DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Dra. Alexandra Coelho Martins (árbitro presidente), Dr. Armando Oliveira e Prof. Doutor Rui Miguel de Sousa Simões Fernandes Marrana (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o presente Tribunal Arbitral, constituído em 2 de outubro de 2020, acordam no seguinte:
I. RELATÓRIO
A..., S.A., pessoa coletiva com o número único de matrícula..., com sede na Rua ..., ..., ...-... Porto, na qualidade de representante legal de B... A.C.E., Agrupamento Complementar de Empresas com sede no ..., lote..., ...-..., ..., ..., com o número único de matrícula e pessoa coletiva ..., doravante B..., “Requerente” ou “ACE”, veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral e deduzir pedido de pronúncia arbitral (“ppa”), nos termos do disposto na alínea a) do número 1 do artigo 2.º; na alínea a) do número 3 do artigo 5.º e no n.º 2 do artigo 10.º, todos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na redação vigente.
É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante também identificada por “AT” ou Requerida.
O Requerente visa a declaração de ilegalidade e anulação dos atos tributários de liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”) e correspondentes juros compensatórios, referentes aos períodos compreendidos entre janeiro de 2016 e outubro de 2019, emitidos na sequência da ação inspetiva aos exercícios de 2016 a 2019 do Requerente, no valor global de € 155.297,11, sendo € 139.953,32 de IVA e € 15.344,09 de juros compensatórios, por erro (nos pressupostos) de direito.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 14 de julho de 2020 e, de seguida, notificado à AT.
De acordo com o preceituado nos artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Exmo. Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, aqui signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As Partes, notificadas dessa designação, não manifestaram vontade de a recusar.
O Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 2 de outubro de 2020.
Por requerimento de 9 de novembro de 2020, a Requerida solicitou a prorrogação do prazo para apresentação da Resposta e junção do Processo Administrativo (“PA”), o que foi deferido pelo Tribunal, por se entender justificado.
Em 23 de novembro de 2020, a Requerida apresentou a sua Resposta, na qual se defende por impugnação, pugnando pela improcedência da ação, por não provada, e pela absolvição dos pedidos, com as legais consequências. Procedeu à junção do PA.
Por despacho de 25 de novembro de 2020, o Tribunal Arbitral determinou a dispensa realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, por desnecessidade, ao que as Partes não se opuseram.
Subsequentemente, foram as Partes notificadas para apresentarem alegações escritas, facultativas e sucessivas, advertindo-se o Requerente da necessidade de pagamento da taxa arbitral subsequente até à data de prolação da decisão arbitral, que foi fixada no termo do prazo previsto no artigo 21.º, n.º 1 do RJAT (v. despacho de 16 de dezembro de 2020).
Requerente e Requerida optaram por não apresentar alegações.
Por despachos de 18 de março e de 17 de maio de 2021, o Tribunal Arbitral determinou a prorrogação sucessiva, por dois meses, do prazo de prolação da decisão arbitral, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 21.º, n.º 2 do RJAT, decorrente da interposição de férias judiciais e da situação pandémica (Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro), tendo a contagem dos prazos ficado suspensa por aplicação do regime excecional de suspensão dos prazos, previsto na Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, que cessou por efeito da Lei n.º 16/2020, de 29 de maio.
POSIÇÃO DO REQUERENTE
O Requerente baseia a sua pretensão em vício de erro de direito, alegando que, ao contrário do que entendeu a AT, os serviços por si prestados beneficiam da isenção prevista no artigo 9.º, n.º 21 do Código do IVA, por se verificarem as respetivas condições objetivas e subjetivas.
Sustenta ser errónea a interpretação da AT segundo a qual o facto de um dos membros do agrupamento não exercer uma atividade isenta, por dispor, em certo momento, de uma percentagem de dedução superior a 10%, não cumprindo, por isso, o disposto no n.º 22 do citado artigo 9.º, implica a perda da isenção, por “contaminação”, das operações efetuadas em benefício dos demais membros do agrupamento [aqui Requerente] que sejam considerados isentos, satisfazendo a condição do n.º 22 do artigo 9.º por não terem uma percentagem de dedução superior aos referidos 10%.
Neste âmbito, o Requerente invoca o princípio da neutralidade, as interpretações consonantes da jurisprudência do Tribunal de Justiça, do Supremo Tribunal Administrativo, a posição da Comissão Europeia - Comité do IVA e o entendimento de JOSÉ GUILHERME XAVIER DE BASTO.
POSIÇÃO DA REQUERIDA
Defendendo posição oposta, a Requerida invoca o entendimento veiculado no Ofício-Circulado n.º 30084/2005, de 2 de dezembro de 2005, no sentido de que a isenção prevista no artigo 9.º, n.º 21 (à data n.º 23) é condicionada pelo facto de o agrupamento autónomo dever ser constituído exclusivamente por membros que exerçam atividades isentas (ou não sujeitas) e de qualquer desses membros não dispor de uma percentagem de dedução (pro rata) superior a 10%.
Nestes termos, a isenção deixa de aplicar-se quando o agrupamento disponha de, pelo menos, um membro com uma percentagem de dedução (pro rata) superior a 10%, o que sucedeu no caso, havendo lugar à tributação das prestações de serviços prestadas pelo agrupamento aos seus membros, mesmo àqueles que tenham uma percentagem de dedução igual ou inferior a 10%, sem que tal viole o direito da União Europeia.
Por fim, a Requerida considera que a interpretação das normas de isenção de IVA deve ser declarativa e em sentido estrito, em linha com o acervo jurisprudencial do Tribunal de Justiça.
II. SANEAMENTO
O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria para conhecer dos atos de liquidação de IVA e de juros compensatórios, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, todos do RJAT.
As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (v. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
A ação é tempestiva, tendo o pedido de pronúncia arbitral sido apresentado no prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, de acordo com a remissão operada para o artigo 102.º, n.º 1 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), aplicando-se, neste caso, a respetiva alínea a), descontado o efeito suspensivo estabelecido no regime excecional do Covid-19, entre 9 de março e 3 de junho de 2020 (v. Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril, cessando a suspensão dos prazos por efeito da Lei n.º 16/2020, de 29 de maio),
Não foram identificadas questões prévias a apreciar. O processo não enferma de nulidades.
III. QUESTÃO A APRECIAR
A questão a apreciar é de direito e reside em saber se o facto de um dos membros de um agrupamento autónomo de pessoas ter uma percentagem de dedução superior a 10%, não cumprindo, portanto, a condição estabelecida no artigo 9.º, n.º 22 do Código do IVA, implica que as operações realizadas com os outros membros do agrupamento que satisfaçam esse requisito, i.e., que tenham uma percentagem de dedução igual ou inferior a 10%, percam o benefício da isenção, quando em relação a estes membros estejam verificadas todos os demais pressupostos constitutivos da isenção.
IV. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
1. DE FACTO
Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:
A. O aqui Requerente, B... A.C.E., era um Agrupamento Complementar de Empresas (“ACE”), cuja atividade se iniciou em 25 de outubro de 2010 para a realização de “Atividades de Programação Informática”, sob o CAE 62010, abrangendo a prestação de serviços especializados na área de tecnologias informáticas, em particular serviços de engenharia de software – cf. Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”), junto pelo Requerente como documento 3.
B. O Requerente foi enquadrado, para efeitos de IVA, no regime normal de periodicidade trimestral, tendo passado a mensal a partir de 1 de janeiro de 2014 – cf. RIT.
C. O Requerente era constituído por dois membros, ambos sociedades anónimas:
a) A C..., S.A. (NIF...), enquadrada em IVA como sujeito passivo com direito à dedução integral do IVA; e
b) O A..., S.A. (...), enquadrado em IVA como sujeito passivo misto, com um pro rata não superior a 10%,
– cf. RIT.
D. Nos períodos relevantes para a situação dos autos – de 2016 a 2019 – o Requerente faturou ambos os membros que o constituíam pelos serviços de programação informática prestados, aplicando dois regimes de IVA:
a) Na faturação emitida à C..., S.A. liquidou IVA à taxa normal;
b) Na faturação emitida ao A..., S.A. não liquidou IVA, invocando a isenção do artigo 9.º, 21) do Código do IVA,
– cf. RIT.
E. A B... foi dissolvida e a respetiva liquidação encerrada a 26 de dezembro de 2019, tendo sido publicado, em 2 de janeiro de 2020, o respetivo ato de registo de dissolução e encerramento da liquidação. Neste âmbito, foi designado depositário o A..., S.A. – cf. RIT.
F. No âmbito da dissolução da B..., esta entidade apresentou um pedido de reembolso de IVA na Declaração Periódica referente a outubro de 2019, no valor de € 50.727,70, correspondente à totalidade do crédito de imposto apurado nesse período – cf. RIT.
G. O crédito de imposto em causa iniciou-se no período de dezembro de 2018 e resultou das operações realizadas com vista à cessação da atividade, nomeadamente, de ajustamentos na emissão de faturação final em janeiro de 2019, resultando na redução da base tributável sujeita a IVA no período de dezembro de 2018 com o consequente apuramento de crédito – cf. RIT.
H. Face ao aludido pedido de reembolso, ao qual foi atribuído o n.º..., foi desencadeado um procedimento inspetivo ao Requerente, de âmbito parcial (IVA), ao abrigo da Ordem de Serviço OI2019..., para o período de outubro de 2019 – cf. RIT.
I. Face à identificação, por parte dos Serviços de Inspeção Tributária, de alegada falta de liquidação de IVA, afetando os períodos de reporte de crédito desde o seu início, em dezembro de 2018, e, bem assim, nos períodos anteriores:
a) Por despacho de 6 de janeiro de 2020, foi alterado o âmbito da OI2019..., adicionando-lhe o período de janeiro de 2019; e
b) Por despacho de 20 de dezembro de 2019, foram abertas as OI2019..., OI2019... e OI2019..., abrangendo os anos 2016, 2017 e 2018, mantendo-se o âmbito parcial (IVA),
– cf. RIT.
J. Em 22 de janeiro de 2020, o Requerente foi notificado do Projeto de Relatório de Inspeção Tributária que propunha:
a) Por um lado, o deferimento parcial do pedido de reembolso de IVA no montante de € 48.993,91, inferior (corrigindo-o) em € 1.733,79 ao pedido inicial formulado pelo Requerente;
b) Por outro lado, a liquidação adicional de IVA abrangendo os exercícios de 2016, 2017 e 2018 nos seguintes de € 63.333,50, € 48.629,89 e € 26.785,59, respetivamente – cf. Projeto de Relatório junto pelo Requerente como documento 1.
c) As correções projetadas assentam na inaplicabilidade da isenção de IVA prevista no artigo 9.º, 21) do Código deste imposto, de acordo com a a doutrina veiculada pelo Ofício-Circulado n.º 30084/2005, decorrente do facto de um dos membros do ACE [o aqui Requerente] ter um nível de dedução superior a 10%, pelo que a faturação emitida ao A..., S.A. (cujo pro rata era inferior) deveria ter sido emitida com liquidação de IVA, encontrando-se este imposto em falta – cf. Projeto de Relatório junto pelo Requerente como documento 1.
d) O Requerente exerceu o direito de audição em 5 de fevereiro de 2020, por não concordar com as correções projetadas – cf. documento 2 junto pelo Requerente.
K. Em 18 de fevereiro de 2020, o Requerente foi notificado do Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”), que manteve as correções propostas no Projeto, infra discriminadas:
a) De € 1.733,79 – referente aos períodos de dezembro de 2018 e janeiro de 2019 (o que resultou no deferimento parcial do reembolso no valor de € 48.993,91);
b) De € 63.333,50 – referente a 2016;
c) De € 48.629,89 – referente a 2017;
d) De € 26.785,59 – referente a 2018 (exceto dezembro),
– cf. RIT e PA.
L. Como fundamento destas correções a Requerida mantém o argumento de que a isenção do artigo 9.º, 21) do Código do IVA deve ser interpretada no sentido veiculado no Ofício-Circulado n.º 30084/2005, de 2 de dezembro, i.e.: o sujeito passivo “fica impedido de invocar a isenção prevista no nº 21 do artigo 9º do CIVA (nº 23 aquando da elaboração do ofício circulado): «Nas situações em que os ACE’s disponham de, pelo menos, um membro com uma percentagem de dedução (prorata) superior a 10% [no caso a C..., S.A.] não se aplica a isenção referida no nº 23 do artigo 9º do CIVA [que foi aplicada na faturação ao A..., S.A.], pelo que haverá lugar à tributação das prestações de serviços efetuadas pelos agrupamentos aos seus membros, salvo, obviamente, se tais serviços estiverem fora do âmbito de incidência do IVA ou lhes for aplicável outra isenção prevista no Código do IVA ou em legislação complementar.»” – cf. RIT.
M. Em 4 de março de 2020, o Requerente foi notificado dos atos tributários de liquidação de IVA e juros compensatórios inerentes, relativos aos períodos compreendidos entre janeiro de 2016 e outubro de 2019, no valor global de € 139.953,32 de IVA (€ 138.219,53 + € 1.733,79), adicionado de € 15.344,09 de juros compensatórios, perfazendo o total de € 155.297,41, com datas-limite de pagamento em 15 e 16 de abril de 2020 – cf. documento 4 junto pelo Requerente com as demonstrações de liquidação de IVA e de juros e as demonstrações de acerto de contas.
N. Inconformado com os atos tributários de liquidação de IVA e de juros compensatórios antes referidos, o Requerente apresentou no CAAD, em 14 de julho de 2020, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral e de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo – cf. registo de entrada do ppa no SGP do CAAD.
2. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, não tendo o Tribunal de se pronunciar sobre todas as alegações das Partes.
Não se deram como provadas nem não provadas as alegações feitas pelas Partes e apresentadas como factos, consistentes em meros juízos conclusivos, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.
No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros fundou-se, essencialmente, na análise crítica da prova documental junta aos autos, tendo em conta a posição assumida pelas Partes em relação aos factos essenciais, que é consensual, não tendo sido indicada, nem produzida prova testemunhal.
3. FACTOS NÃO PROVADOS
Com relevo para a decisão, não se identificaram factos alegados que devam considerar-se não provados.
V. DO MÉRITO: A ISENÇÃO DE IVA DOS GRUPOS AUTÓNOMOS DE PESSOAS
O único fundamento das liquidações adicionais de IVA e de juros compensatórios controvertidas é de direito e prende-se com a interpretação restritiva do artigo 9.º, 21) do Código deste imposto, preconizada pela Requerida, no sentido de que a isenção dos agrupamentos constituídos por membros que exerçam uma atividade isenta ou não sujeita a imposto deixa de ser aplicável quando também façam parte do agrupamento entidades que desenvolvem atividades tributadas, mesmo em relação aos serviços prestados aos membros isentos.
Assim, a questão que releva apreciar é exclusivamente a de saber se, para efeitos da isenção de IVA, o agrupamento, no caso do Requerente, um ACE, tem de ser constituído exclusivamente por membros que exerçam atividades isentas ou não sujeitas a IVA, ou se pode incluir um ou mais membros que realizem atividade(s) tributada(s), sem que tal circunstância obste à aplicação da isenção aos restantes membros do agrupamento, conquanto se verifiquem em relação a estes as demais condições previstas.
A norma de isenção em análise tem origem no artigo 132.º, n.º 1, alínea f) da Diretiva IVA (Diretiva 2006/112/CE, do Conselho, de 28 de novembro de 2006 ), que uniformiza a base tributável deste imposto na União Europeia, e que dispõe nos seguintes termos:
“1. Os Estados–Membros isentam as seguintes operações:
[…]
“f) As prestações de serviços efetuadas por agrupamentos autónomos de pessoas que exerçam uma atividade isenta ou relativamente à qual não tenham a qualidade de sujeito passivo, tendo em vista prestar aos seus membros os serviços diretamente necessários ao exercício dessa atividade, quando os referidos agrupamentos se limitarem a exigir dos seus membros o reembolso exato da parte que lhes corresponde nas despesas comuns, desde que tal isenção não seja suscetível de provocar distorções de concorrência;”.
As Diretivas que antecederam a Sexta Diretiva (Diretivas 67/227/CEE e 67/228/CEE, ambas de 11 de abril de 1967) não contemplavam esta isenção, que foi acolhida pela primeira vez na Sexta Diretiva, com o objetivo de permitir a neutralidade em operações de partilha de custos.
O artigo 9.º, 21) do Código do IVA transpõe a citada norma de direito europeu e determina que estão isentas do imposto:
“As prestações de serviços fornecidas aos seus membros por grupos autónomos de pessoas que exerçam uma atividade isenta, desde que tais serviços sejam diretamente necessários ao exercício da atividade e os grupos se limitem a exigir dos seus membros o reembolso exato da parte que lhes incumbe nas despesas comuns, desde que, porém, esta isenção não seja suscetível de provocar distorções de concorrência;”.
Ressalta da comparação das duas normas (da Diretiva IVA e do Código do IVA) que a sua redação é muito similar, sendo o termo “agrupamentos” utilizado na Diretiva traduzido, no Código do IVA, pela expressão distinta, mas equivalente, de “grupos”. A principal e única diferença substantiva que se identifica é a de a norma de direito interno omitir a circunstância de os membros que beneficiam da isenção também poderem exercer uma atividade “relativamente à qual não tenham a qualidade de sujeito passivo”, o que na situação em apreço não tem qualquer implicação prática, pois ambos os agrupados do Requerente são sujeitos passivos de IVA.
Esta isenção visou permitir que os sujeitos passivos a quem não assiste o direito à dedução do IVA se organizassem em centros de partilha de custos ou de serviços partilhados, sem sofrer o agravamento do IVA, principalmente quando aqueles comportem uma significativa componente de meios humanos e de custos com pessoal.
Com efeito, sem isenção, a repartição ou repercussão desses custos (salariais) aos membros do agrupamento (ou entre estes) seria onerada com IVA, indedutível na esfera daqueles, desincentivando a colaboração e promovendo o fenómeno de integração vertical e de internalização de funções de suporte, com perda de neutralidade e de eficiência económica .
De referir ainda que o legislador nacional ficcionou que os membros do agrupamento ainda exercem uma atividade isenta se a sua percentagem de dedução não for superior a 10%, de acordo com o n.º 22 do artigo 9.º do Código do IVA .
Convém notar que os ACE foram instituídos em Portugal pela Lei n.º 4/73, de 4 de junho, complementada pelo Decreto-lei n.º 430/73, de 25 de agosto, como entidades de substrato associativo, dotadas de personalidade jurídica e constituídas por pessoas singulares, coletivas ou sociedades, “a fim de melhorar as condições de exercício ou de resultado das suas atividades económicas”.
Adicionalmente, a atividade dos ACE não apresenta um escopo lucrativo (só a título meramente acessório, e quando autorizado expressamente pelo respetivo ato constitutivo, o ACE pode ter por fim a realização e partilha de lucros), uma vez que o objetivo principal de um agrupamento desta natureza é o da melhoria das condições de exercício ou de resultado das atividades das entidades agrupadas.
As isenções de IVA são delimitadas por conceitos autónomos de direito europeu, que têm por objetivo evitar divergências na sua aplicação, cabendo ao Tribunal de Justiça a competência para a sua interpretação, de harmonia com o disposto no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”).
No acórdão de 11 de dezembro de 2008, proferido no processo C-407/07, Stichting , o Tribunal de Justiça pronunciou-se sobre a teleologia e alcance da disposição da Diretiva IVA que consagra a isenção dos grupos autónomos de pessoas (artigo 132.º, n.º 1, alínea f), à data dos factos, artigo 13.ºA, n.º 1, alínea f) da Sexta Diretiva) a propósito da questão de saber se as prestações de serviços efetuadas a apenas um ou a alguns dos membros do agrupamento, beneficiam da isenção.
Ainda que não verse exatamente sobre a mesma questão que se suscita nesta ação, assume manifesta relevância em relação ao ponto essencial que reside em determinar se os pressupostos constitutivos da isenção são aferidos, de forma independente, relativamente a cada agrupado, bastando que se verifiquem quanto a este na sua relação (binária) com o agrupamento, ou se, diversamente, assumem dimensão poligonal ou multipolar (implicando, neste último caso, o preenchimento dos pressupostos em todos outros agrupados).
O acórdão começa por salientar, em linha com a Requerida, que os termos usados para designar as isenções de IVA são de interpretação estrita, “dado que constituem exceções ao princípio geral segundo o qual o IVA é cobrado sobre cada prestação de serviços efetuada a título oneroso por um sujeito passivo)” . Todavia, essa interpretação deve ser feita em conformidade com os objetivos prosseguidos pelas isenções e respeitar as exigências do princípio da neutralidade fiscal inerente ao sistema comum do IVA, não devendo privá-las dos seus efeitos ou torná-las quase inaplicáveis na prática.
Assim, o Tribunal de Justiça, alicerçado na teleologia da isenção em causa, que é a de “evitar que a pessoa que oferece certos serviços seja sujeita ao pagamento do referido imposto quando tenha sido levada a colaborar com outros profissionais através de uma estrutura comum encarregue das atividades necessárias à realização dos referidos serviços” conclui que não pode ser conferido a cada membro do agrupamento “o direito de privar os outros membros desse agrupamento do benefício da isenção do IVA” .
Continuando a aplicar o critério da aferição independente dos requisitos desta isenção em relação a cada membro individualmente considerado, o Tribunal de Justiça, no acórdão de 20 de novembro de 2019, proferido no processo C-400/18, Infohos, declina que a prestação de serviços pelo agrupamento a entidades terceiras, que não sejam membros do agrupamento, tenha por efeito a quebra do regime de isenção de IVA em relação aos serviços prestados aos seus membros (se os demais requisitos estiverem reunidos quanto a estes).
Sem prejuízo de aí afirmar que a referida isenção só pode ser concedida para as prestações de serviços efetuadas por agrupamentos autónomos de pessoas aos seus membros, conclui que não se pode deduzir do texto legal que o agrupamento esteja vinculado a prestar serviços unicamente aos, e em benefício exclusivo dos, seus membros . Em síntese, de acordo com a jurisprudência europeia, sem prejuízo de as prestações de serviços efetuadas a não membros não poderem beneficiar desta isenção, tal não exclui, nem pode limitar a isenção de IVA aplicável às prestações efetuadas pelo agrupamento aos seus membros, não ocorrendo qualquer contaminação entre uns e outros .
A específica questão de direito em discussão nos autos foi suscitada e apreciada pelo Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão de 12 de fevereiro de 2014, processo n.º 01231/12, em que se colocou precisamente a dúvida, num caso análogo, sobre se a ultrapassagem dos 10% na percentagem de dedução por parte de um dos membros do agrupamento conduziria à perda do benefício da isenção de IVA aplicável aos outros agrupados.
Fazendo apelo a diversos subsídios interpretativos, o Supremo Tribunal Administrativo veio pronunciar-se no sentido de que a dita ultrapassagem de 10% na percentagem de dedução “apenas tem como consequência passarem a não estarem isentas de IVA as prestações de serviços [do] agrupamento a favor daqueles «elementos do grupo» relativamente aos quais a ultrapassagem do limite se verificou, mantendo-se todavia isentas as operações com os elementos do grupo que mantêm percentagens de dedução não superiores a 10%, respeitadas que sejam, as demais condições de que o nº 23 do artigo faz depender a isenção.”
Este entendimento é, antes de mais, suportado na finalidade da norma de isenção em causa, orientada ao parâmetro da neutralidade, visando evitar ou prevenir alguns dos efeitos adversos das isenções.
Transcreve-se, neste âmbito, um excerto ilustrativo da fundamentação do referido aresto:
“Refere José Guilherme Xavier de Basto (Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, Junho de 2007, livro de homenagem à Drª Teresa Graça Lemos, pag. 180) que a aplicação desta isenção aos agrupamentos complementares de empresas que concentram a produção de serviços de interesse comum às várias empresas de um grupo financeiro – prestando esses serviços sem qualquer “valor acrescentado”, ou seja, limitando-se a distribuir pelos seus membros os custos suportados, tem particular interesse, pois que se ajusta “à necessidade de evitar que a aplicação do IVA a essas operações torne insustentável a concentração, no agrupamento às sociedades do grupo (…) introduzindo assim um custo fiscal que não existiria se idênticos serviços fossem prestados, como operações internas, dentro de cada uma das sociedades do grupo”
Sublinha assim aquele autor que esta isenção prevista no nº 23 do artigo 9º do CIVA não deve ser entendida como qualquer benefício fiscal ao agrupamento ou aos seus membros. Trata-se apenas de evitar o agravamento das consequências negativas do regime de isenção, consequências que se traduziriam, a não existir a isenção, na liquidação de IVA sobre os serviços de uso produtivo, sem que pudesse haver dele dedução.
Com efeito “o funcionamento normal do IVA assegura, como bem se sabe, que a tributação das operações intermediárias é «imaterial»: à liquidação do imposto por parte do vendedor ou prestador de serviços corresponderá a dedução imediata desse mesmo imposto por parte do comprador ou destinatário dos mesmos serviços.
Quando, porém, se trata de sujeitos passivos isentos, rompe-se a cadeia de liquidação e dedução que garante a neutralidade do tributo, pois que as isenções em IVA (salvo excepções…..) implicam perda do direito de deduzir o imposto suportado a montante». (Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, Junho de 2007, livro de homenagem à Drª Teresa Graça Lemos, pag. 182.)
O objectivo de manter tanto quanto possível a neutralidade do tributo conduziu também o legislador a aperfeiçoar o regime da isenção desse nº 23 do artigo 9º, admitindo que ela também se aplique a agrupamentos cujos membros exercem uma actividade não totalmente isenta de IVA.
Com esse intuito foi aditado pelo decreto-lei nº 204/97 um nº 23- A ao artº 9º, disposição essa que passou a considerar que os membros do grupo autónomo ainda exerciam uma actividade isenta, desde que a percentagem de dedução determinada nos termos do artigo 23.º não fosse superior a 5 %, percentagem posteriormente fixada em 10% pela Lei 87-B/98 de 31 de Dezembro.
Desta evolução legislativa no tratamento isenções previstas nos números 23 e 23-A do artigo 9º do CIVA parece, pois, resultar claro que foi intenção do legislador não introduzir custos de IVA em operações intermediárias, em transacções no interior de circuito produtivo e remover obstáculos fiscais ao exercício de uma actividade quando ela assume uma particular forma de organização.
[…]
Como se viu o legislador teve a intenção de não introduzir custos de IVA em operações intermediárias, em transacções no interior de circuito produtivo, intenção essa já patente na norma que lhe deu origem, o artigo 13.º, A, n.º 1, alínea f), da Sexta Directiva, e que ficou exarada no Acórdão do TJUE de 11.12.2008, processo C-407/2007, onde se refere que a finalidade desta disposição « é instituir uma isenção do IVA para evitar que a pessoa que oferece certos serviços seja sujeita ao pagamento do referido imposto quando tenha sido levada a colaborar com outros profissionais através de uma estrutura comum encarregue das actividades necessárias à realização dos referidos serviços».
Ora, como sublinha Xavier de Basto (ob. referida, pags. 189 a 191) a tese da Fazenda Pública, que é afinal a doutrina do ofício circulado nº 30084/2005, não vem na linha desta interpretação nem “mostra preocupação com as consequências que resultam, em termos de neutralidade fiscal, de fazer cessar a isenção para todas as operações do agrupamento com os seus membros, quando só um ou alguns deles, mas não todos, deixaram de preencher uma das condições da isenção — a de que o pro rata de dedução não tenha excedido os 10%.”
Consequências essas que são, nomeadamente, a perda da racionalidade técnica e económica da tributação, a introdução de efeitos cumulativos ou de cascata, uma vez que o imposto que se obriga o agrupamento complementar de empresas a liquidar só muito parcialmente é dedutível pelo utilizador, que é um utilizador produtivo, não um consumidor final e o sacrifício da lógica da tributação do consumo (ob. citada, pag 191).
Assim, considerando que a lei não define, para nenhum efeito, o grupo autónomo de pessoas, usando propositadamente, uma linguagem não técnica, aberta a todas as formas e modelos (grupo autónomo de pessoas) concluímos, acompanhando aquele autor que a circunstância de, no caso concreto das instituições financeiras, o grupo se moldar como agrupamento complementar de empresas, sob uma forma jurídica determinada, não deve alterar as condições de reconhecimento da isenção.
Ou seja, apesar de algum ou alguns dos seus membros terem excedido o limite dos dez por cento e de, por esse facto, o agrupamento, tal como foi constituído, deixar de estar nas condições previstas no número 23-A do artigo 9º tal não implica, como pretende a recorrente, que deixou de existir um grupo autónomo de pessoas em condições de beneficiar da isenção.”
Além do elemento teleológico, o Supremo Tribunal Administrativo convoca o elemento sistemático, que retira da possibilidade de opção pela tributação que havia sido introduzida com a Lei do Orçamento do Estado para 2002 , na alínea d) do n.º 1 do artigo 12.º do Código do IVA. Estabelecia essa alínea a faculdade de renúncia à isenção de IVA para “Os grupos autónomos de pessoas que exerçam uma atividade isenta nos termos do n.º 23 [atual nº 21] do artigo 9.º, quando a percentagem de dedução de pelo menos um dos seus membros não seja superior à prevista no n.º 23-A [atual n.º 22] do mesmo artigo”. Desta forma, permitia-se a renúncia à isenção do IVA por parte do agrupamento quando, pelo menos, um dos seus membros registasse uma percentagem de dedução inferior a 10%, o que implica a conclusão (logicamente necessária e não apenas contingente) de que seria possível para o legislador a coexistência, no seio do ACE, de membros com atividades sujeitas e isentas, mantendo-se a isenção nos serviços prestados a membros isentos. Apesar de a mencionada alínea d) ter sido entretanto revogada (pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de dezembro), a consistência do argumento mantém-se.
Não vemos qualquer razão para nos afastarmos da solução sufragada pelo Supremo Tribunal Administrativo, em harmonia com a interpretação da norma de isenção prevista na Diretiva IVA (artigo 132.º, n.º 1, alínea f)) preconizada pelo Tribunal de Justiça. Motivo pelo qual se conclui que, atentas as considerações supra expostas, enferma de erro de direito a interpretação da Requerida, devendo ser anuladas as liquidações de IVA e de juros compensatórios correlativos, por procedência do vício substantivo de violação de lei, em conformidade com o disposto no artigo 163.º, n.º 1 do novo CPA, por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea d) do RJAT.
VI. DECISÃO
À face do exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em julgar a ação totalmente procedente e anular as liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios impugnadas, relativas a 2016, 2017 e 2018, com as legais consequências.
VII. VALOR DO PROCESSO
Fixa-se ao processo o valor de € 155.297,11 correspondente ao valor das liquidações de IVA e juros compensatórios cuja anulação é peticionada pelo Requerente – v. artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por remissão do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).
VIII. CUSTAS
Custas no montante de € 3.672,00, a cargo da Requerida, por decaimento, de acordo com a Tabela I anexa ao RCPAT, e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT; 4.º, n.º 5 do RCPAT e 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
Notifique-se.
Lisboa, 30 de junho de 2021
Os árbitros,
Alexandra Coelho Martins
Armando Oliveira
Rui Miguel Marrana