SUMÁRIO:
1. De acordo com o entendimento do Tribunal de Justiça da União Europeia o regime do n.º 2 do artigo 43.º, al b) do Código do IRS ao restringir a limitação da tributação a 50% das mais-valias realizadas apenas para os residentes em Portugal é incompatível com o artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, ainda que estejam em causa residentes em países terceiros.
2. Do princípio do primado do Direito da União Europeia resulta que a Requerida tem o dever de recusar a aplicação de normas nacionais contrários ao Direito da União Europeia, constituindo erro de direito a liquidação efetuada pela Requerida com base no regime nacional em causa, enquadrável no conceito de “erro imputável aos serviços”.
DECISÃO ARBITRAL
I – Relatório
1. No dia 2.12.2019, o Requerente, A…, solteiro, residente em ……., ………, ……, Miami, …, Estados Unidos da América, com o número de identificação fiscal ………, requereu ao CAAD a constituição de tribunal arbitral, nos termos do artigo 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, com vista à declaração de ilegalidade da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) nº. 2019 ………., datada de 26-7-2019, pela qual foi liquidado ao ora Requerente o IRS referente ao ano de 2018, no valor de € 27.601,09.
O Requerente peticiona, ainda, a condenação da Requerida a restituir o montante do imposto que alega ter pagado, acrescido de juros indemnizatórios, contados desde a data do pagamento até integral e efetivo reembolso.
2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira.
Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1, do artigo 6.º, do RJAT, por decisão do Senhor Presidente do Conselho Deontológico, devidamente comunicada às partes, nos prazos legalmente aplicáveis, foi designado árbitro o signatário, que comunicou ao Conselho Deontológico e ao Centro de Arbitragem Administrativa a aceitação do encargo, no prazo regularmente aplicável.
O Tribunal Arbitral foi constituído em 21.02.2020.
3. Os fundamentos apresentados pelo Requerente, em apoio da sua pretensão, foram, em síntese, os seguintes:
a. O Requerente, residente fiscal nos Estados Unidos da América, vendeu, em 2018, um imóvel situado em Portugal que havia adquirido em 2017.
b. A Requerida sujeitou a tributação, à taxa autónoma de 28%, a totalidade das mais-valias realizadas pelo Requerente.
c. Nos termos do número 2 do artigo 43.º “2 – O saldo referido no número anterior, respeitante às transmissões efetuadas por residentes previstas nas alíneas a), c) e d) do n.º 1 do artigo 10.º, positivo ou negativo, é apenas considerado em 50% do seu valor”.
d. Nos termos desta norma, só os residentes podem usufruir de uma exclusão de 50% da
tributação, enquanto os não-residentes, são tributados sobre 100% da mais-valia imobiliária, o que viola o n.º 1 do artigo 63.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia, nos termos do qual “…são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros.”
e. O ato impugnado é inválido por violação do atual n.º 1 do artigo 63.º do TFUE como concluiu o Tribunal de Justiça da União Europeia no Caso Hollmann, Processo n.º C-443/06, de 11 de outubro de 2007.
f. Esta discriminação não foi ultrapassada com o regime alternativo de tributação consagrado nos atuais números 9 e 10 do artigo 72.º do Código do IRS, uma vez que a consagração deste regime, de aplicação subsidiária, implica um ónus adicional aos não residentes - proceder a uma comparação entre os dois regimes – algo que não é exigível aos residentes e, por outro lado, a existência de um regime subsidiário não afasta os vícios do regime principal.
4. A Requerida, chamada a pronunciar-se, contestou a pretensão da Requerente, defendendo-se por impugnação, em síntese, com os fundamentos seguintes:
a. Considerando que o contribuinte sustenta a sua pretensão invocando o Acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias de 2007OUT11 (Hollman) é certo ter sido então decidida a contrariedade com o Direito Comunitário da disciplina da tributação das mais-valias imobiliárias de não residentes resultante dos artigos 72º, n.º 1 e 43º, n.º 2 do Código do IRS, por “o artigo 56° CE dever ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que sujeita as mais-valias resultantes da alienação de um bem imóvel situado num Estado-Membro, no caso vertente em Portugal, quando essa alienação é efetuada por um residente noutro Estado-Membro, a uma carga fiscal superior à que incidiria, em relação a este mesmo tipo de operação, sobre as mais-valias realizadas por um residente do Estado onde está situado esse bem imóvel”.
b. Na sequência deste Acórdão e do entendimento proferido, foi emitido Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 2008JAN16 (processo 0439/06) pelo que, no sentido de adaptar a legislação nacional à decisão então sufragada, foi aditado ao artigo 72° do Código do IRS, pela Lei n.º 67-A/2007, de 31112, o n.º 7 (atual n.º 9), cujo teor à data dos factos, era o seguinte:
"9 - Os residentes noutro Estado membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em matéria fiscal, podem optar, relativamente aos rendimentos referidos nas alíneas a) e b) do n º 1 e no n º 2, pela tributação desses rendimentos à taxa que, de acordo com a tabela prevista no n °1 do artigo 68. º, seria aplicável no caso de serem auferidos por residentes em território português."
c. Por sua vez, o n.º 8 (n.º 10 à data dos factos) do mesmo artigo e diploma legal, também aditado pela Lei n.0 67-A/2007, de 31/12, prescrevia, à data dos factos, que:
«10- Para efeitos de determinação da taxa referida no número anterior são tidos em consideração todos os rendimentos, incluindo os obtidos fora deste território, nas mesmas condições que são aplicáveis aos residentes.»
d. E, por força dessa alteração legislativa, as declarações de rendimentos respeitantes aos anos fiscais de 2008 (em vigor a partir de Janeiro de 2009) e seguintes, mais concretamente o Modelo 3, têm um campo para ser exercida opção pela taxa do artigo 68º do Código do IRS.
e. Da explicitação supra decorre a evidência de que o entendimento que se encontrou na base da alteração legislativa concretizada pela Lei de 2007 (OE2008) respeita aos residentes na União Europeia e, mesmo então, o CIRS no seu artigo 72°, nº 9 e 10 prevê a opção pela tributação, no caso da tributação da mais valia imobiliária decorrente da alienação de um imóvel sito em território nacional por um não residente, mas residente em território europeu, de acordo com a tabela prevista no nº 1 do art.º 68°, i.é, a tabela a aplicar no caso dos rendimentos auferidos por residentes em território português e tal como estes, seriam tidos em consideração todos os rendimentos auferidos no exercício em ponderação (mesmos obtidos fora de território português).
f. A contrariedade, alegada pelo Requerente, a princípios comunitários como o da livre circulação de capitais e o principio da não discriminação, não se encontram em ponderação na situação concreta, em razão de não se encontrar em questão qualquer norma de direito comunitário, uma vez que o Requerente é não residente em território português ou em outro país integrante da Comunidade Europeia,
g. Exatamente, no sentido de ultrapassar o sentido discriminatório sobre o qual foi emitida jurisprudência europeia em 2007 e explicitada supra é que foi promovida a alteração legislativa traduzida no artigo 72°, nº 9 e 10 (atual) do CIRS, mas esta ê de aplicação aos residentes em pais da União Europeia e cuja opção determina a consideração, tal como para os residentes nacionais, da totalidade dos rendimentos obtidos.
h. Na realidade, o apuramento de IRS contestado não se mostra violador de qualquer norma de direito fiscal interno, tendo sido aplicado as normas vigentes para a tributação de não residentes em território nacional que aqui obtenham rendimentos, do mesmo modo que não se encontra em questão qualquer norma de direito comunitário, seja porque o direito nacional se mostra em consonância com o direito da União Europeia, seja porque nem sequer se trata de um residente da União ao qual deva ser aplicado o normativo europeu.
5. Verificando-se a inexistência de qualquer situação prevista no artigo 18º, nº 1, do RJAT, que tornasse necessária a reunião arbitral aí prevista, foi dispensada a realização da mesma, com fundamento na proibição da prática de atos inúteis.
6. Entendendo o Tribunal que nos presentes autos está em causa a interpretação de normas do Direito da União Europeia sobre a qual existem dúvidas interpretativas e não se conhecendo jurisprudência do TJUE sobre a questão específica que é colocada no presente processo, verificando-se ter sido efetuado reenvio prejudicial noutro processo arbitral que deu origem no Tribunal de Justiça da União Europeia ao processo prejudicial C-388/19 tendo por objeto as questões de Direito da União que importa resolver, por despacho arbitral de 18-09-2019, proferido na sequência de requerimento da Requerida, foi decidido suspender a instância, ao abrigo do disposto no artigo 272.º, n.º 1, do CPC, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
7. Tendo o tribunal arbitral tomado conhecimento de que, em 18 de março de 2021, foi proferido acórdão pelo Tribunal de Justiça da União Europeia no processo prejudicial supra referido, por despacho de 5 de abril de 2021, foi decretada a cessação da suspensão da instância e designada data para prolação da decisão arbitral.
8. O tribunal é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído nos termos do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas.
O processo não padece de vícios que o invalidem.
9. Cumpre solucionar as seguintes questões:
a) Ilegalidade da liquidação objeto do processo.
b) Direito do Requerente à devolução dos impostos pagos.
c) Direito do Requerente a juros indemnizatórios.
II – A matéria de facto relevante
10. Consideram-se provados os seguintes factos:
1. O Requerente comunicou em 23.05.2014 à Requerida a situação de não residente em Portugal, situação que se mantinha à data do facto tributário em causa no presente processo.
2. Por contrato de compra e venda de 10.11.2017 o Requerente adquiriu, pelo preço de 87.000 €, o prédio urbano destinado a habitação descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o número …., freguesia de Lordelo do Ouro, inscrito na matriz sob o artigo …. da União das Freguesias de Lordelo do Ouro e Massarelos.
3. Por contrato de compra e venda de 6.07.2018 o Requerente vendeu o mencionado imóvel pelo preço de 200.000 €.
4. Em face da mencionada venda o Requerente apresentou em 25.06.2019 a declaração modelo 3 de IRS na qual declarou o preço de aquisição do imóvel bem como os respetivos encargos e, ainda, o valor de alienação.
5. Na liquidação objeto do presente processo, efetuada pela Requerida em 26-7-2019, a matéria coletável considerada foi de 98.575, 35 € que corresponde à diferença entre o preço de alienação e o de aquisição, deduzidos das despesas com a aquisição, no valor total de 14.424,65 € e sobre a totalidade da matéria coletável foi aplicada a taxa autónoma de 28%, prevista no artigo 72º, nº 1, do Código do IRS.
6. O Requerente procedeu ao pagamento do valor da liquidação em 1.09.2019.
Com interesse para a decisão da causa inexistem factos não provados
11. A convicção do Tribunal quanto à decisão da matéria de facto alicerçou-se nos documentos constantes do processo, bem como dos articulados apresentados, sendo de salientar ocorrer total concordância das partes relativamente a esta matéria, cingindo-se o desacordo à matéria de direito.
-III- O Direito aplicável
12. Pode ler-se na decisão arbitral de 5 de Julho de 2012, proferida no processo 45/2012-T, o seguinte:
“A principal questão a decidir nos presentes autos arbitrais é a de saber se a diferenciação, estabelecida pela legislação nacional, para residentes e não residentes em território nacional, da base de incidência em IRS das mais-valias derivadas da alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis é (in)compatível com a liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, por se traduzir num regime fiscal menos favorável para os não residentes.
Com efeito, a Entidade Requerida considerou, para efeitos de determinação do rendimento colectável e consequente liquidação do IRS aos Requerentes, não residentes em Portugal, mas num outro Estado-Membro da União Europeia, a totalidade da mais-valia por estes realizada em 2010 na alienação das respectivas quotas-partes dos imóveis acima identificados.
Foi, assim, declinada a aplicação do regime preceituado no n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS, segundo o qual: “O saldo referido no número anterior, respeitante às transmissões efectuadas por residentes previstas nas alíneas a), c) e d) do n.º 1 do artigo 10.º, positivo ou negativo, é apenas considerado em 50% do seu valor”, entendendo a Entidade Requerida que tal disciplina apenas é convocável para residentes em território nacional, em consonância, aliás, com o elemento literal da norma.
Conforme assinalado pelos Requerentes, a questão em apreço foi já apreciada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”), no Acórdão, de 11 de Outubro de 2007, proferido no processo C-443/06 (“Acórdão Hollmann”), na sequência do qual o Supremo Tribunal Administrativo (“STA”) português concluiu que “o n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS, (…) que limita a incidência de imposto a 50% das mais-valias realizadas apenas para residentes em Portugal, viola o disposto no artigo 56.º do Tratado que Institui a Comunidade Europeia, ao excluir dessa limitação as mais-valias que tenham sido realizadas por um residente noutro Estado membro da União Europeia.”
Trata-se exactamente da mesma questão de direito que se suscita na situação submetida à apreciação deste Tribunal Arbitral, sendo que se mantém inalterado o regime geral do Código do IRS que enquadrou e fundou a jurisprudência citada que, de seguida, para melhor compreensão, se sumaria.
Contudo, para além do regime geral que se manteve idêntico, o legislador nacional instituiu, por via da Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2008), posterior à jurisprudência do Acórdão Hollmann, um regime opcional de equiparação dos não residentes aos residentes, com o objectivo de obviar ao tratamento diferenciado dos não residentes comunitários e do espaço económico europeu que obtenham em Portugal mais-valias imobiliárias, face aos residentes.
Esta opção de equiparação permite aos não residentes comunitários e do espaço económico europeu a opção pela tributação desses rendimentos em condições similares às aplicáveis aos residentes em Portugal (cfr. o aditamento ao artigo 72.º do Código do IRS dos seus números 7 e 8, actuais números 8 e 9 após a renumeração operada pelo artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 249/09, de 23 de Setembro).
Em concreto, dispõem os n.ºs 8 e 9 do artigo 72.º do Código do IRS:
“8 - Os residentes noutro Estado membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em matéria fiscal, podem optar, relativamente aos rendimentos referidos nos n.ºs 1 e 2, pela tributação desses rendimentos à taxa que, de acordo com a tabela prevista no n.º 1 do artigo 68.º, seria aplicável no caso de serem auferidos por residentes em território português
9 - Para efeitos de determinação da taxa referida no número anterior são tidos em consideração todos os rendimentos, incluindo os obtidos fora deste território, nas mesmas condições que são aplicáveis aos residentes.”
Conforme acima referido, sobre a aplicação exclusiva a residentes em Portugal do limite da incidência de IRS a 50% das mais-valias imobiliárias, prevista no n.º 2 do artigo 43.º do respectivo Código, e a sua conformidade com o artigo 56.º do Tratado que Institui a Comunidade Europeia, actual artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, já se pronunciou o TJUE no mencionado Acórdão Hollmann.
Cabe aqui relembrar que a prevalência da interpretação do TJUE acerca do direito de fonte comunitária resulta do disposto no n.º 4 do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa (“CRP”) e do princípio do primado do Direito Comunitário, seja este originário ou derivado.
Na jurisprudência Hollmann, o TJUE conclui que a norma nacional vertente [n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS] viola o artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, por revestir carácter discriminatório (menos favorável) para os não residentes e ser, em consequência, restritiva da liberdade de circulação de capitais entre Estados-Membros.
Esta conclusão assenta nos seguintes argumentos principais:
(a) Uma operação de liquidação de um investimento imobiliário constitui um movimento de capitais, prevendo o Tratado uma norma específica que proíbe todas as restrições aos movimentos de capitais;
(b) No caso de venda de um bem imóvel sito em Portugal, ocorrendo a realização de mais-valias, os não residentes ficam sujeitos a uma carga fiscal superior àquela que é aplicada a residentes, encontrando-se, portanto, numa situação menos favorável que estes últimos;
(c) Com efeito, enquanto a um não residente é aplicada uma taxa de 25% sobre a totalidade das mais-valias realizadas, a consideração de apenas metade da matéria colectável correspondente às mais-valias realizadas por um residente permite que este beneficie sistematicamente, a esse título, de uma carga fiscal inferior, qualquer que seja a taxa de tributação aplicável sobre a totalidade dos seus rendimentos, visto que a tributação do rendimento dos residentes está sujeita a uma tabela de taxas progressivas cujo escalão mais elevado é de 42%;
(d) Este regime torna a transferência de capitais menos atractiva para os não residentes e constitui uma restrição aos movimentos de capitais proibida pelo Tratado; (e)A discriminação da norma nacional não é justificável pelo objectivo de evitar penalizar os residentes (que se encontram sujeitos a uma tabela de taxas progressivas que podem ser muito superiores e são tributados sobre uma base mundial, ao contrário dos não residentes, que são tributados à taxa proporcional de 25%, não ocorrendo o englobamento), porque, como acima salientado, sendo o escalão mais elevado 42% conduz sempre, nas mesmas condições, a uma tributação mais gravosa do não residente, tendo em conta a redução a 50% do rendimento colectável do residente, não existindo, objectivamente, nenhuma diferença que justifique esta desigualdade de tratamento fiscal no que respeita à tributação de mais-valias, entre as duas categorias de sujeitos passivos.
Deparamo-nos, portanto, com um regime discriminatório e incompatível com o Direito Comunitário, por violação do artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.
Resta saber se a opção de equiparação, introduzida no sistema tributário português após a prolação do Acórdão Hollmann, constante dos n.ºs 8 e 9 do artigo 72.º do Código do IRS, e vigente à data dos factos sub iudicio, permite afastar o juízo de discriminação do TJUE sobre a previsão restritiva do n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS a sujeitos passivos residentes.
Para além de, como bem assinalam os Requerentes, a previsão deste regime facultativo fazer impender sobre os não residentes um ónus suplementar, comparativamente aos residentes, a opção de equiparação não é, segundo entendemos, susceptível de excluir a discriminação em causa.
Neste sentido, se pronunciou o TJUE, no Acórdão, de 18 de Março de 2010, proferido no processo C-440/08 (Acórdão Gielen) numa situação que apresenta manifesto paralelismo, somente com a diferença de que neste processo estava em causa a violação do artigo 49.º e não a do artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia” Neste sentido foi, também, maioritariamente, a jurisprudência arbitral que se lhe seguiu .
Este entendimento foi direta e expressamente acolhido em recente acórdão do TJUE de 18 de março de 2021, proferido no processo C-388/19 (considerando já o regime do CIRS aprovado pela Lei n.º 67-A/2007) onde se pode ler o seguinte:
“42 Antes de mais, há que salientar que a possibilidade de as pessoas residentes na União ou no EEE optarem, ao abrigo do artigo 72.°, n.os 9 e 10, do CIRS, por um regime de tributação análogo ao aplicável aos residentes portugueses e, assim, beneficiarem do abatimento de 50 % previsto no artigo 43.°, n.° 2, desse código permite a um contribuinte não residente, como MK, escolher entre um regime fiscal discriminatório, a saber, o previsto no artigo 72.°, n.° 1, do CIRS, e outro que não o é.
43 Ora, cumpre frisar a este respeito que, no caso em apreço, essa escolha não é suscetível de excluir os efeitos discriminatórios do primeiro desses dois regimes fiscais.
44 Com efeito, o reconhecimento de um efeito dessa natureza à referida escolha teria por consequência validar um regime fiscal que continuaria, em si mesmo, a violar o artigo 63.° TFUE em razão do seu caráter discriminatório (v., neste sentido, Acórdão de 18 de março de 2010, Gielen, C-440/08, EU:C:2010:148, n.° 52).
45 Por outro lado, como o Tribunal de Justiça já teve ocasião de precisar, um regime nacional que limite uma liberdade fundamental garantida pelo Tratado FUE, no caso em apreço a livre circulação de capitais, é incompatível com o direito da União, mesmo que a sua aplicação seja facultativa (v., neste sentido, Acórdão de 18 de março de 2010, Gielen, C-440/08, EU:C:2010:148, n.° 53 e jurisprudência referida).
46 Daqui resulta que a escolha concedida, no litígio no processo principal, ao contribuinte não residente, de ser tributado segundo as mesmas modalidades que as aplicáveis aos contribuintes residentes, não é suscetível de tornar a restrição constatada no n.° 32 do presente acórdão compatível com o Tratado.
47 Tendo em conta todas as considerações precedentes, importa responder à questão submetida que o artigo 63.° TFUE, lido em conjugação com o artigo 65.° TFUE, deve ser interpretado no sentido de que se opõe à regulamentação de um Estado-Membro que, para permitir que as mais-valias provenientes da alienação de bens imóveis situados nesse Estado-Membro, por um sujeito passivo residente noutro Estado-Membro, não sejam sujeitas a uma carga fiscal superior à que seria aplicada, para esse mesmo tipo de operação, às mais-valias realizadas por um residente do primeiro Estado-Membro, faz depender da escolha do referido sujeito passivo o regime de tributação aplicável.”
Acresce que como se pode ler na decisão arbitral de 06 de Julho de 2021, proferida no processo nº 838/2019-T:
“Assim, a questão que fica para resolver, quanto ao Direito da União é apenas a de saber se a incompatibilidade afirmada no caso Hollmann, em relação a um residente num Estado-Membro, também existe em relação a um residente num país terceiro, como sucede com o Requerente.
Ora, como defende o Requerente, o TJUE, no Despacho do Tribunal de Justiça de 06-09-2018, processo C-184/18, caso Patrício Teixeira, já deu resposta afirmativa no sentido da incompatibilidade com o Direito da União desse regime previsto no artigo 72.º, n.º 1, alínea a) do CIRS, quando aplicável a um residente num Estado terceiro.
Na verdade, no caso apreciado neste processo do TJUE estava em causa a aplicação do regime previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 72.º do CIRS a residentes em Angola, que também é Estado terceiro.
O TJUE decidiu aí que «uma legislação de um Estado Membro, como a que está em causa no processo principal, que sujeita as mais valias resultantes da alienação de um bem imóvel situado nesse Estado Membro, efetuada por um residente num Estado terceiro, a uma carga fiscal superior à que incidiria, nesse mesmo tipo de operações, sobre as mais valias realizadas por um residente naquele Estado Membro constitui uma restrição à livre circulação de capitais que, sob reserva de verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, não é abrangida pela exceção prevista no artigo 64.º, n.º 1, TFUE e não pode ser justificada pelas razões referidas no artigo 65.º, n.º 1, TFUE».
As decisões do TJUE proferidas em reenvio prejudicial têm carácter vinculativo para os Tribunais nacionais, quanto à «interpretação dos Tratados», o que é corolário da obrigatoriedade de reenvio prejudicial prevista no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (que substituiu o artigo 234.º do Tratado de Roma, anterior artigo 177.º.
No caso em apreço, a aplicação da taxa de 28% prevista no artigo 72.º, n.º 1, alínea a) do CIRS a 100% das mais-valias implica necessariamente a incidência de uma carga fiscal mais elevada para os não residentes, pois equivale a uma tributação à taxa de 56% sobre 50% das mais-valias, tributação esta que nunca é atingida com a aplicação das taxas gerais previstas no artigo 68.º para a tributação de residentes (taxa máxima de 48%), mesmo considerando o acréscimo máximo de 5% previsto no artigo 68.º-A a título de taxa adicional de solidariedade.
Pelo exposto, tem de se concluir que o artigo 43.º, n.º 2, do CIRS, na medida em que limita a residentes a tributação em IRS considerando apenas 50% do valor das mais-valias, é incompatível com o Direito da União, pelo que, em face da supremacia deste sobre o Direito Nacional que resulta do n.º 4 do artigo 8.º da CRP, o artigo 43.º, n.º 2, deve ser aplicado sem aquela limitação a residentes.
Assim, a liquidação impugnada, ao não aplicar ao Requerente a redução do valor das mais-valias que se prevê no artigo 43.º, n.º 2, do CIRS, enferma de vício de violação de lei.”
Assim sendo, não pode deixar de se considerar que procede o vício de violação de lei alegado pelo Requerente, por incompatibilidade do n.º 2 do artigo 43.º e do artigo 72º, nº 1, al. a) do CIRS, com o artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, com a consequente anulação do ato tributário objeto do processo.
13. Veio, ainda, o Requerente pedir a condenação da Requerida ao reembolso da quantia indevidamente arrecadada, bem como o pagamento de juros indemnizatórios que se mostrarem devidos, nos termos do artigo 43.º da Lei Geral Tributária.
No caso em apreço, é manifesto que, na sequência da ilegalidade do ato de liquidação, é procedente a pretensão do Requerente à restituição por força dos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para restabelecer a situação que existiria se a ilegalidade em causa não tivesse sido praticada.
No que concerne aos juros indemnizatórios, cabe ainda apreciar esta pretensão à luz do artigo 43º da Lei Geral Tributária.
Dispõe o nº 1 daquele artigo que “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.
Consta do acórdão TJUE de 4 de dezembro de 2018,no processo C 378/17, em linha com a jurisprudência do mesmo Tribunal aí referida, o seguinte:
“38 Como diversas vezes afirmou o Tribunal de Justiça, a referida obrigação de não aplicar uma legislação nacional contrária ao direito da União incumbe não só aos órgãos jurisdicionais nacionais mas também a todos os órgãos do Estado, incluindo as autoridades administrativas, encarregados de aplicar, no âmbito das respetivas competências, o direito da União (v., neste sentido, Acórdãos de 22 de junho de 1989, Costanzo, 103/88, EU:C:1989:256, n.o 31; de 9 de setembro de 2003, CIF, C 198/01, EU:C:2003:430, n.o 49; de 12 de janeiro de 2010, Petersen, C 341/08, EU:C:2010:4, n.o 80; e de 14 de setembro de 2017, The Trustees of the BT Pension Scheme, C 628/15, EU:C:2017:687, n.o 54).
39 Daqui resulta que o princípio do primado do direito da União impõe não só aos órgãos jurisdicionais mas a todas as instâncias do Estado Membro que confiram plena eficácia às normas da União.”
Na decisão do processo The Trustees of the BT Pension Scheme, C 628/15, pode também ler-se que:
“há que recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, tanto as autoridades administrativas como os órgãos jurisdicionais nacionais encarregados de aplicar, no âmbito das respetivas competências, as disposições do direito da União têm a obrigação de garantir a plena eficácia dessas disposições e de não aplicar, se necessário pela sua própria autoridade, qualquer disposição nacional contrária, sem pedir nem aguardar pela eliminação prévia dessa disposição nacional por via legislativa ou por qualquer outro procedimento constitucional (v., neste sentido, relativamente às autoridades administrativas, acórdãos de 22 de junho de 1989, Costanzo, 103/88, EU:C:1989:256, n.o 31, e de 29 de abril de 1999, Ciola, C 224/97, EU:C:1999:212, n.os 26 e 30, e, relativamente aos órgãos jurisdicionais, acórdãos de 9 de março de 1978, Simmenthal, 106/77, EU:C:1978:49, n.o 24, e de 5 de julho de 2016, Ognyanov, C 614/14, EU:C:2016:514, n.o 34).
Na doutrina nacional, refere Fausto de Quadros:
“(…) temos a obrigação para a Administração Pública de recusar a aplicação de normas ou actos nacionais contrários ao Direito Comunitário, e de aplicar este mesmo contra Direito nacional de sentido contrário, conforme doutrina acolhida, de forma modelar no caso Factortame, já referido neste livro por diversas vezes. A Administração Pública vai ter, ainda mais do que o legislador, a necessidade de levar essa doutrina em conta no desempenho da sua missão de aplicar o Direito.”
No mesmo sentido, vai Miguel Gorjão-Henriques, que escrevendo sobre o princípio do primado do direito comunitário escreve:
”(…) indubitavelmente, a dimensão clássica do princípio é aquela que, com clareza, nos enuncia Rostane MEHDII, ao salientar que o juiz e a administração têm a obrigação de «excluir as regras internas adoptadas em violação da legalidade comunitária”
Por outro lado, considerou-se no acórdão do STA de 8 de Março de 2017, proferido no proc. 01019/14, em sintonia com jurisprudência constante do mesmo Tribunal, o seguinte:
“Sobre o denominado “erro imputável aos serviços” tem a jurisprudência desta secção uniforme e reiteradamente afirmado que o respectivo conceito compreende não só o lapso, o erro material ou o erro de facto, como também o erro de direito, e que essa imputabilidade é independente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na liquidação afectada pelo erro (Vide, entre outros, os seguintes Acórdãos da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo: de 12.02.2001, recurso nº 26.233, de 11.05.2005, recurso 0319/05, de 26.04.2007, recurso 39/07, de 14.03.2012, recurso 01007/11 e de 18.11.2015, recurso 1509/13, todos in www.dgsi.pt.).”
Assim, no caso sub judice, à luz da jurisprudência e doutrina referidas, não estando a Requerida exonerada do dever de aplicação do primado do direito europeu, não poderá deixar de proceder o pedido de condenação quanto aos juros indemnizatórios, com fundamento em erro imputável aos serviços.
-IV- Decisão
Termos em que se julga procedente o pedido de pronuncia arbitral, declarando-se a ilegalidade e consequente anulação do ato tributário de liquidação impugnado e condenando-se a Requerida a restituir ao Requerente o imposto pago, acrescido de juros indemnizatórios contados desde a data do pagamento até à do processamento da nota de crédito, em que são incluídos (artigo 61.º, n.º 5, do CPPT).
Valor da ação: 27.601,09 € (vinte e sete mil seiscentos e um euros e nove cêntimos) nos termos do disposto no artigo 306º, n.º 2, do CPC e 97.º-A,n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.
Custas pela Requerida, no valor de 1 530.00 € (mil quinhentos e trinta euros) nos termos do nº 4 do artigo 22º do RJAT.
Notifique-se.
Lisboa, CAAD, 12.05.2021
O Árbitro
Marcolino Pisão Pedreiro