Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 69/2020-T
Data da decisão: 2021-05-10  IUC  
Valor do pedido: € 15.274,49
Tema: CIUC – presunção da propriedade (art. 3.º/1)
Versão em PDF

Sumário

 

I - O art. 3.º/1 do IUC na redacção vigente até 2016 estabelece uma presunção legal (no sentido, aliás, do art. 7.º do CRP) que admite prova em contrário (art. 73.º LGT), a qual pode ser produzida por testemunhas ou facturas de venda, não sendo necessária a prova do pagamento);

II – A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios.

 

Decisão Arbitral

 

I – Relatório

1. A..., SA., sociedade anónima matriculada na Conservatória do Registo Comercial sob o número único de matrícula e de identificação de pessoa colectiva ..., com sede na Rua ..., n.º ..., ...-... Lisboa, apresentou, em 05.02.2020, pedido de constituição do tribunal arbitral, nos termos dos art.os 2.º, 10.º e seguintes do DL 10/2011, (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária - RJAT), em conjugação com o artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

2. A Requerente pretendia, com o seu pedido, a declaração de ilegalidade de 146 (cento e quarenta e seis) actos de liquidação de imposto único de circulação (IUC), relativos aos anos de 2015 e 2016, no valor global de € 15.274,49, acrescido de juros compensatórios, bem como do acto de indeferimento de reclamação graciosa daqueles actos de liquidação e do respectivo reconhecimento ao direito a juros indemnizatórios.

 

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 06.02.2020.

 

4. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no art. 6.º/2 a) e 11.º/1 b) do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou o signatário como árbitro do tribunal arbitral, o qual comunicou a aceitação da designação dentro do respectivo prazo.

 

5. Em 06.07.2020 as partes foram notificadas da designação do árbitro, não tendo sido arguido qualquer impedimento.

 

6. Em conformidade com o preceituado no art. 11.º/1 c) do RJAT, o tribunal arbitral foi constituído em 05.08.2020.

 

7. O Tribunal Arbitral encontra-se, portanto, regularmente constituído para apreciar e decidir o objecto do processo.

 

8. A fundamentar o pedido de pronúncia arbitral a Requerente alega, em síntese, o seguinte:

 

a.            É uma instituição de crédito em que, de entre as suas áreas de actividade, assume especial relevância a do financiamento ao sector automóvel, no âmbito da qual parte substancial da sua actividade reconduz-se à celebração de – entre outros – contratos de locação financeira (LSG) e de aluguer de longa duração (ALD) destinados à aquisição, por empresas e particulares, de veículos automóveis.

 

b.            Os veículos automóveis a que se referem as liquidações objecto do pedido arbitral foram dados em locação financeira e ALD.

 

c.            Quase todos os clientes naqueles contratos adquiriram, no termo do respectivo contrato, o veículo automóvel sobre o qual o mesmo incidia, mediante o pagamento do valor residual do bem locado, acrescido de despesas e IVA.

 

d.            No que se refere aos veículos com as matrículas ..., ..., ... e ..., não se verificou essa aquisição pelo cliente no respectivo termo do contrato por ter havido cessão da posição contratual, porque o sujeito que veio a adquirir aquela viatura não coincide com aquele que originariamente celebrou o mesmo contrato (ou seja, com o anterior locatário), ou ainda (e aparentemente) por entidade ter sofrido uma alteração na denominação social.

 

e.            Assim sendo, nos meses relevantes dos anos a que reportam os actos tributários em análise a Requerente não pode ser responsável pelo pagamento do IUC, pois já não era proprietária dos veículos a que se reportam as liquidações de imposto, já que a propriedade de cada um dos veículos havia sido transmitida para os seus anteriores locatários ou, em alternativa, por ter havido cessão da posição contratual, para um terceiro.

 

f.             Não obstante, a Requerente foi notificada para proceder ao pagamento dos IUC (o que veio a fazer) sabendo, ou devendo saber, que os veículos em causa não eram propriedade desta no momento em que os impostos deveriam ser pagos.

 

g.            Se a jurisprudência arbitral tem maioritariamente realçado que nem mesmo durante a vigência de um LSG ou de um ALD deve a entidade locadora ser considerada sujeito passivo de IUC, por maioria de razão menos ainda deve ser atribuída a incidência subjectiva desse imposto quando, após o término do contrato, o locatário exerce o seu direito a adquirir o bem locado pelo valor residual, acrescido de despesas e IVA.

 

h.            O registo não é condição de produção do efeito translativo do mesmo, pelo que a ausência daquele não afecta a qualidade de proprietário nem afecta a eficácia plena de tal contrato perante a AT, por não ter a qualidade de terceiro para efeitos de registo.

 

i.             O contrato de compra e venda é um contrato real, ou seja, a transmissão da propriedade decorre do mero efeito do mesmo (art. 408.º/1 do Código Civil)

 

j.             A sujeição dos veículos automóveis a registo persegue objectivos de publicidade da situação jurídica dos mesmos, estabelecendo uma dupla presunção: por um lado de que o direito existe nos precisos termos em que o registo o define, e por outro, de que aquele direito pertence ao titular a favor de quem o mesmo está registado.

 

k.            Estas presunções são ilidíveis mediante prova em contrário, como resulta expressamente do art. 350.º/2 do Código Civil.

 

l.             Esta posição tem sido seguida pela jurisprudência do CAAD (v. nomeadamente proc. 33/2018-T, 236/2019-T)

 

m.          O registo da aquisição da propriedade por parte dos locatários tem, portanto, um valor meramente declarativo e não constitutivo, isto é, a inscrição da compra do veículo no registo por parte do novo proprietário não é condição de validade nem da produção do efeito translativo típico do contrato de compra e venda.

 

n.            Embora a lei estipule que os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo (art. 5.º/1 do Código do Registo Predial), terceiros, para efeitos de registo são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si (art. 4.º/4 do mesmo diploma).

 

o.            Ou seja, a falta de registo gera uma (mera) ineficácia relativa, tornando essa aquisição inoponível a um terceiro que venha a adquirir do mesmo vendedor um direito total ou parcialmente incompatível com o direito inicialmente adquirido pelo primeiro comprador (que não efectuou o registo).

 

p.            Esta ineficácia relativa da aquisição não prejudica, todavia, a efectiva transmissão do direito de propriedade para a esfera jurídica do comprador (ainda que parcialmente inoponível a certas pessoas), o qual se tornou proprietário por efeito da celebração do respectivo contrato de compra e venda.

 

q.            Assim sendo, uma vez celebrado o contrato de compra e venda do veículo locado a favor do locatário, este adquire a propriedade do mesmo por mero efeito do contrato, e, concomitantemente, a qualidade de sujeito passivo do IUC, agora já não como locatário titular de uma opção de compra, mas como proprietário de pleno direito. Se o proprietário não proceder de imediato ao registo da propriedade a seu favor, presume-se que a propriedade continua a pertencer ao vendedor (art. 7.º do CRP), mas esta presunção é relativa, ou seja, pode ser afastada mediante prova em contrário.

 

r.             A Administração Fiscal não preenche os requisitos legais do conceito de terceiro para efeitos de registo pelo que não pode exigir ao vendedor o pagamento do imposto devido pelo comprador (proprietário) a partir do momento em que a presunção do art. 7.º seja afastada mediante a prova da respectiva venda (artigo 73º da LGT).

 

s.            Acresce que o princípio da equivalência consubstanciado no art. 1.º CIUC impõe que o sujeito passivo do imposto seja o real proprietário do veículo e não o proprietário registado, uma vez que será o primeiro que causa os custos ambientais e viários que este tributo comutativo visa compensar.

 

t.             Sendo, portanto, evidente que a presunção derivada do registo automóvel não pode deixar de ser entendida como uma presunção ilidível, constituindo as facturas de venda dos veículos automóveis a prova bastante para tal ilisão.

 

u.            De facto, é o próprio art. 29.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado que reconhece a factura como documento ao qual é legalmente atribuída relevância para documentar e comprovar transacções, entendimento este que vem sendo acolhido na jurisprudência arbitral do CAAD (proc. 258/2017-T, 515/2017-T, 158/2017-T, 261/2018-T, 318/2018-T).

 

9. Conclui, por isso, a Requerente pela ilegalidade das liquidações objecto do pedido arbitral, bem como dos aludidos despachos de indeferimento, reclamando ainda o direito a juros indemnizatórios (nos termos do art. 43.º da LGT) e à responsabilização da Requerida pelas custas do processo.

 

10. Por seu turno a Requerida veio, em resposta, alegar, em síntese:

a.            O legislador tributário ao estabelecer no artigo 3º, nº 1 quem são os sujeitos passivos do IUC estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários (ou nas situações previstas no nº 2, as pessoas aí enunciadas), considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontram registados.

 

b.            Realça que o legislador não usou a expressão “presume-se”, como poderia ter feito, por exemplo, nos seguintes termos: “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, presumindo-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontram registados.”.

 

c.            O normativo fiscal está repleto de previsões análogas à consagrada na parte final do artigo 3º/1, em que o legislador fiscal, dentro da sua liberdade de conformação legislativa, expressa e intencionalmente, consagra o que deve considerar-se legalmente, para efeitos de incidência, de rendimento, de isenção, de determinação e de periodização do lucro tributável, para efeitos de residência, de localização, entre muitos outros.

 

d.            Em face da redacção do preceito não é manifestamente possível invocar que se trata de uma presunção, conforme defende a requerente. Trata-se, sim, de uma opção clara de política legislativa acolhida pelo legislador, cuja intenção, adentro da sua liberdade de conformação legislativa, foi a de que, para efeitos de IUC, sejam considerados proprietários, aqueles que como tal constem do registo automóvel.

 

e.            Refere, em favor do seu entendimento, duas decisões judiciais (proc.os 210/13.0BEPNF e 00611/13.4BEVIS).

 

f.             A pretensão da requerente assenta em equívoco e resulta de interpretação que não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal e, por último, decorre de uma interpretação que ignora a ratio do regime consagrado no artigo em apreço, e bem assim, em todo o CIUC.

 

g.            Esclarece que a não actualização do registo, nos termos do disposto no art. 42.º do Regulamento do Registo de Automóveis, será imputável na esfera jurídica do sujeito passivo do IUC e não do Estado Português, enquanto sujeito activo deste imposto.

 

h.            À luz de uma interpretação teleológica do regime consagrado em todo o CIUC, a interpretação propugnada pela requerente no sentido de que o sujeito passivo do IUC é o proprietário ou o locatário financeiro (mesmo que não figure no registo automóvel o registo dessa qualidade) é manifestamente errada, na medida em que é própria ratio do regime consagrado no Código do IUC que constitui prova clara de que o que o legislador fiscal pretendeu foi criar um Imposto Único de Circulação assente na tributação do proprietário do veículo tal como constante do registo automóvel.

 

i.             Os documentos que a Requerente junta para ilisão de pretensa presunção não provam de forma clara e inequívoca que ocorreu a transmissão do veículo e consequentemente da propriedade do mesmo, não sendo junto um único extracto financeiro ou cheque que prove que as facturas foram pagas ou que os contratos foram cumpridos a que acresce o facto de as facturas não serem aptas a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático.

 

j.             Sustenta que os actos tributários em crise são válidos e legais, porque conformes ao regime legal em vigor à data dos factos tributários, pelo que, não ocorreu, in casu, qualquer erro imputável aos serviços, mais defendendo não estarem, em qualquer circunstância, reunidos os pressupostos legais que conferem o direito peticionado a juros indemnizatórios.

 

11. Em 12.02.2020 teve lugar a reunião a que se refere o art. 18.º do RJAT, tendo-se procedido à inquirição de uma testemunha arrolada pela Requerente.

 

II. Saneamento

 

12. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente.

 

13. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (art.s 4.º e 10.º/2 do RJAT e art. 1.º da Port.ª 112-A/2011, de 22.3).

 

14. A cumulação de pedidos é legal (art. 3º/1 do RJAT).

 

III. Matéria de facto

Factos provados

15. Atendendo às posições assumidas pelas partes, à prova documental junta aos autos e à prova testemunhal produzida – tendo presente que o Tribunal não tem o dever de pronúncia sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de seleccionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa de pedir que fundamenta o pedido formulado (cfr.artos. 596.º/1 e 607º/2 a 4, do C.P. Civil, na redacção da L 41/2013, de 26.6), e consignar se a considera provada ou não provada (cfr. art. 123.º, nº.2, do CPPT) – consideram-se, com relevo para apreciação e decisão das questões suscitadas, provados os seguintes factos:

 

A.           A Requerente é uma instituição de crédito, assumindo especial relevância, na sua actividade comercial, o financiamento ao sector automóvel, designadamente através da celebração de contratos de locação financeira e de aluguer de longa duração.

 

B.            A Requerente foi notificada de cento e quarenta e seis actos de liquidações de IUC, relativos aos anos de 2015 e 2016, no montante global de € 15.274,49; conforme Anexo A, junto ao pedido inicial.

 

C.            A Requerente apresentou reclamação graciosa relativamente aos cento e quarenta e seis actos de liquidação de IUC na qual foi proferido despacho de indeferimento, em 8.11.20219.

 

D.           A Requerente emitiu facturas de venda relativamente a todas as viaturas automóveis a que respeitam as liquidações objecto do presente processo, antes da data a que as mesmas respeitam.

 

E.            A Requerente procedeu ao pagamento do imposto a que respeitam os presentes autos.

 

F.            A Requerente apresentou em 26.04.2021 um requerimento desistindo do pedido em relação a seis actos de liquidação de IUC, importando uma redução do mesmo em € 299,19 (com a consequente correcção do Anexo A junto com o pedido), não tendo a Requerida formulado qualquer objecção, pelo que, deferido o mesmo, o pedido foi reduzido para € 14.975,30

 

16. Os factos foram dados como provados com base no processo administrativo remetido pela Requerida, na análise crítica dos documentos juntos ao processo pela Requerente e pelo depoimento da testemunha B... que se considera consistente e credível.

 

Factos não provados

17. Não há factos relevantes para esta decisão arbitral que não se tenham provado.

 

III. Matéria de Direito

18. A questão de fundo a apreciar no presente processo reside, por um lado, na interpretação a dar ao art. 3.º/1 do CIUC no sentido de apurar se a norma de incidência subjectiva, nele contida, estabelece uma presunção legal juris tantum – e, como tal, susceptível de ilisão – ou se, pelo contrário, contém uma definição expressa e intencional da incidência pessoal, no sentido de que é necessariamente sujeito passivo do imposto aquele em nome de quem o veículo automóvel está registado como proprietário.

 

19. Embora as liquidações respeitem a dois anos distintos (2015 e 2016), a todas elas se aplica a anterior redacção da referida norma (art. 3.º/1 CIUC), já que a nova redacção entrou em vigor em 02.08.2016 e os actos de liquidação impugnados situam-se temporalmente entre 11.06.2016 e 02.07.2016.

 

20. Dispunha o art. 3.º/1 do CIUC, (na versão aplicável aos actos impugnados) que são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares e colectivas, de direito público ou privado, em nome dos quais os mesmos se encontrem registados.

 

21. Sustenta AT que a base de incidência pessoal, que esta norma define, não comporta qualquer presunção legal, uma vez que transmite de forma expressa e intencional o pensamento do legislador tributário, no sentido de se considerar, de modo irrefutável, como sujeitos passivos do IUC as pessoas em nome das quais os veículos automóveis se encontravam registados.

 

22. Em abono da sua tese, aduz razões hermenêuticas de interpretação da lei, por referência não apenas à sua literalidade, como aos seus elementos sistemático e teleológico.

 

23. A invocação colhe genericamente, na medida em que, de acordo com o disposto no art. 11.º da LGT, na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam, são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis.

 

24. De facto, como referem Diogo Leite Campos, Benjamim Rodrigues, J. Lopes de Sousa (LGT 4ª ed., em anotação à norma em causa) sem afastar a letra da lei, que tem de ser a principal referência e ponto de partida do intérprete, se exclui a sua aplicação automática, supondo que nas leis há uma racionalidade operante que o intérprete se deve esforçar por reconstruir.

 

25. Será, portanto, dentro deste quadro de interpretação do art. 3.º/1, n.º 1 do CIUC, que teremos de encontrar a resposta ao antagonismo de posições entre a Requerente e a AT.

 

26. Para a Requerida é decisivo para a determinação do sujeito passivo do IUC o registo de propriedade do veículo automóvel – assumindo existir na referência normativa uma ficção legal que estabelece a incidência subjectiva do imposto naquele em nome de quem o veículo está registado.

 

27. O registo de propriedade de veículos é obrigatório, face ao disposto no art. 5º/1, a) e n.º 2 do DL 54/75, pelo que, qualquer direito real que incida sobre a viatura está sujeito a registo, com o que se pretende salvaguardar a segurança do comércio jurídico, bem como a publicidade da situação jurídica dos mesmos.

 

28. Tal registo goza, nos termos do disposto no art. 7.º do Código do Registo Predial (aplicável ao registo automóvel por força do art. 29.º do referido DL 54/75), da presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.

 

29. Assim sendo, a inscrição de registo de propriedade do veículo faz presumir que o direito de propriedade sobre o mesmo existe nos termos constantes do registo.

 

30. O registo de propriedade automóvel não constitui, portanto, uma condição de validade dos contratos a ele sujeitos – à semelhança do que ocorre com o registo predial (cujo regime, como já apontamos, é extensivo ao registo automóvel). Pelo contrário, ele tem uma função meramente declarativa.

 

31. Acontece, porém, que o art. 5.º/1 do Código do Registo Predial, determina que os factos sujeitos a registo só produzem efeito contra terceiros depois da data do respectivo registo.

 

32. Daqui pareceria poder retirar-se que (aplicando o art. 3.º/1 do CIUC) bastaria que a AT invocasse a ausência de registo para poder exigir o pagamento do imposto àquele em nome de quem o veículo está registado, por ser o sujeito passivo do imposto.

 

33. Sucede que o art. 5.º/4 do Código do Registo Predial condiciona esse entendimento, ao determinar que terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si. Donde resulta que, afinal, a AT nunca estaria habilitada a invocar a falta de registo, na medida em que não preenche o conceito de terceiro.

 

34. Posto isto, em termos gerais, há que apurar se, apesar de tudo o que foi referido, o art. 3.º/1 do CIUC estabelecia ou não – na versão aplicável às situações em apreço – uma presunção legal (através da expressão considerando-se, ali utilizada).

 

35. Refira-se, antes de mais, que se afigura ofensivo da unidade do sistema jurídico-legal – e até, com as devidas adaptações, contrário ao disposto no art. 11.º/2 e 3 da LGT – que um indivíduo possa considerar-se como não proprietário de um bem para efeitos civis e deva sê-lo, ipso iure, para efeitos tributários.

 

36. Acresce o facto de a AT dever nortear a sua actividade pela observância dos princípios da legalidade, do inquisitório e descoberta da verdade material, ínsito ao ditame constitucional da capacidade contributiva – o que reforça a profunda estranheza gerada pela hipótese referida (e defendida pela AT).

 

37. Parece evidente que, quer do ponto de vista sistemático, quer teleológico, a expressão considerando-se usada no art. 3.º/1 do CIUC não pode deixar de consubstanciar uma verdadeira presunção, a isso não se opondo a aparente literalidade do termo, nem o ordenamento tributário.

 

38. Na verdade, as presunções em matéria de incidência tributária podem ser explícitas, reveladas pela utilização da expressão “presume-se” ou semelhante […] No entanto, as presunções também podem estar implícitas em normas de incidência, designadamente de incidência objectiva… (Diogo Leite Campos, Benjamim Rodrigues, J. Lopes de Sousa, LGT, 4ª ed., em anotação ao art. 73º, pg. 651).

 

39. Esta segunda hipótese (a situação de presunção implícita) enquadra precisamente o caso do art. 3.º/1 do CIUC.

 

40. Esse é, aliás, o entendimento jurisprudencial pacífico no CAAD (vejam-se a título meramente exemplificativo as decisões proferidas nos proc.os 14/2013, 26/2013, 27/2013, 73/2013, 170/2013 e 154/2014 539/2016-T, 580/2016-T, 623/2016-T, 109/2017-T, 145/2017-T, 185/2017-T), e nos tribunais administrativos (cf. ac. STA de 23.05.2018 – Proc. 1341/17, Ac. TCA Sul de 14-03-2019 – Proc. 201/14.4BEALM ou Ac. TCA Sul de 19.03.2015 – Proc. 08300/14.

 

41. Deve, a propósito, lamentar-se que a AT, para sustentação da sua tese, continue a insistir na invocação da sentença proferida pelo TAF de Penafiel no proc. 210/13-0BEPNF, quando bem sabe que tal decisão foi revogada pelo Acórdão do STA atrás citado.

 

42. Estabelece o art. 350.º/2 do Código Civil que as presunções legais podem ser ilididas mediante prova em contrário, excepto nos casos expressamente previstos na lei. E, no respeitante à ilisão, temos por boa a doutrina a que o STJ recorreu na fundamentação do Assento n.º 1/91 de 03-04-1991 (DR n.º 114, de 18.5) – para classificar como juris tantum uma presunção estabelecida num diploma laboral – defendida por Vaz Serra [Provas (direito probatório material), BMJ 110-112, pag. 35], bem como por Mário de Brito (Código Civil Anotado, pag. 466) e Mota Pinto (Teoria Geral do Direito Civil, pag. 429): as presunções juris tantum constituem a regra, sendo as presunções jure et de jure a excepção. Na dúvida, a presunção legal é juris tantum, por não se dever considerar, salvo referência da lei, que se pretendeu impedir a produção de provas em contrário, impondo uma verdade formal em detrimento do real provado.

 

43. No âmbito do direito tributário, o art. 73º da LGT dispõe que as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário. O que significa que todas as presunções em matéria de incidência tributária – como acontece no caso do art. 3.º/1 do CIUC –, são juris tantum, ou seja, ilidíveis.

 

44. Para efeitos de ilisão da presunção a Requerente apresentou, além da prova testemunhal, as facturas titulando os contratos de compra e venda dos veículos em causa que operaram ipso iure a transmissão da propriedade.

 

45. A Requerida põe em causa que tais facturas sejam aptas a comprovar a efectiva transmissão de propriedade dos veículos. Não impugna a genuinidade dos documentos, mas apenas os efeitos que dos mesmos se pretendem retirar.

 

46. A sua argumentação não colhe, até por assentar em pressupostos incorrectos.

 

47. Assim, recorde-se que o se pretende é ilidir a presunção, demonstrando a existência de um contrato de compra e venda. Deste, existindo, resultará a transmissão da propriedade e desaparecerá na pessoa do vendedor, a incidência subjectiva do imposto.

 

48. A Requerida entende (erroneamente) que a da transmissão da propriedade decorre do pagamento e por isso considera que não estando demonstrado este, não fica provada a referida transmissão, com a qual de afastaria a presunção.

 

49. Esta posição ignora o carácter consensual do contrato de compra e venda, o qual determina que a sua perfeição depende apenas da conventio: a transmissão da propriedade decorre do contrato, tal como as obrigações de entrega e pagamento – que (ao contrário do que pretende a Requerida) não são elementos formadores do mesmo (cf. art.s 408.º/1 e 879.º do Código Civil).

 

50. As facturas cujas cópias foram juntas pela Requerente pretendem, portanto, provar a mera existência de um contrato. Ora, no caso (dos contractos de compra e venda de automóveis) deve recordar-se não existe legalmente qualquer exigência formal específica (cfr art. 219.º e 408.º/1 do Código Civil) e, como tal, podem ser provados por qualquer meio, incluindo a prova testemunhal.

 

51.(Daí que não se vislumbre qualquer fundamento jurídico para a postura processual assumida pela Requerida, invocando inadmissibilidade da prova testemunhal. Isso poderia fazer sentido se o que se pretendesse demonstrar fosse a celebração de contratos de locação financeira – para os quais, esses sim, se exige forma escrita; mas não é esse manifestamente o caso).

 

52. Neste enquadramento, a factura constitui documento contabilístico elaborado no seio da empresa e que se destina ao exterior, através do qual o vendedor envia ao comprador as condições gerais da transacção realizada. Acresce que – no sentido do anteriormente exposto – a emissão da factura não tem de coincidir com o pagamento efectivo da importância a pagar pelo comprador.

 

53. Por outro lado, a factura goza da presunção de veracidade que lhe é conferida pelo art. 75º/1 da LGT, tendo, assim, idoneidade e força bastante para ilidir a presunção que suportou as liquidações efectuadas com base exclusivamente na existência do registo.

 

54. Donde, em conclusão, face aos elementos carreados para o processo pela Requerente e aos factos provados, extrai-se a conclusão que esta não era realmente proprietária dos veículos em causa, por ter transferido a propriedade antes da data em que era devido o respectivo IUC.

 

55. Do que resulta ter a Requerente logrado, com total êxito, ilidir a presunção e demonstrar que a realidade do registo era uma mera aparência dessa mesma realidade, ou seja, o proprietário inscrito não era o real proprietário.

 

56. Provada tal circunstância e uma vez que a AT não tem legitimidade para opôr a ausência de registo, por não ser para tais efeitos tida como terceiro, impõe-se a anulação das liquidações de IUC em causa.

 

57. Além da restituição do imposto indevidamente pago, pretende a Requerente que seja declarado o direito ao pagamento de juros indemnizatórios.

 

58. Tal direito vem consagrado no art. 43º da LGT, o qual tem como pressuposto que se apure, em reclamação graciosa ou impugnação judicial – ou em arbitragem tributária – que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida em montante superior ao legalmente devido.

 

59. Sufragamos, nestas circunstâncias, a doutrina da decisão arbitral no proc. 261/2018-T , nos termos da qual por força do disposto no art.º 100.º da LGT, aplicável ao caso por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do art.º 29.º do RJAT, no qual se estabelece que [a] administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.

 

60. Neste, como no caso em questão, têm aplicação as mencionadas normas, posto que na sequência da ilegalidade dos actos referenciados neste processo terá, por força dessas normas, de haver lugar ao reembolso dos montantes pagos, quer a título de imposto, quer de juros compensatórios, como forma de se alcançar a reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade.

 

61. Donde, face ao estabelecido no artigo 61.º do CPPT e preenchidos que estão os requisitos do direito a juros indemnizatórios, a Requerente tem direito a estes à taxa legal, contados desde a data de pagamento de cada uma das liquidações anuladas.

 

IV. Decisão

Em face do supra exposto, decide-se

1.            Declarar a ilegalidade do acto de indeferimento do recurso hierárquico, assim como dos cento e quarenta actos de liquidação de IUC que lhe subjazem, julgando procedente o pedido de reembolso do montante de € 14.975,30 relativo ao imposto indevidamente pago pela Requerente;

2.            Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, calculados nos termos legais, em conformidade com o peticionado;

3.            Condenar a Requerida no pagamento integral das custas do presente processo.

 

V. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 15.274,49 (quinze mil duzentos e setenta e quatro euros e quarenta e nove cêntimos) nos termos do disposto no art. 32.º do CPTA e no art. 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º/1 a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º/2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

VI. Custas

Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de 918 € (novecentos e dezoito euros), a pagar pela Requerida, nos termos dos artigos 12.º/2, e 22.º/4, do RJAT, e artigo 4.º/5, do RCPAT.

 

Notifique-se.

Lisboa, 10 de Maio de 2021

 

O Árbitro

Rui M. Marrana

 

Texto elaborado em computador, nos termos do disposto no art. 131.º, n.º 5, do CPC, aplicável por remissão do art. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT.

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.