Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 21/2014-T
Data da decisão: 2014-07-21  IUC  
Valor do pedido: € 1.745,60
Tema: IUC – Incidência subjectiva
Versão em PDF

Requerente - A... - Construção Civil e Obras Públicas, Lda

Requerida - Autoridade Tributária e Aduaneira

O árbitro designado - António Correia Valente

 

I. - RELATÓRIO

 

A - PARTES

A sociedade A... - Construção Civil e Obras Públicas, Lda, designada por “Requerente”, com sede na …, concelho de …, com o número de pessoa colectiva …, impugnante no procedimento tributário acima e à margem referenciado, veio, invocando o disposto na alínea a) do nº 1 do art.º 10.º do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante RJAT), requerer a constituição de tribunal arbitral singular, tendo em vista a apreciação da seguinte demanda que a opõe à Autoridade Tributária e Aduaneira, a seguir designada por “Requerida” ou “AT”.

 

B - PEDIDO

 

1 - O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 09/01/2014 e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) na mesma data.

2 - Nos termos do disposto no nº 1 do art.º 6.º e na alínea a) do nº 1 do art.º 11.º do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, o Conselho Deontológico designou, em 24/02/2014, como árbitro singular António Manuel Correia Valente, que comunicou a aceitação do encargo.

3 - Em 24-02-2014 foram as Partes notificadas dessa designação, nos termos conjugados do disposto no art.º 11.º, nº 1, alínea b) do RJAT, na redacção introduzida pelo art.º 228.º da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro, e nos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico, não tendo as mesmas manifestado vontade de recusar a designação do árbitro.

4 - Nestas circunstâncias, em conformidade com o disposto na alínea c) do nº 1 do art.º 11.º do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, na redacção introduzida pelo art.º 228.º da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral foi regularmente constituído em 11/03/2014.

5 - No dia 01 de Julho de 2014 realizou-se, com as Partes, a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, da qual foi lavrada acta que se encontra junto aos autos, tendo a AT suscitado novamente a excepção de incompetência material do tribunal, quanto aos pedidos formulados pela Requerente, quer relativamente às coimas, quer à indemnização por danos matérias resultantes do pagamento do IUC referente ao ano de 2008, incompetência que a Requerente considera não se verificar, dada a associação de tais pedidos à ilegalidade dos actos de liquidação do IUC e ao pagamento das correspondentes quantias.

6 - A ora Requerente pretende que o presente Tribunal Arbitral:

 

a) - Declare a ilegalidade e consequente anulação, quer dos actos de liquidação relativos ao Imposto Único de Circulação (de ora em diante designado por IUC), referentes aos anos de 2009, 2010 e 2011, respeitante ao veículo, marca Scania, com a matrícula ..-..-.., quer dos actos de aplicação das coimas que lhe estão associadas, indicando, como valor do pedido, a quantia de € 1.745,60, cuja desagregação é a seguinte:

- € 1.061,00 - mil e sessenta e um euros - referente ao IUC liquidado e pago em 2013, respeitante aos anos de 2009; 2010 e 2011;

- € 332,00 - trezentos e trinta e dois euros - a título de indemnização pelos danos materiais causados, resultantes do pagamento do IUC liquidado em 2008 e pago em 2012;

- € 46,60 - quarenta e seis euros e sessenta cêntimos - pagos a título de coimas;

- € 306,00 - trezentos e seis euros - relativamente a despesas/custas processuais.

 

b) - Condene a Autoridade Tributária e Aduaneira à restituição da quantia de € 332,00, paga, no ano de 2012, a título de indemnização, relativamente ao IUC liquidado em 2008;

 

c) - Condene a Autoridade Tributária e Aduaneira ao pagamento de juros de mora vencidos e vincendos;

 

d) - Condene a Autoridade Tributária e Aduaneira ao pagamento das custas do presente processo;

 

C - CAUSA DE PEDIR

 

7 - A Requerente, na fundamentação do seu pedido de pronúncia arbitral, afirma, em resumo, o seguinte:

8 - Que vendeu o veículo, da marca Scania, com a matrícula ..-..-.. à sociedade B.... SA, com sede na …, Bissau, conforme decorre do contrato de compra e venda celebrado em 30/07/2007 e da correspondente Factura-Recibo;

9 - Que o veículo em causa já não era sua propriedade à data identificada pela Requerida como a data da ocorrência do facto gerador do imposto;

10 - Que, em 31/10/2003, apresentou Reclamação Graciosa da liquidação do IUC, relativa aos anos de 2009, 2010 e 2011 e referente ao veículo com a matrícula ..-..-.., não tendo, contudo, a Requerida atendido, nem às provas, nem às alegações apresentadas;

11 - Que o sujeito passivo do IUC é o proprietário da viatura, mesmo que, como tal, não figure no Registo Automóvel, desde que seja apresentada prova bastante para ilidir a presunção decorrente do registo automóvel, como foi o seu caso;

12 - Que, a compra e venda do veículo, consubstancia um contrato com eficácia real, face ao disposto no nº 1 do art.º 408.º do CC, no sentido de que a transferência da propriedade ou da posse se verifica em consequência do próprio contrato, e que os documentos que junta são bastantes para provar que a propriedade do veículo não era sua nos períodos de tributação;

13 - Que a norma constante do nº 1 do art.º 3.º do CIUC, consagra uma presunção que, dizendo respeito a uma norma de incidência tributária, admite sempre prova em contrário, de acordo com o estipulado no art.º 73.º da LGT;

14 - Que a função essencial do registo automóvel é dar publicidade à situação jurídica dos veículos, não surtindo o registo eficácia constitutiva, funcionando o mesmo apenas como presunção ilidível da existência do direito;

15 - Que o Imposto Único de Circulação assenta no princípio da equivalência, visando onerar os contribuintes, na medida do custo ambiental e viário que estes provocam;

16 - Que a AT, não preenchendo os requisitos da noção de terceiro para efeitos de registo, não pode prevalecer-se da ausência de actualização do registo do direito de propriedade para pôr em causa a eficácia plena do contrato de compra e venda do veículo e para exigir ao vendedor, enquanto seu anterior proprietário, o pagamento do IUC, que é devido pelo comprador, enquanto novo proprietário do veículo;

17 - Que os actos tributários de liquidação do imposto único de circulação em causa, enfermam de erro sobre os pressupostos de facto, o que consubstancia um vício de violação de lei, por força do art.º 99.º, alínea a) do CPPT, susceptível de fundamentar a anulação dos referidos actos de liquidação do IUC.

 

D - RESPOSTA DA REQUERIDA

 

18 - A Requerida, Autoridade Tributária e Aduaneira, (doravante designada por AT), apresentou, em 11/04/2014, Resposta e procedeu à junção de cópia do Processo Administrativo Tributário para efeitos do previsto, respectivamente, nos n.ºs 1 e 2 do artigo 17.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), documentos que, em 14/05/2014, foram integrados nos autos.

19 - Na referida Resposta, a AT suscita a excepção de incompetência material do Tribunal Arbitral, relativamente à parte do pedido que respeita, quer à restituição dos montantes pagos relacionados com as coimas, quer à indemnização do montante de € 332,00, por danos materiais, além de defender que os actos impugnados não enfermam de quaisquer ilegalidades, o que, em síntese e no essencial, se consubstancia no seguinte:

 

POR EXCEPÇÃO

 

QUANTO À RESTITUIÇÃO DAS QUANTIAS PAGAS A TÍTULO DE COIMAS

 

20 - A Requerida entende que a restituição das quantias pagas pela Requerente, a título de coimas, implica a anulação dessas coimas, o que corporiza matéria de natureza contra - ordenacional, que extravasa o âmbito das competências do Tribunal Arbitral, constituído sob a égide do CAAD, conforme resulta do disposto no art.º 2.º, nº 1 do RJAT.

21 - Acrescenta que, tratando-se da aplicação do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), nem o dirigente máximo da Autoridade Tributária e Aduaneira é competente para a representação em juízo do Estado neste tipo de matérias, nem as mesmas se integram nas competências sujeitas à apreciação do Tribunal Arbitral.

22 - Considera, ainda, que a discussão dos pressupostos relativos à responsabilidade contra - ordenacional não cabe nesta instância, devendo o Tribunal Arbitral declarar-se incompetente para a parte do pedido que respeita a esta matéria.

 

QUANTO À RESTITUIÇÃO DAS QUANTIAS PAGAS A TÍTULO DE INDEMNIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS

 

23 - A este propósito, a AT considera que o pedido em causa configura matéria de responsabilidade civil extracontratual do Estado, que extravasa o âmbito das competências do Tribunal Arbitral, constituído sob a égide do CAAD, conforme resulta do disposto no art.º 2.º, nº 1 do RJAT.

24 - O Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas (RRCEE), acrescenta a Requerida, aplicando-se à efectivação da responsabilidade civil extracontratual do Estado, integra na sua aplicação a responsabilidade civil da Administração Tributária pelos actos praticados fora do âmbito de relações obrigacionais.

25 - O referido Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual é aplicável, em primeira linha, às situações em que não ocorreu cobrança indevida de quantias, mas em que houve uma lesão dos direitos dos particulares.

26 - Quanto à representação do Estado, caso esteja em causa a Responsabilidade Civil Extracontratual do mesmo, a Requerida faz notar que tal representação, face ao disposto no nº 2 do art.º 11.º do Código de Processo nos Tribunais Tributários (CPTA) e no art.º 20.º do Código de Processo Civil (CPC), cabe em exclusivo ao Ministério Público.

27 - Considera, por fim, que a discussão dos pressupostos relativos à responsabilidade civil em causa não cabe nesta instância, devendo o Tribunal Arbitral declarar-se incompetente para a parte do pedido que respeita a esta matéria.

 

POR IMPUGNAÇÃO

 

28 - Entende também a AT que os actos tributários em crise não enfermam de qualquer vício de violação de lei, pronunciando-se pela improcedência do requerido e pela manutenção dos actos de liquidação questionados, defendendo, em suma, o seguinte:

29 - A interpretação que a Requerente faz do disposto no nº 1 do art.º 3.º do CIUC é notoriamente errada, na medida em que incorre não só “numa enviesada leitura da letra da lei”, como na adopção “de uma interpretação que não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime” consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal, seguindo ainda uma “interpretação que ignora a ratio do regime consagrado no artigo em apreço”.

30 - O entendimento de que o legislador consagrou uma presunção no mencionado art.º 3.º do CIUC seria, no entender da Requerida, inequivocamente efectuar uma interpretação contra legem, fazendo notar que,

31 - O legislador não usou a expressão “presume-se” como poderia ter feito, por exemplo, nos seguintes termos: “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, presumindo-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”. (Cfr. n.º 16.º da Resposta)

32 - O CIUC alterou de forma substancial o regime de tributação automóvel, passando os sujeitos passivos do imposto a ser os proprietários constantes, como tal, do registo de propriedade, independentemente da circulação dos veículos na via pública.

33 - Bastará, pois, que se verifique o registo do veículo em nome de uma determinada pessoa para que a mesma corporize a posição de sujeito passivo da obrigação fiscal de IUC, posto que o referido imposto visa tributar o proprietário do automóvel, sendo que a propriedade é revelada através do seu registo, acrescentando ser neste sentido que aponta,

34 - O “entendimento já adoptado pela Jurisprudência dos nossos tribunais”, transcrevendo, para tanto, parte da sentença do tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, proferida no Processo nº 210/13.OBEPNF. (Cfr. n.ºs 25.º e 26.º da Resposta)

35 - A interpretação veiculada pela Requerente é, ainda, para além do que já foi referido, desconforme com a Constituição, designadamente porque, entre outros, viola o princípio da eficiência do sistema tributário, que tem dignidade constitucional.

36 - Acrescenta, ainda, a Requerida que, sendo os actos tributários em crise válidos e legais, não estão reunidos os pressupostos legais que conferem à Requerente o direito a juros indemnizatórios.

37 - Quanto aos juros de mora vencidos e vincendos pedidos pela Requerente, entende a Requerida que a responsabilidade pelo seu pagamento apenas teria lugar se a decisão arbitral viesse a ser favorável à Requerente, e caso existisse um atraso por parte da AT na execução dessa decisão.

38 - Face a toda a argumentação que aduziu, a Requerida considera ser evidente a conformidade legal dos actos objecto do presente pedido arbitral, falecendo, consequentemente, as pretensões formuladas pela Requerente.

 

E - QUESTÕES DECIDENDAS

 

39 - Cumpre, pois, apreciar e decidir.

40 - Face ao exposto, relativamente às posições das Partes e aos argumentos apresentados, as principais questões a decidir visam:

a) Determinar se o Tribunal Arbitral é materialmente competente para apreciar, quer o pedido de restituição das quantias pagas pela Requerente a título de coimas, quer o pedido de restituição, a título de indemnização, da quantia paga em 2012, relativamente ao IUC liquidado em 2008;

b) Conhecer se a norma de incidência subjectiva constante do artigo 3.º nº 1 do CIUC, estabelece, ou não, uma presunção;

c) Conhecer o valor jurídico do registo automóvel na economia do CIUC, particularmente para efeitos da incidência subjectiva deste imposto;

d) Saber se, na data da ocorrência do facto gerador do imposto, o veículo já tiver sido anteriormente alienado, embora o direito de propriedade deste continue registado em nome do seu anterior proprietário, o sujeito passivo do IUC, para efeitos do disposto no artigo 3.º, nº. 1, do CIUC, é o anterior proprietário ou o novo proprietário;

e) Saber se à Requerente assiste o direito aos juros de mora requeridos no pedido de pronúncia arbitral.

 

F - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS

 

41 - O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.

42 - As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas (cfr. art.º 4.º e n.º 2 do art.º 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011 e art.º 1.º da Portaria n.º 112/2011, de 22 de Março).

43 - O processo não padece de vícios que o invalidem.

44 - Tendo em conta o processo administrativo tributário e a prova documental junto aos autos, cumpre apresentar a matéria factual relevante para a compreensão da decisão, tal como se exara nos termos abaixo fixados, importando, porém, antes de mais, conhecer das excepções suscitadas.

 

G - DAS DEDUZIDAS EXCEPÇÕES DE INCOMPETÊNCIA DO TRIBUNAL ARBITRAL

 

45 - Tendo em conta o disposto no artigo 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), aqui aplicável por força do artigo 29.º, nº 1, alínea c), do RJAT, deverá, a referida questão da competência, ser conhecida em primeiro lugar, uma vez que, face ao disposto na aludida norma do CPTA, o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria.

46 - A Requerente, no seu pedido de pronúncia arbitral, para além da anulação dos actos de liquidação relativos ao IUC, referente aos anos de 2009, 2010 e 2011 e do pedido de restituição do correspondente montante de € 1.061,00, requereu outrossim, por um lado, a devolução da quantia de € 46,60, relativa a coimas associadas a tais liquidações e, por outro, o pagamento da quantia de € 332,00, a título de indemnização pelos danos matérias que lhe foram causados, resultantes do pagamento do IUC, referente e liquidado no ano de 2008 e pago em 04-10-2012;

47 - No que respeita às quantias relacionadas com as coimas, importa notar que, embora o conceito de receitas de natureza tributária não exclua, como comummente é entendido, as receitas provenientes das coimas aplicadas no âmbito dos ilícitos contra - ordenacionais tributários, o certo é que as referidas coimas, enquanto sanções, de natureza administrativa, não são confundíveis com os impostos, não se inscrevendo, desde logo, nas relações jurídico-tributárias.

48 - É sabido que a relação jurídico-tributária, como, nomeadamente, decorre do disposto nos nºs 2 e 3 do art.º 1.º da LGT e do art.º 30.º deste mesmo diploma, implica, para além dos sujeitos activo e passivo, dessa relação, que o seu objecto respeite à liquidação e cobrança dos tributos ou à resolução dos conflitos daí decorrentes.

49 - O âmbito da competência dos tribunais arbitrais tributários comporta, justamente, as pretensões que se inscrevem na aludida relação jurídico-tributária. Estabelece, com efeito, o nº 1 do art.º 2.º do RJAT, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 64-B/2011, de 30 de Dezembro, que a competência dos referidos tribunais compreende: a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta; b) A declaração de ilegalidade de actos de determinação da matéria tributável, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais, o que evidencia a ausência de competências dos tribunais tributários para efeitos de apreciação das decisões relativas à aplicação de coimas, no quadro dos atrás mencionados ilícitos.

50 - O que a lei manifestamente privilegiou, relativamente às competências dos tribunais arbitrais em matéria tributária, foi o julgamento de causas que nos tribunais administrativos e fiscais revestem a forma processual de impugnação judicial, em conformidade com o disposto na alínea a) do art.º 101.º da LGT e nas alíneas a) a f) do n.º 1 do art.º 97.º do CPPT, cabendo notar que, mesmo neste domínio, há limitações, como resulta, designadamente, do disposto no nº 2 da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março.

51 - A este propósito, refere o Senhor Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, in Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, integrado no Guia da Arbitragem Tributária, Almedina, Março, 2013, p. 105 que ficam “[…] assim, de fora da competência destes tribunais arbitrais a apreciação de litígios gerados em processos de execução fiscal ou em processos contraordenacionais tributários”.

52 - Assim, o pedido deduzido pela Requerente de restituição das quantias pagas a título de coimas e de anulação dessas mesmas coimas, não se inscreve no quadro das pretensões arbitráveis, dele não podendo conhecer este tribunal.

53 - Face ao exposto, conclui-se pela procedência da excepção suscitada pela Requerida, não podendo, pois, este Tribunal Arbitral conhecer, ratione materiae, da invalidade das decisões relativas à aplicação das coimas e da restituição das quantias pagas a esse propósito.

54 - Quanto ao pedido do pagamento da quantia de € 332,00, formulado pela Requerente no pedido de pronúncia arbitral, a título de indemnização pelos danos matérias que lhe foram causados, deve salientar-se que, também aqui, não se vislumbra competência a este tribunal para o efeito.

55 - Já se referiu que o âmbito da jurisdição arbitral tributária, face ao disposto no art.º 2.º do RJAT, está focado nos conflitos relativos aos actos de liquidação de tributos, de determinação da matéria tributável e colectável e aos actos de fixação de valores patrimoniais.

56 - O pedido de restituição da quantia de € 332,00, formulado pela Requerente no pedido de pronúncia arbitral, a título de indemnização, visa a reparação de danos sofridos, em resultado do pagamento dessa mesma quantia, efectuado em 04-10-2012, relativo a um acto tributário de liquidação de IUC, alegadamente ilegal, referente ao veículo da marca Scania, com a matrícula ..-..-.., respeitante ao ano de 2008 e nesse ano liquidado.

57 - Trata-se de um pedido que, pretendendo efectivar a responsabilidade civil extracontratual do Estado, disciplinada, como decorre do estabelecido na Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, alterada pela Lei n.º 31/2008, de 17 de Julho, não por normas de direito tributário, mas por normas de direito civil e administrativo, e que tendo, embora, como remota origem o referido acto de liquidação, não corresponde a um conflito emergente de uma relação tributária tout court, sendo, de resto, manifestamente, posterior ao aludido acto tributário.

58 - Nestas circunstâncias, também, relativamente ao referido pedido, se conclui pela procedência da excepção suscitada pela Requerida, não sendo, pois, este Tribunal Arbitral competente, em razão da matéria, para o seu conhecimento.

 

II - FUNDAMENTAÇÃO

 

H - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

 

59 - Em matéria de facto relevante, dá o presente tribunal por provados os seguintes factos:

60 - A Requerente é uma sociedade por quotas, que tem como actividade a construção civil e obras públicas.

61 - A fim de dar satisfação às suas actividades, adquiriu, em 05-05-1999, um veículo pesado de mercadorias, marca Scania, com a matrícula ..-..-.., que, posteriormente, vendeu.

62 - O contrato de compra e venda relativo ao mencionado veículo ocorreu em 30-07-2007, e foi celebrado com a sociedade B.... SA, com sede na Rua ... - Bissau.

63 - O veículo em causa já não era propriedade da Requerente na data identificada pela Requerida, como a data da ocorrência do facto gerador do imposto.

64 - A Requerente foi, em 26-07-2013, informada de que a AT iria proceder à liquidação oficiosa do IUC respeitante ao veículo ..-..-.., relativo aos anos de 2009, 2010 e 2011, tendo, neste contexto, sido notificada para exercer o direito de audição prévia.

65 - Em 31/10/2013, no quadro do exercício do direito de audição prévia, a Requerente alegou que o mencionado veículo não era, desde o ano de 2007, propriedade sua, tendo, para o efeito, apresentado a factura nº 200, de 30-07-2007, comprovativa da venda de tal veículo à sociedade B.... SA.

66 - A Requerente, em 07-11-2013, foi notificada pela AT, não só, da não aceitação dos argumentos por ela aduzidos em sede de audição prévia, mas também de que, a breve prazo, iria ser emitida liquidação oficiosa.

67 - A Requerente foi notificada da liquidação do IUC e de juros compensatórios, relativos ao veículo em causa, respeitante aos anos de 2009, 2010 e 2011, tendo-lhe sido estabelecido como data limite do pagamento o dia 21-11-2013, pagamento que, no valor de € 1.061,00 e referente ao IUC, foi, como consta de documentação junto aos autos, efectuado em 29-11-2013.

 

FUNDAMENTAÇÃO DOS FACTOS PROVADOS

 

68 - Os factos dados como provados estão baseados nos documentos mencionados relativamente a cada um deles, e na medida em que a sua adesão à realidade não foi questionada.

 

FACTOS NÃO PROVADOS

 

69 - Não existem factos dados como não provados, dado que todos os factos tidos como relevantes para a apreciação do pedido foram provados.

 

I - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

70 - A matéria de facto está fixada, importando agora proceder à subsunção jurídica e determinar o Direito aplicável aos factos subjacentes, de acordo com as questões decidendas enunciadas no nº 40.

71 - A questão central que está em causa nos presentes autos, relativamente à qual existem entendimentos absolutamente opostos entre a Requerente e a AT, consiste em saber se a norma de incidência subjectiva constante do nº 1 do art.º 3.º do CIUC estabelece, ou não, uma presunção ilidível.

72 - As posições das partes, face ao que atrás se referiu, são conhecidas. Com efeito, para a Requerente, aquela norma consagra uma presunção legal ilidível, enquanto para a Requerida a interpretação que a Requerente faz do disposto no nº 1 do art.º 3.º do CIUC é notoriamente errada, na medida em que incorre não só “numa enviesada leitura da letra da lei”, como na adopção “de uma interpretação que não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime” consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal”, seguindo ainda uma “interpretação que ignora o elemento teleológico de interpretação do regime consagrado em todo o CIUC”, traduzindo também uma desconformidade com a Constituição, designadamente porque, entre outros, viola o princípio da eficiência do sistema tributário. (nº 67 da Resposta).

 

J - INTERPRETAÇÃO DA NORMA DE INCIDÊNCIA SUBJECTIVA CONSTANTE DO Nº 1 DO ARTIGO 3.º DO CIUC

 

73 - Importará notar, antes de mais, ser pacífico o entendimento, na doutrina, de que, no quadro da interpretação das leis fiscais, valem plenamente os princípios gerais de interpretação. Trata-se de um entendimento que tem, aliás, acolhimento no artigo 11.º da Lei Geral Tributária.

74 - É comummente aceite que, tendo em vista a apreensão do sentido da lei, a interpretação socorre-se de diversos meios, importando, em primeiro lugar, reconstruir o pensamento legislativo através das palavras da lei, o que significa, procurar, desde logo, o seu sentido literal. O referido sentido, como também é pacífico, corresponde ao grau mais baixo da actividade interpretativa, importando, por isso, valorá-lo e aferi-lo à luz de outros critérios, intervindo, a esse propósito, os designados elementos de natureza lógica, sejam de sentido racional (ou teleológico), de carácter sistemático ou de ordem histórica.

75 - A propósito da interpretação da lei fiscal, cabe lembrar, como, aliás, a jurisprudência vem assinalando, nomeadamente nos Acórdãos do STA de 05/09/2012 e de 06/02/2013, processos nºs 0314/12 e 01000/12, respectivamente, disponíveis em: www.dgsi.pt, a importância do disposto no artigo 9.º do Código Civil (CC), enquanto preceito fundamental da hermenêutica jurídica, que, neste quadro, não pode deixar de considerar-se.

76 - A actividade interpretativa é, pois, incontornável na resolução das dúvidas suscitadas pela aplicação das normas jurídicas causa.

77 - No entender de FRANCESCO FERRARA, in Interpretação e Aplicação das Leis, tradução de MANUEL DE ANDRADE, (2ª ed.), Arménio Amado, Editor, Sucessor - Coimbra, 1963, p. 131, a referida actividade interpretativa “[…] é única [e] complexa, de natureza lógica e prática, pois consiste em induzir de certas circunstâncias a vontade legislativa”, acrescentando, ibidem, p.130, que “Mirando à aplicação prática do direito, a interpretação jurídica é de sua natureza essencialmente teleológica”.

78 - Para MANUEL DE ANDRADE, citando FERRARA, in Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, p. 16 (2ª ed.), Arménio Amado, Editor, Sucessor - Coimbra, 1963, “A interpretação procura a voluntas legis, não a voluntas legislatoris […], e procura a vontade actual da lei, não a sua vontade no momento da aplicação: não se trata, pois, de uma vontade do passado, mas de uma vontade sempre presente enquanto a lei não cessa de vigorar. É dizer que a lei, uma vez formada, se destaca do legislador, ganhando consistência autónoma; e, mais do que isso, torna-se entidade viva, que não apenas corpo inanimado […]”.

 

DO ELEMENTO LITERAL

 

79 - É neste enquadramento que importará encontrar resposta para as questões decidendas, particularmente a que procura saber se o artigo 3.º, nº 1 do CIUC, estabelece ou não uma presunção, começando, desde logo, pelo elemento literal.

80 - Sendo o elemento literal o primeiro que importa utilizar, em busca do pensamento legislativo, é, necessariamente, por aí que se deverá começar, procurando alcançar o sentido da expressão, considerando-se como tais as pessoas, inscrita no referido artigo 3.º, nº 1 do CIUC.

81 - Dispõe o nº 1 do referido artigo 3.º do CIUC que “São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”. (sublinhado nosso)

82 - A formulação usada no referido artigo, importará notá-lo, antes de mais, socorre-se da expressão “considerando-se” o que suscita a questão de saber se, a tal expressão, pode ser atribuído um sentido presuntivo, equiparando-se, assim, à expressão “presumindo-se”. Trata-se de expressões, frequentemente, utilizadas com sentidos equivalentes, como é patente em diversas situações do ordenamento jurídico português.

 

83 - Na verdade, são imensas as normas que consagram presunções, conjugando, para o efeito, aliás, o verbo considerar de diversas formas. Não é, pois, difícil identificar situações, em diversas áreas do direito, em que se utiliza a expressão “considerando-se” ou “considera-se” com sentido equivalente à expressão “presumindo-se” ou “presume-se”, expressões a que, seja ao nível das presunções inilidíveis, seja no quadro das presunções ilidíveis, é conferido, imensas vezes, um significado equivalente.

84 - Não se afigurando pertinente voltar a referenciar exemplos reveladores dessas situações, dado que tais exemplos estão, abundantemente, enunciados nalgumas das decisões dos tribunais arbitrais tributários, de que são exemplo as proferidas no quadro dos Processos nºs 14/2013 - T, 27/2013 - T e 73/2013 - T, damos aqui os mesmos por inteiramente reproduzidos.

85 - Nestas circunstâncias, sendo as mencionadas expressões recorrentemente usadas com um propósito e significado equivalentes, pode concluir-se não ser apenas o uso do verbo “presumir” que nos coloca perante uma presunção, mas também o uso de outros termos podem servir de base a presunções, como, designadamente, ocorre com a expressão “considerando-se”, o que, em nosso entender, será justamente o que verifica no nº 1 do art.º 3.º do CIUC.

Trata-se, assim, de um entendimento que, não se afigurando corresponder a uma leitura enviesada da lei como considera a AT, se revela em sintonia com o disposto no nº 2 do art.º 9.º do CC, na medida em que assegura, ao pensamento legislativo, o mínimo de correspondência verbal aí exigido.

 

86 - Na perspectiva literal, face ao que se deixa exposto, dúvidas não há de que a interpretação que considera estabelecida uma presunção ilidível no nº 1 do art.º 3.º tem total respaldo na formulação aí consagrada, face à mencionada equivalência entre a expressão “considerando-se como tais” e a expressão “presumindo-se como tais”.

O elemento linguístico, como atrás se referiu, sendo o primeiro que deve ser utilizado em busca do pensamento legislativo, deve, porém, a fim de se encontrar o verdadeiro sentido da norma, ser submetido ao controlo dos demais elementos de interpretação de natureza lógica. (sejam tais elementos de sentido racional (ou teleológico), de carácter sistemático ou de ordem histórica).

 

87 - Com efeito, como se retira da obra de MANUEL DE ANDRADE, atrás citada, p. 28, “[…] a análise puramente linguística dum texto legal é apenas o começo […], o primeiro grau […] ou o primeiro acto da interpretação. Por outras palavras, só nos fornece o provável pensamento e vontade legislativa […] ou, melhor, a delimitação gramatical da possível consistência da lei […], o quadro dentro do qual reside o seu verdadeiro conteúdo”.

 

88 - Assim sendo, vejamos, então, o elemento racional (ou teleológico).

 

DO ELEMENTO RACIONAL (OU TELEOLÓGICO)

 

89 - Atendendo aos elementos de interpretação de pendor racional ou teleológico, cabe, desde logo, lembrar o que, expressamente, vem exarado na exposição de motivos da Proposta de Lei N.º 118/X de 07/03/2007, subjacente à Lei nº 22-A/2007 de 29/06, quando aí se refere que a reforma da tributação automóvel é concretizada por via da deslocação de parte da carga fiscal do momento da aquisição dos veículos para a fase de circulação e visa “formar um todo coerente” que, embora destinado à angariação de receita pública, pretende que a mesma seja angariada na “medida dos custos ambientais que cada indivíduo provoca à comunidade”, acrescentando-se, a propósito do imposto em causa e dos diferentes tipos e categorias de veículos, que “como elemento estruturante e unificador […] consagra-se o princípio da equivalência, deixando-se assim claro que o imposto, no seu conjunto, se subordina à ideia de que os contribuintes devem ser onerados na medida do custo que provocam ao ambiente e à rede viária, sendo esta a razão de ser desta figura tributária”, referindo, ainda, ser “[…] este princípio que dita a oneração dos veículos em função da respectiva propriedade e até ao momento do abate […]”.

90 - Neste quadro, parece claro que a lógica e racionalidade do novo sistema de tributação automóvel só poderá conviver bem com um sujeito passivo do imposto, no pressuposto de ser esse, e não outro, o real e efectivo sujeito causador dos danos viários e ambientais, tal como decorre do princípio da equivalência, inscrito do art.º 1.º do CIUC.

91 - O referido princípio da equivalência, que informa o actual imposto único de circulação, tem, ao menos na parte em que especificamente respeita ao ambiente, subjacente o princípio do poluidor - pagador, e concretiza a ideia, nele inscrita, de que quem polui deve, por isso, pagar. O referido princípio que, de algum modo, tem assento constitucional, na medida em que representa um corolário do disposto na alínea h) do nº 2 do art.º 66.º da nossa Constituição, tem também consagração no plano do direito comunitário, seja ao nível do direito originário, o que se verifica desde 07 de Fevereiro de 1992, altura em que foi assinado, em Maastrich, o Tratado da União Europeia, em cujo art.º 130.º-R, nº 2, o aludido princípio passou a constar como suporte da política Comunitária no domínio ambiental, seja ao nível do direito derivado.

 

92 - O que se visa alcançar por via do referido princípio é internalizar as externalidades ambientais negativas, o que, afinal, no caso dos autos, mais não significa do que fazer com que os prejuízos, que advêm para a comunidade, decorrentes da utilização dos veículos automóveis, sejam assumidos pelos seus “proprietários económico - utilizadores”, como custos que só eles deverão suportar.

 

93 - Regressando ao mencionado princípio da equivalência, dir-se-á que o mesmo tem, na economia do CIUC, um papel absolutamente estruturante, nele se alicerçando o edifício normativo do Código em questão. O referido princípio não pode, pois, deixar de constituir um desiderato que se quer legalmente prosseguir, corporizando, nessa medida, uma luz de assinalável fulgor que, constante e continuadamente, não pode deixar de iluminar o caminho do intérprete.

 

94 - Relativamente ao referido princípio, cabe notar o que nos diz Sérgio Vasques, quando, in Os Impostos Especiais de Consumo, Almedina, Coimbra, 2001, p. 122, a propósito da concretização técnica desse princípio considera que “Em obediência ao princípio da equivalência, o imposto deve corresponder ao benefício que o contribuinte retira da actividade pública; ou ao custo que o contribuinte imputa à colectividade pela sua própria actividade”.

 

95 - Abordando especificamente o IUC, acrescenta o mencionado autor, op. cit., que ”Assim, um imposto sobre os automóveis assente numa regra de equivalência será igual apenas se aqueles que provoquem o mesmo desgaste viário e o mesmo custo ambiental paguem o mesmo imposto; e aqueles que provoquem desgaste e custo ambiental diverso, paguem imposto diverso também”, acrescentando que a concretização do dito princípio “[…] dita outras exigências ainda no tocante à incidência subjectiva do imposto […]”.

96 - Face ao que vem de referir-se, resulta claro que a tributação dos reais poluidores corresponde a um importante fim visado pela lei, no caso pelo CIUC, fim que, no dizer de Francesco Ferrara, in Interpretação e Aplicação das Leis, 2ª Edição, Arménio Amado, Editor, Sucessor, Coimbra, 1963, p. 130, deve estar sempre diante dos olhos do jurista, dado que, como o mencionado autor aí refere, “[…] a interpretação jurídica é de sua natureza essencialmente teleológica”, cabe notar que, também à luz dos elementos de carácter racional ou teleológicos de interpretação, se impõe, igualmente, concluir que o nº 1 do art.º 3º do CIUC só poderá consagrar uma presunção ilidível.

 

97 - Caberá ainda não esquecer o elemento sistemático de interpretação.

 

DO ELEMENTO SISTEMÁTICO

 

98 - Sobre o elemento sistemático diz-nos BAPTISTA MACHADO, in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, p. 183, que “este elemento compreende a consideração das outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende ainda o lugar sistemático que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico”.

 

99 - É sabido que um princípio jurídico, no caso o princípio da equivalência, não existe isoladamente, antes está ligado por um nexo íntimo com outros princípios que integram, ao nível mais global, o respectivo ordenamento jurídico, no caso, com os demais princípios corporizados no sistema do IUC. Nesse sentido, cada artigo de um dado diploma legal, no caso do CIUC, só será compreensível se o situarmos perante os demais artigos que o seguem ou antecedem.

100 - No que à sistematização do CIUC diz respeito, as preocupações de ordem ambiental foram determinantes para que o mencionado princípio da equivalência fosse, desde logo, inscrito no 1.º artigo do Código, o que, necessariamente conduz a que os artigos subsequentes, na medida em que têm assentamento em tal princípio, sejam por ele influenciados. Foi o que ocorreu, designadamente, com a base tributável, que passou a ser constituída por diversos elementos, particularmente pelos respeitantes aos níveis de poluição, e com as taxas do imposto, estabelecidas nos artigos 9.º a 15.º, que foram influenciadas pela componente ambiental, e, naturalmente, também com a própria incidência subjectiva, prevista no artigo 3.º do CIUC, que não poderá furtar-se à influência referida.

101 - Os veículos da categoria C, na qual se inscreve, aliás, o veículo em causa no presente processo, foram também influenciados pelo referido princípio da equivalência. A este propósito, cabe lembrar o entendimento de BRIGAS AFONSO e MANUEL FERNANDES, in Imposto sobre Veículos e Imposto Único de Circulação, Coimbra Ed., 2009, p. 205, quando, em anotações ao artigo 11.º do CIUC, relativo às taxas aplicáveis aos veículos da categoria C, referem que se “Regista […] ainda, como positivo, o facto de se manter uma discriminação fiscal positiva para os veículos menos poluentes, entendidos estes como os que foram matriculados em data mais recente, na senda do que acontecia nos últimos anos de vigência do ICi. Este facto demonstra que é possível uma abordagem inovadora, em termos ambientais, da fiscalidade automóvel, mesmo quando estão em causa veículos de mercadorias”.

102 - O elemento sistemático de interpretação e a interacção entre os diversos artigos e princípios que integram o sistema inscrito do CIUC, apelam também ao entendimento de que o estabelecido no nº 1 do art.º 3.º do CIUC não pode deixar de consubstanciar uma presunção.

103 - Dispõe o nº 1 do art.º 9.º do CC que a procura do pensamento legislativo deverá ter “[…] sobretudo em conta […] a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”, circunstâncias e condições essas, que, hoje mais do que nunca, são de sensibilidade pelo ambiente e de respeito pelas questões com ele relacionadas.

Neste contexto, as considerações formuladas sobre os mencionados elementos de interpretação, sejam de carácter literal ou de pendor histórico, sejam de natureza racional ou sistemática, apontam no sentido de que o artigo 3.º do CIUC, estabelece uma presunção, ou seja, a ratio legis dessa norma, enquanto razão ou fim que razoavelmente lhe deve ser atribuído, não pode deixar de perspectivar a expressão “considerando-se como tais”, utilizada no referido artigo, como reveladora do estabelecimento de uma presunção ilidível, o que significa que os sujeitos passivos do IUC não são apenas os proprietários dos veículos em nome dos quais os mesmos se encontrem registados.

Dir-se-á, aliás, que o estabelecimento de uma presunção na mencionada norma corresponderá à interpretação que mais compaginável se afigura, quer com o princípio da equivalência, atrás mencionado, quer com os princípios, que à frente serão referenciados, da verdade material e da proporcionalidade.

 

104 - Aqui chegados, cabe lembrar o disposto no art.º 73.º da LGT, quando estabelece que “As presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário”, (sublinhado nosso), o que significa que a presunção legal, que se afigura estar estabelecida no nº 1 do art.º 3.º do CIUC, será necessariamente ilidível.

 

105 - Neste quadro, os sujeitos passivos do imposto são, presumivelmente, as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados, ou seja, os referidos sujeitos passivos são, em princípio, as pessoas em nome de quem tais veículos estejam registados. Serão, pois, essas pessoas, identificadas nessas condições, a quem, desde logo e em princípio, a AT, antes da liquidação ser concretizada, se tem, necessariamente, de dirigir, comunicando-lhes o projecto de decisão correspondente.

 

106 - Todavia, assim será apenas em princípio, dado que no quadro da audição prévia, de carácter obrigatório, face ao disposto na alínea a) do nº 1, do art.º 60.º da LGT, a relação tributária poderá ser reconfigurada, validando-se o sujeito passivo inicialmente identificado, ou redirecionando-se o procedimento no sentido daquele que vier a ser indicado pelo titular do direito de audição, como sendo o proprietário do veículo em causa.

 

107 - O direito que o contribuinte tem de ser ouvido, o qual se opera mediante a audição prévia, deve corresponder e traduzir-se na possibilidade concedida aos particulares de terem uma participação útil no procedimento, não devendo transformar-se numa prática inconsequente e rotineira, como bem assinalam José Manuel Santos Botelho, Américo Pires Esteves e José Cândido de Pinho, in Código do Procedimento Administrativo, Anotado e Comentado, 4ª Edição, Almedina, Coimbra, 2000, anotação nº 8 ao art.º 100.º.

 

108 - A propósito do direito de audição prévia, cabe lembrar o entendimento da jurisprudência sobre a matéria, nomeadamente o Acórdão do STA, de 24-10-2012, Proc. 0548/12, do qual se retira que sob pena do referido direito, se transformar num ritual inócuo, os argumentos e documentos apresentados pelo contribuinte não podem ser perspectivados com sobranceira indiferença, exigindo-se a sua análise pela administração, por forma a tomar visível que a decisão do procedimento resulta de uma transparente ponderação dos elementos de facto e de direito submetidos à sua apreciação.

 

109 - A audição prévia, que, naturalmente, há - de concretizar-se em momento imediatamente anterior ao procedimento de liquidação, corresponde à sede e ocasião próprias para, com certeza e segurança, se identificar o sujeito passivo do IUC.

O referido procedimento de liquidação, como vem assinalado por Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, in Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4ª Edição 2012, Encontro de Escrita, Lda, Lisboa, anotação nº 5 ao art.º 36º, serve unicamente para tornar certa a obrigação tributária e, consequentemente, exigível. Neste sentido, acrescentam os referidos autores, na anotação nº 6 ao mesmo artigo, que “A liquidação, como qualquer acto tributário, sendo um acto definidor da posição da Administração tributária perante os particulares, não constitui a obrigação. Torna-a certa e exigível […]”.

 

110 - A audição prévia é, de resto, a sede própria, para se procurar a verdade material dos elementos essenciais à liquidação do imposto, entre os quais estará o conhecimento dos verdadeiros sujeitos passivos do imposto, enquanto elementos primeiros da relação jurídico- fiscal. A este propósito, cabe referir o que nos dizem os atrás mencionados autores, op. cit., na anotação nº 5 ao art.º 55.º, quando aí referem que, no domínio do procedimento tributário, a administração tributária, particularmente à luz dos princípios da justiça e da imparcialidade, deve nortear-se por “[…] critérios de isenção na averiguação das situações fácticas, realizando todas as diligências que se afigurem necessárias para averiguar a verdade material, independentemente de os factos a averiguar serem contrários aos interesses patrimoniais que à administração tributária cabe defender”. (sublinhado nosso)

 

111 - Importa ainda lembrar o princípio do inquisitório, a propósito do qual, cabe, de novo, aludir aos ensinamentos de Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, in Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4ª Edição 2012, Encontro de Escrita, Lda, Lisboa, p. 488/489, quando, em anotações ao citado art.º 58.º, referem que cabe à administração um papel dinâmico na recolha dos elementos com relevância para a decisão, acrescentando que a “[…] falta de diligências reputadas necessárias para a construção da base fáctica da decisão afectará esta não só na hipótese de serem obrigatórias (violação do princípio da igualdade), mas também se a materialidade dos factos considerados não estiver comprovada ou se faltarem, nessa base, factos relevantes, alegados pelo interessado, por insuficiência de prova que a Administração deveria ter colhido […]”.

O princípio do inquisitório, acrescentam os referidos autores, op. cit, “[…] tem a ver com os poderes (-deveres) de a Administração proceder às investigações necessárias ao conhecimento dos factos essenciais ou determinantes para a decisão […]”.

 

112 - Não se diga, como faz a AT, que o estabelecimento de uma presunção ilidível no art.º 3.º do CIUC e as consequências daí resultantes ofenderiam o princípio da eficiência do sistema tributário, na medida em que conduziriam, nomeadamente, ao “entorpecimento e encarecimento das competências atribuídas à Requerida”. (Cfr. n.º 67 da Resposta)

A eficiência da Administração em geral, ou da AT em particular, em sentido corrente, corresponderá à capacidade/metodologia de trabalho orientada para a optimização do trabalho executado ou dos serviços prestados, o que significará produzir o máximo, em quantidade e qualidade, com o mínimo de custos, nada tendo a ver com a observância de princípios legalmente consagrados e com o respeito pelos direitos dos cidadãos, seja na qualidade de contribuintes ou não.

Em sentido técnico, dir-se-á que o princípio da eficiência do sistema tributário, é, comummente tido, no domínio do procedimento tributário, como corolário do princípio da proporcionalidade, o qual como é sabido, impõe uma adequada proporção entre as finalidades legais e os meios escolhidos para alcançar esses fins, ou, como referem Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, in Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4ª Edição 2012, Encontro de Escrita, Lda, Lisboa, p. 488, nas anotações ao artigo 55.º da LGT, trata-se de um princípio que obriga “[…] a administração tributária a abster-se da imposição aos contribuintes de obrigações que sejam desnecessárias à satisfação dos fins que aquela visa prosseguir”.

 

Neste quadro, o referido princípio da eficiência do sistema tributário significará a capacidade de alcançar os objectivos legalmente fixados em razão dos meios disponíveis, ou melhor, com o mínimo de meios, o que nada terá também a ver com o respeito pelos direitos dos cidadãos, nem com a necessidade de observância dos princípios a que a administração tributária deve subordinar a sua actividade, designadamente o do inquisitório e o da descoberta da verdade material, não podendo, obviamente, a aplicação do mencionado princípio da eficiência ser feita com prejuízo dos direitos dos cidadãos.

 

L - DA AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE DO VEÍCULO E DO VALOR DO REGISTO

 

113 - Antes de mais, deve acrescentar-se, face ao que adiante, explicitamente, se dirá sobre o valor do registo, que os adquirentes dos veículos tornam-se proprietários desses mesmos veículos por via da celebração dos correspondentes contratos de compra e venda, com registo ou sem ele.

 

114 - São três os artigos do Código Civil que importa ter em conta, a propósito da aquisição da propriedade de um veículo automóvel. São eles, desde logo, o art.º 874.º, que estabelece a noção de contrato de compra e venda, como sendo “[…] o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço”; o art.º 879.º, em cuja alínea a) se estatui, como efeitos essenciais do contrato de compra e venda, “a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito” e o art.º 408.º, que tem por epígrafe os contratos com eficácia real, e estabelece no seu nº 1, que “a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as excepções previstas na lei”. (sublinhado nosso)

Estamos, com efeito, no domínio dos contratos com eficácia real, o que significa que a sua celebração provoca a transmissão de direitos reais, no caso, veículos automóveis, determinada por mero efeito do contrato, como decorre expressamente da norma anteriormente mencionada.

 

115 - A propósito dos referidos contratos com eficácia real, cabe notar os ensinamentos de Pires de Lima e Antunes Varela, quando, em anotações ao art.º 408.º do CC, nos dizem que “Destes contratos ditos reias (quoad effectum), por terem como efeito imediato a constituição, modificação ou extinção dum direito real (e não apenas as obrigações tendentes a esse resultado) distinguem-se os chamados contratos reais (quoad constitutionem), que exigem a entrega da coisa como elemento da sua formação (cfr. art.ºs. 1129.º, 1142.º e 1185.º ”.

Estamos, assim, perante contratos em que a propriedade da coisa vendida se transfere, sem mais, do vendedor para o comprador, tendo, como causa, o próprio contrato.

 

116 - Também da jurisprudência, designadamente do Acórdão do STJ nºs 03B4369 de 19/02/2004, disponível em: www.dgsi.pt, se retira que, face ao disposto no art.º 408.º, nº 1, do C. Civil, "a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as excepções previstas na lei". É o caso do contrato de compra e venda de veículo automóvel (art.ºs 874.° e 879.º al. a) do C. Civil), o qual não depende de qualquer formalidade especial, sendo válido mesmo quando celebrado por forma verbal - conf. Ac do STJ de 3-3-98, in CJSTJ, 1998, ano VI, Tomo I, pág. 117”. (sublinhado nosso)

 

117 - Tendo o contrato de compra e venda, face ao que se deixa referido, natureza real, com as mencionadas consequências, há que considerar, também, o valor jurídico do registo automóvel objecto desse contrato, na medida em que a transação do referido bem está sujeita a registo público.

 

118 - A Requerente suscita, aliás, a questão do não preenchimento dos requisitos da noção de terceiro para efeitos de registo, por parte da AT, o que não lhe permite prevalecer-se da ausência de actualização do registo do direito de propriedade para pôr em causa a eficácia plena do contrato de compra e venda do veículo e para exigir ao vendedor, enquanto seu anterior proprietário, o pagamento do IUC, que é devido pelo comprador, enquanto novo proprietário do veículo.

 

119 - Estabelece, com efeito, o nº 1 do art.º 1.º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, relativo ao registo de veículos automóveis, (diversas vezes alterado, a última das quais por via da Lei n.º 39/2008, de 11/08), que “O registo de veículos tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respectivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico”. (sublinhado nosso)

 

120 - Ficando claro, face à referida norma, qual a finalidade do registo, não há, porém, clareza, no âmbito do referido Decreto-lei, sobre o valor jurídico desse registo, importando considerar o artigo 29.º do mencionado diploma legal, relativo ao registo de propriedade automóvel, quando aí se dispõe que “São aplicáveis, com as necessárias adaptações, ao registo de automóveis as disposições relativas ao registo predial, […]”. (sublinhado nosso)

 

121 - Neste quadro, para que possamos alcançar o procurado conhecimento sobre o valor jurídico do registo de propriedade automóvel, importa ter em conta o que se estabelece no Código do Registo Predial, o qual, aprovado pelo Decreto-Lei nº 224/84, de 06 de Julho, e alterado pela última vez, por via do Decreto-Lei n.º 125/2013, de 30 de Agosto, dispõe no seu artigo 7.º que “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”. (sublinhado nosso)

 

122 - A conjugação do disposto nos três artigos retromencionados, particularmente o estabelecido no nº 1 do art.º 1.º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro e no art.º 7.º do Código do Registo Predial, permite considerar, por um lado, que a função fundamental do registo é a de dar publicidade à situação jurídica dos veículos, permitindo, por outro, presumir que o direito existe e que tal direito pertence ao titular, em prol de quem o mesmo está registado, nos precisos termos em que está definido no registo.

 

123 - Assim, o registo definitivo mais não constitui do que a presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos exactos termos do registo, mas presunção ilidível, admitindo, por isso, contraprova, como decorre da lei e a jurisprudência vem assinalando, podendo, a este propósito, ver-se, entre outros, os Acórdãos do STJ nºs 03B4369 e 07B4528, respectivamente, de 19/02/2004 e 29/01/2008, disponíveis em: www.dgsi.pt.

124 - A função legalmente reservada ao registo é, assim, por um lado, a de publicitar a situação jurídica dos bens, no caso, dos veículos e, por outro lado, permitir-nos presumir que existe o direito sobre esses veículos e que o mesmo pertence ao titular, como tal inscrito no registo, o que significa que o registo não tem uma natureza constitutiva do direito de propriedade, mas apenas declarativa, daí que o registo não constitua condição de validade da transmissão do veículo do vendedor para o comprador.

125 - Note-se, porém, que se é certo que a não existência de registo tem a relevância que atrás se deixa mencionada, não é menos certo que a sua inexistência impede a plena eficácia do contrato de compra e venda. A este propósito, cabe notar o disposto nos nºs 1 e 4 do art.º 5.º do Código do Registo Predial, aplicáveis ao registo da propriedade automóvel por força do estabelecido no art.º 29.º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro.

 

126 - Dispõe o nº 1 do art.º 5.º do referido Código do Registo Predial, que “Os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respetivo registo”, estabelecendo, por seu lado, o nº 4 do mesmo artigo que “Terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si”.

 

127 - Nestas circunstâncias, fácil será concluir que a AT, dado que não adquiriu, do mesmo vendedor, direitos sobre o veículo, incompatíveis com os direitos do comprador, não preenche o conceito de terceiros para efeitos do registo, tal como legalmente fixado.

 

128 - Assim, se os compradores dos veículos, enquanto seus “novos” proprietários, não promoverem, desde logo, o adequado registo do seu direito, presume-se, para efeitos do nº 1 do art.º 3.º do CIUC e nos termos do disposto no art.º 7.º do Código do Registo Predial, que o veículo continua a ser propriedade da pessoa que o vendeu e que no registo se mantém seu proprietário, sendo, porém, certo que tal presunção é ilidível, seja por força do estabelecido no nº 2 do art.º 350.º do CC, seja à luz do disposto no art.º 73.º da LGT. Daí que, a partir do momento em que se afaste a referida presunção, mediante prova da respectiva venda, a AT não poderá persistir em considerar como sujeito passivo do IUC o vendedor do veículo, que, no registo, continua a constar como seu proprietário.

 

129 - Face ao que vem de referir-se, e tendo em conta, quer a presunção estabelecida no art.º 3.º do CIUC, quer a transferência de propriedade do veículo em questão, por mero efeito do contrato, antes da data da ocorrência do facto gerador do imposto, quer o valor jurídico do registo automóvel na economia do CIUC, os actos tributários em crise não pode merecer o nosso acordo, seja porque não se teve em conta uma adequada interpretação e aplicação das normas legais de incidência subjectiva, o que consubstancia um erro sobre os pressupostos de direito, seja porque os referidos actos assentaram numa matéria de facto, claramente divergente da efectiva realidade, o que consubstancia um erro sobre os pressupostos de facto.

 

M - DOS MEIOS DE PROVA APRESENTADOS

 

130 - Não sendo legalmente exigível a forma escrita para o contrato de compra e venda dos veículos automóveis, a prova da venda correspondente poderá fazer-se por diversos meios, nomeadamente por via testemunhal ou documental, nesta se incluindo as facturas/recibo relativas às vendas dos veículos.

 

131 - Como meio de prova de que, em 30-07-2007, procedeu à venda do veículo com a matrícula ..-..-.., à sociedade B..., SA, a Requerente juntou a correspondente Factura, numerada, sob o nº 200, datada de 30-07-2007, bem como o respectivo recibo, numerado sob o nº 198, datado de 30-07-2007, no qual é evidenciada a devida referência à aludida factura nº 200, e o recebimento do montante relativo à venda do veículo em questão, pelo que, em 2009, 2010 e 2011, datas da ocorrência dos respectivos factos geradores de imposto, já não era proprietária do referido veículo, verificando-se, nestas circunstâncias, ilididas as presunções consagradas no artigo 3.º, nº 1, do CIUC e 7.º do Código do Registo Predial, não sendo, assim, a Requerente sujeito passivo do IUC, cuja liquidação lhe foi notificada.

 

132 - Os documentos apresentados pela Requerente, enquanto meios destinados a fazer prova da transacção do veículo em causa, gozam da presunção de veracidade prevista no nº 1 do art.º 75.º da LGT, afigurando-se, assim, com idoneidade bastante, em ordem à demonstração da referida transacção, o que permite dar como provado que a Requerente vendeu o mencionado veículo, em 30-07-2007, à referida sociedade B..., SA.

 

133 - Nestas circunstâncias, considerando, por um lado, que a presunção consagrada no art.º 3.º do CIUC foi ilidida e que, por outro, a matrícula do veículo em questão foi atribuída, em Portugal, em 05 - 05 - 1999, não pode deixar de considerar-se que, aquando da exigibilidade do imposto, o que, no caso dos autos, face ao disposto no nº 2 do artigo 4.º, conjugado com o disposto no nº 3 do artigo 6.º, ambos do CIUC, se verificou no dia 05 de Maio dos anos 2009, 2010 e 2011, a Requerente não era sujeito passivo do imposto em questão.

 

134 - Face ao que vem de referir-se, e tendo em conta, quer a elisão da presunção estabelecida no art.º 3.º do CIUC, consubstanciada na transferência da propriedade do veículo em questão, por mero efeito do contrato, antes da data da ocorrência dos respectivos factos geradores do imposto, quer o valor jurídico do registo automóvel na economia do CIUC, os actos tributários em crise não podem merecer o nosso acordo, seja porque não se teve em conta uma adequada interpretação e aplicação das normas legais de incidência subjectiva, o que consubstancia um erro sobre os pressupostos de direito, seja porque os referidos actos assentaram numa matéria de facto, claramente divergente da efectiva realidade, o que consubstancia um erro sobre os pressupostos de facto.

 

135 - A AT quando entende que os sujeitos passivos do IUC são, em definitivo, as pessoas em nome de quem os veículos automóveis se encontram registados, sem considerar os elementos probatórios que, quer no quadro da audição prévia, quer em momento posterior, lhe foram apresentados, destinados a identificar os efectivos e verdadeiros proprietários dos veículos, está a proceder à liquidação ilegal do IUC, assente na errada interpretação e aplicação das normas de incidência subjectiva do Imposto Único de Circulação, constantes do art.º 3.º do CIUC, seja ao nível da previsão, seja da estatuição, o que configura a prática de um acto tributário falho de legalidade por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, o que determina a anulação dos correspondentes actos tributários, por violação de lei.

 

N - JUROS DE MORA REQUERIDOS

 

136 - A Requerente, no seu pedido de pronúncia arbitral, solicita a condenação da AT ao pagamento de juros de mora vencidos e vincendos até ao integral pagamento de todas as quantias indevidamente cobradas e que por ela foram pagas, pedido que, não se mostra, todavia, pertinente.

Com efeito,

137 - Os juros de mora, face ao previsto e estatuído no nº 2 do art.º 102.º da LGT, aqui aplicável, são devidos no caso da decisão/sentença implicar a restituição do imposto pago, e são contados a partir do termo do prazo da execução espontânea dessa decisão/sentença.

138 - Assim, só após o decurso desse prazo o credor da restituição do imposto terá direito a juros de mora, os quais, como vem assinalado por Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, in Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4ª Edição 2012, Encontro de Escrita, Lda, Lisboa, p. 887, nas anotações ao artigo 102.º.º da LGT, não decorrem de “[…] um efeito directo da anulação do acto que quando é decretada envolve já a consideração do tempo decorrido até então e em cujo pagamento a Administração sai já condenada, mas perante um puro rendimento de uma obrigação de capital”.

139 - Nestas circunstâncias, residindo o facto gerador dos juros de mora no atraso da Administração Tributária pelo pagamento ao credor do imposto a restituir, fica claro que, no caso, não há lugar a qualquer pagamento de juros de mora.

140 - Entretanto, deve notar-se que os termos em que tal pedido se mostra formulado assenta, manifestamente, numa terminologia imprópria e desadequada, face ao que substancialmente se pretende, o que deverá ser entendido à luz da intervenção da Requerente, por si própria, dado, no caso, não ser obrigatória a constituição de advogado, circunstância que suscita a exigência de um menor rigor jurídico.

141 - Na verdade, o aludido pedido, tal como decorre da sua estrita dimensão literal, mais não visa do que a condenação da Requerida ao pagamento dos juros sobre as quantias indevidamente liquidadas e que pela Requerente foram pagas.

Pretende-se, pois, que as quantias pagas a título de IUC sejam restituídas e compensadas por via dos juros, que não poderão deixar de respeitar aos juros indemnizatórios, os quais, desde que preenchidos os respectivos requisitos, corporizados na existência de erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, são devidos à Requerente.

 

142 - No caso dos autos, afigura-se manifesto que, face ao estabelecido no artigo 61.º do CPPT e preenchidos que estão os requisitos do direito a juros indemnizatórios, ou seja, verificada a existência de erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, tal como previsto no nº 1 do art.º 43.º da LGT, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios à taxa legal, os quais, calculados sobre a quantia de € 1.061,00, serão contados desde 29-11-2013, até ao integral reembolso dessa mesma quantia.

 

143 - Por fim, numa breve referência sobre a responsabilidade pelo pagamento das custas, que a AT considera serem devidas pela Requerente, nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 527.º do CPC, aplicável ex vi do art.º 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, cabe apenas notar que, face ao estatuído no n.º 2 do referido art.º 527.º do CPC, dá causa “[…] às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for”, sendo, justamente, o que se aplicará no caso dos autos.

 

CONCLUSÃO

 

144 - No quadro circunstancial que se tem vindo a referir, a AT, ao praticar os actos de liquidação de IUC em causa no presente processo, relativos aos anos de 2009, 2010 e 2011, com fundamento na ideia de que o artigo 3.º, nº.1, do CIUC não consagra uma presunção ilidível, faz errada interpretação e aplicação desta norma, cometendo um erro sobre os pressupostos de direito, o que constitui violação de lei.

145 - Por outro lado, porque a AT, à data da ocorrência dos factos tributários, considerou a Requerente proprietária do veículo referenciado no presente processo, considerando-a, como tal, sujeito passivo do imposto, quando tal propriedade já não estava inscrita na sua esfera jurídica, baseando-se, assim, em matéria de facto divergente da efectiva realidade, comete um erro sobre os pressupostos de facto, e portanto de violação de lei.

 

III - DECISÃO

 

146 - Destarte, atento a todo o exposto, este Tribunal Arbitral decide:

 

- Julgar parcialmente procedente, por provado, com fundamento em vício de violação de lei, o pedido de pronúncia arbitral no que concerne à anulação dos actos de liquidação de IUC e de juros compensatórios, referentes aos anos de 2009, 2010 e 2011;

 

- Anular, consequentemente, quer os actos de liquidação de IUC, referentes aos anos de 2009, 2010 e 2011, respeitante ao veículo pesado de mercadorias, marca Scania, com a matrícula ..-..-.., quer os actos de liquidação dos juros compensatórios que lhe estão associados;

- Condenar a AT ao integral reembolso da quantia de € 1.061,00, referente ao IUC liquidado e pago em 2013, respeitante aos anos de 2009; 2010 e 2011, e ao pagamento de juros indemnizatórios à taxa legal, contados desde 29-11-2013, até ao integral reembolso da referida quantia;

 

- Condenar a Requerente e a Requerida em custas, que se fixam, para cada uma, na proporção do respectivo decaimento.

 

VALOR DO PROCESSO

 

Em conformidade com o disposto nos artigos 306.º, nº 2 do CPC (ex-315.º, nº 2) e 97.º - A, nº 1 do CPPT e no artigo 3.º, nº 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 1.745,60.

 

CUSTAS

De harmonia com o disposto no artigo 12.º, n.º 2, in fine, art.º 22.º, nº 4, ambos do RJAT, e do art.º 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I, que a este está anexa, fixa-se o montante das custas totais em € 306,00.

 

Notifique-se.

Lisboa, 31 de Julho de 2014

O Árbitro

António Correia Valente

(O texto da presente decisão foi elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5 do Código de Processo Civil (ex-138.º, n.º 5), aplicável por remissão do artigo 29.º n.º 1 alínea e) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT), regendo-se a sua redacção pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.)