SUMÁRIO
A colocação à disposição dos associados de lucros ou de adiantamentos por conta de lucros configurada como facto tributário nos termos do artigo 5.º, n.º 2, alínea h), do Código do IRS, pressupõe a existência de ato societário que permita concluir-se que esta decidiu transferir valores para a disponibilidade dos sócios.
DECISÃO ARBITRAL
I. Relatório
1. A…, LDA, NIPC …, com sede na …, n.º …, …, vem, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, alínea a), do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/01, apresentar pedido de constituição de Tribunal Arbitral, em que figura como Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).
2. O pedido de pronúncia arbitral, apresentado em 02-10-2020, tem como objeto a declaração de ilegalidade e consequente anulação do ato tributário de liquidação de IRS – retenção na fonte - e juros compensatórios, relativo ao período de 2016, na importância global de € 28 616,53.
3. A Requerente pede também a devolução da importância acima referida, que considera indevidamente cobrada, acrescida dos correspondentes juros indemnizatório contados nos termos legais.
4. Como fundamento do pedido que formula, argumenta a Requerente, em síntese, que o ato tributário impugnado, respeitante a alegada distribuição de resultados aos sócios, é ilegal, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito em que se fundamenta
5. Em resposta ao que é pedido, a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) juntou o processo administrativo, tendo-se pronunciado, por impugnação, no sentido da improcedência do presente pedido de pronúncia arbitral. Alega, no essencial, ter o ato impugnado sido efetuado no estrito cumprimento da lei pelo que o mesmo, não enfermando de qualquer vício deve, consequentemente, manter-se na ordem jurídica, devendo, consequentemente, ser absolvida a Requerida de todos os pedidos, com as legais consequências.
6. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).
7. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro.
8. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/01, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31/12, o Conselho Deontológico designou como árbitro do Tribunal Arbitral singular o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável, tendo, oportunamente, notificado as partes.
9. Devidamente notificadas dessa designação, as partes não manifestaram vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
10. Pelo que, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31/12, o Tribunal Arbitral foi constituído em 23-12-2020.
11. Atento o conhecimento que decorre das peças processuais juntas pelas Partes, que se julga suficiente para a decisão, o Tribunal, considerando o disposto no artigo 130.º do Código de Processo Civil, aplicável na jurisdição arbitral por remissão expressa do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, decidiu dispensar a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, bem como a junção de alegações.
II. Saneamento
12. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/01.
13. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas (cfr. art.º 4.º e n.º 2 do art.º 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011 e art.º 1.º da Portaria n.º 112/2011, de 22/03).
14. Não se suscitam quaisquer questões que obstem ao conhecimento do mérito do pedido.
III. Matéria de facto
15. Com base nos elementos documentais que integram o presente processo, destacam-se os seguintes elementos factuais que, não sendo contestados pelas Partes, se consideram inteiramente provados:
15.1. A Requerente é sujeito passivo de IRC, enquadrando-se no respetivo regime geral.
15.2. Credenciada pela Ordem de Serviço …, foi a mesma destinatária de ação inspetiva interna, relativa ao exercício de 2016, para efeitos de controlo em sede de IRC, IVA, IMI, IMT e retenção na fonte de IRS.
15.3. Do relatório da Inspeção Tributária, que consta do processo administrativo, cujo teor se dá como reproduzido, refere-se, no que tocante à matéria a que se reporta o ato impugnado, o seguinte:
“3.1.3 – Em sede de Retenção na Fonte de IRS (RF-IRS)
3.1.3.1. Imposto em falta de retenções na fonte de IRS sobre lucros /adiantamentos por conta de lucros colocados à disposição
O SP registou em 2016 uma regularização de movimentos de caixa, alegadamente como relativa a exercícios anteriores, repostos com capitais da própria empresa na aplicação dos resultados líquidos obtidos no ano anterior, por registo em subconta da conta de capital 59 – outras variações no capital próprio, conforme identificado no extrato da conta 599 descrita no quadro seguinte:
A conta 599 surge assim no início de 2016 como uma conta que reflete valores, mas cuja origem decorre de valores “emprestados” a “sócios” (cfr, se retira do descritivo dos movimentos) no ano de 2014, conforme se evidencia no extrato remetido pelo SP e que em parte se reproduz:
Mais consta do documento remetido pelo SP (extrato reproduzido na figura anterior) que o registo em 2016 visou a regularização dos movimentos de 2014, não repostos pelos sócios, e que foram em 2016 reconhecidos como perdidos (encargos) pela empresa.
Este movimento de € 88 498,05 resulta da aplicação dos resultados de 2015 conforme aprovado em assembleia geral da sociasse em 31/3/2016 pela ata número 26 da qual se reproduz parte, evidenciando o referido:
Na prática, na aplicação para “outras variações de Capital Próprio houve uma distribuição de lucros em favor dos sócios, consubstanciada pela não reposição de meios monetários ou equivalentes da empresa antes desviados do património desta, e que constituíram um “lucro” efetivo dos beneficiários (sócios) reconhecido no ano de 2016.
Os lucros e reservas colocados à disposição dos associados ou titulares, encontram-se sujeitos a IRS como rendimentos da categoria E, por retenção na fonte de IRS (RF-IRS) a título definitivo a efetuar pela empresa (sujeito passivo) no momento em que são colocados à disposição do beneficiário – no caso em apreço, no momento da decisão de não reposição pelos sócios, com a decisão de aplicação de resultados do período anterior em março de 2016 – importando apurar o montante de imposto (RF-IRS) que deixou de ser pago decorrente da conduta seguida,
No ano de 2016, nos termos previstos na al. a) do n.º 1 do art. 71.º do CIRS, estão sujeitos a retenção na fonte, a título definitivo â taxa de 28%, os rendimentos relativos aos lucros colocados à disposição dos associados ou titulares (alínea h) do n.º 2, do art. 5.º do CIRS).
Nos termos do n.º 3 do artigo 28.º da LGT, no caso de substituição tributária em que a retenção na fonte do imposto é a título definitivo, o substituído só é subsidiariamente responsável pelas importâncias que deveriam ter sido retidas e não o foram.
O SP não procedeu à entrega de qualquer valor por conta do referido, pelo que, deste modo, encontra-se em falta o valor de imposto devido e exigível decorrente de Retenções na Fonte de IRS no caso exposto, perfazendo o montante de € 24 779,45 (=€88.498,05x28%), imputável ao período mensal de março de 2016.
15.4. Em 06-02-2020, foi remetido à Requerente o projeto de relatório de inspeção sendo esta, na mesma data, notificada nos termos e para efeitos de exercício do direito de audição.
15.5. Em 26-02-2020, no exercício daquele direito, a Requerente apresentou na DF de …, uma exposição que, com referência à matéria em causa, alega o seguinte:
“31. Para o que nos interessa, o “momento constitutivo da exigibilidade” corresponde ao pagamento ou colocação à disposição dos lucros e não parece existirem quaisquer dúvidas quanto à sua verificação. A data do pagamento corresponde ao momento em que ocorreu o fluxo financeiro que extingue a obrigação e a colocação à disposição, como foi clarificado na Circular n.º 1/93, da então DGCI, a propósito de retenção na fonte relativa a lucros, é o momento a partir do qual se tem o direito de facto, a receber o montante correspondente ao rendimento em causa.
32. Ora, como expressamente decorre do Relatório não houve quaisquer lucros que tenham sido pagos ou colocados à disposição dos sócios, pelo que não tendo havido quaisquer rendimentos que tenham afluído à sua esfera jurídica também não existe qualquer obrigatoriedade de retenção na fonte de IRS. De facto, não havendo rendimentos sujeitos a IRS, obviamente não existe qualquer obrigação do substituto tributário de reter IRS (neste caso, sobre um rendimento inexistente).
33. Aliás, nem sequer se compreende por que razão a afetação de resultados a “Outras variações de capital próprio” constitui um rendimento sujeito a retenção na fonte de IRS (não se percebendo em que montante e a quem se reportam os alegados rendimentos) e, o mesmo não acontece quanto à afetação dos montantes em causa a Resultados Transitados (€ 66 666,66) e Reservas Livres (€ 157 808,32).
34. Em nenhum dos casos os rendimentos entram na esfera jurídica dos sócios, não há qualquer pagamento ou colocação à disposição, pelo que também não pode haver, em nenhuma das situações, qualquer retenção na fonte de IRS.
35. Com efeito, não será pelo facto de ter havido em 2014 um alegado adiantamento por conta de lucros que, pode agora ser exigida a correspondente retenção na fonte de IRS.
36. De facto, reconhece-se no projeto de Relatório que em 2014 terá havido “meios monetários ou equivalentes desviados do património desta e que constituíram um lucro efetivo dos beneficiários (sócios)”, mas não de demonstra que em 2016 tenha havido quaisquer meios financeiros que tenham sido pagos ou postos à disposição dos sócios e que possam constituir facto gerador da obrigação de retenção na fonte por parte do substituto tributário.
37. Ora, se tais factos ocorreram em 2014, mesmo que correspondentes a adiantamentos por conta de lucros, e, como se refere, a terem constituído “um lucro efetivo dos beneficiários (sócios)”, o facto tributário e a consequente obrigatoriedade de retenção na fonte de IRS teriam ocorrido no referido ano de 2014, nunca ni período de 2016,
38. E, assim sendo, não deve prevalecer a correção em causa,”
15.6. O alegado pelo sujeito passivo em sede de direito de audição prévia vem analisado pelos Serviços de Inspeção Tributária nos seguintes termos:
“ C – Retenções na fonte de IRS sobre lucros/adiantamentos por conta de lucros colocados à disposição - € 24 779,45
Nos pontos 25.º a 38.º da sua exposição argumenta por que razão entende que as correções propostas no ponto 3.1.3.1 do projeto de RIT não devem prevalecer. Argumenta, em síntese, que não houve quaisquer lucros que tenham sido pagos ou colocados à disposição dos sócios, pelo que não, nesse medida não tendo havido quaisquer rendimentos que tenham afluído à sua esfera jurídica também não existe qualquer obrigatoriedade de retenção na fonte de IRS, mas ainda que tal não fosse assim, também remata com a circunstância de que se tais factos ocorreram em 2014, mesmo que correspondentes a adiantamentos por conta de lucros por eventualmente terem constituído um “lucro efetivo dos beneficiários (sócios)”, tal facto tributário e a consequente obrigatoriedade de retenção na fonte do IRS teriam ocorrido em 2014, nunca no período de 2016.
Face ao exposto pelo SP constata-se que em nenhum momento o mesmo justifica de forma clara e objetiva a que título e deu a redução do património da sociedade, limitando-se a contestar o enquadramento dos factos e de direito seguidos pela IT.
Mais uma vez, tal como no referido na contestação analisada no ponto anterior, e de acordo com a exposição do SP, parece poder depreender-se, salvo melhor opinião, que se “camuflaram” contabilisticamente factos no passado e que, de acordo com o argumento do SP já caducaram e, como tal, sendo factos passados não deverão prevalecer as correções propostas.
Entendeu esta inspeção, mais uma vez, que a contabilidade do SP espelharia de forma credível as transações e operações da entidade e que este não estaria a agir em má-fé. Nos termos do n.º 1 do artigo 75.º da LGT “Presumem-se verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal, sem prejuízo dos demais requisitos de que depende a dedutibilidade dos gastos.”
O SP prepara as suas demonstrações financeiras no quadro das disposições em vigor em Portugal em conformidade com o Decreto-Lei n.º 158/2009, de 13 de julho, republicado pelo Decreto-Lei n.º 98/2015, de 2 de junho, ou seja, o SNC no referencial contabilístico das NCRF´s base.
Na nossa análise, tivemos em conta o observado, designadamente que o SP registou em 2014 a movimentação da conta 599 – correspondente a “outras” variações patrimoniais “não especificadas” no código de contas. No código de contas, e pelas notas de enquadramento de algumas dessas contas, observamos que para a conta 59 existem algumas subcontas previstas, para evidenciação de situações transitivas não decorrentes ainda de resultados, como por ex.:”591 – Diferenças de conversão de demonstrações financeiras – inclui as diferenças de câmbio derivadas da transposição de uma unidade operacional estrangeira (nos termos da NCRF 23 - Os efeitos de alterações em taxas de câmbio), 593 – Subsídios – inclui os subsídios associados a ativos, que deverão ser transferidos, numa base sistemática, para a conta 7883 – Imputação de subsídios para investimentos, à medida em que forem contabilizadas as depreciações/ amortizações do investimento a que respeitem (...)”
Nota-se que ao contrário do que o SP fez em relação a situações potencialmente equivalentes, conforme as descritas no ponto anterior analisado quanto a outras saídas de caixa, no caso presente optou por não usar uma conta de devedores diversos (“2781”) ou a conta de regularização de resultados transitados (“563”), utilizando antes uma outra conta de capital, distinta e não clara quanto ao seu fim (a conta “599”) e relacionada com potenciais variações negativas do património.
Como se observa na movimentação de outras contas da “59”, como por exemplo da “593” – subsídios, embora se reconheça uma variação patrimonial potencial no capital, a mesma tenderá a ser saldada em resultados de períodos futuros,
Os descritivos usados na maior parte dos movimentos da conta 599 em 2014 indica terem tido por destinatários “sócios” da empresa, conforme novamente reproduzimos, mas melhor evidenciamos:
Em face do descrito é certo que as variações patrimoniais envolveram os sócios.
A IT observou, perante os elementos fornecidos, o que novamente repetimos “A conta 599 surge assim no início de 2016 como uma conta que reflete valores, mas cuja origem decorre de valores “emprestados” a “sócios” (cfr, se retira do descritivo dos movimentos) no ano de 2014 (...) (sublinhado nosso)
Mais observamos que “... consta do documento remetido pelo SP (extrato reproduzido na figura anterior) que o registo em 2016 visou a regularização dos movimentos de 2014, não repostos pelos sócios, e que foram em 2016 reconhecidos como perdidos (encargos) pela empresa.”(sublinhado nosso)
Tivesse o SP ao tempo, em 2014, intenção de considerar taus valores disponi bilizados a sócios como adiantamento por conta de lucros e teria certamente utilizado uma conta mais apropriada como por exemplo a “263- Adiantamentos por conta de lucros”.
Contudo, também observamos que em 2016, salda a conta 599 por via da aplicação dos resultados de 2015 conforme aprovado em assembleia geral da sociedade em 31/03/2016 pela ata número 26 da qual se reproduziu parte conforme evidenciado no ponto 3.1.2.1.
Ora é no ato em causa que o SP reconhece a perda definitiva do valor registado na conta 599 ao saldar esta por contrapartida dos resultados obtidos, sendo evidente que os sócios foram os beneficiários, quer pelos descritivos quer por serem estes que tiveram o poder de dispor dos resultados da empresa em 2016.
Como o SP refere no ponto 31 da sua exposição, “o momento constitutivo da exigibilidade corresponde ao pagamento ou colocação à disposição dos lucros”, sendo claro que o momento em que a sociedade claramente decidiu da colocação à disposição de lucros foi na ata número 26 de 31/03/2016, por via direta e em contrapartida da conta 599 -outras variações no capital próprio, sendo beneficiários dessa decisão sócios da empresa conforme atrás deixámos evidente, os quais reconhecidamente beneficiam patrimonialmente do sucedido porquanto deixaram assim de ser devedoreas à empresa pelo encontro de contas inerente não assistindo por isso razão ao exposto pelo SP nomeadamente no ponto 34 e outros.
Em face do descrito entendemos não assistir razão ao SP sendo de manter a correção proposta por se entender que a mesma se encontra em termos de factos e de direito devidamente enquadrada.
15.7. Não obstante a argumentação expendida pelo sujeito passivo, foram, por despacho de 14-04-2020, da chefe da divisão dos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de …, proferido. no uso de delegação de competência, confirmadas as correções propostas no RIT, nos termos e com os fundamentos dele constantes.
15.8. A referida decisão foi notificada ao sujeito passivo em 05-05-2020, através do ofício ….
15.9. Com base nas referida correções, e no que se refere à retenção na fonte de IRS sobre adiantamentos por conta de lucros, foi efetuada, relativamente ao ano de 2016, a liquidação n.º 2020…, no montante de € 28 616,53, com data limite de pagamento fixada em 07-07-2020.
16. Os factos provados baseiam-se nos elementos constantes dos documentos juntos ao processo, não existindo, com relevo para a decisão, factos que devam considerar-se como não provados.
IV. Matéria de direito
17. Das correções relativas ao exercício de 2016 efetuadas na sequência de ação inspetiva que determinaram a liquidação ora impugnada, o Requerente, no pedido de pronúncia arbitral, reafirma a posição já anteriormente expressa em sede de direito de audição exercido sobre o projeto de RIT, acima transcrita. Acentua, porém, uma versão dos factos que sustentaria a caducidade do direito à liquidação, o que invoca, nos seguintes termos:
“É certo que ao longo dos anos, como decorre das contas correntes em anexo como Doc. 1 e 2 (contas … e …) foram sendo atribuídas importâncias a 2 sócios, sem qualquer relação jurídica subjacente e que não foram consideradas como resultantes de mútuos,
16. Sendo assim relativamente a cada um desses lançamentos a favor dos sócios poderia a inspeção presumir que tinham sido feitos a título de adiantamentos por conta de lucros, se tivesse sido desencadeado o correspondente procedimento, o que não fez.
17. Portanto, não está em causa qualquer adiantamento por conta de lucros não está em causa qualquer retenção na fonte devida por tal facto tributário e também não está em causa nenhuma distribuição de resultados que tenha sido promovida para compensar tais adiantamentos.
18. É igualmente certo que em 2014 houve lançamentos a crédito das mencionadas contas correntes, totalizado € 88 798,05, que tiveram como contrapartida o débito numa conta de capitais próprios (conta 599), que surgiram na sequência de divisão do património e acerto de contas no contexto do divórcio entre os dois sócios.
19. Neste ano houve uma efetiva variação patrimonial negativa (redução dos capitais próprios) que deveria ter sido enquadrada à luz das regras do Código do IRC, em particular, do artigo 24.º do Código do IRC.
20. De facto, as contas correntes dos sócios foram creditadas pelo montante acima identificado (€ 88 798,05) por alegada compensação de valores que os sócios, no passado, tinham afeto à sociedade e que não tiveram a devida relevação contabilística mas que nesse ano entenderam regularizar/compensar.”
18. Alegando que caberia à AT, em sede de procedimento inspetivo, averiguar toda a factualidade subjacente aos referidos lançamentos contabilísticos, sustenta a Requerente:
“23. A Requerente já não discute a legitimidade do crédito na conta corrente dos sócios em 2014 para corrigir erros contabilísticos do passado, e aceita que possa ser considerado como uma indevida anulação na conta corrente dos sócios, que, no fundo, na ausência de relação subjacente, corresponderá a um perdão de dívida, na medida em que se reduziu a dívida dos sócios tendo como contrapartida uma redução do património da sociedade (redução dos capitais próprios).
19. Assim, conclui a Requerente que o facto tributário teria ocorrido no período de 2014 pelo que seria relativamente a este que a AT deveria ter extraído as devidas consequências. Não tendo ocorrido qualquer facto tributário no período de 2016, nomeadamente, o que se encontra subjacente à liquidação impugnada, conclui a Requerente pedindo ao Tribunal que declare a ilegalidade do ato com a sua consequente anulação e restituição das importâncias indevidamente cobradas acrescidas dos correspondes juros indemnizatórios contados nos termos legais.
20. A Requerida, em resposta ao alegado, pronuncia-se no sentido de que “ a obrigação legal de reter imposto verificou-se no ano de 2016, nos termos previstos na alínea a) do n.º 1 do art.º 71.º do CIRS, estando os rendimentos sujeitos a retenção na fonte, a título definitivo à taxa de 28%, e nos termos do n.º 3 do artigo 28.º da LGT, no caso de substituição tributária em que a retenção na fonte do imposto é a título definitivo, o substituído só é subsidiariamente responsável pelas importâncias que deveriam ter sido retidas e não o foram.”
21. Reportando-se aos elementos apurados em sede de procedimento inspetivo – acima detalhadamente descritos - assinala a Requerida os seguintes aspetos:
- a inspecção entendeu que a contabilidade da Requerente espelharia de forma credível as transacções e operações da entidade e que este não estaria a agir em má-fé, conforme preceitua o n.º 1 art.º 75.º da LGT
- E que, perante os elementos fornecidos pelo sujeito passivo, a conta 599, surge assim no início de 2016 como uma conta que reflecte valores, mas cuja origem, decorre de valores “emprestados” a “sócios” (cf. se retira do descritivos dos movimentos) no ano de 2014.
- Conforme consta do documento remetido pelo sujeito passivo, ora Requerente, o registo em 2016 visou a regularização dos movimentos de 2014, não repostos pelos sócios, e que foram em 2016 reconhecidos como perdidos (encargos) pela empresa.
- Contudo, em 2016, a Requerente saldou a conta 599 por via da aplicação dos resultados de 2015 conforme aprovado em assembleia geral da sociedade a 31.03.2016 pela acta número 26. (Importa lembrar que os beneficiários da deliberação foram igualmente os seus proponentes e votantes.)
- Ora, é no acto em causa, que o sujeito passivo reconhece a perda definitiva do valor registado na 599 ao saldar esta por contrapartida dos resultados obtidos, sendo evidente que os sócios foram os beneficiários, quer pelos descritivos referidos quer por serem estes que tiveram o poder de dispor dos resultados da empresa em 2016,
- pelo que, o momento constitutivo da exigibilidade corresponde ao pagamento ou à colocação à disposição dos lucros, sendo claro que o momento em que a sociedade claramente decidiu da colocação à disposição de lucros foi na Ata número 26 de 31.03.2016 por via directa e em contrapartida da conta 599 – outras variações no capital próprio, sendo, inexoravelmente, beneficiários dessa decisão os sócios da empresa.
22. Expostas, nas suas linhas essenciais, as posições assumidas pelas Partes, constata-se estar em causa o tratamento jurídico-tributário da regularização contabilística, no valor de € 88 498,05, efetuada em 2016. Esta regularização, tendo como objeto movimentos efetuados em anos anteriores, mormente em 2014, traduzidos na retirada de valores monetários, a título de empréstimo, efetua-se, de conformidade com deliberação da assembleia geral da Requerente, através da sua contabilização como “outras variações de Capital Próprio”, por forma a desonerar os sócios da dívida para com a sociedade. Conforme assinala a AT, em termos práticos, na aplicação para “outras variações de Capital Próprio” houve uma distribuição de lucros em favor dos sócios, consubstanciada pela não reposição de meios monetários ou equivalentes da empresa antes desviados do património desta, e que constituíram um “lucro” efetivo dos beneficiários (sócios) reconhecido no ano de 2016.
23. Assim, a questão que desde logo se suscita é a que se prende com a qualificação dos valores em causa como rendimentos de capitais, para efeitos de IRS. Assim, salienta-se que a norma geral de incidência desta categoria de rendimentos – Categoria E – consta do artigo 5.º do respetivo Código, cujo n.º 1 dispõe que “ Artigo 5.º - Rendimentos da categoria E - 1 – Consideram-se rendimentos de capitais os frutos e demais vantagens económicas, qualquer que seja a sua natureza ou denominação, sejam pecuniários ou em espécie, procedentes, direta ou indiretamente, de elementos patrimoniais, bens, direitos ou situações jurídicas, de natureza mobiliária, bem como da respetiva modificação, transmissão ou cessação, com exceção dos ganhos e outros rendimentos tributados noutras categorias.
24. Segundo o n.º 2 do mesmo artigo “2 – Os frutos e vantagens económicas referidos no número anterior compreendem, designadamente:[...] h) Os lucros e reservas colocados à disposição dos associados ou titulares e adiantamentos por conta de lucros, com exclusão daqueles a que se refere o artigo 20.º;
25. Estes rendimentos são sujeitos a retenção na fonte, a título definitivo, à taxa de 28% (cfr. CIRS, art. 71.º, n.º 1, al. a)), operando esta no momento da colocação dos rendimentos à disposição dos respetivos titulares (cfr. CIRS, art. 7.º, n.º 3, alínea a2)), deve ser efetuada pela entidade devedora deste tipo de rendimentos (cfr. CIRC, art. 101.º, n.º 2, al. a)).
26. Face ao quadro legal acima sumariado e revertendo à concreta a situação em análise, suscita-se, desde logo, a questão de saber se a norma de incidência contida na alínea h) do n.º 2, do Código do IRS, exige que, do ponto de vista contabilístico, a realidade ali prevista seja escriturada como “adiantamento por conta de lucros” ou se aquela se mostra preenchida sempre que existam indícios concretos de que a retirada de valores por parte dos sócios traduz tal realidade.
27. Tem esta questão sido abordada pela jurisprudência dos Tribunais Superiores. Como se afirma no acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 07-07-2016, proferido no processo n.º 00446/11BEBRG « (...) a norma do artigo 5.º, n.º 2, alínea h) do CIRS não exige a escrituração formal dessa realidade como pressuposto de incidência, mesmo porque "deixar ao critério do sujeito passivo a "classificação" como adiantamento por conta de lucros, de realidades da vida corrente das sociedades comerciais, que constituem verdadeiros desvios de fundos em proveito dos sócios, seria frustrar o interesse público do Estado na arrecadação de impostos e no combate à fraude e evasão fiscais e permitir que ficassem por tributar verdadeiros incrementos patrimoniais dos sócios".
É comummente aceite que quando os lucros distribuídos ou adiantamento por conta de lucros são devidamente escriturados, estamos perante um rendimento sujeito a impostos sobre o rendimento das pessoas singulares. Porém, o mesmo não acontece quanto uma parte do património das sociedades é afectado ou onerado, por contrapartida da transferência duma parte deste, de modo permanente e definitivo, para a esfera jurídica de um associado ou titular, sem que às mesmas operações lhes sejam dados os qualificativos de "lucros distribuídos" ou "adiantamentos por conta dos lucros.
Tal situação ocorre quando os montantes, que deviam ter sido reconhecidos como proveitos das sociedades, acabam por não ser registados nas contabilidades destas e vão acrescer ao património individual dos respectivos associados ou titulares e, ainda, quando o registo, apesar de efectuado na contabilidade da sociedade, não foi relevado numa conta de proveitos, mas sim numa qualquer conta de passivo que confira ao associado ou titular o direito de, como qualquer normal credor, vir a exercer a respectiva exigibilidade. [i]
28. No caso em análise, é manifesto ter havido deslocação de valores da esfera patrimonial da sociedade para os sócios, nos termos assinalados no RIT, onde se faz correta subsunção dos factos ao direito aplicável.
29. Conforme decorre do texto da norma do artigo 5.º, n.º 2, alínea a), o facto tributário é a colocação à disposição dos associados de lucros ou adiantamentos por conta de lucros. Como se afirma em decisão arbitral de 08-07-2019, proferida no processo /2019-T, “(...) colocação à disposição dos associados de lucros ou adiantamentos por conta de lucros que a alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS configura como facto tributário que pressupõe um ato da sociedade de que se possa concluir que esta decidiu transferir quantias para a disponibilidade dos sócios.
A mera saída de dinheiro da sociedade ou falta de entrega à sociedade de quantias que lhe deviam ser entregues sem a prática de qualquer ato pela sociedade que permita concluir que houve transferência para os sócios do poder de disporem desses meios pecuniários, não configura colocação à disposição dos associados para efeitos da alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS.
30. Aderindo, sem reservas, ao entendimento acima explanado, e revertendo à situação em análise, constata-se, dos elementos factuais trazidos ao processo e dados como provados, que a retirada de valores do património da sociedade para a esfera dos sócios em momentos anteriores a 2016, nomeadamente em 2014, teria sido a título de “empréstimos”, sendo a situação sanada por deliberação da assembleia geral no sentido de desonerar os sócios desse encargo. Como bem se assinala no RIT, é com a referida deliberação, e consequente lançamento contabilístico, que a sociedade decidiu transferir as importâncias em causa para a disponibilidade dos sócios. Nos termos da legislação aplicável, é esse o facto e o momento em que se configura a obrigação de retenção na fonte por parte da entidade devedora do rendimento.
V. Decisão
Nos termos e com os fundamentos expostos, o Tribunal Arbitral decide julgar totalmente improcedente o pedido de pronuncia arbitral.
Valor do processo: Fixa-se o valor do processo em € 28 616,53, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º1, alíneas a) e b), do RJAT e artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
Custas: Ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, e nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixo o montante das custas em € 1 530,00, a cargo da Requerente.
Lisboa, 21 de maio de 2021,
O árbitro,
Álvaro Caneira
[i] No mesmo sentido: TCAS, Acs. de 27.1.2009 – Proc. 02476/08 e de 25.2.2021 – Proc. 1236/10-1BELRA.