SUMÁRIO:
I – Nas despesas inerentes à alienação do bem, referidas na alínea a) do n.º 1 do art. 51.º do CIRS (quantificação de mais-valia imobiliária), são de incluir os honorários pagos a advogado por apoio jurídico à venda do imóvel.
II – Os pagamentos que o alienante, por força de disposição testamentária, está obrigado a cumprir quando da venda do imóvel não estão abrangidos por tal disposição, pois não são gastos necessários à obtenção do rendimento.
DECISÃO ARBITRAL
A..., N.I.F. ... residente no ..., nº..., ...-... Porto;
B..., N.I.F...., e marido, C..., N.I.F. ..., residentes na ..., nº..., ...-... Porto;
D..., N.I.F. ..., e marido, E..., N.I.F. ..., residentes na ..., nº..., ...-... Porto;
apresentaram, nos termos legais, pedido de constituição de tribunal arbitral, sendo Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.
I – RELATÓRIO
A) O pedido
Os Requerentes pedem a anulação das seguintes liquidações:
A...- liquidação de IRS n.º 2020..., da qual resultou um saldo a pagar no valor de € 12.174,74.
B... e C... - liquidação de IRS n.º 2020..., da qual resultou um saldo a pagar no valor de € 18.712,50.
D... e E...- liquidação de IRS n.º 2020..., da qual resultou um saldo a pagar no valor de € 9.442,72.
Pedem, ainda, a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios.
B) Posição das partes
Os Requerentes entendem que devem ser aceites como despesas, para efeitos da al. a) do n.º 1, do art. 51.º, do CIRS, (despesas que acrescem ao valor de aquisição para cálculo das mais-valias imobiliárias), tal como haviam feito constar da sua declaração, o seguinte:
- quantias pagas a título de honorários a advogados (€ 3.995,50 por cada requerente);
- quantias pagas à F... (€ 45.000,00 por cada Requerente).
Na sua resposta, a Requerida entende, em suma, que tais despesas não podem ser consideradas intrínsecas/indissociáveis da alienação dos imóveis que geraram mais-valias sujeitas a tributação, pelo que sustenta a legalidade das liquidações impugnadas.
C) Tramitação processual
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite em 09/12/2020.
A Requerente não procedeu à indicação de árbitro, tendo a sua designação (árbitro singular) competido ao Conselho Deontológico do CAAD, a qual não mereceu oposição.
O árbitro designado aceitou tempestivamente a nomeação.
O tribunal arbitral, em razão da pandemia, apenas ficou constituído em 03/05/2021.
Foi decidido prescindir, por falta de objeto, da realização da reunião a que se refere o art.º 18º do RJAT, o que não suscitou objeções das partes.
Em 21/06/ 2021 teve lugar a audição do depoente e testemunha arrolados pela Requerente, conforme consta da respetiva ata.
Em tal audiência foi decidido, com acordo das partes, não haver lugar a alegações, por manifestamente desnecessárias.
II - SANEAMENTO
O Tribunal encontra-se regularmente constituído e é competente. A ação é tempestiva. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas. O processo não enferma de nulidades.
A coligação de autores e a cumulação de pedidos é legalmente admissível (art. 3º, nº 1, do RJAT).
III – PROVA
III.1 - Factos provados
a) Os requerentes “A...”, “B...” e “D...”, juntamente com outros familiares, eram proprietários, em comum e sem determinação de parte ou direito, por sucessão hereditária, dos prédios urbanos inscritos na matriz sob os artigos ..., ... e ..., da freguesia de ..., concelho do Porto.
b) No dia 20/08/2018, os Requerentes, juntamente com os demais proprietários, venderam tais prédios.
c) Os Requerentes, na sua declaração de rendimentos relativa ao ano de 2018, declaram a referida venda no anexo G, mencionando, como despesas os valores por eles pagos a título de honorários de advogados (€ 3.995,50 por cada Requerente) e as quantias pagas à F... (€ 45.000,00 por cada Requerente).
d) Os horários pagos a advogados referem-se, exclusivamente, a serviços relativos à venda dos imóveis que originou as mais-valias em causa, incluindo serviços prestados por colaboradores daqueles (solicitadores).
e) Para além da elaboração do contrato-promessa e apoio jurídico à celebração da escritura, a venda implicou a realização de uma série da atos jurídicos preparatórios (designadamente, por existirem divergências entre a matriz e o registo predial, contrato-promessa, estar previsto no contrato promessa a obtenção, pelos promitentes-vendedores, de um PIP (Pedido de Informação Prévia) e a existência de um direito legal de preferência por um dos imóveis ser “classificado”); acresceu a complexidade inerente ao número dos vendedores
f) G..., por testamento, deixou os referidos prédios em legado, entre outros, aos Requerentes “A...”, “B...e “D...”, com o seguinte encargo [apenas se transcreve o ora relevante]: “imponho aos legatários (…) o encargo de entregar à F... a quantia que corresponder a 1/6 parte do preço por que vier a ser vendido aquele prédio (…) Este pagamento deverá ser efetuado no prazo de um ano a contar da venda do imóvel (…)
g) Os Requerentes procederam ao pagamento das quantias referidas em c), quer aos advogados, quer à F... .
h) A AT não aceitou a dedutibilidade de tais quantias, posição mantida em sede de resposta ao exercício do direito de audição prévia pelos Requerentes
i) Em consequência a AT efetuou, oficiosamente, as liquidações adicionais ora impugnadas, tendo os Requerentes pago os impostos liquidados.
Os factos dados por provados resultam de documentação junta aos autos. Os factos dados por provados em d) e e) foram confirmados pelo declarante e pela testemunha, que, na opinião deste tribunal arbitral, foram verdadeiros e esclarecedores nos seus depoimentos.
III.2 - Factos não provados
Não existem factos não provados relevantes para a decisão a causa.
IV- O DIREITO
1 - Está em causa saber se os honorários pagos pelos Requerentes a advogados e as quantias por eles entregues à F... são subsumíveis ao disposto na al. a), do n.º 1, do art. 51.º, do CIRS, do seguinte teor: Para a determinação das mais-valias sujeitas a imposto, ao valor de aquisição acrescem (…) as despesas necessárias e efetivamente praticadas, inerentes à aquisição e alienação (…).
Apreciando:
a) Honorários pagos a advogados
A dedutibilidade, para efeitos de cálculo das mais-valias imobiliárias tributadas, das despesas inerentes à alienação dos bens mais não é que expressão do princípio (constitucional) da tributação do rendimento líquido. A capacidade contributiva não equivale àquilo que se obtém, mas sim à diferença entre o que se obtém e o que se despendeu para obter o rendimento (gastos suportados).
A questão da dedutibilidade fiscal dos gastos tem sido amplamente abordada, pela doutrina e jurisprudência, a propósito dos gastos empresariais, em termos que consideramos transponíveis para o presente caso, uma vez que, também aqui, está em causa a concretização da noção de rendimento líquido.
As ideias chave que importa realçar são: gasto (despesa) é um conceito aberto, a ser preenchido em cada caso concreto; os gastos têm que ser suportados visando a obtenção do rendimento; o direito à propriedade privada, constitucionalmente garantido, implica o respeito pelas opções de gestão dos cidadãos, pelo que a AT não pode substituir pelo seu critério as decisões do contribuinte quanto à necessidade e montante de gastos tidos por necessários à obtenção do rendimento.
A indissociabilidade, que a AT invoca como argumento central para a não-aceitação das despesas em causa, apenas pode assim ser aferida partindo da motivação do sujeito passivo (tal qual a jurisprudência entendia relativamente à indispensabilidade dos gastos, antes prevista no art. 23º do CIRC). O que releva é o intuito de tais despesas, o seu escopo, e não quaisquer considerações sobre a necessidade objetiva, a “indispensabilidade”, a “razoabilidade”, a” ligação intrínseca” de tais gastos.
Assumindo os pressupostos acima, afigura-se indiscutível que os gastos suportados pelos Requerentes com advogados, por, como ficou dado por provado, terem como escopo único a obtenção do apoio jurídico que consideraram necessário para a venda dos imóveis, incluindo atos preparatórios tidos por necessários, foram instrumento de realização da venda geradora da mais-valia, pelo que cabem no conceito aberto de despesas (mais corretamente gastos) constante da norma em análise.
Procede, pois, quanto a este ponto, o pedido dos Requerentes.
b) Quantias pagas à F...
A resposta decorre do que antes se expôs.
As quantias em causa não são despesas implicadas pela venda dos imóveis em causa, pois não foram incorridas com o intuito de realizar a venda geradora da obtenção do rendimento (não são um gasto implicado por tal venda), antes sendo como que uma consequência de tal alienação.
A relação entre a realização da mais-valia imobiliária e a obrigação de pagamento de tal quantia é extrínseca à venda, embora esta fosse, segundo o testamento, pressuposto (um dos possíveis pressupostos) da liquidação (quantificação) e exigibilidade (início da contagem do prazo para pagamento) de tal obrigação.
A obrigação de pagamento à F... tem como fonte não a venda dos imóveis, decidida, entre outros, pelos Requerentes, mas sim a vontade do testador, constituindo um encargo testamentário, que os Requerentes aceitaram cumprir quando aceitaram os legados de que beneficiaram.
A particularidade resulta de o vencimento de tal obrigação, bem como a sua quantificação, ter ficado a sujeita a termo incerto, à verificação de um dos factos enumerados pelo testador, entre os quais a venda dos imóveis legados.
Mas tal não implica que a venda dos imóveis e o estabelecimento do encargo testamentário, ainda que relativo a tais imóveis, não sejam negócios jurídicos totalmente distintos.
Não existe aqui qualquer violação do princípio da capacidade contributiva: o que a lei tributa é o rendimento-acréscimo – a mais-valia – realizada pela venda de imóveis.
O destino do produto da venda (do rendimento - mais–valia - obtido) é fiscalmente irrelevante, salvo as exceções que a lei consigna: se aquele que obteve o rendimento o aforrou, o utilizou em consumo ou para o cumprimento de obrigações, vencidas antes ou depois da venda, tal é irrelevante, pois o que se tributa é o rendimento obtido, independentemente da utilização que lhe vier a ser dado.
Por último, não cumpre a este tribunal arbitral, por manifestamente fora do objeto do processo (apreciação da legalidade das liquidações impugnadas), pronunciar-se sobre as consequências da existência de tal encargo testamentário em relação ao Imposto do Selo.
2- Existindo ilegalidade nas liquidações impugnadas, tal não significa que devam ser anuladas na totalidade, como peticionam os Requerentes.
É hoje pacífico o entendimento que a liquidação é um ato divisível, devendo o tribunal concluir pela sua anulação parcial (anulação limitada à extensão da ilegalidade), sendo o caso e se para tal tiver elementos suficientes.
Ora, cada um dos Requerentes pretendeu ver reconhecido o seu direito a deduzir, para efeitos de cálculo da mais-valia imobiliária tributável, a título de despesas com a alienação, as quantias de € 3.995,50 (honorários de advogado) e de € 45.000,00 (pagamento à F...).
Procede o primeiro pedido e não o segundo, pelo que a anulação das liquidações impugnadas deve ser parcial.
Assim, a anulação é restringida ao montante de imposto liquidado adicionalmente de forma ilegal por não ter sido tida em conta, no cálculo da mais-valia imobiliária tributável a cada um dos Requerentes, a referida quantias de € 3.995,50
3- Juros indemnizatórios
Os Requerentes têm direito a juros indemnizatórios, nos termos do artº 43º, nº 1, da LGT, pois as liquidações impugnadas são parcialmente ilegais.
Na realidade, estamos perante um “erro dos serviços” que, em liquidações oficiosas, parcialmente, aplicou incorretamente a lei.
A base de cálculo de tais juros será, como é de lei, o montante do imposto indevidamente pago.
V- Decisão arbitral
Anulam-se parcialmente as liquidações impugnadas, devendo, em execução de sentença, ser as mesmas reformadas, sendo considerado, relativamente a cada um dos Requerentes, o montante de € 3.995,50 para efeitos de aplicação do disposto na al. a), do n.º 1, do art. 51.º do CIRS.
Ao montante a ser devolvido a cada Requerente acrescerão juros indemnizatórios, calculados, nos termos legais, sobre tal valor.
VALOR: € 40.329,96.
CUSTAS na proporção do decaimento, que foi de 91,85% pelos Requerentes e 8,15% pela Requerida.
25 de junho de 2021
O árbitro
Rui Duarte Morais