determine que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
38. No caso, o erro de qualificação jurídica do prédio, a despeito da sua inscrição e descrição como prédio rústico – que conduziu à desconsideração do regime transitório previsto no artigo 5º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30.11, e à tributação indevida de mais-valias – é imputável aos serviços da AT, tanto mais quanto é certo que, até 1994, a mesma tinha tributado o prédio como rústico e não como terreno de construção, havendo lugar ao pagamento de juros indemnizatórios.
3 DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:
a) Determinar a anulação do ato de liquidação de IRS n.º 2019..., referente ao ano de 2018, com o consequente reembolso ao Requerente do valor pago indevidamente
b) Condenar a Requerida, nos termos do artigo 43.º, n.º 1 da LGT e 61.º, n.ºs 2 e 5 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), no pagamento dos juros indemnizatórios, à taxa resultante do n.º 4 do artigo 43.º da LGT, calculados sobre as quantias indevidamente pagas, desde o dia em que foram pagas até ao efetivo e integral reembolso das mesmas.
4 VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em 11.299,67€, nos termos do artigo 306.º, n.º 1 do CPC e do 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, interpretados em conformidade com o artigo 10.º, n.º 2, alínea e), do RJAT.
5 CUSTAS
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 918.00 €, a cargo da Requerida, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e do artigo 4.º, n.º 4, do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I anexa ao mesmo.
Notifique-se.
Lisboa, 12 de julho de 2021
O Árbitro
Jónatas E. M. Machado