Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 741/2020-T
Data da decisão: 2020-06-25  IRS  
Valor do pedido: € 52.331,12
Tema: IRS – Mais-valias imobiliárias obtidas por residente em outro Estado da UE
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SUMÁRIO:

 

I – A lei nacional não pode violar os princípios e as normas da EU, por força da primazia concedida pela Constituição (art. 8º, n.º 4).

 

II – Seguindo o entendimento do TJUE, que se impõe aos tribunais nacionais, viola o atual art.º 63 do TFUE (proibição de restrições aos movimentos de capitais) a não abrangência pelo disposto na al. b) do nº 2 do art. 43º do CIRS (consideração em apenas 50% do seu valor) das mais-valias imobiliárias obtidas em Portugal por residentes em outros Estados integrantes da União Europeia.

 

III - – Seguindo ainda o entendimento do TJUE, a possibilidade legal de opção por uma tributação feita por aplicação das regras gerais não elimina a discriminação.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

A..., NIPC..., residente em Rue ..., ..., ..., ..., ... ..., Bélgica, apresentou, nos termos legais, pedido de constituição de tribunal arbitral, sendo Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

I - RELATÓRIO

A)           O pedido

 

O Requerente pede a anulação da liquidação de IRS nº 2020..., relativa a 2019, no valor de € 52.331,12, com data limite de pagamento em 8 de Setembro de 2020.

Pede, ainda, a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios.

 

B)           Posição das partes

 

A Requerente entende, em suma, que a tributação das mais-valias imobiliárias obtidas em Portugal por residentes em outros Estados-membros, por o imposto incidir sobre a totalidade do ganho (e não apenas sobre 50%, como sucede relativamente aos residentes), ainda que feita por aplicação de uma taxa especial de 28%, constitui uma discriminação negativa violadora dos princípios da União Europeia.

 

 

Na sua resposta, a Requerida sustenta a legalidade da liquidação impugnada entendendo, em suma, que a discriminação existente no n.º 2 do artigo 43° do Código do IRS foi ultrapassada pelas alterações legislativas introduzidas pela Lei n.º 67- A/2007, de 31/12, pelo direito de opção, a que adiante nos referiremos, por esta criado.

 

C)           Tramitação processual

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite em 09/12/2020.

 A Requerente não procedeu à indicação de árbitro, tendo a sua designação (árbitro singular) competido ao Conselho Deontológico do CAAD, a qual não mereceu oposição.

O árbitro designado aceitou tempestivamente a nomeação.

 O tribunal arbitral, em razão da pandemia, apenas ficou constituído em 03/05/2021.

 Por despacho arbitral de 07-06-2020, foi decidido prescindir, por falta de objeto, da realização da reunião a que se refere o art.º 18º do RJAT e não haver lugar à produção de alegações, por manifestamente desnecessárias. Nenhuma das partes se opôs a este despacho arbitral.

 

II - SANEAMENTO

 

O Tribunal encontra-se regularmente constituído, é competente e a ação é tempestiva. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas. O processo não enferma de nulidades.

 

III – PROVA

 

III.1 - Factos provados

 

a)            O Requerente tem domicílio fiscal na Bélgica, pelo que procedeu à entrega da declaração de IRS, referente ao ano de 2019, na qualidade de não residente.

b)           De tal declaração consta, como único rendimento positivo tributável em Portugal, a mais-valia realizada, nesse período, com a venda da fração autónoma designada pela letra “E”, do prédio urbano sito na Rua ..., n.ºs ... e ..., freguesia de ..., concelho de Lisboa, inscrito na matriz predial da atual freguesia de ... sob o artigo ..., no montante de € 186.896,86.

c)            Na liquidação que efetuou, ora impugnada, a AT aceitou os valores de aquisição e de realização declarados, assim como os montantes de encargos e despesas.

d)           O Requerente não exerceu a opção pela tributação por aplicação das taxas gerais do CIRS, de acordo com o previsto nos (atuais) n.º 14 e 15 do art.º 72º do CIRS.

e)           Para calcular o imposto devido, a AT, aplicou a taxa especial de 28%, nos termos do artigo 72.º, n.º 1, alínea a), do Código do IRS.

f)            O Requerente procedeu ao pagamento do imposto liquidado.

 

Os factos dados por provados resultam de documentação junta aos autos, não tendo sido questionados pela AT na sua resposta.

 

 

 

III.2 - Factos não provados

 

Não existem factos não provados relevantes para a decisão a causa.

 

 

IV- O DIREITO

 

1 - Temos, em primeiro lugar, o facto de o n.º 2 do artigo 43.° do CIRS (limitação da incidência de imposto a 50% das mais-valias imobiliárias – al. b)) prever a sua aplicação apenas a transmissões efetuadas por  residentes. Há que saber se a sua não aplicabilidade a residentes em outros estados-membros da EU viola o art.º 63 do TFUE (proibição de restrições aos movimentos de capitais).

 

 

A questão já foi apreciada pelo TJUE, no acórdão Hollmann, de 11 de Outubro de 2007, que conclui pela existência, em tal norma, de uma discriminação violadora do Direito da União.

 

Na sequência de tal acórdão, o nosso regime legal foi alterado, pela Lei 3-B/2010, de 28-04, a qual instituiu uma opção , permitindo aos residentes noutro Estado-membro a escolha pelo englobamento das mais-valias imobiliárias e, assim, serem tributados em condições similares às dos residentes (opção que, como vimos, o Requerente não exerceu).

 

Porém, há que ter presente a jurisprudência do TJUE relativa à existência de este tipo de opções. No acórdão Gielen, de 18-03-2010, num caso análogo, ainda que envolvendo o princípio da livre circulação de pessoas, o Tribunal concluiu: esta conclusão  não é posta em causa pelo argumento de que os contribuintes não residentes podem optar pela equiparação, que lhes permite escolher entre o regime discriminatório e o regime aplicável aos residentes, dado que essa opção não é susceptível de excluir os efeitos discriminatórios do primeiro desses dois regimes fiscais. Com efeito, o reconhecimento de um efeito dessa natureza à referida escolha teria por consequência validar um regime fiscal que continuaria, em si mesmo, a violar o artigo 49.° TFUE  em razão do seu carácter discriminatório. Por outro lado, um regime nacional que limite a liberdade de estabelecimento  é incompatível com o direito da União, mesmo que a sua aplicação seja facultativa. Decorre do exposto que a escolha concedida ao contribuinte não residente através da opção de equiparação, não neutraliza a discriminação.

Como é sabido, as decisões do TJUE vinculam os tribunais nacionais.

 

Assim, é simples de compreender a existência de numerosa jurisprudência, nomeadamente arbitral, concluindo pela permanência de tal discriminação, entendimento que subscrevemos.

 

 

2 – Anulação parcial

 

Sendo ilegal a liquidação impugnada, tal não significa, porém, que deva ser anulada na sua totalidade, como peticiona o Requerente.

É hoje pacífico o entendimento que a liquidação é um ato divisível, devendo o tribunal concluir pela sua anulação parcial (uma anulação limitada á extensão da ilegalidade), sendo o caso e se para tal tiver elementos suficientes.

No presente caso, é patente que foi considerado como matéria coletável a totalidade do rendimento, quando devia ter sido considerado apenas metade de tal valor, pelo que se anula apenas em 50% a liquidação impugnada, no relativo à mais-valia imobiliária em causa, pois só nesta medida está inquinada por ilegalidade .

 

3 - Juros indemnizatórios

 

 Nos termos da al. d) do nº 3 do art. 43ª da LGT, são devidos juros indemnizatórios em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução.

A ilegalidade da liquidação impugnada, como acima exposto, decorreu da aplicação da norma legal violadora do Direito da União Europeia (uma norma «ilegal»).

Tem assim a Requerente o direito a receber, juros indemnizatórios, a serem calculados nos termos legais, ainda que relativamente apenas à parte do pagamento efetuado que lhe deve ser devolvida.

 

V- Decisão

 

- Anula-se parcialmente a liquidação impugnada, devendo ser devolvido ao Requerente metade do valor de imposto pago.

 

- Condena-se, ainda, a Requerida a pagar à Requerente juros indemnizatórios, a serem calculados nos termos legais, relativamente à parte do pagamento efetuado a ser devolvida. 

 

VI - Notificação ao Ministério Público

Notifique-se o Ministério Público, representado pela Senhora Procuradora-Geral da República, nos termos e para os efeitos dos artigos 280.º, n.º 3, da Constituição e 72.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional e 185.º-A, n.º 2, do CPTA, subsidiariamente aplicável.

 

VALOR: € 52.331,12

 

CUSTAS na proporção do decaimento (50% por cada uma das partes)

25 de junho de 2021

 

O árbitro,

Rui Duarte Morais