SUMÁRIO:
I. Em termos contabilísticos, quer as NCRF 16, 19, quer a NCRF 32 (em especial esta última), estabelecem que os custos devem ser sempre reconhecidos como um gasto no período em que são incorridos, quando o desfecho do contrato não possa ser estimado fiavelmente, o que acontece quando no momento em que ocorrem os gastos com a elaboração dos orçamentos, ainda não é possível saber se os clientes os vão aceitar e adjudicar a construção em causa.
II. As facturas não violam do disposto no artigo 23.º. n.º 6, do CIRC, por omissão da natureza dos serviços prestados, se for possível delimitar com rigor tais serviços complementarmente designadamente através da descrição dos orçamentos.
DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)
Os árbitros Dr.ª Fernanda Maçãs (árbitro presidente), Dr. Vasco Valdez e Dr. Nunes Barata (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:
I – Relatório
1. A contribuinte sociedade “A..., SA”, com o NIPC ... (doravante "Requerente"), apresentou, no dia 14 de Julho de 2020, um pedido de constituição de Tribunal Arbitral Colectivo, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária), doravante "RJAT", em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante "AT" ou "Requerida").
2. A Requerente vem impugnar a liquidação adicional de IRC 2019..., nos termos que melhor constam do PPA, isto é, a liquidação adicional de IRS relativa ao período de 2016, na parte correspondente à alegada pela AT inobservância da especialização de exercícios e de requisitos formais de facturas, no montante de 1.545.000,00 euros, que teve a sua origem na acção de inspecção efectuada ao abrigo da ordem de serviço nº 012018.../..., alegando vício de violação da lei por erro da AT quanto aos factos e quanto ao direito e terminado pedindo a declaração de ilegalidade dessa liquidação adicional de IRC, na parte em que é objecto do Pedido de Pronúncia Arbitral, e a sua consequente anulação com todos os efeitos legais, incluindo o pagamento de juros indemnizatórios.
Junta três documentos e arrola duas testemunhas.
3. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 15 de Julho de 2020.
4. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou os árbitros do Tribunal Arbitral Colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação em 2 de Setembro de 2020, as quais não manifestaram vontade de recusaram a designação dos árbitros.
5. Assim, em conformidade com o estabelecido na alínea c) do nº 1 do art. 11º do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 2 de Outubro de 2020.
6. A fundamentar o pedido a Requerente sustenta, entre o mais, sumariamente, o seguinte:
- A Requerente circunscreve o seu pedido à liquidação adicional de IRC relativa ao período de 2016, na parte correspondente à alegada inobservância da especialização de exercícios e de requisitos formais de faturas, no montante de € 1 545 000,00, que foi fundamentada no Relatório de inspeção, como se reproduz:
- Entretanto, como as controvertidas correções, ocorreram em sede de IRC e IVA, nas mesmas circunstâncias de facto, tendo como fundamento comum a inobservância de requisitos formais de faturas, que exigem a interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito, a Requerente apresentou em 04.09.2019 um pedido de decisão arbitral, que deu origem ao Processo n.º 586/2019-T, cumulando os pedidos de declaração de ilegalidade das liquidações de IVA e da liquidação adicional de IRC.
- Entendeu o Tribunal, já depois de ter sido feita a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e depois de a Requerente ter apresentado as suas Alegações Escritas, que havia cumulação ilegal de pedidos.
- A Requerente respondeu que, apesar da sua discordância quanto à existência de cumulação ilegal de pedidos, pretendia ver apreciado o pedido relativo ao IVA e que aguardava a decisão arbitral que absolvesse a AT da instância para apresentar novo pedido de decisão arbitral quanto ao IRC.
- Em 25.06.2020 foi a Requerente notificada da Decisão Arbitral proferida no Processo n.º 586/2019-T, tendo o Tribunal acordado, como se transcreve:
- Assim, a Requerente, nos termos do n.º 7 do artigo 4.º do CPTA, ex-vi artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, apresenta esta nova petição que, para efeitos de tempestividade, deve ser considerada apresentada na data de entrada da primeira.
- Ao contrário da argumentação da Requerida, na sua actividade, apenas cerca de 8% dos orçamentos efetuados dá origem a encomendas firmes de produção de moldes, donde esta pequena percentagem põe, desde logo, a descoberto que quando os trabalhos de orçamentação são realizados ainda não houve adjudicação do da produção dos correlativos moldes.
- Evidencia, ainda, que dificilmente se poderá saber quais deles irão dar origem a contratos firmes, pelo que estamos inequivocamente perante custos anteriores à fase de adjudicação (fase em que o contrato se encontra “assegurado” na terminologia da NCRF 19).
- Significa isto que os gastos incorridos com estes trabalhos de orçamentação são inequivocamente gastos do período.
- A apresentação de um orçamento envolve, em regra, a realização de estudos dos materiais e componentes necessários (estudos de peças, de factibilidade, análise de cálculos de aços para o molde e tratamentos térmicos, cálculo do número de cavidades, estudo dimensional das medidas exteriores, etc.), bem como uma estimativa do preço, tarefas que, naturalmente, consomem recursos, em particular, da B... e C..., quando são estas empresas a elaborar os orçamentos que a Requerente apresenta aos seus clientes.
- Como é a Requerente que assume os riscos da área comercial, naturalmente, remunera as referidas empresas pelas prestações de serviços de elaboração de orçamentos, e que constam das controvertidas faturas 2016/49, 2016/50, 2016/59, 2016/62 e 2016/68.
- Nestes termos, estando a Requerente perante gastos suportados em períodos anteriores à data em os contratos se encontram assegurados não pode dar outro tratamento contabilístico que não seja o de reconhecer esses gastos como gastos do período, à luz do disposto no parágrafo 21 da NCFR 19.
- Por isso, mal andou a inspeção tributária quando considera que “os gastos incorridos e contabilizados no ano de 2016 com suporte nas faturas emitidas por B... e C..., e antes descritas, deveriam ter sido capitalizadas por serem referentes a moldes/serviços que apenas originaram rendimentos em anos futuros” .
- Com efeito, a inspeção tributária limitou-se a desconsiderar os gastos que a Requerente suportou com a elaboração de orçamentos, porque, tendo alguns (poucos) dado origem à adjudicação de moldes, ainda que em período subsequente, concluiu que todos os gastos com a elaboração de orçamentos deviam ter sido capitalizados.
- E, sendo assim, está ferida de ilegalidade a correção no montante de € 1 545 000,00, por se tratar de gastos do período de 2016, não havendo qualquer violação do princípio da especialização dos exercícios, aliás, como a Autoridade Tributária veio a reconhecer na sua Resposta no Processo n.º 586/2019-T.
- Mesmo que se entendesse que os gastos em causa são custos do contrato, a correção a efetuar nunca poderia ser a sua desconsideração, por não serem “aceites como gasto fiscal, por força do disposto no artigo 18.º, nºs 1 e 3, artigo 19. n.º 3 e artigo 23.º, n.º 1, todos do CIRC”, como fundamenta a inspeção tributária.
- Com efeito, nos termos da NCRF 19 e do n.º 3 do artigo 19.º do CIRC, quando o desfecho de um contrato de construção não possa ser estimado de forma fiável, considera-se que o rédito do contrato corresponde aos gastos totais do contrato.
- Ora, a inspeção invocando, essencialmente, o n.º 3 do artigo 19.º, ao invés de reconhecer um rédito até ao ponto em que fosse provável que os custos do contrato incorridos fossem recuperáveis, limitou-se a desconsiderar como gasto fiscal os gastos em causa, como se houvesse uma qualquer norma no Código do IRC que excluísse dos encargos dedutíveis os normais gastos com a apresentação de propostas de orçamentos no âmbito de uma atividade empresarial.
- De igual modo, também carece de fundamento legal a insinuada falta de “comprovar na globalidade a efetiva necessidade dos mesmos para a obtenção dos rendimentos do sujeito passivo”, por alegadamente só serem “aceites como gastos os encargos incorridos para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC da A...”, o que, no errado entendimento da inspeção, permite a desconsideração de gastos com propostas de orçamentos que não deram origem à produção de quaisquer moldes e, consequentemente, de rendimentos sujeitos a imposto. A fundamentar a sua posição a Requerente invoca o Acórdão do TACS, de 22.01.2015, no processo n.º 05327/12.
- Por outro lado, no âmbito do processo n.º 586/2019-T, entendeu a Diretora-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira, ao contrário do que considerou a inspeção tributária, que não houve qualquer violação do princípio da especialização dos exercícios e que o processo devia continuar, mantendo como fundamento para a desconsideração do gasto, apenas e tão só, as alegadas “dúvidas quanto à natureza dos serviços prestados”, termos em que, admitindo o órgão máximo da Autoridade Tributária que não houve violação do princípio da especialização dos exercícios, parece evidente que houve um manifesto erro no procedimento de inspeção tributária ao considerar esta violação como fundamento da controvertida correção.
- Também não assiste razão à Autoridade Tributária, quanto à violação do artigo 23.º,n.º6, do CIRC, nos termos, por exemplo, da Decisão Arbitral no Processo 271/2018-T, ou da jurisprudência do STA, como, a título ilustrativo, a constante dos Acórdãos de 5 de julho de 2012, processo n.º 658/11, e de 14 de setembro de 2011, processo n.º 433/11.
- Todas as faturas emitidas pela B... Lda. e pela C... têm na sua origem orçamentos que foram apresentados à inspeção tributária e que se encontram anexos às faturas (conforme Anexo 3 ao Relatório de inspeção, que se dá aqui como reproduzido), que permitem perfeitamente identificar a natureza empresarial da prestação de serviços, a respetiva taxa de IVA aplicável, possibilitando, por isso, à administração fiscal a realização de controlos do pagamento do imposto devido e da existência do direito à dedução do IVA.
- Ora, a inspeção tributária ignorou pura e simplesmente a informação adicional que lhe foi transmitida, cingindo-se à mera análise da descrição da fatura e, fundamentando a correção com base na inobservância da alínea b) do n.º 5 do artigo 36.º do CIVA, isto é, falta de indicação da “denominação usual dos serviços prestados”.
- No âmbito do Processo n.º 586/2019-T, o Tribunal deu como provado, como consta da referida Decisão Arbitral, que se anexa como Doc. 3, ao PPA, que, no âmbito do procedimento inspetivo, a ora Requerente havia apresentado elementos adicionais relativos às controvertidas faturas, em particular, orçamentos que identificavam os serviços prestados a que se referiam tais faturas.
- E, neste sentido, considerando o Tribunal que “as autoridades tributárias não podem recusar o direito à dedução do imposto quando através de outros documentos de suporte podem obter a informação necessária sobre os requisitos formais a que deve obedecer a fatura”, deu provimento à pretensão da ora Requerente e declarou ilegais as liquidações adicionais de IVA”.
- Portanto, tratando-se dos mesmos factos e do mesmo fundamento legal, em coerência, também os montantes correspondentes às mencionadas faturas não podem deixar de ser considerados como gastos dedutíveis.
7. A Requerida alicerçou a sua Resposta, essencialmente, no seguinte:
- Atendendo à forma como a actividade se desenvolve no seio do grupo empresarial, sendo certo que estamos perante facturas emitidas entre empresas com relação entre si e sócios em comum, e, considerando-se que a actividade exercida e o modelo de funcionamento entre as sociedades do grupo, é determinante para percepcionar a relevância dos gastos fiscalmente desconsiderados.
- Entenderam os serviços inspectivos da Requerida, que os gastos contabilizados com base nas facturas nºs 49, 50, 59 (apenas parte do valor), 62 e 68, e que influenciaram a determinação do resultado fiscal do período de 2016, não são aceites fiscalmente por: i - Não respeitarem a réditos registados no mesmo período de imposto; ii - Não estar comprovada a efectiva necessidade para a obtenção dos rendimentos sujeitos a imposto, no seguimento do disposto no nº 1 do artº 23º do CIRC; iii - Acrescendo ainda que, à excepção da factura nº 62, as facturas não se encontram emitidas na forma legal, porque, em obediência ao disposto no nº 4 do artº 23º do CIRC, não indicam a natureza dos serviços prestados.
- Para estas situações, entenderam os serviços inspectivos da Requerida estar demonstrada a relação directa e efectiva do gasto com os rendimentos correspondentes.
- Nos restantes casos à mingua, ou total ausência de prova em sentido contrário, e após solicitação de informação à Requerente, concluiu-se que:
"as prestações de serviços respeitam alegadamente a elaboração de desenhos e estudos para clientes da A..., S.A.. Solicitámos informação sobre que trabalhos de desenhos e estudos originaram a produção e comercialização de moldes por parte da A..., S.A.. Nalguns casos fomos informados que os moldes estão parados. Noutros casos, não tendo originado a produção do molde em concreto, permitiu encomendas de outros moldes. Há casos ainda em que a produção do molde objecto de estudo terá efectivamente acontecido. Esta informação foi facultada em post-it em cada uma das facturas como se verifica pela consulta aos documentos em anexo 4."
- Conforme já referido, no ano de 2016, os serviços da inspecção detectaram na contabilidade da Requerente, o registo de gastos suportados em facturas emitidas por empresas que integram o mesmo grupo, mais concretamente a B..., Lda, e a C..., Lda, identificadas no quadro 9 do Relatório.
- Relativamente à especialização dos exercícios a questão que se coloca é o tratamento fiscal a dar a estes gastos nas situações em que o molde objecto do orçamento não é produzido, ou quando esse orçamento só é aceite no período seguinte e, por conseguinte, iniciada a produção do molde em período de imposto diferente daquele em que ocorreu o gasto com o orçamento.
- No caso em apreço, a problemática da periodização fiscal dos réditos/gastos relativos a contratos de construção (construção de moldes), encontra-se contabilisticamente consagrada na NCRF 19, e fiscalmente na alínea c) do nº 3 do artº 18º do CIRC, que remete para o disposto no artº 19º do mesmo diploma.
- Nos termos do artº 17º do CIRC, o lucro tributável das pessoas colectivas é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais negativas verificadas no mesmo período e não reflectidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos do CIRC, devendo, para o efeito, a contabilidade estar organizada de acordo com a normalização contabilística.
- Relativamente aos contratos de construção, neste caso construção de moldes metálicos cuja duração seja superior a um ano, e quanto aos gastos que devem ser considerados como gastos do contrato, aplica-se o disposto na NCRF 19, cujo parágrafo 32 dispõe que, quando o desfecho de um contrato não possa ser estimado fiavelmente: i– O rédito somente deve ser reconhecido até ao ponto em que seja provável que os custos do contrato incorridos sejam recuperáveis, e, ii - Os custos do contrato devem ser reconhecidos como um gasto no período em que sejam ocorridos.
- Pelo que, se se considerar que as facturas em apreço se encontram emitidas em respeito pelos nºs 4 e 6 do artº 23º do CIRC, é certo que, no momento em que ocorrem os gastos com a elaboração dos orçamentos, ainda não é possível saber se os clientes vão aceitar o orçamento e adjudicar a construção dos moldes à Requerente, pelo que os gastos devem ser considerados no período em que ocorreram.
- Mais, e de acordo com o parágrafo 16 da NCRF 19, os custos do contrato devem compreender: i - Os custos que se relacionem directamente com o contrato específico; ii - Os custos que sejam atribuíveis à actividade do contrato em geral e que possam ser imputados ao contrato, e, iii - Outros custos que sejam especificamente debitáveis ao cliente sob as condições do contrato.
- De referir que os custos de obtenção do contrato reconhecidos como gastos em períodos anteriores não podem ser levados a custos do contrato quando se ganha o contrato de acordo com o parágrafo 21 da citada NCRF.
- O contrato só se encontra assegurado após a sua adjudicação, como tal só a partir dessa data é que podem ser imputados custos ao contrato, até lá os gastos incorridos são gastos do período, pelo que, o aduzido pela Requerente nos artº 71º a 76º da sua PI carece de sustentação, não existindo qualquer contradição entre as conclusões da Inspecção Tributária e a defesa apresentada pela Requerida no âmbito do processo que correu termos no CAAD com o nº 586/2019-T.
- Relativamente aos elementos legalmente exigíveis nas facturas, diz a Requerida que resulta da observação das cópias das facturas, juntas em anexo 3 ao RIT, a descrição mencionada nestas é apenas "Prestação de Serviços".
- A Requerente notificada, no decorrer da Inspecção, apresentou uma das facturas, designadamente um conjunto de orçamentos que não fazem qualquer referência à factura a que se referem ao invés da "B..., Lda" e a "C..., Lda".
- Concluindo que os gastos contabilizados com base nas facturas 49, 50, 59, 62, 68, e que influenciaram a determinação do resultado fiscal do período de 2016, não podem ser fiscalmente dedutíveis dado (1) que as facturas não se encontram emitidas na forma legal, por não indicarem a natureza dos serviços prestados e porquanto os elementos juntos no decorrer do procedimento inspectivo, (2) serem manifestamente insuficientes para comprovar que estão em causa gastos necessários para a obtenção dos rendimentos do sujeito passivo nos termos do artº 23º do CIRC.
8. A Requerente apresentou em 18 de Janeiro de 2021 um Requerimento, em que solicita que o Tribunal autorize, no âmbito destes autos, o aproveitamento de toda a prova produzida no Processo nº 586/2019-T, mediante a extracção de certidão da Acta de inquirição de testemunhas e cópia da gravação dos depoimentos prestados pelas mesmas no aludido processo.
9. O Tribunal Arbitral, por despacho de 20 de Janeiro de 2021, ouvida a autoridade Requerida, deferiu o requerido pelo SP, quanto ao aproveitamento da prova produzida no processo nº 586/2019-T, e determinou a extracção de certidão da Acta da inquirição das testemunhas e cópia da gravação dos depoimentos prestados naquele processo, dando sem efeito o despacho que marcou a audiência de julgamento e, ainda, notificou as Partes para produzirem alegações sucessivas, no prazo de 15 dias.
10. A Requerente apresentou alegações escritas, retomando, no essencial, os argumentos já aduzidos na anterior peça processual. A Requerida não apresentou contra-alegações.
II. Saneamento
11. O Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 2 de Outubro de 2020; foi-o regularmente e é materialmente competente, à face do preceituado nos arts. 2.º, n.º 1, alínea a), 5º, 6º, n.º 1, e 11º, n.º 1, do RJAT (com a redacção introduzida pelo art. 228.º da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro).
12. As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade, nos termos dos arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
13. A AT procedeu à designação dos seus representantes nos autos e a Requerente juntou procuração, encontrando-se assim as Partes devidamente representadas.
14. O processo não enferma de quaisquer nulidades que obstem à apreciação do mérito da causa, mostrando-se reunidas as condições para ser proferida decisão final.
III. Do Mérito
III. 1. Da matéria de Facto
§1. Factos que se consideram provados e com relevância para a decisão
1. A Requerente A..., SA, (adiante A...) é uma sociedade comercial que tem como atividade a produção e comercialização de moldes metálicos (CAE 25734).
2. A Requerente faz parte de um Grupo empresarial, constituído por empresas com relações entre si e sócios em comum, que tem como sociedade mãe a D... SGPS e que inclui ainda, entre outras, a B..., Lda (adiante B...) e a C..., Lda (adiante C...).
3. As mencionadas sociedades dominadas, designadamente, a Requerente, que têm como objecto a produção de moldes, estão especializadas em função da dimensão dos moldes, cabendo à Requerida a área da comercialização dos moldes e dos contactos com os clientes, por ser a que tem imagem corporativa no mercado dos moldes.
4. A Requerente A... interage com o mercado como produtora de qualquer tipo de moldes, e, quando adjudicado o fabrico do molde, é ela própria que produz os moldes de pequena dimensão, sendo os de média dimensão fabricados pela B... e os de grande dimensão pela C... .
5. A produção de um molde, tradicionalmente, passa pelas seguintes fases:
6. Fase de orçamentação: o cliente envia toda a informação necessária em termos de material, tamanho e função pretendida. A partir destes dados é feito um anteprojeto, onde se realizam os estudos dos materiais e componentes necessários, bem como uma estimativa do preço.
7. Fase de conceção e desenvolvimento, nos casos em que é aprovado o orçamento e aceite a encomenda, é executado um desenho preliminar do molde, que é enviado ao cliente para aprovação ou comentários e, assim que estiver aprovado, dá-se início ao desenvolvimento do projeto em paralelo com a Produção.
8. Fase da Produção: é feito o planeamento do processo produtivo e encomenda de matéria-prima para o fabrico do molde, que depois de produzido é enviado ao cliente com toda a documentação e informação necessária relativamente a sistemas e mecanismos inseridos no molde.
9. Neste contexto, a A... assegura todo o fluxo de trabalho durante a fase de cotações para clientes, competindo também à B... e C... fazer os trabalhos de orçamentação - descritos no documento nº 1 anexo ao PPA e que se dá por inteiramente reproduzido - que debitam à Requerente, conforme o seguinte esquema :
10. A Requerente remunera a B... e a C... pelas prestações de serviços de elaboração de orçamentos.
11. Após a obtenção de uma encomenda firme, é atribuído um número de molde e a sua produção pode ser alocada, total ou parcialmente, à Requerente e a cada uma das referidas empresas –B... e C... .
12. Os custos suportados por cada uma destas empresas são faturados à Requerente que assume a venda, a cobrança, as garantias e o risco do negócio, conforme esquema infra:
13. Iniciada a produção do molde, a A... utiliza, em obediência à NCRF 19, o método do lucro nulo, para tratamento contabilístico de réditos e custos relativos a contratos de construção de moldes produzidos pela B... e C..., face à impossibilidade de estimar de forma fiável o desfecho dos contratos.
14. A A... apresentou a clientes, no período objeto do procedimento de inspeção, o número de orçamentos, fabricou os moldes e obteve o volume de negócios mencionados no quadro seguinte:
Ano Nº de orçamentos Nº de moldes fabricados Volume de negócios (M€)
2015 709 64 11.689
2016 548 38 12.273
14) Resulta deste quadro, que cerca de 8% dos orçamentos efetuados dá origem a encomendas firmes de produção de moldes.
15. Quando os trabalhos de orçamentação são realizados ainda não houve adjudicação da produção dos correlativos moldes.
16. Estes custos são anteriores à fase de adjudicação (fase em que o contrato se encontra “assegurado” na terminologia da NCRF 19).
17. A apresentação de um orçamento envolve, em regra, a realização de estudos dos materiais e componentes necessários (estudos de peças, de factibilidade, análise de cálculos de aços para o molde e tratamentos térmicos, cálculo do número de cavidades, estudo dimensional das medidas exteriores, etc.), bem como uma estimativa do preço, tarefas que consomem recursos.
18. A Requerente perante gastos suportados em períodos anteriores à data em os contratos se encontram assegurados deu o tratamento contabilístico de reconhecer esses gastos como gastos do período, à luz do disposto no parágrafo 21 da NCFR 19.
21. As faturas emitidas pela B... Lda. e pela C... têm na sua origem orçamentos que foram apresentados à inspeção tributária e que se encontram anexos às faturas.
22. Nos orçamentos é explicitada a natureza das operações contratadas com estas empresas, nos termos infra:
infra:
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………………………………………………………………………..
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23. A Requerente foi objeto de um procedimento de inspeção tributária ao abrigo da ordem de serviço nº OI2018.../..., de âmbito geral, com referência aos períodos de 2015 e 2016, tendo sido efetuadas correções, que, culminaram na liquidação adicional de IRC 2019..., no que se refere ao período de 2016 e que deram origem às seguintes liquidações adicionais:
c. Em sede de IRC:
Período N.º liquidação Montante Data limite pag.to
2016 2019... 370 587,36 11.06.2019
d. Em sede de IVA, para o que releva no presente processo, foram feitas as seguintes liquidações adicionais:
Período N.º liquidação Montante Data limite pag.to
2016.09M 2019... 137 227,57 11.06.2019
2016.11M 2019... 224 988,06 11.06.2019
1. Na origem da controvertida liquidação adicional de IRC, estiveram as seguintes correções:
Período Valor Fundamento
2016 20 739,21 Gastos não devidamente documentados
2016 1 545 000,00 Inobservância da especialização de exercícios e de requisitos formais de faturas
2016 57 500,00 Remuneração convencional do capital social
24. Requerente circunscreve o seu pedido à liquidação adicional de IRC relativa ao período de 2016, na parte correspondente à alegada inobservância da especialização de exercícios e de requisitos formais de faturas emitidas pela B... e a C..., com a não aceitação como gasto fiscal do montante de € 1 545 000,00, que foi fundamentada no Relatório de inspeção, como se reproduz:
25. A Requerente pagou integralmente a referida importância liquidada em 11 de Junho de 2019.
26. A Requerente apresentou em 3 de Setembro de 2019 pedido de constituição de tribunal arbitral com vista à pronúncia relativamente à declaração de ilegalidade e anulação parcial da liquidação adicional de IRC, aqui em causa, e de IVA, que deu origem ao processo de Arbitragem Tributária nº 586/2019-T.
27. Por Decisão Arbitral de 23 de Junho de 2020, tomada no processo de Arbitragem Tributária nº 586/2019-T, a Autoridade Tributária foi absolvida da instância quanto ao pedido referente à liquidação adicional de IRC aqui em causa.
28. A Requerente apresentou este pedido de pronúncia arbitral em 14 de Julho de 2020.
§2. Factos que se consideram não provados
Não existem factos dados como não provados com relevância para a apreciação do pedido.
§3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
Foi tida em consideração a posição assumida pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos. Foi igualmente tido em conta o aproveitamento da prova produzida em audiência, no processo n.º 586/2019-T.
III.2. Matéria de Direito
29. Como se viu do relatório e também da matéria de facto, em particular no que respeita aos factos provados, são duas as questões sobre as quais teremos de firmar posição jurídica e que são as que a Requerente questiona como inquinadas de ilegalidade, a saber:
- Inobservância por parte da Requerente do princípio da especialização de exercícios;
- Desconsideração dos requisitos formais das faturas por parte da Requerente.
Vejamos, então, quais os fundamentos para considerar ou não como válidas as correções que a AT produziu na esfera do IRC da Requerente, sendo certo que, em grande medida, estas matérias, embora circunscritas ao IVA, já foram objeto de análise e decisão no processo nº 586/2019-T, processo esse que, concitando a nossa concordância por inteiro, seguiremos de perto no atual.
30. Principiando pela matéria referente à especialização de exercícios, dir-se-á que a nossa conclusão, neste particular, é de que a argumentação da AT não colhe fundamentalmente pelas razões que a seguir passamos a enunciar.
Desde logo, porque no caso vertente a Requerente tem gastos diversos com orçamentos para clientes que tem de suportar em ordem a procurar que haja adjudicação no fabrico dos moldes. Aliás, conforme ponto nº 44 do pedido de pronúncia arbitral, em média só 8% dos orçamentos se materializam em adjudicações. Ora, em termos contabilísticos, quer as NCRF 16, 19, quer a NCRF 32 (em especial esta última), estabelecem que os custos devem ser sempre reconhecidos como um gasto no período em que são incorridos, quando o desfecho do contrato não possa ser estimado fiavelmente, o que é manifestamente o caso. Aliás, no processo 586/2019-T, com o qual concordamos, no ponto 7. da descrição dos factos alegados pela Requerida diz-se:
Nesta conformidade, diz a Requerida que se se considerar que as faturas em apreço se encontram emitidas em respeito pelos nºs 4 e 6 do artigo 23º do CIRC, é certo que, no momento em que ocorrem os gastos com a elaboração dos orçamentos, ainda não é possível saber se os clientes vão aceitar o orçamento e adjudicar a construção dos moldes à Requerente. Assim sendo, os gastos incorridos devem ser considerados no período em que ocorreram: sendo que os custos do contrato devem compreender os custos que são elencados no parágrafo 16 da NRCF. Ademais, os custos de obtenção do contrato reconhecidos como gastos em períodos anteriores não podem ser levados a custos do contrato quando se ganha o contrato, sendo que o contrato só se encontra assegurado após a sua adjudicação e, como tal, só a partir dessa data é que podem ser imputados custos ao contrato: até lá os gastos incorridos são gastos do período.
Lida a contestação da Requerida (artigos 18º a 35º) não descortinamos discordância com o que ficou expresso anteriormente, pelo que bem fez a Requerente em contestar o entendimento expresso na fiscalização- matéria sobre a qual não se pronuncia a AT na sua contestação – de que não podia considerar como gastos elegíveis todos aqueles que não se consubstanciaram num contrato, ou seja, numa adjudicação formal.
Ora, este ponto tem sido tratado com muita abundância, quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, em termos de que não compete à AT dizer se determinada despesa é ou não necessária à obtenção de rendimentos sempre que se mostre indispensável para a tentar obter ainda que o não consiga por motivos que se prendem com a decisão do cliente. É manifesto que não estamos perante qualquer esquema fraudulento e, consequentemente, tais gastos devem ser inequivocamente reconhecidos como legítimos, pelas razões que acabámos de enunciar, ou seja, por se reconduzirem ao preconizado pelas normas de contabilidade, que não foram derrogadas pelo CIRC, e por serem inequivocamente necessárias para que a empresa pudesse obter ganhos, ainda que em muitos dos contratos não tenha havido adjudicação dos contratos, como é pacificamente aceite pela jurisprudência dos tribunais e pela doutrina, conforme inter alia, a jurisprudência citada pela Requerente na sua peça inicial no ponto 69 ou a do Acórdão Arbitral do CAAD, processo nº 101/2013-T.
Face aos argumentos apresentados pela AT no seu relatório de inspeção tributária e no que toca à questão específica analisada da violação do princípio da especialização de exercícios, não colhem os mesmos pelas razões aduzidas pelo que, face a isto, improcede a correção feita com o fundamento da violação do princípio da especialização de exercícios por parte da Requerente.
31. O segundo fundamento aduzido pela AT justificativo da correção de 1.545.000,00€, é que as faturas nºs 2016/49,2016/50, 2016/59 e 2016/68 indicam somente que as mesmas se fundamentam em “serviços prestados”, não sendo, deste modo, possível perceber que serviços em concreto foram esses e o gasto também não poderia ser aceite para efeitos fiscais por força do artigo 23º, nº 6 do CIRC dado que as faturas não se encontram emitidas na forma legal por não indicarem a natureza dos serviços prestados.
32. Ora, justamente esta matéria já foi objeto detalhado de análise no Processo arbitral nº 586/2019-T que incide justamente sobre a mesma matéria de facto, aliás, porque a fundamentação das correções em sede de IVA que estiveram na origem do mencionado processo, são justamente as mesmas do atual processo que respeita a IRC.
33. Como logo lá se comprova, o que é válido também para o atual processo, conforme consta dos factos que considerámos provados relativamente à matéria de facto (pontos 21 e 22 e da matéria de facto do presente acórdão arbitral), é que a Requerente, complementarmente à fatura, apresentou os orçamentos detalhados dos serviços que era suposto prestar no caso de lhe ser feita a adjudicação dos moldes, pelo que, da conjugação dos dois elementos, nunca AT poderia invocar desconhecer que serviços eram esses.
34. Como sabemos, os requisitos formais das faturas para efeitos de IVA ou IRC, após a revisão de alguns normativos deste imposto feita em 2014, ficaram similares, se bem que a jurisprudência pacificamente já aceitasse que se uma fatura fosse passada nos termos do CIVA, automaticamente era válida para efeitos de IRC (veja-se entre outros Acórdão do STA de 16/02/2000, recurso nº 24133).
35. Sucede que, como bem se sustenta no Acórdão arbitral relativo ao processo 586/2019, não só é possível delimitar com rigor quais os serviços que foram prestados, o que fez com que a inspeção tributária houvesse aceite outras faturas (mormente as 2016/51, 2016/52) apesar de virem os serviços complementados somente pelos orçamentos e não descritos na fatura propriamente dita (cfr. ponto 17 do mencionado Acórdão arbitral), o que fez com que a AT reconhecesse que o gasto é fiscalmente dedutível, mas incompreensivelmente não o aceitou nas restantes faturas sub judice.
36. Ora, por tudo isto, no mencionado Acórdão 586/2019, a conclusão foi a de que as faturas em apreço preenchem os requisitos que o CIVA exige, na medida em que é possível à AT saber rigorosamente de que serviços se está a falar e, consequentemente, não vemos razões para que, em matéria de IRC, a conclusão a extrair da documentação constante dos autos não seja exatamente a mesma.
37. Em consequência é entendimento deste Tribunal de que a argumentação da AT igualmente não procede para justificar a correção proposta, com as devidas consequências legais.
38. A Requerente vem ainda pedir a condenação da AT no pagamento dos juros indemnizatórios.
Nos termos das disposições conjugadas do artigo 24º, nº 5 do RJAT e dos artigos 43º, nº 1 da LGT e 61º, nº 5 do CPPT, condena-se a Requerida a pagar juros indemnizatórios à Requerente, dado tratar-se de erro imputável aos serviços por inadequada interpretação da lei, à taxa de juros legais.
IV - DECISÃO
Nestes termos, acordam neste Tribunal Arbitral em:
a) Julgar procedente o pedido arbitral e declarar a ilegalidade das liquidações adicionais em IRC, relativas ao período de 2016;
b) Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento do imposto indevido até à data do processamento da respetiva nota de crédito.
V-VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em € 370.587,36, nos termos do disposto no art. 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e art. 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processo de Arbitragem Tributária (RCPAT).
VI- CUSTAS
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 6.120,00, que fica a cargo da Requerida.
Notifique-se.
Lisboa, 27 de Abril de 2021
Os Árbitros
Fernanda Maçãs
(Presidente)
Vasco Valdez
José Nunes Barata