Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 8/2020-T
Data da decisão: 2021-05-05  IRS  
Valor do pedido: € 42.733,10
Tema: IRS – artigo 76º, 69º e 78º do CIRS; Liquidação oficiosa; Artigo 78º LGT; Ato de indeferimento tácito. Competência do Tribunal Arbitral.
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Sumário:

I – O indeferimento tácito de pedido de revisão oficiosa implica a apreciação (tácita) da legalidade da liquidação subjacente, pelo que o meio contencioso adequado para o impugnar é o processo de impugnação judicial e o processo arbitral. Só não será assim nos casos de extemporaneidade do pedido ou incumprimento de outros pressupostos formais, o que não se aplica ao caso sub judice. 

II – A liquidação oficiosa de IRS é passível de poder ser corrigida, por iniciativa do contribuinte ao abrigo do disposto no n.º 4 do artigo 76.º do CIRS, desde que o seja dentro dos referidos prazos e nos termos previstos nos artigos 45.º e 46.º da LGT. A liquidação oficiosa de IRS pode ser corrigida através de um pedido de revisão do ato tributário, nos termos do artigo 78.º da LGT, tal como o fizeram os Requerentes.

III - A liquidação subjacente ao desconsiderar o critério legal para determinação do rendimento líquido da categoria B e ao desconsiderar todos os elementos de pessoalização, conhecidos da AT, referentes ao agregado familiar dos Requerentes, é ilegal, por violação do disposto nos artigos 76º, nº 2, 68º, 69º e 78º, todos do CIRS, na versão em vigor ao tendo dos factos tributários. Os atos impugnados padecem de violação de lei por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, e em consequência, devem ser anulados.

IV – Os Requerentes têm direito a ser tributados tendo em conta a sua situação pessoal e familiar e à tributação conjunta, i.e., têm direito a que seja relevada a composição do seu agregado familiar e à aplicação do quociente familiar (conjugal). Em nenhum caso, nem mesmo no caso de omissão de entrega da declaração, se pode aceitar a violação do princípio da capacidade contributiva que exige que seja tributado o rendimento líquido, disponível e real das famílias.

 

Decisão Arbitral

                I. Relatório

 

1.            A... e B..., respetivamente, portadores do NIF ... e NIF ..., casados entre si e residentes na Rua ..., ..., ...-... Cascais (doravante abreviadamente designados por Requerentes), apresentaram pedido de pronúncia arbitral ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 3.º, n.º 1, e 10.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, na sequência da formação da presunção de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa da liquidação de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) n.º 2016..., relativa ao ano de 2014, no valor de € 42.733,10,

 

2.            É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (adiante designada apenas por Requerida ou AT).

 

3.            No Pedido de Pronúncia Arbitral os Requerentes alegam que após terem apresentado pedido de revisão oficiosa da liquidação de IRS, relativa ao ano de 2014, no valor de €42.733,10, incluindo juros compensatórios, a AT não se pronunciou sobre tal pedido, o que consubstancia indeferimento tácito, pelo que, não se conformando com o mesmo, vieram apresentar pedido de pronúncia arbitral, para impugnação do ato tributário que entendem ser ilegal por violação de lei.

 

4.            O pedido arbitral tem como objeto a declaração de ilegalidade e consequente anulação do ato tributário de indeferimento tácito do pedido de revisão da liquidação oficiosa de IRS e a própria liquidação, por violação de lei.

 

5.            O pedido de constituição do tribunal arbitral foi apresentado em 03-01-2020, aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 6-01-2020 e automaticamente notificado à AT em 13-01-2020.

 

6.            Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou a aqui signatária como árbitro singular do tribunal arbitral a constituir, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro indicado, nos termos conjugados das alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 06-07-2020.

 

7.            Em 06-07-2020 foi proferido despacho arbitral, notificado à AT, para apresentar Resposta, nos termos previstos no artigo 17º do RJAT. A AT veio aos autos juntar o Processo Administrativo em 09-09-2020 e apresentou a sua resposta em 14-09-2020, na qual defendeu a improcedência da do pedido de pronúncia arbitral. Posteriormente, veio a alegar, ainda, o conhecimento oficioso da exceção de incompetência material do Tribunal arbitral para conhecer do pedido formulado pelos Requerentes.

 

8.            Em 01-10-2020 foi proferido despacho arbitral notificando a Requerente para vir aos autos indicar os factos aos quais pretendia inquirir as testemunhas indicadas no pedido arbitral a fim do tribunal aferir da sua utilidade, considerando o alegado pela AT na sua resposta e decidir pela eventual dispensa de realização da reu não do artigo 18º do RJAT. Em resposta vieram os Requerentes esclarecer que a matéria sobre a qual pretendiam inquirir as testemunhas era a constante dos artigos 4º, 5º, 7º e 8º do pedido arbitral, mas acrescentam que admitem prescindir da mesma se o tribunal assim considerar. Em 15-10-2020 veio a AT pronunciar-se dizendo que face aos documentos juntos aos autos bem como ao pedido de aproveitamento da prova testemunhal produzida no processo 346/2019-T é de concluir pela inutilidade da realização da inquirição das testemunhas.

 

9.            Em 28-10-2020 foi proferido despacho arbitral com o seguinte conteúdo:

 

“Despacho Arbitral

Considerando o Despacho arbitral antecedente e os requerimentos juntos aos autos pelas partes, o Tribunal decide dispensar a realização da reunião prevista no artigo 18º do RJAT, nos termos seguintes:

- o processo não se mostra ser especialmente complexo no plano da tramitação processual, nem há irregularidades a suprir;

- a matéria de facto relevante para a decisão da causa poderá ser fixada com base na prova documental, tornando-se desnecessária quaisquer outras diligências instrutórias;

- dos documentos juntos com o pedido e com o processo administrativo é possível decidir a matéria de facto, relevante para a decisão (nomeadamente a constante dos artigos 4º a 8º do pedido arbitral), sendo que nem as declarações de parte nem a inquirição da testemunha indicada poderiam acrescentar algo de relevante à prova documental constante dos autos.

Assim, e em aplicação dos princípios da autonomia do tribunal arbitral na condução do processo, e da celeridade, simplificação e informalidade processuais (artigos 19.º, n.º 2, e 29.º, n.º 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária), dispensa-se a reunião do tribunal arbitral a que se refere o artigo 18.º desse Regime.

Faculta-se às partes a apresentação de alegações escritas no prazo, igual e sucessivo, de 10 dias a contar, respetivamente, da notificação do presente despacho à requerente e, para a Requerida, da apresentação das alegações da Requerente ou do decurso do prazo das mesmas, caso opte por não apresentar alegações.

Ao abrigo do princípio da colaboração solicita-se às partes a remessa das peças processuais em formato word.

A decisão arbitral será proferida no prazo previsto no artigo 21º, nº1 do RJAT, devendo a Requerente pagar a taxa de arbitragem subsequente até 20 dias antes da prolação da Decisão. (…)”

 

10.          Em 13-11-2020 os Requerentes juntaram as suas alegações, acompanhadas de documento anexo, comprovativo da impugnação da decisão arbitral nº 364/2019-T, relativa à impugnação do IRS de 2015.

 

11.          Em 25-11-2020 a AT juntou as suas alegações, nas quais suscitou a exceção de conhecimento oficioso da incompetência do tribunal arbitral. Alega, em síntese, que tratando-se de um indeferimento tácito do pedido de revisão do ato tributário, estamos perante um ato administrativo em matéria tributária fora do alcance da competência material do tribunal arbitral. Os requerentes responderam à exceção em requerimento autónomo, no qual defendem a competência do Tribunal.

 

12.          Em 23-12-2020 foi proferido despacho arbitral de prorrogação do prazo para proferir a decisão, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 21º do RJAT. Face à suspensão dos prazos judiciais determinada pela legislação COVID, face à situação excecional de estado de emergência determinada pela pandemia e a consequente acumulação de processos para decisão, foi proferido despacho arbitral, em 11-03-2021, a esclarecer que a decisão arbitral seria proferida no prazo de trinta dias, a contar do fim da suspensão dos prazos, nos termos que viesse a ser legalmente fixado.

 

13.          Em 15-03-2021 os Requerentes vieram juntar aos autos cópia da decisão arbitral nº 9/2021 – T, proferida em processo arbitral apresentado pelos mesmos requerentes, sobre questão em tudo idêntica à dos presentes autos.   

 

II – Saneamento

 

    § 1: Quanto à alegada incompetência do tribunal arbitral

 

14.          A AT sustenta a sua tese da incompetência do tribunal arbitral, que veio invocar em sede de alegações, alegando que por estarmos perante um ato de indeferimento tácito, este consubstancia um ato administrativo em matéria tributária, fora do alcance da competência dos tribunais arbitrais. Invoca, a este propósito, o entendimento preconizado pelo Senhor Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, no seu comentário ao artigo 97.º do CPPT anotado e comentado.

Importa, pois, conhecer da alegada exceção de incompetência.

 

15.          Analisada a ratio legis subjacente à introdução no nosso sistema jurídico-procedimental do designado «indeferimento tácito» e à doutrina e jurisprudência pacíficas sobre a matéria, entende-se que não assiste razão à AT quanto à invocada incompetência material do Tribunal arbitral. A leitura que a AT faz da doutrina e jurisprudência que invoca na sua alegação não é a correta. Segundo Jorge Lopes de Sousa , cuja anotação ao CPPT é citada pela AT, a impugnação judicial (ou arbitral) não é o meio adequado para requerer a anulação de ato proferido em processo de revisão oficiosa quando este não aprecie a legalidade do ato de liquidação subjacente. É o que sucede, por exemplo, se o pedido e revisão for intempestivo ou no caso de ilegitimidade do requerente ou recorrente.

Tais circunstâncias não se verificam no caso agora em apreço, pelo que não se sufraga a conclusão que a AT pretende extrair (conclusão sua) da referida anotação. Desde logo porque, nos presentes autos o que está em causa é um ato de indeferimento tácito, no seguimento de um pedido de revisão da liquidação oficiosa emitida pela AT, com fundamento em ilegalidade alegada pelos Requerentes. Ora, o indeferimento tácito da AT comporta em si mesmo uma tomada de posição sobre a alegada ilegalidade, razão pela qual tem os mesmos efeitos que resultariam de um indeferimento expresso.

Neste sentido, é de concluir que a AT conheceu, tacitamente, da legalidade do ato. Dito de outro modo, o indeferimento tácito traduz um certo tipo de decisão, a qual tem como efeito fazer presumir uma decisão negativa para o requerente. Aliás, como bem se extrai da já mencionada anotação da autoria do Senhor Conselheiro Jorge Lopes de Sousa «no caso em apreço, estando-se perante indeferimento tácito de um pedido de revisão oficiosa, que tem por objecto directo acto de liquidação, é de considerar que o acto ficcionado conhece da legalidade de acto de liquidação e, por isso, o meio processual adequado para a sua impugnação contenciosa é o processo de impugnação judicial, nos termos das alíneas d) e para) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT, de que é meio alternativo o processo arbitral».

 

16.          Nos presentes autos o pedido de revisão oficiosa tem por objeto o ato de liquidação oficiosa de IRS de 2014 que os ora impugnantes consideravam (e consideram) ilegal. Não tendo havido pronúncia da AT, passados quatro meses sobre o pedido de revisão oficiosa da liquidação de IRS, considera-se este tacitamente indeferido, nos termos e para os efeitos dos n.ºs 1 e 5 do artigo 57.º LGT.

No mesmo sentido se tem pronunciado a Jurisprudência dos nossos Tribunais superiores, destacando, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, proferidos nos processos nºs 0420/09 e 01950/13, reconhecendo-se em ambos a possibilidade de impugnação judicial do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa.

De notar ainda, como bem alegam os Requerentes na resposta á exceção, que: «De igual modo, veja-se o Acórdão n.º 147/17.4BCLSB do TCAS, que declarou nula a decisão arbitral no processo n.º 8/2017-T – uma das decisões invocadas pela AT para defesa da sua tese – em que o tribunal arbitral não se julgou competente para apreciar o pedido de revisão oficiosa indeferido tacitamente. Refira-se ainda que a larga maioria das decisões arbitrais citadas pela AT – que na sua perspetiva permitem concluir pela incompetência do tribunal arbitral para apreciar os presentes autos – não incidia sobre situações de indeferimento tácito, mas sim de indeferimento expresso por motivos procedimentais variados (v.g. intempestividade).»

 

Ainda sobre esta questão, a título exemplificativo, transcreve-se um excerto da Decisão Arbitral proferida no processo nº 809/2019-T, datada de 4-09-2020, à qual se adere na íntegra: «A competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é, em primeiro lugar, limitada às matérias indicadas no artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT). Refere-se nesta norma que a competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões: a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta; b) A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais; (redacção da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro). Para além da apreciação directa da legalidade de actos deste tipo, o facto de a alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT fazer referência aos n.os 1 e 2 do artigo 102.º do CPPT, em que se indicam os vários tipos de actos que dão origem ao prazo de impugnação judicial, inclusivamente a reclamação graciosa, deixa perceber que serão abrangidos no âmbito da jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD todos os tipos de actos passíveis de serem impugnados através processo de impugnação judicial, abrangidos por aqueles n.os 1 e 2, desde que tenham por objecto um acto de um dos tipos indicados naquele artigo 2.º do RJAT. Aliás, esta interpretação no sentido da identidade dos campos de aplicação do processo de impugnação judicial e do processo arbitral é a que está em sintonia com a referida autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, concedida pelo artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, em que se revela a intenção de o processo arbitral tributário constitua «um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária» (n.º 2). Mas, resulta do teor do artigo 2.º do RJAT que a arbitragem tributária não foi implementada quanto às matérias susceptíveis de serem objecto de acção para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo, pois é manifesto que não se enquadram em qualquer das situações previstas. De qualquer forma, extrai-se também da referida autorização legislativa, designadamente da alínea a) do n.º 4 do referido artigo 124.º, ao fazer referência aos «actos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação», que não se pretendeu estender o âmbito da arbitragem tributária à apreciação de actos que, nos termos do CPPT, não podem ser objecto de impugnação judicial. Na verdade aquela expressão tem ínsita a exclusão dos «actos administrativos que não comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação» e das alíneas d) e p) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 97.º do CPPT infere-se a regra de a impugnação de actos administrativos em matéria tributária ser feita, no processo judicial tributário, através de impugnação judicial ou acção administrativa (que sucedeu ao recurso contencioso, nos termos do artigo 191.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos) conforme esses actos comportem ou não comportem a apreciação da legalidade de actos administrativos de liquidação. Porém, como excepção a esta regra de delimitação dos campos de aplicação do processo de impugnação judicial e da acção administrativa poderão considerar-se os casos de impugnação de actos de indeferimento de reclamações graciosas, independentemente do seu conteúdo, pelo facto de a utilização do processo de impugnação judicial ter sido prevista numa norma especial, que é o n.º 2 do artigo 102.º do CPPT, actualmente revogado, de que se pode depreender que a impugnação judicial é sempre utilizável. Outras excepções àquela regra poderão encontrar-se em normas especiais, posteriores ao CPPT, que expressamente prevejam o processo de impugnação judicial como meio para impugnar determinado tipo de actos). No caso em apreço, a Autoridade Tributária e Aduaneira coloca a questão da incompetência apenas relativamente ao indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa, formado por não ter sido apreciado no prazo previsto no artigo 57.º, n.º 5 . Nos casos de indeferimento tácito não há, obviamente, apreciação expressa da legalidade de acto de liquidação, mas, tratando-se de uma ficção de acto destinada a assegurar a impugnação contenciosa em meio processual que tem por objecto um acto de liquidação, o meio de impugnação adequado depende do conteúdo ficcionado. No caso de impugnação administrativa directa de um acto de liquidação (através de reclamação graciosa ou pedido de revisão oficiosa), com fundamento na sua ilegalidade, o conteúdo ficcionado é de indeferimento do pedido que foi formulado, de anulação do acto de liquidação. Isto é, ficciona-se que o pedido foi indeferido por ter sido dada resposta negativa a todas as questões de legalidade colocadas pelo Sujeito Passivo. Por isso, presume-se o indeferimento tácito de meio de impugnação administrativa (reclamação graciosa ou pedido de revisão oficiosa) que tem por objecto directo acto de liquidação se baseia em razões substantivas e não por razões formais [...]. De harmonia com o exposto, no caso em apreço, estando-se perante indeferimento tácito de um pedido de revisão oficiosa, que tem por objecto directo acto de liquidação, é de considerar que o acto ficcionado conhece da legalidade de acto de liquidação e, por isso, o meio processual adequado para a sua impugnação contenciosa é o processo de impugnação judicial, nos termos das alíneas d) e para) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT, de que é meio alternativo o por arbitral. Neste sentido, tem vindo a decidir uniformemente o Supremo Tribunal Administrativo, como pode ver-se pelos seguintes acórdãos: – de 6-10-2005, processo n.º 01166/04: «o indeferimento tácito de um pedido de revisão oficiosa de acto de liquidação, baseado na sua ilegalidade, deve considerar-se, para efeito das alíneas d) e p) do n.º 1 do art. 97.º do CPPT, como um acto que comporta a apreciação da legalidade de acto de liquidação»; – de 02-02-2005, processo n.º 01171/04, de 08-07-2009, processo n.º 0306/09, de 23-09-2009, processo n.º 0420/09, de 12-11-2009, processo n.º 0681/09: «o meio processual adequado para reagir contenciosamente contra o acto silente atribuído a director-geral que não decidiu o pedido de revisão oficiosa de um acto de liquidação de um tributo é a impugnação judicial ». Assim, na linha desta jurisprudência, é de entender que o acto ficcionado quando ocorre indeferimento tácito de pedido de revisão oficiosa é um acto que comporta a apreciação da legalidade do acto de liquidação cuja revisão foi pedida, dando resposta negativa aos fundamentos invocados, pelo que o meio contencioso adequado para o impugnar é o processo de impugnação judicial e o processo arbitral. [...]. »

 

18. Este Tribunal Arbitral Singular acompanha este entendimento. 

Assim, na linha da jurisprudência referida, é de entender que o ato ficcionado quando ocorre indeferimento tácito de pedido de revisão oficiosa é um ato que comporta a apreciação da legalidade do ato de liquidação cuja revisão foi pedida, dando resposta negativa aos fundamentos invocados, pelo que o meio contencioso adequado para o impugnar é o processo de impugnação judicial e o processo arbitral. Em conformidade com o que vem exposto, conclui-se que o indeferimento tácito ficciona um ato de indeferimento expresso pela AT, ambos impugnáveis por recurso à ação de impugnação judicial ou à apresentação de constituição de tribunal arbitral.

Nestes termos, improcede a exceção de incompetência material do Tribunal arbitral, invocada pela Requerida.

 

§ 2. Pressupostos processuais

 

17.          O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente, face ao que vem exposto e ao preceituado na alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º, e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT.

18.          As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

Cumpre apreciar e decidir do mérito.

 

III. Decisão da matéria de facto

§1. Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

 

1.            Os Requerentes são casados entre si desde 19-08-1995, no regime de comunhão de adquiridos.

2.            Os requerentes tinham, em 2014, dois dependentes a seu cargo, seus filhos menores de 25 anos.

3.            Em 2014, o Requerente recebeu rendimentos brutos de trabalho independente de € 170.280,00 Euros, e efetuou retenções na fonte no valor de €42.570,00.

4.            Em 2014, o Requerente recebeu salários provenientes do trabalho dependente no valor total de € 42.000,00, deduzidos de retenções na fonte de IRS de € 11.970,00.

5.            As retenções na fonte sobre os salários foram efetuadas pela entidade empregadora por aplicação à taxa do despacho n.º 706-A/2014 da Ministra das Finanças reservada aos trabalhadores “casados” com “dois dependentes”

6.            Os requerentes não cumpriram a sua obrigação declarativa, pelo que a AT, com base na informação constante do sistema a AT procedeu à elaboração oficiosa da declaração e posterior emissão de liquidação oficiosa de IRS, referente ao ano de 2014.

7.            Para efeitos de determinação dos rendimentos auferidos naquele ano a AT baseou-se nos valores de rendimentos registados em sistema e procedeu à dedução das retenções na fonte efetuadas e registadas no sistema.

8.            Em 03 de fevereiro de 2016 a administração tributária emitiu a liquidação impugnada, presumindo um rendimento global de €203.766,00 Euros, com base nos rendimentos brutos constantes do sistema, sem qualquer dedução específica, nomeadamente na determinação do rendimento global tributável.

9.            Na liquidação oficiosa emitida a AT considerou como corretas as importâncias efetivamente retidas na fonte, de 42.570 Euros e 11.970 Euros, únicas deduções consideradas para efeitos de cálculo do imposto vertido na liquidação oficiosa.

10.          A AT emitiu a liquidação oficiosa de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) n.º 2016..., relativa ao ano de 2014, no valor de € 42.733,10, incluindo juros compensatórios;

11.          Os requerentes apresentaram pedido de revisão do ato tributário, nos termos do artigo 78º da LGT, ao qual a AT não deu resposta.

12.          Em 03-01-2020 os Requerentes apresentaram o presente pedido arbitral.

 

2. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto

 

13.          Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

 

14.          A matéria considerada como provada tem suporte documental junto aos autos pelos Requerentes e no Processo Administrativo (PA) junto aos autos pela Requerida.

De salientar que, relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, nº 7 do CPPT, a prova documental junta aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

No caso dos presentes autos os factos assentes foram destacados pela sua relevância para a decisão da matéria de direito em apreciação.

 

 

                IV. Decisão da Matéria de direito

 

15.          Considerando a factualidade descrita a questão a decidir no presente pedido de pronúncia arbitral é a de saber se, com o pretendem os Requerentes, a liquidação oficiosa impugnada é ou não ilegal, por violação dos princípios da verdade material e da legalidade, por violação do disposto no n.º 4 do artigo 76.º do Código do IRS, o qual determina que a liquidação oficiosa emitida aos contribuintes que não apresentaram declaração de rendimentos, como foi o caso, pode, “em todos os casos”, ser corrigida de modo a tributar os rendimentos reais auferidos sem descurar o respeito pela regra da pessoalização do imposto e demais princípios consagrados na lei.

De salientar que, como fundamentação dos atos tributários em apreciação só releva o que consta do PA, pois não é admissível a fundamentação à posteriori ou a tentativa de suprir as deficiências dos atos impugnados através das alegações contidas na Resposta junta aos autos pela AT. A fundamentação relevante é apenas e só a que consta do procedimento de liquidação e cobrança realizado pela AT em sede própria e que a conduziu à emissão da liquidação oficiosa de imposto, bem assim como o silêncio determinante do indeferimento tácito que se produziu com referência ao pedido de revisão do ato tributário apresentado pelos Requerentes.

É este o enquadramento relevante bem análise para conformação da presente decisão arbitral.

 

16.          No caso dos autos, resulta evidente que a liquidação ora impugnada não incidiu sobre os rendimentos reais e efetivos obtidos, face à desconsideração dos custos (na categoria B), que no caso deviam ter sido relevados por aplicação do disposto no artigo 76º, nº2 que remete para a aplicação do regime simplificado de tributação. Ao que acresce, ainda, a desconsideração das despesas pessoais do agregado familiar, nomeadamente as que era possível e obrigatório ter em conta por existir informação suficiente na posse da AT, para esse efeito, a saber: aplicação do quociente conjugal por se tratar de sujeitos passivos casados e a obrigação de tributação conjunta em vigor no ano de 2014; as deduções devidas pelos sujeitos passivos e pelos dependentes a cargo (dois filhos menores de 25 anos), realidades pessoais que a própria AT validou e aceitou como corretas ao considerar como tal as retenções na fonte processadas no período de tributação, em sede de categoria A.

 

17.          Resulta também evidente que os Requerentes falharam, incumpriram uma obrigação básica que incumbe a qualquer sujeito passivo, ao não apresentarem a declaração anual de rendimentos. Porém, os impostos não têm natureza sancionatória, pelo que mesmo no caso de contribuintes faltosos, a tributação em sede de IRS não dispensa a quantificação direta e exata do rendimento sujeito a imposto, sempre que possível, por recurso a toda a informação disponível na esfera da AT. Ao que acresce que, nem mesmo nestes casos a determinação da matéria coletável se pode processar de forma arbitrária, descurando a aplicação das regras legais, imperativas, que definem o procedimento para determinação da matéria coletável e processamento da liquidação do imposto. Tudo aspetos da relação jurídico tributária estritamente vinculados à lei e à Constituição e que a AT devia ter cuidadosamente acautelado a bem da preservação do imposto devido por estes contribuintes e que, se decidirmos pela ilegalidade do procedimento de liquidação e cobrança, resultará na anulação do ato de liquidação e desse modo num prejuízo para o Estado que a AT podia ter evitado, desde logo, em sede de revisão do ato tributário. A AT podia e devia ter acautelado o interesse público em presença evitando o presente litígio, pois como bem sabe, aos tribunais apenas cabe aferir da legalidade dos atos impugnados que, uma vez anulados, podem conduzir à irremediável perda do crédito tributário, com prejuízo de todos os contribuintes. Ora, no caso dos autos, estamos perante um desses casos. A revisão não só era possível como se impunha, face às ilegalidades que ocorreram durante o procedimento de liquidação e que podiam ter sido corrigidas nessa sede.

 

18.          Pois bem, afigura-se evidente face a todos os elementos constantes dos autos que a AT dispunha dos elementos necessários à correta determinação do rendimento real e efetivamente obtido no ano em causa, seja na categoria A seja na B, uma vez que o IRS retido na fonte considerado na liquidação oficiosa corresponde, à soma de todas os valores de rendimento e de retenções discriminados nos recibos verdes e nos de vencimento de 2014, todos registados em sistema informático e devidamente participados pelas entidades que pagaram ou colocaram à disposição do Requerente marido tais valores. Do mesmo modo, a AT dispunha da informação relativa à composição do agregado familiar e, ainda, da ausência de rendimentos do trabalho imputáveis ao sujeito passivo B (Requerente mulher). Acresce por último que, o próprio Código do IRS prevê regras para determinação da matéria coletável em sede de categoria B, por aplicação de indicadores que permitem atingir um valor que se presume adequado à verdade material do sujeito passivo em causa.

 

Dos elementos constantes dos autos conclui-se que o procedimento de liquidação não seguiu a métrica (imperativa) consagrada na lei e foi puramente arbitrária, descurando, além do mais, os aspetos de pessoalização do imposto que se impõem face ao disposto nos artigos 104º e 103º da Constituição da República Portuguesa, concretizados nos artigos 68º, 69º e 78º e seguintes do CIRS. E não se diga que isso sucedeu por força do incumprimento do contribuinte ao não apresentar a declaração de IRS. Para esse incumprimento a lei prevê (e bem) a correlativa contraordenação. Já no que toca á tributação em sede de A AT está vinculada à lei e deve ser exímia no cumprimento da mesma evitando a prática de atos ilegais que, invariavelmente, têm como efeito a anulação de atos tributários e não cobrança dos valores de imposto que deviam ter sido, efetiva e legalmente, determinados e cobrados ao contribuinte. De resto a jurisprudência dos nossos tribunais superiores e arbitrais no que toca à preservação do princípio da legalidade fiscal, nomeadamente, no que toca à vinculação à lei do procedimento de liquidação e cobrança, não deixa dúvidas sobre o percurso a seguir. Dito isto, não se compreende que face à falha cometida pelos Requerentes, face à informação disponível que permitiu à AT promover o procedimento de liquidação oficioso de imposto, não tenham sido cumpridas as regras legais previstas para a correta determinação do rendimento líquido da categoria B e o processamento das deduções pessoais que os elementos disponíveis permitiam processar. Ao que acresce a circunstância da AT ter tido a possibilidade de corrigir a situação e repor a legalidade devida, em sede de revisão do ato tributário, tendo inexplicavelmente optado pelo silêncio, bem sabendo da consequente produção de indeferimento tácito. Por isto, e sem necessidade de mais considerandos, resulta que, quer o ato de indeferimento tácito quer a liquidação de imposto subjacente são ilegais.

 

Alegam os requerentes, a este propósito, que o rendimento global considerado pela AT não corresponde ao rendimento real e enferma de errónea quantificação da matéria coletável uma vez que «o rendimento global considerado pela AT não corresponde ao rendimento real. Na verdade, como resulta dos autos a AT fixou um rendimento global de 203.766,00 Euros. Porém, se ao valor dos salários, de 42.000 Euros, somarmos o dos rendimentos líquidos da categoria B determinado nos termos do n.º 2 do artigo 76º do Código do IRS, que se queda em 127.710 Euros (= 170.280 * 0,75), obtemos um rendimento global de 169.710 Euros. Logo, a liquidação aqui impugnada está ferida de ilegalidade, por errónea quantificação dos rendimentos.»

Ora, objetivamente, a alegação está conforme com a factualidade apurada e assente nos presentes autos. A AT, face ao comportamento inexplicavelmente relapso do sujeito passivo, na disposição de todos os elementos informativos constantes do sistema, podia e devia ter desencadeado um procedimento de reposição da legalidade praticando um ato de liquidação, no mínimo, conforme à lei, garantindo a receita do Estado e o cumprimento da lei. Não se alcança que, mesmo depois do sujeito passivo ter apresentado um pedido de revisão do ato tributária ao abrigo do artigo 78º da LGT e ter, tardiamente, mas dentro das garantias legalmente previstas, requerido a revisão do ato em conformidade com a realidade evidenciada nos autos e pela aplicação das regras legais em vigor, a AT não tenha reanalisado a situação garantindo o imposto que era devido. Preferiu manter o erro, remeteu-se ao silencia e manteve um ato ferido de ilegalidade, pois que, desde logo, a matéria coletável que está subjacente na Categoria B foi determinada em violação da norma contida no artigo 76º do CIRS.

 

19.          Acresce que, como alegam os Requerentes no pedido arbitral, «constitui um imperativo constitucional que o IRS tenha em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar. O quociente conjugal (“splitting”) afigura-se justamente um corolário desse imperativo constitucional (…)»

A falta de entrega da declaração não pode resultar na falsidade efetiva da situação de facto considerada para tratamento e processamento do imposto e respetiva liquidação. Alegam os requerentes a este propósito que: «Com efeito, o erro relativo à composição do agregado familiar é naturalmente suscetível de ser corrigido nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 76.º do Código do IRS. [...]. No caso dos autos, a AT não pode dizer que desconhecia a concreta situação pessoal e familiar do 1.º requerente, desde logo porque as retenções na fonte sobre os seus salários foram feitas de acordo com a sua situação de “casado” com “dois dependentes”. Porém, a liquidação aqui em causa não aplicou o quociente familiar previsto no artigo 69.º do CIRS, nem considerou qualquer dedução à coleta, designadamente a prevista no artigo 78.º-A do mesmo diploma relativa aos dependentes.»

 

20.          Ora, incorrendo já em repetição do que vem exposto, também neste ponto lhes assiste razão, ou seja, mesmo no caso de um contribuinte relapso e faltoso, nomeadamente, por incumprimento da obrigação de apresentação da declaração anual de IRS, o procedimento de determinação da matéria coletável, de liquidação e cobrança do imposto obedecem às regras legais em vigor. No caso da tributação pessoal do rendimento, é imperativo constitucional que esta se faça de acordo com os princípios previstos no respetivo Código e na Constituição. A pessoalização do imposto e o coeficiente conjugal são características essenciais do imposto. E, assim sendo deviam ter sido consideradas na liquidação oficiosa, de acordo com a informação de que a AT dispunha. A isso obriga o princípio da legalidade tributária, bem assim como o da verdade material, proporcionalidade, justiça e da boa-fé e colaboração a que está sujeita toda a Administração Pública.

 

21.          Quanto à questão de saber se, nos presentes autos, os ora requerentes podem fazer valer a sua concreta situação pessoal e familiar e os rendimentos reais por si obtidos em 2014 sobre o ato de liquidação oficiosa, emitido na sequência da omissão de entrega da declaração, que os não considerou, a resposta é, pois, afirmativa. A liquidação oficiosa impugnada nos presentes autos admite a correção, peticionada em sede de revisão oficiosa, nos termos do artigo 76.º, n.º 4, do CIRS, que dispõe que “Em todos os casos previstos no n.º 1, a liquidação pode ser corrigida”, naturalmente dentro do prazo da respetiva caducidade.

 

Em síntese, não se discute apenas a conformidade procedimental da liquidação oficiosa à luz do disposto nas al. b) e c) do n.º 1, e n.ºs 2 e 3 do artigo 76.º do CIRS, mas ainda, o direito dos ora requerentes à correção da liquidação oficiosa, conforme estabelecido pelo artigo 76.º, n.º 4, do CIRS, que requereram usando a garantia prevista no artigo 78º da LGT. É precisamente este um dos propósitos deste normativo, o qual consagra a possibilidade de repor as situações de manifesta injustiça ou erro grave ocorrido na tributação do sujeito passivo. Pois bem, o direito à correção da liquidação através da garantia prevista no artigo 78º da LGT é admissível no caso de erro da declaração, qualquer que seja a sua origem. Trata-se de uma garantia geral prevista com o objetivo de reparar situações de erro ou injustiça grave que comprometam o princípio da verdade material e da justiça. Prevê, assim, a possibilidade de corrigir qualquer erro dos serviços ou do próprio contribuinte. Assim, considerando a factualidade provada nos presentes autos a AT dispunha de informação suficiente para ter processado a liquidação em conformidade com a lei, quer no que toca à determinação da matéria coletável quer no momento de processar as deduções pessoais do agregado familiar, em função das informações disponíveis.

 

22.          Como resulta do disposto no artigo 76.º do CIRS, na versão em vigor à data dos factos, o procedimento de liquidação deve processar-se do seguinte modo:

 

a) Tendo sido apresentada a declaração até 30 dias após o termo do prazo legal, a liquidação tem por objeto o rendimento coletável determinado com base nos elementos declarados, sem prejuízo do disposto no n.º 4 do artigo 65.º;

b) Não tendo sido apresentada declaração, a liquidação tem por base os elementos de que a Autoridade Tributária e Aduaneira disponha;

c) Sendo superior ao que resulta dos elementos a que se refere a alínea anterior, considera-se a totalidade do rendimento líquido da categoria B obtido pelo titular do rendimento no ano mais próximo que se encontre determinado, quando não tenha sido declarada a respetiva cessação de atividade.

2 - Na situação referida na alínea b) do número anterior, o rendimento líquido da categoria B determina-se em conformidade com as regras do regime simplificado de tributação, com aplicação do coeficiente mais elevado previsto no n.º 1 do artigo 31.º.

3 - Quando não seja apresentada declaração, o titular dos rendimentos é notificado por carta registada para cumprir a obrigação em falta no prazo de 30 dias, findo o qual a liquidação é efetuada, não se atendendo ao disposto no artigo 70.º e sendo apenas efetuadas as deduções previstas na alínea a) do n.º 1 do artigo 79.º e no n.º 3 do artigo 97.º

4 - Em todos os casos previstos no n.º 1, a liquidação pode ser corrigida, se for caso disso, dentro dos prazos e nos termos previstos nos artigos 45.º e 46.º da lei geral tributária.”

 

23.          O texto da lei é, pois, bastante claro e não deixa dúvida sobre as regaras aplicáveis ao procedimento de liquidação nos casos em que o sujeito passivo não apresente a sua declaração. E, não resta dúvida, que nos termos do n.º 4 do artigo 76.º do CIRS, em todos os casos previstos no n.º 1, a liquidação pode ser corrigida, se for caso disso, dentro dos prazos e nos termos previstos nos artigos 45.º e 46.º da lei geral tributária.

Assim, a correção de um ato tributário pode ser obtida, nos termos previstos no art.º 79.º, n.º 1, da L.G.T., através de revogação, ratificação, reforma, conversão ou retificação, bem assim como nos termos previstos no art.º 78.º, da L.G.T.  Dito de outro modo, a liquidação poder ser corrigida, antes de completado o prazo de caducidade, nos termos dos ditos artigos 78.º e 79.º da L.G.T. 

 

24.          Andou mal, pois, a AT quando indeferiu tacitamente o requerimento do sujeito passivo para revisão da liquidação, e desperdiçou um momento crucial para reparar o erro de quantificação subjacente à mesma e, corrigindo o ato, garantir efetivamente o imposto que era devido ao Estado. Ao que acresce um segundo erro na quantificação da matéria coletável, porquanto a AT não considerou a situação pessoal e familiar dos requerentes e os rendimentos reais obtidos, pese embora tenha considerado como corretas as informações, contidas nas mesmas fontes, respeitantes às importâncias efetivamente retidas na fonte. Logo, se aceitou esta informação também devia ter aceite como relevante todas as demais informações contidas nos mesmos registos documentais disponíveis. Ora, ao desconsiderar as regras de determinação da matéria coletável da categoria B, a AT violou o disposto nos artigos 76º e 78º do CIRS.

 

25.          Apesar do vício de violação de lei supra descrito ser suficiente para a anulação do ato impugnado acrescem ainda os vícios invalidantes decorrentes da desconsideração do agregado familiar dos Requerentes e do quociente conjugal, sendo que ao tempo do facto tributário (2014) vigorava o princípio da tributação conjunta. Ora, a pessoalização é um imperativo constitucional que o IRS tem de cumprir, resultando daí a necessidade de ter em conta os rendimentos e as necessidades do agregado familiar.

 

Por sua vez o quociente conjugal (“splitting”) é indispensável face ao efeito da progressividade sobre o rendimento familiar, sendo fundamental na atenuação dos seus efeitos. Não é, pois, admissível, sob nenhum ângulo de análise, que na situação dos autos, a liquidação oficiosa tenha sido emitida com total desconsideração de todos estes elementos essenciais do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares. Princípios que têm de ser respeitados mesmo nos casos em que o contribuinte tenha falhado com alguma das suas obrigações tributárias, no caso o da entrega atempada da sua declaração de imposto.

 

26.          Por último, diga-se que todos estes vícios da liquidação eram perfeitamente evitáveis, porquanto a AT dispunha de informação suficiente para poder processar uma liquidação de imposto em conformidade com a lei e com respeito dos elementos essenciais a considerar na tributação deste agregado familiar. Recorde-se a jurisprudência firmada na decisão arbitral proferida no processo nº 574/2015-T, no qual se considerou que «o quociente conjugal corresponde à consideração da unidade familiar para efeitos fiscais, pelo que deverá ser aplicado mesmo em casos de omissão de entrega da declaração.»

Em nenhum caso, nem mesmo no caso de omissão de entrega da declaração, se pode aceitar a violação do princípio da capacidade contributiva que exige que seja tributado o rendimento líquido, disponível e real das famílias, como bem se afirma no Parecer 134, Processo 736, da DSCJC, com despacho concordante do então Diretor geral da AT de 31.10.2011, invocado pelos Requerentes.

 

27.          Em conclusão, ao manter uma liquidação ilegal, indeferindo tacitamente a revisão do ato de liquidação, a Requerida violou o disposto nos artigos 76º, 78º e 79º da LGT. A liquidação subjacente ao desconsiderar o critério legal para determinação do rendimento líquido da categoria B e ao desconsiderar todos os elementos de pessoalização, conhecidos da AT, referentes ao agregado familiar dos Requerentes, é ilegal, por violação do disposto nos artigos 76º, 68º, 69º e 78º do CIRS, na versão em vigor ao tendo dos factos tributários. Os atos impugnados padecem de violação de lei por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, e em consequência, devem ser anulados.

 

*

Nos termos do n.º 2 do artigo 608.º do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 29.º do RJAT, o Tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos das Partes, quando a decisão esteja prejudicada pelo já decidido, o que no presente processo se traduz na decisão proferida de ilegalidade da liquidação nos termos expostos, ficando, assim, prejudicado o conhecimento de outras questões carreadas para os autos.

 

V. Decisão:

 

Termos que que decide este Tribunal:

 

a)            Considerar improcedente a exceção de incompetência do tribunal arbitral,

b)           Considerar totalmente procedente o pedido dos Requerentes;

c)            Declarar a ilegalidade dos atos impugnados, a saber, do ato de indeferimento tácito do pedido de revisão deduzido pelos Requerentes e da liquidação de imposto subjacente, referente ao IRS de 2014, com o n.º 2016..., no valor de € 42.733,10, com todas as consequências legais;

d)           Condenar a Requerida no pagamento das custas arbitrais.

 

VI. Valor do processo

De harmonia com o disposto nos artigos 305.º, n.º 2, e 306.º, n.º 1, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor €42.733,10.

 

VII. Custas

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em €2.142,00 de harmonia com a Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

               

Lisboa, 05-05-2021

 

O Tribunal Singular

Maria do Rosário Anjos