SUMÁRIO:
I. Se da análise do conteúdo da liquidação em conjunto com o relatório da inspecção tributária, do qual também o contribuinte tem conhecimento, a fundamentação do acto tributário resultar cristalina, sem ambiguidades, obscuridades, ou qualquer contradição, não se verifica o vício de falta de fundamentação;
II. Tendo o contribuinte sido ouvido sobre o projecto de relatório de inspeção do qual derivam as liquidações impugnadas e inexistindo novos factos, considerando o disposto no n.º 3 do artigo 60.º da LGT, estamos perante uma situação em que é dispensada nova audiência prévia do contribuinte antes da liquidação;
III. Os gastos suportados, pagos ou devidos, a qualquer título, a pessoas singulares ou colectivas residentes fora do território português, e aí submetidas a um regime fiscal identificado por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças como um regime de tributação claramente mais favorável, são dedutíveis para efeitos fiscais, e não estão sujeitos a tributação autónoma, quando corresponderem a operações efectivamente realizadas e que não tenham um carácter anormal ou um montante exagerado;
IV. Para efeitos do art.º 23.º do CIRC, apenas são dedutíveis os gastos efectivamente incorridos e devidamente documentados;
V. Tal implica a demonstração de que o bem ou serviço foi adquirido à entidade emitente da documentação de suporte do gasto (factura);
VI. O conceito de remuneração variável previsto no artigo 88.º, n.º 13 do CIRC pressupõe que a quantificação daquela esteja dependente da verificação de um acontecimento futuro e incerto;
VII. Tendo a AT ouvido o contribuinte, relativamente ao imposto donde provém a liquidação de juros compensatórios, já não é legalmente exigível que proceda a nova audição de forma autónoma e distinta;
VIII. A fundamentação de uma liquidação de juros compensatórios deve dar a conhecer, no plano factual, o montante do imposto sobre o qual incidem os juros, a taxa ou taxas aplicáveis e o período da sua contagem, sendo que a factualidade em que há-de radicar o juízo de culpa, não pode ser outra que não aquela que subjaz ao apuramento de imposto entendido em falta, na exacta medida em que se integram neste, nos termos do n.º 8, do art.º 35.º da LGT.
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DECISÃO ARBITRAL
I – RELATÓRIO
1. No dia 21 de Outubro de 2019, A..., LDA., NIPC..., com sede na ..., n.º..., ..., ..., ...-... Estoril, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade do acto de liquidação adicional de IRC n.º 2017..., da liquidação de juros compensatórios n.º 2017... e n.º 2017... e da demonstração de acerto de contas n.º 2017..., referentes ao ano de 2014, no valor de € 272.246,27, assim como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2018... que teve os referidos actos de liquidação como objecto.
2. Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese:
i. vício de falta de fundamentação das liquidações impugnadas;
ii. erro sobre os pressupostos de facto e de direito na aplicação do disposto 23.º-A, n.º 1, alínea r) do Código do IRC por, em seu entender, estar suficiente demonstrado que os serviços prestados pelas sociedades B..., Limited e C... Limited foram efectivamente prestados;
iii. erro sobre os pressupostos de facto e de direito na aplicação do disposto no n.º 8 do artigo 88.º do CIRC, ao sujeitar a tributação autónoma o valor de € 227.700,00, relativo a pagamentos de serviços a entidades com sede em território sujeito a um regime de tributação privilegiado;
iv. erro sobre os pressupostos de facto e de direito, porquanto a AT desconsiderou gastos suportados pela Requerente com empresas portuguesas, no valor de € 195.081,92;
v. erro sobre os pressupostos de facto e de direito na aplicação do disposto na alínea b) do n.º 13 do artigo 88.º do CIRC, ao sujeitar a tributação autónoma o valor de € 66.500,00, relativo a alegadas remunerações variáveis pagas aos gerentes da Requerente;
vi. vícios de falta de audição prévia e de falta de fundamentação da liquidação de juros compensatórios.
3. No dia 23-10-2019, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.
4. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
5. Em 13-12-2019, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.
6. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 15-01-2020.
7. No dia 19-02-2020, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.
8. No dia 27-10-2020, realizou-se a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, onde foram inquiridas as testemunhas, no acto, apresentadas pela Requerente.
9. Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelas partes, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.
10. Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no art.º 21.º/1 do RJAT, com as prorrogações determinadas nos termos do n.º 2 do mesmo artigo.
11. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
O processo não enferma de nulidades.
Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.
Tudo visto, cumpre proferir:
II. DECISÃO
A. MATÉRIA DE FACTO
A.1. Factos dados como provados
1- A Requerente é uma sociedade com sede em território nacional, que tem como objecto social a prestação de serviços de mediação imobiliária, a que corresponde o CAE 68311.
2- A Requerente encontra-se, e encontrava-se no ano de 2014, enquadrada em sede de IRC, no regime geral de determinação do lucro tributável.
3- A Requerente tomou conhecimento da Lei n.º 29/2012, de 9 de Agosto, que permitiu a cidadãos não residentes em qualquer dos Estados-Membros, através de actividades de investimento, obter uma autorização especial de residência, denominada “Visto Gold” ou “Golden Visa”.
4- A Requerente tinha interesse, enquanto sociedade de mediação imobiliária, na captação da clientela internacional que pretendia beneficiar dos “Vistos Gold”.
5- O programa dos “Vistos Gold” surgiu no contexto da grave crise económica e financeira que Portugal atravessava e que afectou o sector imobiliário.
6- A crise económico-financeira teve um impacto especialmente negativo nos sectores da construção civil e da promoção e mediação imobiliária.
7- A crise económica afectou de forma gravosa o sector da banca, conduzindo a um aumento significativo das taxas de juro no crédito à habitação, o que provocou uma retração dos potenciais clientes nacionais que não conseguiam aceder ao crédito à habitação.
8- Para o sector da mediação imobiliária tornou-se imperativo procurar clientes em novos mercados que permitissem colmatar a quase inexistente procura interna para os imóveis dos seus clientes.
9- A Requerente, tendo constatado que a grande maioria dos potenciais clientes para os “Vistos Gold” era proveniente da China, encetou esforços no sentido de se introduzir nesse mercado e angariar clientela que pudesse estar interessada em adquirir imóveis em Portugal.
10- A angariação de clientes no mercado chinês implicava o domínio da língua, cultura e conhecimento do mercado de origem dos potenciais clientes dos “Vistos Gold” originários daquele país.
11- A Requerente tomou conhecimento das empresas D… Limited, C… Limited, B... Limited e E… Limited.
12- A Requerente celebrou, com cada uma das referidas sociedades, individualmente, um contrato de prestação de serviços, tendo em vista a angariação de clientes no mercado chinês.
13- Nos termos dos referidos contratos, qualquer parceiro local teria direito a uma remuneração pelos serviços prestados, que consistia no pagamento de uma comissão sobre o preço do imóvel efectivamente adquirido.
14- No decurso do ano de 2014, a Requerente mediou a venda de diversos imóveis a cidadãos chineses, por valor superior a € 500.000,00, angariados pelas empresas D... Limited, C… Limited, B… Limited e E… Limited.
15- Estas entidades emitiram à Requerente facturas no montante de €1.425.378,60, para cobrança das comissões de angariação devidas ao abrigo dos respectivos contratos de prestação de serviços.
16- No dia 19-07-2013, a Requerente celebrou um contrato de prestação de serviços com a empresa B..., Limited, com sede em Hong Kong, nos termos do qual esta entidade se obrigaria à promoção do portefólio imobiliário da Requerente na China, sendo remunerada pelos seus serviços com base numa comissão ou assistance fee de 15% sobre o preço de venda da propriedade adquirida pelos clientes por si angariados.
17- O valor da referida comissão ou assistance fee encontrava-se definido de forma a cobrir todos os custos de marketing, promocionais, administrativos e outros em que a B..., Limited incorreria em razão da prestação dos referidos serviços.
18- A B… Limited angariou e apresentou à Requerente a Sra. F..., interessada na aquisição do imóvel que integrava o portefólio imobiliário da Requerente, o Espaço Comercial – loja no Piso ..., tipologia T0, designado pela letra “A”, sito no ..., n.º ..., R/C, Lisboa.
19- O imóvel em causa havia sido objecto de contrato de mediação imobiliária celebrado em 01-05-2014, entre a Requerente e o respectivo proprietário, a G..., S.A., tendo no mesmo sido fixada uma comissão de 28,87% a que acresceria IVA, calculada sobre o valor da renda.
20- Em 17-06-2014, foi celebrado um contrato promessa de compra e venda entre a G..., S.A. e a Sra. F..., nos termos da qual a primeira prometeu vender e a segunda prometeu comprar o Espaço Comercial – loja no Piso 0 tipologia T0, designado pela letra “A” sito no ..., n.º..., R/C, Lisboa, pelo preço de €518.000,00.
21- Em 20-08-2014, por documento particular autenticado, foi celebrado o contrato prometido, referindo-se expressamente que o negócio teve intervenção da Requerente.
22- De acordo com o estabelecido no contrato de mediação imobiliária celebrado entre a Requerente e a G..., S.A., aquela emitiu as competentes facturas para a cobrança da comissão devida pela venda do imóvel em causa, no montante global de €108.190,00, a que acresceu IVA.
23- Por outro lado, a B..., Limited emitiu à Requerente uma factura no valor de €77.700,00, correspondente a 15% do valor de venda do imóvel em causa.
24- Em 28-08-2014, a Requerente efectuou o pagamento do valor de €77.700,00 à Hong B... Limited, juntamente com o pagamento da factura no valor de €87.000,00, corresponde a 15% do valor da venda da propriedade urbana designada pela letra “C”, correspondente ao T2 no 2.º piso, sito na Rua ..., n.º..., em Lisboa, ao Sr. H... .
25- As duas facturas totalizavam o montante de €164.700,00.
26- Por lapso da Requerente, foi dada ordem de transferência de €164.000,00, tendo os 700,00€ em falta sido incluídos na transferência para pagamento da factura no valor de €98.000,00 da propriedade Condomínio ..., apartamento n.º..., designado pela letra “R” sito na Rua ..., n.º ... e n.º..., Cascais, ao Sr. I... .
27- No dia 05-01-2014, a Requerente celebrou um contrato de prestação de serviços com a empresa C... Limited, com sede em Hong Kong, nos termos do qual esta entidade se obrigaria à promoção do portefólio imobiliário da Requerente em Hong Kong e na China, junto de potenciais interessados no investimento imobiliário em Portugal, para efeitos de obtenção de Golden Visa, sendo remunerada pelos seus serviços com base num fee de 10% sobre o preço de venda da propriedade adquirida pelos clientes por si angariados e introduzidos.
28- Os serviços a remunerar através do referido fee incluem a promoção dos serviços da Requerente, publicidade na internet, contactos com os agentes de imigração chineses e contactos com investidores imobiliários chineses
29- A C... Limited impôs, como condição para a finalização da compra e venda, o aumento da comissão a pagar pela Requerente de 10% para 15%.
30- A C... Limited angariou e apresentou à Requerente a Sra. J..., interessada na aquisição de um imóvel que integrava o portefólio imobiliário da Requerente, o apartamento designado pela letra “F” correspondente ao T2 duplex no ... Piso, localizado na Rua ..., n.º ... –... e ... andar, em Lisboa.
31- O imóvel em causa havia sido objecto de contrato de mediação imobiliária celebrado em 01-11-2014, entre a Requerente e o respectivo proprietário, a K..., S.A., tendo no mesmo sido fixada uma comissão de 5%, acrescida de IVA à taxa legal em vigor (23%), bem como 15% acrescido de IVA adicionais correspondente à prestação de serviços de marketing para promoção da propriedade na China e consequente venda da propriedade.
32- Em 28-11-2014, por documento particular autenticado, foi celebrado o contrato de compra e venda do imóvel em causa entre a K..., S.A., e a Sra. J..., nos termos do qual a primeira vende e a segunda compra o referido imóvel pelo preço de €1.000.000,00, referindo-se expressamente que o negócio teve intervenção da Requerente.
33- A Requerente emitiu à K..., S.A., a competente factura para cobrança da comissão devida pela venda do imóvel em causa, no montante global de €200.000,00, a que acresceu IVA.
34- Por sua vez, a Requerente emitiu à C... Limited uma factura no valor de €150.000,00, correspondente a 15% do valor de venda do imóvel em causa.
35- Em 04-12-2014, a Requerente efectuou o pagamento do valor de €150.000,00, à C... Limited.
36- No contrato celebrado com a B... Limited e com a C... Limited, ficou expressamente previsto que estas entidades locais apenas seriam remuneradas na eventualidade de algum dos clientes por si angariados concluírem a compra de um imóvel com a mediação da Requerente.
37- A Requerente era alheia aos meios utilizados pelas empresas B..., Limited e C... para angariar os clientes e ao risco de estas sociedades não serem bem sucedidas na promoção dos imóveis da Requerente.
38- As empresas B… Limited e C… Limited prestaram diversos serviços:
a) realizaram diversas actividades de publicidade, promoção e divulgação no território chinês de imóveis da Requerente;
b) organizaram e realizaram, em diversas cidades da China, conferências e seminários sobre as vantagens e benefícios de viver em Portugal;
c) auxiliaram cidadãos chineses na deslocação a Portugal nas visitas aos imóveis;
d) pagaram as despesas de deslocação, alojamento e alimentação, bem como outras despesas relacionadas com a sua estadia e visita aos imóveis da Requerente;
e) asseguraram o serviço de intérprete, contratando tradutores, para acompanharem os cidadãos chineses em território português;
f) contrataram motoristas para fazer as deslocações dos cidadãos chineses em Portugal, nomeadamente, entre o aeroporto e o hotel, serviços de estrangeiros e fronteias, bancos e restaurantes e os principais pontos turísticos em Portugal;
g) acompanharam os cidadãos chineses na abertura de contas bancárias em Portugal;
h) após a aquisição dos imóveis, assistiram os cidadãos chineses na decoração dos imóveis e na ligação de eletricidade, gás e água para os imóveis adquiridos;
i) prestaram serviços jurídicos aos referidos cidadãos chineses, contratando advogados.
39- Por razões de confidencialidade dos potenciais clientes e de protecção do próprio negócio de empresas como B... Limited e C..., todo o processo de aquisição de imobiliário em Portugal decorria sem que a Requerente tivesse acesso a informação ou contacto directo com os interessados na aquisição de imobiliário.
40- Nos termos dos contratos de prestação de serviços celebrados entre a Requerente e as sociedades B..., Limited e C..., a Requerente estava expressamente proibida de encetar qualquer relação comercial directa com os clientes apresentados por estas empresas.
41- A informação sobre a identidade de um potencial investidor chinês interessado na aquisição de imóvel era mantida confidencial ao longo de todo o processo, apenas sendo revelada à Requerente no momento da concretização do negócio.
42- A Requerente encetou inúmeras diligências junto das empresas B..., Limited e C... Limited, dos seus clientes e dos escritórios de advogados que os acompanharam ao nível da prestação de serviços jurídicos em Portugal, no sentido de obter toda a documentação relevante que permitisse estabelecer a referida relação entre estes intervenientes.
43- Nesse contexto, a Requerente obteve a seguinte documentação:
a) E-mail enviado pela empresa B..., Limited a um dos Sócios-Gerentes da Requerente, solicitando, entre outros, o pagamento dos serviços prestados por aquela empresa relativamente à aquisição, pela sua cliente, Senhora F..., da propriedade Espaço Comercial – loja no Piso 0, tipologia T0, designado pela letra “A” sito no ..., n.º..., R/C, Lisboa, no montante de € 77.700,00;
b) E-mail enviado pelo Banco L... à Senhora J..., solicitando o envio de documentação comprovativa de pagamentos efectuados, o qual foi imediatamente reencaminhado para o Senhor M..., da empresa C... Limited;
c) E-mail enviado pelos advogados da Senhora J... aos Senhores M... e N..., da empresa C... Limited, e aos Sócios-Gerentes da Requerente, juntando cópia da escritura pública de compra.
44- A Requerente deduziu ao lucro tributável os gastos associados aos dois pagamentos efetuados às sociedades B..., Limited e C... Limited, no valor de €77.700,00 e €150.000,00, respectivamente.
45- Em 19-12-2014, foi emitida pela empresa O..., Lda., uma factura no valor de €15.000,00, com o descritivo“assistência operacional de relações públicas e comunicação e elaboração, acompanhamento e execuções de planos de marketing para campanha promocional”.
46- Em 19-12-2014, foi emitida pela empresa P...– Unipessoal, Lda., uma fatura no valor de €45.081,92, com o descritivo “Promoção de produto, conceção de materiais e conceito, consultoria e comunicação”.
47- As empresas O..., Lda., e P...– Unipessoal, Lda., foram criadas a 26-11-2014.
48- A empresa O..., Lda., era constituída pelos dois gerentes da Requerente e a P...– Unipessoal, Lda., era constituída por Q..., e não tinham outros funcionários que não os seus sócios.
49- No dia 02-12-2013, os sócios da Requerente Q... e R... reuniram, tendo em vista a definição do salário anual a pagar aos gerentes da Requerente, por referência ao ano de 2014.
50- Ficou estabelecido nessa reunião que, no ano de 2014, o salário anual dos gerentes da Requerente, seria, em ambos os casos, de €115.000,00 brutos, tendo ficado definido um montante mínimo mensal a pagar, no valor de €2.000,00, sendo o remanescente pago em função das disponibilidades de tesouraria da empresa.
51- Foi estabelecido que, por referência a cada um dos gerentes, a contabilidade da empresa deveria evidenciar, separadamente, o montante de remuneração fixa mínima pago mensalmente (€2.000,00) e o montante da remuneração fixa suplementar pago também mensalmente, em função das disponibilidades de tesouraria da empresa.
52- Em 18-06-2014, os sócios da Requerente, Q... e R..., reuniram tendo em vista a alteração do salário base anual do gerente Q..., para o ano de 2014, tendo ficado acordado que, em função da maior actividade comercial deste no terreno, por comparação com o gerente R..., o mesmo seria acrescido de €16.000,00, passando de €115.000,00 para €131.000,00.
53- As decisões tomadas nas reuniões dos dias 02-12-2013 e 18-06-2014, foram ratificadas pela também sócia da Requerente, a sociedade S..., Lda., em 24-06-2014.
54- Os sócios da Requerente reuniram em assembleia geral, em 26-04-2018, tendo deliberado de forma unânime o seguinte: “exarar e repetir na presente acta da Assembleia Geral as referidas deliberações unânimes por escrito sobre a remuneração dos gerentes da sociedade, no ano de 2014, atribuindo ao Senhor Q..., a remuneração de €131.000,00 (cento e trinta e um mil euros) e ao Senhor R... a remuneração de €115.000,00 (cento e quinze mil euros), sendo, em ambos os casos, pago mensalmente o valor de €2.000,00 (dois mil euros) e o remanescente pago, também mensalmente, em função das disponibilidades de tesouraria da sociedade, sempre e quando esta o permitisse”.
55- A Requerente foi objecto de um procedimento de inspecção tributária externa, em cumprimento da Ordem de Serviço n.º OI2016... .
56- Os Serviços de Inspecção Tributária notificaram a Requerente, no âmbito do procedimento de inspecção tributária, para juntar prova de que os encargos relativos a pagamentos a entidades localizadas em territórios sujeitos a um regime de tributação claramente mais favorável correspondiam a operações efetivamente realizadas e não tinham um carácter anormal ou um montante exagerado.
57- A Requerente apresentou os seguintes documentos por referência a cada uma das vendas:
i) Contrato de mediação imobiliária celebrado entre a Requerente e o proprietário do imóvel;
ii) Contrato-promessa de compra e venda celebrado entre o proprietário do imóvel e o cliente introduzido pela sociedade B..., Limited ou C..., conforme o caso;
iii) Contrato de compra e venda celebrado entre o proprietário do imóvel e o cliente introduzido pela sociedade B..., Limited ou C... Limited, conforme o caso;
iv) Facturas emitidas pela Requerente ao proprietário do imóvel vendido;
v) Facturas emitidas pelas sociedades B..., Limited e C... Limited à Requerente, para cobrança da comissão sobre o valor de venda do imóvel;
vi) Comprovativo da transferência do valor da comissão para as sociedades B..., Limited e C... Limited, conforme o caso.
58- A Requerente foi notificada, através do Ofício n.º..., datado de 13-07-2017, do projecto de relatório de inspecção e para, querendo, exercer direito de audição no prazo de 15 dias.
59- Em 27-07-2017, a Requerente apresentou pedido de prorrogação do prazo para exercício de direito de audição, tendo este pedido sido deferido, por um prazo adicional de 10 dias.
60- Em 10-08-2017, a Requerente exerceu, por escrito, direito de audição prévia.
61- Através do Ofício n.º..., de 23-10-2017 dos Serviços de Inspecção Tributária da Direcção de Finanças de Lisboa, a Requerente foi notificada do relatório de inspecção tributária.
62- Do relatório de inspecção consta, além do mais, o seguinte (fls. 70 e seguintes do RIT):
63- A AT efectuou correcções à matéria colectável de IRC da Requerente, no montante de €422.781,92 relativas à não dedutibilidade, para efeitos fiscais, dos seguintes gastos:
a) gastos com o pagamento de serviços a entidades sedeadas em território sujeito a um regime de tributação privilegiado, no montante de €227.700,00;
b) gastos com o pagamento de serviços a entidades sedeadas em território nacional, no montante de €195.081,92.
64- No que se refere ao imposto apurado em falta, foi considerado em falta o valor de IRC de €191.195,00:
a) €79.695,00 relativo à tributação autónoma, à taxa de 35%, de gastos no montante de €227.700,00, suportados com o pagamento de serviços a entidades sedeadas em território sujeito a um regime de tributação privilegiado;
b) €66.500,00 relativo à tributação autónoma, à taxa de 35%, do montante de alegadas remunerações variáveis pagas aos gerentes da Requerente;
c) €45.000,00, relativo a retenções na fonte em falta, sobre rendimentos pagos a duas entidades não residentes, para efeitos fiscais, em território nacional.
65- Na sequência da inspecção tributária, a Requerente foi notificada do acto de liquidação adicional de IRC n.º 2017..., da liquidação de juros compensatórios n.º 2017 ... e n.º 2017... e da demonstração de acerto de contas n.º 2017..., no valor total de €272.246,27,
66- Em 23-11-2017, a Requerente procedeu ao pagamento das referidas liquidações.
67- A Requerente apresentou reclamação graciosa das referidas liquidações.
68- Por ofício de 06-06-2019, a Requerente foi notificada para, querendo, exercer o direito de audição prévia, nos termos do artigo 60.º da LGT.
69- A Requerente optou por não exercer direito de audição.
70- Por Despacho do Director de Finanças Adjunto da Direcção de Finanças de Lisboa, datado de 19-07-2019, a reclamação graciosa foi indeferida.
A.2. Factos dados como não provados
Não ficou provado que os serviços descritos nas facturas n.º 114/1 e n.º 114/1 emitidas pela O... Lda., e pela P... Unipessoal Lda., tenham sido prestados por aquelas empresas.
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, bem como a prova testemunhal produzida, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13 , “o (...) relatório da inspecção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.
O facto dado como não provado resulta não só da insuficiência de prova a seu respeito mas, igualmente, dos indícios que se verificam de tal não ter acontecido.
Com efeito, tendo em conta a extensão dos serviços facturados pelas empresas em questão, a data de constituição das mesmas e a data da emissão das facturas, não é credível que aqueles hajam sido efectivamente prestados por aquelas.
Por outro lado, o mesmo resultou das declarações de parte, as quais evidenciaram que os serviços terão sido prestados previamente à constituição das sociedades em questão, e que apenas por razões contabilísticas terão sido facturados por aquelas.
Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.
B. DO DIREITO
a. Considerações prévias sobre a ordem de conhecimento dos vícios alegados
Sobre a ordem do conhecimento dos vícios, determina o artigo 124.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e c) do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, que o tribunal apreciará prioritariamente os vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do ato impugnado e, depois, os vícios arguidos que conduzam à sua anulação.
Não tendo sido alegado nenhum vício conducente à nulidade, a apreciação dos vícios é feita pela ordem indicada pela Requerente, desde que se estabeleça entre eles uma relação de subsidiariedade.
Assim sendo, começar-se-á por apreciar-se os vícios atinentes à falta de fundamentação
dos actos de liquidação de IRC.
b. Quanto à falta de fundamentação
Começa a Requerente por alegar a falta de fundamentação dos actos de liquidação de IRC, por não se encontrarem devidamente fundamentados, em violação do artigo 268.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa e do artigo 77. º da Lei Geral Tributária.
Entende a Requerente que, nos actos de liquidação notificados, não são explicitados os fundamentos, quer de facto, quer de direito, que determinaram a sua emissão, sendo indicado apenas um conjunto de valores, sem qualquer identificação quanto à sua natureza ou origem. Sustenta, ainda, a Requerente que, mesmo que se admitisse que o acto de liquidação se pode fundamentar em algum outro documento externo, sempre se teria de exigir uma remissão expressa no próprio acto de liquidação para esse mesmo documento externo, o que também não ocorreu.
Contestando esse entendimento, defende a Requerida que, no caso, a fundamentação é suficientemente clara e inequívoca, tanto que a Requerente, através do pedido arbitral, demonstra ter cabalmente compreendido o quadro fáctico e legal em que assentou a decisão da Requerida e que, por isso, ainda que se admitisse existir deficiências ao nível do discurso fundamentador, tais deficiências degradar-se-iam em meras irregularidades não essenciais, uma vez que tais deficiências permitiram o cabal esclarecimento do seu destinatário, possibilitando-lhe insurgir-se contra elas.
Em face do exposto e tendo em consideração os factos dados como provados, cumpre apreciar esta primeira questão controvertida.
Cumpre, em primeiro lugar, ter em atenção a redacção da norma prevista no artigo 77.º da Lei Geral Tributária e desta retirar o seu conteúdo útil. De acordo com o referido preceito, cuja epígrafe é a Fundamentação e eficácia: “A decisão de procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos anteriores, pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária” e prossegue o segundo número do mesmo artigo, “ A fundamentação dos actos tributários pode ser efetuada de forma sumária, devendo sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação.”
De acordo com DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES e JORGE LOPES DE SOUSA , a Constituição da República Portuguesa garante aos administrados o direito a uma fundamentação expressa e acessível de todos os actos administrativos que afectem os seus direitos ou interesses legalmente protegidos. Ora, tendo em consideração o que se encontra previsto no artigo 120.º do Código de Procedimento Administrativo, ter-se-á como compreendido nesse conceito, os actos tributários. Por outro lado, o artigo 268.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa garante aos interessados a impugnação contenciosa contra quaisquer actos administrativos que sejam lesivos de direitos ou interesses legalmente protegidos. Descortina-se, assim, a razão pela qual o dever de fundamentação dos actos tributários e decisórios de procedimentos tributários surge reforçado no artigo 77.º da Lei Geral Tributária: a proteção dos administrados.
Em suma, impende sobre a AT um dever de fundamentação sobre os actos tributários por ela praticados, devendo obrigatoriamente constar as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos actos tributários, assim como, os prazos e meios de defesa à disposição do contribuinte, conforme o disposto no artigo 77.º, n.º 2 da Lei Geral Tributária.
Trata-se de uma disposição legal que visa assegurar a racionalidade das decisões cometidas à AT, proporcionando um controlo interno do percurso lógico-valorativo encetado pela própria entidade antes de emitir a sua decisão e, que se destina, fundamentalmente, a desempenhar um controlo de legalidade das decisões da AT, permitindo ao contribuinte optar, conscientemente, por cumprir a decisão, conformando-se com a mesma ou cumprir a decisão mas sindicá-la, seja pela via administrativa ou pela via judicial.
Na esteira da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo sobre esta matéria, exige-se que a fundamentação possa ser considerada suficientemente clara e compreensível, nas razões de facto e de direito, para um destinatário médio colocado na situação concreta.
Todavia, mesmo tendo o atrás referido em especial consideração, ainda assim e em face da prova documental produzida, julga-se não ter havido falta de fundamentação da notificação do acto de liquidação.
De facto, cumpre não olvidar que as liquidações impugnadas surgem na sequência do procedimento de inspecção tributária, com incidência no ano de 2014, de que a Requerente foi objecto, tendo a liquidação sido efectuada com base nos factos constantes do Relatório de Inspeção Tributária, que a Requerente, desde a reclamação graciosa, demonstrou compreender, tomando, de maneira fundada, a decisão de não aceitar. Por conseguinte, não será difícil concluir que o destinatário do acto sempre podia saber qual foi a situação de facto ponderada, qual o direito escolhido e o modo como ele foi interpretado e aplicado ao caso concreto.
De resto, a própria Requerente acaba por conceder nisso mesmo – pelo menos de forma
implícita – ao sustentar, também desde a reclamação graciosa, que a remissão para o relatório de inspecção deveria ser explícita.
Contudo, este entendimento é, desde logo, contrariado pelo Acórdão do STA de 19-05- 2004, proferido no processo 0228/03, onde se lê que “Não vale como fundamentação a motivação apresentada posteriormente à prática do ato, nem a constante de peças instrutórias anteriores para as quais não tenha sido feita remissão, expressa ou implícita.”, admitindo-se, assim, que a remissão possa ser implícita, ou seja, decorrente do próprio contexto do acto tributário, ou do qual este emerge.
Neste mesmo sentido, se orienta a jurisprudência do STA que considera que “Apesar da não indicação expressa do preceito legal aplicável, a exigível fundamentação de direito do acto tributário será suficiente com a referência aos princípios jurídicos pertinentes, ao regime legal aplicável ou a um quadro normativo determinado, desde que, em qualquer caso, se possa concluir que aqueles eram conhecidos ou cognoscíveis por um destinatário normal colocado na posição em concreto do real destinatário.” , e que “A exigência legal e constitucional de fundamentação do acto tributário, decorrente dos arts. 268º da CRP, 77º da LGT e 125º do CPA, visa, primacialmente, permitir aos interessados o conhecimento das razões que levaram a Administração a agir, por forma a possibilitar-lhes uma opção consciente entre a aceitação da legalidade do acto e a sua impugnação contenciosa” .
Com efeito, os actos de liquidação em causa foram praticados, como resulta da matéria de facto dada como provada, na sequência de uma inspecção tributária ao exercício de 2014, cujo relatório foi notificado à Requerente contendo a seguinte menção expressa: “Das correcções meramente aritméticas efectuadas à matéria tributável e/ou imposto, sem recurso a avaliação indirecta, cujos fundamentos constam do referido Relatório. A breve prazo, os serviços da AT procederão à notificação da liquidação respectiva, a qual conterá os meios de defesa, bem como o prazo de pagamento, se a ele houver lugar”.
É certo que daquelas demonstrações de liquidação não constava a referência expressa ao relatório de inspecção tributária, mas este já pré-anunciava a emissão daqueles actos e a sua posterior notificação, com um conteúdo em tudo correspondente ao que resulta do relatório, constituem elementos bastantes para que se considere preenchido, in casu, o dever de fundamentação do acto de liquidação .
Este, de resto, tem sido o juízo dos nossos tribunais superiores em casos análogos, podendo a esse respeito conferir-se os Acórdãos do STA de 10-09-2014, proferido no processo 01226/13 , do TCA-Norte de 13-09-2012, proferido no processo 00334/05.8BEBRG , e do TCA-Sul de 23-05-2006, proferido no processo 01156/0614 .
Atento tudo quanto se expôs, no caso, a existir alguma irregularidade (mera irregularidade), limitar-se-ia à falta de referência expressa no acto de liquidação aos elementos identificativos do relatório de inspecção. A este propósito, refere o Acórdão do STA de 14-10-2020, proferido no processo n.º 0213/14.8BECBR que “nem sempre a falta de fundamentação importa a anulação do ato. Não é assim, designadamente, quando o fim visado pela exigência formal preterida tenha sido alcançado por outra via, isto é, quando for de entender que da violação das regras formais não tenha resultado uma lesão efetiva dos valores ou interesses protegidos pela norma que prescreve a formalidade ou exige a sua observância. Nestes casos, em que for de entender que esses valores ou interesses foram acautelados por outra via, o vício de forma torna-se irrelevante, e o incumprimento da norma que prescreve ou exige a formalidade degrada-se no incumprimento de uma formalidade não essencial”.
No caso, a irregularidade não prejudicou a correcta compreensão pela Requerente da relação entre os actos de liquidação e o relatório de inspecção, já que, inclusive, a Requerente imputou outros vícios às liquidações impugnadas. Por isso, e apesar de não haver uma remissão explícita para as conclusões desse procedimento inspetivo, a Requerente, de alguma forma, logrou compreender que os verdadeiros fundamentos das liquidações impugnadas derivavam desse outro ato e, por isso, os convocou para o processo.
Face a tudo quanto se expôs, improcede o alegado vício de falta de fundamentação.
c. Da preterição de formalidade essencial
Invoca a AT a preterição da formalidade prevista no artigo 60.º, n.º 1, alínea a) – direito de audição antes da liquidação – que, em seu entender, conduzirá à anulação dos actos de liquidação impugnados.
Estabelece o artigo 60.º da LGT:
“1 - A participação dos contribuintes na formação das decisões que lhes digam respeito pode efectuar-se, sempre que a lei não prescrever em sentido diverso, por qualquer das seguintes formas:
a) Direito de audição antes da liquidação;
b) Direito de audição antes do indeferimento total ou parcial dos pedidos, reclamações, recursos ou petições;
c) Direito de audição antes da revogação de qualquer benefício ou acto administrativo em matéria fiscal;
d)Direito de audição antes da decisão de aplicação de métodos indirectos, quando não haja lugar a relatório de inspecção;
e) Direito de audição antes da conclusão do relatório da inspecção tributária.
2 - É dispensada a audição:
a) No caso de a liquidação se efectuar com base na declaração do contribuinte ou a decisão do pedido, reclamação, recurso ou petição lhe seja favorável;
b) No caso de a liquidação se efectuar oficiosamente, com base em valores objectivos previstos na lei, desde que o contribuinte tenha sido notificado para apresentação da declaração em falta, sem que o tenha feito.
3 - Tendo o contribuinte sido anteriormente ouvido em qualquer das fases do procedimento a que se referem as alíneas b) a e) do n.º 1, é dispensada a sua audição antes da liquidação, salvo em caso de invocação de factos novos sobre os quais se não tenha pronunciado.
4 - O direito de audição deve ser exercido no prazo a fixar pela administração tributária em carta registada a enviar para esse efeito para o domicílio fiscal do contribuinte.
5 - Em qualquer das circunstâncias referidas no n.º 1, para efeitos do exercício do direito de audição, deve a administração tributária comunicar ao sujeito passivo o projecto da decisão e sua fundamentação.
6 - O prazo do exercício oralmente ou por escrito do direito de audição é de 15 dias, podendo a administração tributária alargar este prazo até o máximo de 25 dias em função da complexidade da matéria.
7 - Os elementos novos suscitados na audição dos contribuintes são tidos obrigatoriamente em conta na fundamentação da decisão.”
Assim, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 60.º da LGT, o contribuinte deve ser ouvido no procedimento antes da liquidação, a não ser que, conforme resulta do n.º 3 do referido artigo, já tenha sido ouvido anteriormente em qualquer das fases do procedimento e não tenham sido invocados factos novos sobre os quais não se tenha ainda pronunciado, caso em que é dispensada a audição antes da liquidação.
No caso sub iudice, a Requerente foi notificada para exercer direito de audição sobre o projeto do relatório de inspeção tributária, nos termos do artigo 60.º da LGT.
Na sequência dessa notificação, a Requerente exerceu o seu direito de audição e, posteriormente, foi notificada do relatório final de inspecção tributária e, mais tarde, das liquidações aqui impugnadas.
A Requerente limita-se a invocar a falta de notificação para o exercício de audição prévia antes da liquidação, sem que alegue que invocou elementos novos na sua resposta e que estes não foram considerados na fundamentação da decisão, nem que foram invocados na decisão factos novos pela AT sobre os quais não teve oportunidade de se pronunciar.
Nestes termos, tendo a Requerente sido ouvida sobre o projecto de relatório de inspecção do qual derivam as liquidações impugnadas e inexistindo novos factos, considerando o disposto no n.º 3 do artigo 60.º da LGT, estamos perante uma situação em que é dispensada a audiência prévia do contribuinte antes da liquidação, pelo que improcede o vício apontado.
***
d. Das violações de lei
i.
Seguidamente, alega a Requerente que os gastos suportados com as comissões pagas às entidades com sede em Hong Kong são dedutíveis para efeitos fiscais, e que não estão sujeitos a tributação autónoma, por corresponderem a operações efectivamente realizadas e não terem um carácter anormal ou um montante exagerado.
Em causa nesta parte está, portanto, a aplicação dos artigos 23.º-A, n.ºs 1/r), 7 e 8, do CIRC, na redacção da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro (vigente em 2014), e 88.º, n.º 8 do mesmo Código, que estabeleciam o seguinte, no que ao caso interessa:
“Artigo 23.º-A
Encargos não dedutíveis para efeitos fiscais
1 - Não são dedutíveis para efeitos da determinação do lucro tributável os seguintes encargos, mesmo quando contabilizados como gastos do período de tributação: (...)
r) As importâncias pagas ou devidas, a qualquer título, a pessoas singulares ou coletivas residentes fora do território português, e aí submetidas a um regime fiscal identificado por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças como um regime de tributação claramente mais favorável, salvo se o sujeito passivo provar que tais encargos correspondem a operações efetivamente realizadas e não têm um caráter anormal ou um montante exagerado. (...)
7 - O disposto na alínea r) do n.º 1 aplica-se igualmente às importâncias indiretamente pagas ou devidas, a qualquer título, às pessoas singulares ou coletivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal claramente mais favorável, quando o sujeito passivo tenha ou devesse ter conhecimento do seu destino, presumindo-se esse conhecimento quando existam relações especiais, nos termos do n.º 4 do artigo 63.º, entre o sujeito passivo e as referidas pessoas singulares ou coletivas, ou entre o sujeito passivo e o mandatário, fiduciário ou interposta pessoa que procede ao pagamento às pessoas singulares ou coletivas.
8 - A Autoridade Tributária e Aduaneira notifica o sujeito passivo para produção da prova referida na alínea r) do n.º 1, devendo, para o efeito, ser fixado um prazo não inferior a 30 dias.”
“Artigo 88º
Taxas de tributação autónoma
(...)
8 - São sujeitas ao regime do n.º 1 ou do n.º 2, consoante os casos, sendo as taxas aplicáveis, respetivamente, 35 % ou 55 %, as despesas correspondentes a importâncias pagas ou devidas, a qualquer título, a pessoas singulares ou coletivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal claramente mais favorável, tal como definido nos termos do Código, salvo se o sujeito passivo puder provar que correspondem a operações efetivamente realizadas e não têm um caráter anormal ou um montante exagerado. (...)
14 - As taxas de tributação autónoma previstas no presente artigo são elevadas em 10 pontos percentuais quanto aos sujeitos passivos que apresentem prejuízo fiscal no período a que respeitem quaisquer dos factos tributários referidos nos números anteriores relacionados com o exercício de uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola não isenta de IRC.”.
O território de Hong Kong estava incluído, em 2014, na «lista dos países, territórios e regiões com regimes de tributação privilegiada, claramente mais favoráveis», que consta da Portaria n.º 292/2011, de 8 de Novembro, que alterou a Portaria n.º 150/2004, de 13 de Fevereiro.
Em questão estará, no caso sub iudice, a prova, imposta por ambas as supra-citadas normas, relativamente à efectividade das operações e ao carácter normal ou não exagerado das operações, prova essa cujo ónus, nos termos das normas aplicáveis, assiste à Requerente.
Como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 05-11-2015, proferido no processo 07022/13, estamos perante a “aplicação da regra de não aceitação de encargos dedutíveis quando em causa estão pagamentos efectuados a pessoas singulares ou sociedades instaladas em paraísos fiscais, a menos que o sujeito passivo faça prova dos vectores supra identificados:
a- Estarmos perante operações efectivamente realizadas;
b- Que não têm um carácter anormal ou que o montante em causa não é exagerado.”.
Podendo-se, ainda, ler no mesmo aresto que:
“Mais se deverá referir que não exige a lei qualquer formalismo nestas provas, assim vigorando quanto às mesmas o sistema da prova livre e podendo socorrer-se o sujeito passivo de todos os meios de prova permitidos pela lei (cfr.v.g. artº.352 e seg. do C.Civil). No que diz respeito à prova da veracidade da operação não bastará a exibição de documentos escritos, nomeadamente contratos celebrados entre as partes, já que estes se presumem simulados, nem a demonstração do pagamento do preço, pois tal não é posto em causa. O que deve ser objecto de prova é antes a efectiva prestação de serviços, (...) ou seja, o facto comercial que esteve na origem do pagamento do mesmo preço que surge como custo a deduzir em sede de I.R.C. Já quanto à prova da inexistência do carácter anormal ou exagerado das despesas esta deve passar pela demonstração de que o contrato, cuja veracidade se provou, se apresenta equilibrado. Para esse efeito, o sujeito passivo deverá demonstrar qual a importância real das vantagens auferidas pelo contrato em causa, tal como fazer prova que os encargos estabelecidos constituem a justa remuneração dessas vantagens, mormente, por comparação com os custos de serviços análogos no mercado.”
Será, portanto, à luz do critério indicado que se haverá de aferir a legalidade dos actos tributários sub iudice.
Vejamos, então.
*
Conforme resulta das normas em questão, e da interpretação judicial que das mesmas é feita, e que previamente se expôs, cumpre apurar se se encontra feita a prova de que:
a. Estamos perante operações efectivamente realizadas; e que
b. As mesmas não têm um carácter anormal ou que o montante em causa não é exagerado.
Relativamente à primeira das circunstâncias, considera a AT, em suma, que “não foi comprovada a substância dos serviços de intermediação, nomeadamente, a intervenção na concretização do negócio realizado por parte dos operadores económicos de Hong Kong”, pelo que os gastos relativos aos pagamentos das entidades C... e B... Limited referentes aos negócios realizados com os clientes J... e F..., deverão ser fiscalmente desconsiderados.
Ressalvado o devido respeito, não se tem por justificada, em concreto, qualquer dúvida, relativamente à ocorrência das operações em questão.
Dos documentos juntos aos autos constam troca de e-mails entre a B... Limited, o Banco L... e J..., os advogados de J... a M... e N... da empresa C... Limited, nos quais se mencionam os nomes dos clientes em questão.
Por outro lado, verifica-se a circunstância – não contestada - de que os imóveis em questão foram efectivamente vendidos a cidadãos oriundos da China, sem que se apure ou indicie qualquer circunstância que aponte que os mesmos hajam chegado ao contacto da Requerente, e dos seus imóveis, sem que seja por via da intermediação das entidades sediadas em Hong Kong.
Daí que, sob um ponto de vista de normalidade, não deverá haver dúvidas razoáveis de que os serviços que foram facturados pelas entidades com sede em Hong Kong, em conformidade com o contracto celebrado com a Requerente, foram efectivamente prestados.
Como se escreveu no processo arbitral 198/2017T , em termos transponíveis para os presentes autos:
“Aliás, o facto, que não é controvertido, de a Requerente ter vendido grande quantidade de imóveis a cidadãos chineses é uma prova indirecta, mas convincente, de que houve uma eficiente actividade de angariação, pois sem esta não se vislumbra como poderiam ter conhecimento de que a Requerente dispunha de imóveis para venda. Por outro lado, o facto de que a remuneração da B… só era paga precisamente se fosse se tivesse como resultado a concretização das vendas, assegura que não houve pagamentos que não tivessem subjacente actividade de angariação.
Por isso, não se justifica que não se considere provado que os gastos suportados pela Requerente com pagamentos à B… correspondem a operações efectivamente realizadas.
Neste contexto, afigura-se manifestamente injustificado exigir, para prova da efectividade da actividade desenvolvida pela B…, a «identificação dos recursos humanos envolvidos, horas aplicadas e taxas horárias por consultor», a «evidência de reuniões, "surveys"; «saber se quem executou tem experiência profissional», pois, para além de serem informações que normalmente não serão acessíveis a quem contrata a uma empresa estrangeira para serviços de angariação, não haverá grande preocupação do adquirente quando se trata de pagamentos que são efectuados apenas em função dos resultados.
Deve dizer-se mesmo que a exigência de «identificação dos recursos humanos envolvidos» e o apuramento da respectiva experiência profissional numa actividade com a dimensão da descrita está para além dos limites da razoabilidade, pois, na sua literalidade, abrangerá a identificação de todos os que prestaram os serviços de transporte por avião, de serviços em restaurantes e hotéis, motoristas de táxis, etc.”.
Assim, é de considerar existir prova suficiente de que os pagamentos em questão correspondem a operações efectivamente realizadas.
*
Posto isto, cumpre então aferir se as operações em causa não têm um carácter anormal ou se o montante em causa não é exagerado, à luz do entendimento explanado no atrás citado acórdão arbitral proferido no processo 198/2017T do CAAD, segundo o qual “o sujeito passivo deverá demonstrar qual a importância real das vantagens auferidas pelo contrato em causa, tal como fazer prova que os encargos estabelecidos constituem a justa remuneração dessas vantagens, mormente, por comparação com os custos de serviços análogos no mercado.”.
Ora, e como resulta dos factos dados como provados, haverá que concluir que quer um quer outro dos referidos critérios, se encontram cumpridos.
Efectivamente, não subsistem dúvidas razoáveis, que:
- o serviço de angariação de clientes estrangeiros interessados na aquisição de imóveis em ordem a reunir os pressupostos para beneficiaram do regime dos Vistos Gold, à data dos factos tributários, era um serviço habitualmente praticado e utilizado na actividade empresarial a que se dedicava a Requerente, com o objectivo de se alcançar eficazmente os objectivos estatutários; e que
- os pagamentos são adequados ao real valor dos serviços prestados e a relação custo benefício é apropriada.
Assim, e no que diz respeito ao primeiro dos aspectos indicados, pode, inclusive, ter-se como facto notório que, nos anos que se seguiram à instituição do regime dos Vistos Gold e, de resto, em consonância com o que foi a intencionalidade subjacente àquela instituição, as empresas que operavam na área do imobiliário se socorreram dos serviços de empresas especializadas na intermediação entre tais empresas e cidadãos estrangeiros interessados na aquisição de imóveis para reunir os pressupostos para beneficiaram do regime dos Vistos Gold.
No que diz respeito ao segundo dos aspectos indicados, em concreto, estão em causa pagamentos que podem chegar até valores representativos de 15% do preço de venda dos imóveis.
Ora, quer tendo em conta o valor – igualmente notório – de cerca de 5% praticado pela mediação imobiliária nacional/tradicional, quer tendo em conta os valores praticados pelas referidas empresas de intermediação que surgiram a operar no mercado dos Vistos Gold, que, no caso, se apura atingirem valores até 15%, não se poderá crismar como anormal ou exagerado o valor praticado pelas entidades sediadas em Hong Kong, sobretudo à luz das circunstâncias e do risco inerentes aos serviços em causa, que implicam, por um lado, a prospecção e o acompanhamento de interessados na aquisição do imóveis, provenientes de geografias e contextos culturais muito distantes, e, por outro, o risco próprio de tais serviços apenas serem remunerados no caso da efectiva concretização do negócio e em função do valor deste.
Daí que não se tenham dúvidas que os valores em questão correspondem, no seu contexto, a operações normais e não têm carácter exagerado.
Repristinando o quanto se escreveu no já referido acórdão arbitral proferido no processo 198/2017T:
“Para decidir se há ou não exagero não pode tomar-se como termos de comparação as percentagens das comissões que a Autoridade Tributária e Aduaneira diz serem cobradas habitualmente pelas empresas imobiliárias, entre 3% e 5%, pois a desenvolvida pela B… não se limita à que normalmente é levada a cabo na mediação imobiliária, que não envolve despesas da ordem das que se provou serem suportadas pela B… (pagamento de viagens, alojamento, alimentação, transportes, intérpretes, etc.).
Por outro lado, a aferição do requisito do não exagero, deverá ser efectuada tendo em conta a situação do sujeito passivo, procurando apurar se o pagamento deve considerar-se excessivo, sob a sua perspectiva, no contexto em que tem de decidir pagar os serviços.
Desta perspectiva, será exagerado o pagamento quando se demonstrar que o sujeito passivo podia obter o mesmo serviço por quantia inferior.
Resulta da prova produzida que a Requerente pretendia vender o mais rapidamente possível os imóveis, pois estava previsto que o processo de construção e venda dos imóveis estivesse concluído até 2010, cinco anos após o seu início, e ainda não os tinha conseguido vender até 2013 e 2014, devido à situação de crise económica e financeira que afectava Portugal.
A prova produzida é também no sentido de que a Requerente não conseguia obter a angariação de clientes com pagamento de comissões inferiores, quer à B…, que não as aceitava, nem a outros prestadores de serviços de angariação, pois nenhum lhe proporcionava clientes que pagassem os preços de venda que a Requerente pretendia para si obter.
Nestas condições, o pagamento não se pode considerar exagerado, pois está justificado pela necessidade de obtenção dos serviços de angariação e por não haver alternativa a preço inferior.
A razoabilidade dos pagamentos efectuados à B… é ainda reforçada pelo facto de a Requerente não ser afectada pelos pagamentos que lhe fazia, pois apenas lhe pagava quando concretizasse a venda dos imóveis e o que pagava à B… acrescia ao preço de venda que a própria Requerente fixava e pretendia obter para si.
Pelo exposto, conclui-se que a Requerente provou que os pagamentos efectuados à B… não foram anormais nem exagerados.”
Como se refere no aresto transcrito, julga-se que a aferição do carácter normal e não exagerado das operações se deve reportar ao caso concreto, tendo em conta a situação específica em que tais operações se realizaram, não se podendo formular “tabelas” ou fórmulas a priori, que excluam mecanicamente determinados tipos de operações do âmbito da razoabilidade, ou as remetam para o plano do exagero.
No caso, as comissões em questão surgem no cenário de crise económica aguda em que o mercado estava, praticamente parado, e em que os serviços remunerados por aquelas comissões aportam um significativo valor acrescentado ao produto vendido, desde logo, e no caso, por permitirem a sua venda, libertando fundos para a redução do passivo e correspondentes encargos financeiros associados.
Por outro lado, sendo o serviço pago, unicamente, em função do resultado, verifica-se um risco acrescido para o prestador, que tem de suportar – notoriamente – custos avultados para trazer clientes “do outro lado do mundo”, e uma segurança adicional para o adquirente dos serviços, que apenas se constitui na obrigação de pagar, tendo assegurado o retorno decorrente da concretização das suas vendas, sendo de notar, ainda, que a actividade em questão permitia acomodar o custo adicional, assegurando uma margem de lucro para o vendedor.
Por fim, no caso não se detecta, nem é substanciado pela AT, qualquer indício concreto de fraude ou evasão fiscal.
Daí que se deverão considerar dedutíveis para efeitos fiscais as comissões pagas às entidades com sede em Hong Kong, e que os correspondentes pagamentos não estão sujeitos a tributação autónoma, por corresponderem a operações efectivamente realizadas e não terem um carácter anormal ou um montante exagerado.
Deste modo, e em face de todo o exposto, julga-se que, na parte ora em causa, relativa à desconsideração, para efeitos fiscais, dos gastos com pagamentos às empresas referidas, bem como à tributação autónoma de tais gastos, enferma o acto tributário objecto da presente acção arbitral de erro nos pressupostos de facto, e consequente erro de direito, devendo por isso ser anulado, e procedendo consequentemente, nesta parte, o pedido arbitral.
*
ii.
Insurge-se, também, a Requerente contra a correcção efectuada pela AT que desconsiderou os gastos no valor de €150.000,00 e de €45.081,92, por si incorridos com pagamentos às sociedades O..., Lda., e P...– Unipessoal, Lda, respectivamente.
Para sustentar a correção efectuada, defende a AT que “da análise aos elementos apresentados pelo sujeito passivo no decurso da ação inspetiva conclui-se que o documento (anexo IX) entregue não comprova a realização dos serviços descritos nas faturas n.º 114/1 e n.º 114/1 e não esclarecia à luz de um critério de racionalidade económica a sua congruência atendendo a que o sujeito passivo tinha estabelecido várias parcerias com entidades residentes em países/territórios tao diversificados como África do Sul, Singapura, Hong Kong, China, Malta, Chipre, Inglaterra, revelando na sua contabilidade como serviços de consultoria e de marketing”.
Mais sustenta a AT que “As empresas O... Lda e P... Unipessoal Lda iniciaram ambas a sua atividade em 2014/11/26 tendo emitido cada uma delas uma única fatura durante o exercício de 2014 na data de 2014/12/19. Ambas registaram-se com a atividade “Estudos de mercado e sondagens de opinião” e optaram pelo regime simplificado.”
Por sua vez, entende a Requerente que “a empresa decidiu, em reunião interna do dia 5 de dezembro de 2013, recorrer aos seus próprios recursos humanos, para que estes, fora de horas, pudessem executar o trabalho reconhecido por todos como condição sine qua non para angariação de uma nova vaga de clientela internacional e consolidação da empresa como líder do mercado em que atuava”.
Mais sustenta a Requerente que “os serviços prestados pelas empresas O..., Lda. e P...– Unipessoal, Lda. não se sobrepuseram, de forma alguma, aos serviços prestados pelas empresas de “concierge” a atuar no mercado chinês, tendo assumido, ao invés, uma manifesta e comprovada adequação e conveniência à atividade da Requerente e ao constante desenvolvimento da empresa e do seu negócio, potenciando os lucros da empresa”.
Vejamos:
Esta questão reconduz-se à problemática mais geral da dedutibilidade dos gastos em IRC, regulada, em primeira linha, pelo art.º 23.º do CIRC, que, no ano de 2014 apresentava a seguinte redacção:
“1 - Para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis todos os gastos e perdas
incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a
IRC.
(...)
3 - Os gastos dedutíveis nos termos dos números anteriores devem estar comprovados
documentalmente, independentemente da natureza ou suporte dos documentos utilizados para
esse efeito.”.
No que concerne ao ónus da prova dos requisitos da dedutibilidade dos gastos para efeitos fiscais, determina o artigo 75.º, n.º 1 da LGT, o seguinte:
“1 – Presumem-se verdadeiras e de boa fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal, sem prejuízos dos demais requisitos de que depende a dedutibilidade dos gastos.”(sublinhado nosso).
Os requisitos de dedutibilidade dos gastos não beneficiam, portanto, da presunção de veracidade que decorre do artigo 75.º, n.º 1 da LGT, tal como resulta expressamente do teor do referido normativo. Atente-se, neste aspecto, à ressalva feita pelo legislador – “sem prejuízo dos demais requisitos de que depende a dedutibilidade dos gastos”.
Esta conclusão tem vindo, inclusive, a ser defendida pelos tribunais superiores, como decorre da jurisprudência que se extrai do Acórdão do TCA-Sul de 28 de Março de 2019, proferida no processo n.º 69/17.9BCLSB , nos termos da qual se refere que, “A questão do ónus da prova da indispensabilidade do custo passa ao lado da presunção de veracidade da escrita correctamente organizada (cfr.artº.75, nº.1, da L.G.T.) pois não se questiona a veracidade (existência e montante) da despesa contabilizada mas a sua relevância, face à lei, para efeitos fiscais, no caso, da sua qualificação como custo dedutível, em sede do citado artº.23, do C.I.R.C”. Conclui aquele aresto que “no que respeita à qualificação das verbas contabilizadas como custos dedutíveis, cabe ao contribuinte o ónus da prova da sua indispensabilidade para a obtenção dos proveitos ou para a manutenção da força produtora, se a Fazenda Pública questionar essa indispensabilidade (cfr.artºs.74, nº.1, e 75, nº.1, da L.G.T.)”.
No caso sub iudice, a AT colocou em causa a efectividade do gasto, pelo que não beneficiando a questão em análise – dedutibilidade dos gastos – da presunção legal de veracidade que decorre do artigo 75.º, n.º 1 da LGT, sempre serão de aplicar as regras gerais do ónus da prova, competindo à Requerente o ónus de demonstrar que os serviços subjacentes àqueles gastos foram efectivamente prestados.
Para que o gasto seja considerado dedutível para efeitos fiscais, torna-se necessário que os serviços em que tal gasto se materializou tenham sido efetivamente prestados. E esta efectividade dos serviços, de que depende a sua dedutibilidade para efeitos fiscais, tem de ser aferida em concreto. Significa isto, que a Requerente só poderá deduzir como gastos, os custos suportados com a entidade que concretamente lhe prestou os serviços em causa e já não com uma qualquer outra entidade terceira.
Conforme resulta dos factos provados, as sociedades em questão foram criadas em 26-11-2014 e as facturas que titulam o gasto que é colocado em crise pela AT foram emitidas em 19-12-2014, somente 23 dias após a criação da empresa.
Resulta das regras da experiência que uma tão grande multiplicidade de serviços não poderia ter sido prestada nos apenas 23 dias que decorreram desde a data da constituição das empresas até à emissão das faturas em causa.
Aliás, ouvido em sede de declarações de parte, o gerente da Requerente referiu que se tratavam de facturações de serviços prestados anteriormente à própria criação dos prestadores de serviços.
Face ao exposto, não se poderá considerar demonstrado que os serviços foram efectivamente prestados pelas sociedades que os facturaram, pelo que fica demonstrada a não efectividade dos serviços, nada havendo a censurar à correcção ora em apreço, improcedendo, nesta parte, o pedido arbitral.
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iii.
Contesta, também, a Requerente, as tributações autónomas sobre os montantes alegadamente referentes a remunerações variáveis, pagos a cada um dos seus gerentes.
Sustenta a Requerente que não foram pagas quaisquer remunerações variáveis aos seus gerentes, no decurso do exercício de 2014, referindo que os montantes colocados em causa pela AT correspondem a parte do salário base pré-estabelecido e acordado, relativamente a cada um dos sócios gerentes.
Por sua vez, sustenta a AT que é atribuído a cada gerente a quantia fixa mensal de €2.000,00, acrescidos mensalmente de uma quantia em função da disponibilidade de tesouraria e, portanto, que essa quantia estaria sujeita a tributação autónoma à taxa de 35%, nos termos do artigo 88.º, n.º 13, alínea b) do CIRC.
Conforme resulta dos factos provados, no dia 2 de Dezembro de 2013, os sócios da Requerente Q... e R... reuniram, e acordaram que o salário anual dos gerentes da Requerente seria, no ano de 2014, em ambos os casos, de €115.000,00 brutos, tendo ficado estabelecido um montante mínimo mensal a pagar de €2.000,00, sendo o remanescente pago em função das disponibilidades de tesouraria da empresa.
Assim, o valor anual da remuneração dos gerentes encontrava-se fixado no valor de € 115.000,00, sendo apenas variável o momento em que ocorreria o pagamento desse valor – que seria pago em função das disponibilidades de tesouraria da empresa -, e já não o momento em que aquele valor se venceria.
As remunerações variáveis sujeitas a tributação autónoma nos termos do artigo 88.º, n.º 13, alínea b) do CIRC são aquelas cujo direito à remuneração está dependente de um evento futuro e incerto.
No caso sub judice, o valor anual da remuneração estava, como já se referiu, fixado por deliberação dos sócios datada de 02-12-2014 e, posteriormente alterada em 18-06-2014, pelo que o que varia é o momento em que ocorre o pagamento e já não o montante ou momento em que se vence o direito à remuneração.
Pelo exposto, as remunerações atribuídas aos gerentes não integrarão o conceito de remuneração variável previsto no artigo 88.º, n.º 13 do CIRC.
Sustenta, ainda a AT que “Numa sociedade comercial por quotas, a remuneração da gerência é fixada por deliberação escrita dos sócios, reunidos em assembleia geral. Como tal, não podem os sócios gerentes atribuírem a si próprios uma remuneração sem precedência de deliberação social constante em ata” e que “Sendo uma ata, um documento escrito que prova p modo como é tomada uma deliberação social, isto é, explicita a vontade dos sócios manifestada em Assembleia-Geral e que se trata, portanto, de uma finalidade “Ad Probationem” nos termos do art.º 63.º do Código das Sociedades Comerciais, os documentos entregues contendo as seguintes menções « (…) os sócios Q... e R..., reúnem-se para definir o salário base anual dos gerentes para o ano de 2014 (….)» e para « (…) definir alterações ao salário base do sócio gerente Q... (…)» não possuem força probatória pois não se encontra presente o representante do sócio S... Lda que possui uma quota que representa 50% do capital da sociedade”.
Ora, é certo que, nos termos do artigo 255.º do Código das Sociedades Comerciais, compete aos sócios, reunidos em assembleia geral, fixar a remuneração dos gerentes, ficando tal deliberação lavrada em acta.
Todavia, no direito tributário vigora o princípio da prevalência da substância sobre a forma, nos termos do qual, em suma, se deve atender à efectiva realidade económica, relevante para efeitos de tributação, e não à mera forma do negócio jurídico concretamente utilizado .
Como se escreveu no Acórdão do TCA-Sul de 03-05-2005 proferido no processo n.º 0523/05, "ao direito fiscal importa sobretudo a real configuração das situações de facto, «a realidade económica, a realidade de facto», «a relação económica»".
Assim, estando documentado que foi estabelecido, previamente, o montante anual da remuneração devida aos dois gerentes, uma vez que a genuinidade da documentação apresentada não foi, por qualquer forma, posta em causa pela AT, e que o que ficou de forma contingente diferido para o futuro, foi o momento do pagamento daquela remuneração, e não a fixação do seu montante, não se poderão dar por verificados os pressupostos da tributação autónoma prevista no artigo 88.º, n.º 13 do CIRC.
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d. Da falta de fundamentação da liquidação de juros compensatórios
Invoca a Requerente a omissão de notificação para o exercício do direito de audição relativamente à liquidação de juros compensatórios, sustentando que aquando do exercício do direito de audição sobre o projecto de relatório de inspecção, não se pronunciou sobre qualquer pretensão naquela matéria, nem o poderia fazer atento o facto de os serviços de inspecção tributária os terem omitido.
Alega, ainda, a Requerente que os juros compensatórios não são uma mera decorrência da dívida de imposto e carecem de fundamentação expressa, acessível e contextual, concluindo pela ausência de fundamentação da liquidação dos juros compensatórios, em violação do disposto no n.º 1 do artigo 35.º e nos n.ºs 1 e 2 do artigo 77.º da LGT e no artigo 268.º, n.º 3 da CRP.
No que à falta de notificação para exercício de direito de audição antes da liquidação de juros compensatórios respeita, tem sido entendido que “Os juros compensatórios funcionam como uma cláusula penal pelo retardamento da liquidação do imposto, imputável ao contribuinte, integrando-se na liquidação deste, onde vão buscar parte da sua fundamentação, para além de também exigirem um segmento de fundamentação própria, mas sobre a sua liquidação, não exige a lei que a AT proceda à audição prévia do
contribuinte de forma autónoma e distinta da audição relativamente ao imposto donde
provém.” e que “Tendo a AT ouvido o contribuinte, relativamente ao imposto donde
provém a liquidação de juros compensatórios, já não é legalmente exigível que proceda a
nova audição de forma autónoma e distinta”
No que concretamente diz respeito à fundamentação da liquidação de juros compensatórios, tem entendido de forma unânime o STA que “A fundamentação de uma liquidação de juros compensatórios deve dar a conhecer, no plano factual, o montante do imposto sobre o qual incidem os juros, a taxa ou taxas aplicáveis e o período da sua contagem.” / , elementos esses que, conforme resulta da matéria de facto, constam das notificações que foram efectuadas à Requerente.
Com efeito, in casu, na liquidação de juros compensatórios a AT fez constar o motivo da liquidação, designadamente, que foi liquidada nos termos do art. 102.º do CIRC e 35.º da LGT por ter havido retardamento na liquidação. Por outro lado, da liquidação também constam os elementos essenciais que presidiram ao apuramento dos juros compensatórios, designadamente, o montante do imposto em falta (valor base) sobre o qual incidem os juros, o período a que respeita, a taxa de juro aplicável (4%) e o valor dos juros apurado.
No que respeita, concretamente, ao apuramento da culpa no retardamento da liquidação, entendeu o TCA-Sul, (Ac. do TCA-Sul de 11-11-2008, proferido no processo 02020/07), “no caso dos juros compensatórios e na sequência do acima referido, a factualidade em que há-de radicar o juízo de culpa, não pode ser outra que não aquela que subjaz ao apuramento de imposto entendido em falta, na exacta medida em que se integram neste, nos termos do n.° 8, do art.° 35.° da LGT.”
Compreendidas as coisas desta forma, facilmente se conclui que, conjugadas com o relatório de inspecção que fundamenta os actos de liquidação adicional levados a cabo pela AT, as liquidações de juros compensatórios notificadas à Requerente contêm todos os elementos obrigatórios por lei, incluindo a respectiva fundamentação, devendo, por isso, improceder a arguida falta de fundamentação e a omissão de notificação para o exercício de direito de audição.
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e. Dos juros indemnizatórios
Quanto ao pedido acessório de condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, formulado pela Requerente, o artigo 43.º, n.º 1, da LGT estabelece que são devidos juros indemnizatórios quando se determine que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
No caso, o erro que afecta a liquidação adicional na parte em que é anulada é de considerar imputável à Autoridade Tributária e Aduaneira, que a praticou sem o necessário suporte factual e legal.
Tem, pois, direito a Requerente a ser reembolsada da quantia que pagou indevidamente (nos termos do disposto nos artigos 100.º da LGT e 24.º, n.º 1, do RJAT) por força do acto parcialmente anulado e, ainda, a ser indemnizada do pagamento indevido através de juros indemnizatórios, desde a data do correspondente pagamento, até ao seu reembolso, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, artigo 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.
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C. DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar parcialmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:
a) Anular parcialmente o acto de liquidação adicional de IRC n.º 2017..., a liquidação de juros compensatórios n.º 2017... e n.º 2017... e a demonstração de acerto de contas n.º 2017..., referentes ao ano de 2014, na parte em que liquidam imposto e juros compensatórios com base nas correcções determinadas pela IT, relativas a:
i. Desconsideração para efeitos fiscais, e tributação autónoma nos termos do disposto no n.º 8 do artigo 88.º do CIRC, dos gastos suportados pela Requerente, no valor de € 227.700,00, com os serviços prestados pelas sociedades B... Limited e C... Limited; e
ii. Tributação autónoma, nos termos do disposto na alínea b) do n.º 13 do artigo 88.º do CIRC, sobre o valor de € 66.500,00, relativo a remunerações pagas aos gerentes da Requerente;
b) Anular, na parte em que manteve aquelas correcções, a decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2018..., que teve os referidos actos de liquidação como objecto;
c) Condenar a Requerida à restituição do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos acima determinados;
d) Julgar improcedente as restantes partes do pedido arbitral;
e) Condenar as partes nas custas do processo, na proporção do respectivo decaimento, fixando-se o montante de € 736,00, a cargo da Requerente, e de € 4.160,00, a cargo da Requerida.
D. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 272.246,27, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
E. Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 4.896,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pelas partes na proporção do respectivo decaimento, acima fixado, uma vez que o pedido foi parcialmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa, 11 de Junho de 2021
O Árbitro Presidente
(José Pedro Carvalho)
O Árbitro Vogal
(Carlos Lobo)
O Árbitro Vogal
(Raquel Franco)