SUMÁRIO:
1. De acordo com o entendimento do Tribunal de Justiça da União Europeia o regime do n.º 2 do artigo 43.º e dos números 9 e 10, do artigo 72.º, do Código do IRS, é incompatível com o artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, lido em conjugação com o artigo 65º do mesmo Tratado.
2. Do princípio do primado do Direito da União Europeia resulta que a Requerida tem o dever de recusar a aplicação de normas nacionais contrários ao Direito da União Europeia, constituindo erro de direito a liquidação efetuada pela Requerida com base nas normas nacionais em causa, enquadrável no conceito de “erro imputável aos serviços”.
DECISÃO ARBITRAL
I – Relatório
1. No dia 5.02.2019, o Requerente, A..., casado, Contribuinte Fiscal n.º ... residente fiscal em ..., ... ..., Alemanha, requereu ao CAAD a constituição de tribunal arbitral, nos termos do artigo 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, com vista à declaração de ilegalidade da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”), n.º 2018..., de 10.11.2018, no montante de € 2.618,76, referente ao período de tributação de 2016, e da liquidação n.º 2018..., de 10.11.2018, no montante de € 33.914,11, referente ao período de tributação de 2017.
O Requerente peticiona, ainda, a condenação da Requerida a restituir os montantes pagos, acrescido de juros indemnizatórios, contados até à data da emissão e processamento das notas de crédito respetivas, nos termos dos artigos 43.º e 100.º da Lei Geral Tributária e do artigo 61º do Código de Procedimento e Processo Tributário.
2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira.
Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1, do artigo 6.º, do RJAT, por decisão do Senhor Presidente do Conselho Deontológico, devidamente comunicada às partes, nos prazos legalmente aplicáveis, foi designado árbitro o signatário, que comunicou ao Conselho Deontológico e ao Centro de Arbitragem Administrativa a aceitação do encargo no prazo regularmente aplicável.
O Tribunal Arbitral foi constituído em 16.04.2019.
3. Os fundamentos apresentados pela Requerente, em apoio da sua pretensão, foram, em síntese, os seguintes:
a. O Requerente, residente fiscal na Alemanha, vendeu em 2016 e 2017 imóveis situados em Portugal que havia adquirido em 1997 e 2011.
b. A Requerida sujeitou a tributação, à taxa autónoma de 28%, a totalidade das mais-valias realizadas pelo Requerente.
c. Nos termos do número 2 do artigo 43.º “2 – O saldo referido no número anterior, respeitante às transmissões efetuadas por residentes previstas nas alíneas a), c) e d) do n.º 1 do artigo 10.º, positivo ou negativo, é apenas considerado em 50% do seu valor”.
d. Nos termos desta norma, só os residentes podem usufruir de uma exclusão de 50% da
tributação, enquanto os não-residentes, são tributados sobre 100% da mais-valia imobiliária, o que viola o n.º 1 do artigo 63.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia, nos termos do qual “…são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros.”
e. Essa tributação adicional dificulta o desinvestimento de não-residentes no imobiliário
nacional, quando comparado com a tributação dos residentes.
f. O n.º 4 do artigo 8.º da Constituição da República procedeu ao reconhecimento do primado do Direito Comunitário originário e derivado sobre o direito ordinário nacional.
g. Torna-se, assim, evidente que o ato impugnado é inválido por violação do atual n.º 1 do artigo 63.º do TFUE pois, como concluiu o Tribunal de Justiça da União Europeia no Caso Hollmann, Processo n.º C-443/06, de 11 de outubro de 2007:
“Por consequência, uma legislação nacional como a que está em causa no processo principal tem por efeito tornar a transferência de capitais menos atractiva para os não residentes,dissuadindo-os de efectuar investimentos imobiliários em Portugal e, consequentemente,operações relacionadas com estes investimentos, tal como a venda de um bem imóvel.”
h. Esta discriminação não foi ultrapassada com o regime alternativo de tributação consagrado nos atuais números 9 e 10 do artigo 72.º do Código do IRS, uma vez que a consagração deste regime, de aplicação subsidiária, implica um ónus adicional aos não residentes - proceder a uma comparação entre os dois regimes – algo que não é exigível aos residentes e, por outro lado, a existência de um regime subsidiário não afasta os vícios do regime principal.
4. A Requerida, chamada a pronunciar-se, contestou a pretensão da Requerente, defendendo-se por impugnação, em síntese, com os fundamentos seguintes:
a. Tendo em conta o teor do Acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias de 2007OUT11, e no sentido de adaptar a legislação nacional à decisão nele sufragada, foi aditado ao artigo 72º do Código do IRS, pela Lei n.º 67-A/2007, de 31/12, o n.º 7 (atual n.º 9), cujo teor à data dos factos, era o seguinte:
“9 - Os residentes noutro Estado membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em matéria fiscal, podem optar, relativamente aos rendimentos referidos nas alíneas a) e b) do n.º 1 e no n.º 2, pela tributação desses rendimentos à taxa que, de acordo com a tabela prevista no n.º 1 do artigo 68.º, seria aplicável no caso de serem auferidos por residentes em território português.”
b. Por sua vez, o n.º 8 (atual n.º 10) do mesmo artigo e diploma legal, também aditado pela Lei n.0 67-A/2007, de 31/12, prescrevia, à data dos factos, que:
“10- Para efeitos de determinação da taxa referida no número anterior são tidos em consideração todos os rendimentos, incluindo os obtidos fora deste território, nas mesmas condições que são aplicáveis aos residentes.”
c. E, por força dessa alteração legislativa, as declarações de rendimentos respeitantes aos anos fiscais de 2008 (em vigor a partir de Janeiro de 2009) e seguintes, mais concretamente o Modelo 3, têm um campo para ser exercida a opção pela taxa do artigo 68.º do Código do IRS.
d. É, assim, aos sujeitos passivos do imposto residentes nos Estados previstos na letra da primeira das normas acabadas de transcrever que cumpre optar pelo regime que pretendem lhes seja aplicado (ou o previsto para não residentes, ou o que lhes seria aplicável caso residissem em território português) existindo, para esse efeito, o quadro 8 da declaração Modelo 3 de IRS, onde é oferecida aos contribuintes a possibilidade de exercer o direito de opção mencionado no parágrafo anterior.
e. Consultadas as declarações Modelo 3 de IRS entregues em nome do Requerente (relativas aos anos fiscais de 2016 e de 2017), verifica-se que no quadro 8 B das Modelo 3 foi assinalado o campo 4 (não residente), o campo 6 (residência em país da EU) e o campo 7 (pretende a tributação pelo regime geral aplicável aos não residentes).
f. Tendo declarado pretender a tributação pelo regime geral foi esta aplicada relativamente àqueles anos, motivo pelo qual não foram tidos em conta apenas 50% da mais-valia apurada com a alienação dos imóveis mencionados nos quadros 4 dos anexos G das declarações modelo 3 de IRS que entregou relativamente aos anos de 2016 e 2017, mas sim aplicada uma taxa autónoma de 28% sobre o valor dessa mesma mais-valia, nos termos previstos no regime geral de tributação em IRS, pelo qual o Requerente expressamente declarou pretender ser tributado.
g. Assim, as alegações do Requerente não podem obter provimento, face à alteração do artigo 72.º, efetuada pela Lei n.º 67-A/2007, de 31/12, nomeadamente o aditamento dos n.ºs 7 (atual n.º 9) e 8 (atual n.º 10).
5. Verificando-se a inexistência de qualquer situação prevista no artigo 18º, nº 1, do RJAT, que tornasse necessária a reunião arbitral aí prevista, foi dispensada a realização da mesma, com fundamento na proibição da prática de atos inúteis.
Foi determinada a notificação das partes para, querendo, apresentar, alegações escritas.
A Requerente fez uso desta faculdade, não o tendo feito a Requerida.
6. Entendendo o Tribunal que nos presentes autos está em causa a interpretação de normas do Direito da União Europeia sobre a qual existem dúvidas interpretativas e não se conhecendo jurisprudência do TJUE sobre a questão específica que é colocada no presente processo, verificando-se ter sido efetuado reenvio prejudicial noutro processo arbitral que deu origem no Tribunal de Justiça da União Europeia ao processo prejudicial C-388/19 tendo por objeto as questões de Direito da União que importa resolver, por despacho arbitral de 18-09-2019, proferido na sequência de requerimento da Requerida, foi decidido suspender a instância, ao abrigo do disposto no artigo 272.º, n.º 1, do CPC, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
7. Tendo o tribunal arbitral tomado conhecimento de que em 18 de março de 2021 foi proferido acórdão pelo Tribunal de Justiça da União Europeia ao processo prejudicial supra referido, por despacho de 5 de abril de 2021 foi decretada a cessação da suspensão da instância e designada data para prolação da decisão arbitral.
8. O tribunal é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído nos termos do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas.
O processo não padece de vícios que o invalidem.
9. Cumpre solucionar as seguintes questões:
a) Ilegalidade das liquidações objeto do processo.
b) Direito do Requerente à devolução dos impostos pagos.
c) Direito do Requerente a juros indemnizatórios.
II – A matéria de facto relevante
10. Consideram-se provados os seguintes factos:
1. O Requerente tem residência fiscal na Alemanha.
2. Em 1997, o Requerente adquiriu, pelo preço de 24.000.000 (vinte e quatro milhões) de escudos, um prédio urbano sito em ..., freguesia de ..., Algarve, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagoa sob o número ... .
3.Em 2011, o Requerente adquiriu, também, os seguintes prédios:
a) Pelo preço de 28.500 euros, um prédio misto, sito em ..., freguesia de ..., Silves, descrito na Conservatória do Registo Predial de Silves, sob o artigo ..., inscrito a parte rústica na matriz cadastral sob o artigo N.º ... da Secção “C” e valor declarado de 3.500 euros e a parte urbana, destinada a habitação, inscrita na matriz respetiva sob o artigo ..., com o valor declarado de 25000 euros, tendo sido liquidado IMT sobre estes valores.
b) Pelo preço de 1.500 euros um prédio rústico, sito em ..., freguesia de ..., Silves, descrito na Conservatória do Registo Predial de Silves, sob o número ..., inscrito na matriz cadastral sob o artigo n.º ... da Secção “C”.
c) Pelo preço de 2.500 euros, um prédio rústico, sito em ..., freguesia de ..., Silves, descrito na Conservatória do Registo Predial de Silves, sob o artigo ..., inscrito na matriz cadastral sob o artigo n.º ... da Secção “C”.
4.Em 17.10.2016, o Requerente vendeu:
a) Pelo valor de 38.500 euros, o prédio misto, sito em ..., freguesia de ..., concelho de Silves descrito na Conservatória do Registo Predial de Silves sob o número ..., inscrita a parte rústica na matriz cadastral sob o artigo N.º ... da Secção “C”, e parte urbana, destinada a habitação, inscrita na matriz respetiva sob o artigo ..., tendo-se repartido o valor de venda por 8.500 euros para a parte rústica e de 30.000 euros para a parte urbana, tendo sido liquidado IMT sobre estes valores;
b) Pelo valor de 4.500 euros, o prédio rústico, sito em ..., freguesia de ..., Silves, descrito na Conservatória do Registo Predial de Silves, sob o número ..., inscrito na matriz cadastral sob o artigo n.º ... da Secção “C;
c) Pelo valor de 9.000 euros, o prédio rústico, sito em ..., freguesia de ..., Silves, descrito na Conservatória do Registo Predial de Silves, sob o artigo ..., e inscrito na matriz cadastral sob o artigo n.º ... da Secção “C”.
5. Em 27.04.2017, o Requerente vendeu o prédio urbano, identificado no artigo 5.º, sito em ..., freguesia de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagoa sob o número ..., pelo valor de 400.000 euros.
6.A 05.11.2018, o Requerente submeteu a respetiva declaração periódica de rendimentos modelo 3 de IRS, referente ao exercício de 2016, na qual declarou a transmissão dos imóveis sitos em ..., freguesia de ..., concelho de Silves, mencionando os seguintes valores no quadro 4 do anexo G:
Valor de aquisição: 32.500 euros;
Valor de realização: 52.00 euros;
Despesas e encargos: 9.679,25 euros.
7.Por referência ao exercício de 2017, o Requerente submeteu, a 05.11.2018, a respetiva
declaração periódica de rendimentos, modelo 3 de IRS, na qual declarou a transmissão dos imóveis sitos em ..., freguesia de ..., melhor identificados no artigo 8.º, mencionando os seguintes valores no quadro 4 do anexo G:
Valor de aquisição: 188.541,50 euros;
Valor de realização: 400.000,00 euros;
Despesas e encargos: 0,00. Euros.
8. Nas declarações Modelo 3 de IRS entregues em nome do Requerente (relativas aos anos fiscais de 2016 e de 2017), verifica-se que no quadro 8 B das Modelo 3 foi assinalado o campo 4 (não residente), o campo 6 (residência em país da EU) e o campo 7 (pretende a tributação pelo regime geral aplicável aos não residentes).
9.Nas liquidações objeto do presente processo a Requerida sujeitou a tributação, à taxa autónoma de 28%, a totalidade das mais-valias realizadas pelo Requerente.
10. Em 12.12.2018 o Requerente pagou à Requerida o valor das liquidações objeto do presente processo.
Com interesse para a decisão da causa inexistem factos não provados
11. A convicção do Tribunal quanto à decisão da matéria de facto alicerçou-se nos documentos constantes do processo, bem como dos articulados apresentados, sendo de salientar ocorrer total concordância das partes relativamente à matéria de facto, cingindo-se o desacordo à matéria de direito.
-III- O Direito aplicável
12. Pode ler-se na decisão arbitral de 5 de Julho de 2012, proferida no processo 45/2012-T, o seguinte:
“A principal questão a decidir nos presentes autos arbitrais é a de saber se a diferenciação, estabelecida pela legislação nacional, para residentes e não residentes em território nacional, da base de incidência em IRS das mais-valias derivadas da alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis é (in)compatível com a liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, por se traduzir num regime fiscal menos favorável para os não residentes.
Com efeito, a Entidade Requerida considerou, para efeitos de determinação do rendimento colectável e consequente liquidação do IRS aos Requerentes, não residentes em Portugal, mas num outro Estado-Membro da União Europeia, a totalidade da mais-valia por estes realizada em 2010 na alienação das respectivas quotas-partes dos imóveis acima identificados.
Foi, assim, declinada a aplicação do regime preceituado no n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS, segundo o qual: “O saldo referido no número anterior, respeitante às transmissões efectuadas por residentes previstas nas alíneas a), c) e d) do n.º 1 do artigo 10.º, positivo ou negativo, é apenas considerado em 50% do seu valor”, entendendo a Entidade Requerida que tal disciplina apenas é convocável para residentes em território nacional, em consonância, aliás, com o elemento literal da norma.
Conforme assinalado pelos Requerentes, a questão em apreço foi já apreciada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”), no Acórdão, de 11 de Outubro de 2007, proferido no processo C-443/06 (“Acórdão Hollmann”), na sequência do qual o Supremo Tribunal Administrativo (“STA”) português concluiu que “o n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS, (…) que limita a incidência de imposto a 50% das mais-valias realizadas apenas para residentes em Portugal, viola o disposto no artigo 56.º do Tratado que Institui a Comunidade Europeia, ao excluir dessa limitação as mais-valias que tenham sido realizadas por um residente noutro Estado membro da União Europeia.”
Trata-se exactamente da mesma questão de direito que se suscita na situação submetida à apreciação deste Tribunal Arbitral, sendo que se mantém inalterado o regime geral do Código do IRS que enquadrou e fundou a jurisprudência citada que, de seguida, para melhor compreensão, se sumaria.
Contudo, para além do regime geral que se manteve idêntico, o legislador nacional instituiu, por via da Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2008), posterior à jurisprudência do Acórdão Hollmann, um regime opcional de equiparação dos não residentes aos residentes, com o objectivo de obviar ao tratamento diferenciado dos não residentes comunitários e do espaço económico europeu que obtenham em Portugal mais-valias imobiliárias, face aos residentes.
Esta opção de equiparação permite aos não residentes comunitários e do espaço económico europeu a opção pela tributação desses rendimentos em condições similares às aplicáveis aos residentes em Portugal (cfr. o aditamento ao artigo 72.º do Código do IRS dos seus números 7 e 8, actuais números 8 e 9 após a renumeração operada pelo artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 249/09, de 23 de Setembro).
Em concreto, dispõem os n.ºs 8 e 9 do artigo 72.º do Código do IRS:
“8 - Os residentes noutro Estado membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em matéria fiscal, podem optar, relativamente aos rendimentos referidos nos n.ºs 1 e 2, pela tributação desses rendimentos à taxa que, de acordo com a tabela prevista no n.º 1 do artigo 68.º, seria aplicável no caso de serem auferidos por residentes em território português
9 - Para efeitos de determinação da taxa referida no número anterior são tidos em consideração todos os rendimentos, incluindo os obtidos fora deste território, nas mesmas condições que são aplicáveis aos residentes.”
Conforme acima referido, sobre a aplicação exclusiva a residentes em Portugal do limite da incidência de IRS a 50% das mais-valias imobiliárias, prevista no n.º 2 do artigo 43.º do respectivo Código, e a sua conformidade com o artigo 56.º do Tratado que Institui a Comunidade Europeia, actual artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, já se pronunciou o TJUE no mencionado Acórdão Hollmann.
Cabe aqui relembrar que a prevalência da interpretação do TJUE acerca do direito de fonte comunitária resulta do disposto no n.º 4 do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa (“CRP”) e do princípio do primado do Direito Comunitário, seja este originário ou derivado.
Na jurisprudência Hollmann, o TJUE conclui que a norma nacional vertente [n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS] viola o artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, por revestir carácter discriminatório (menos favorável) para os não residentes e ser, em consequência, restritiva da liberdade de circulação de capitais entre Estados-Membros.
Esta conclusão assenta nos seguintes argumentos principais:
(a) Uma operação de liquidação de um investimento imobiliário constitui um movimento de capitais, prevendo o Tratado uma norma específica que proíbe todas as restrições aos movimentos de capitais;
(b) No caso de venda de um bem imóvel sito em Portugal, ocorrendo a realização de mais-valias, os não residentes ficam sujeitos a uma carga fiscal superior àquela que é aplicada a residentes, encontrando-se, portanto, numa situação menos favorável que estes últimos;
(c) Com efeito, enquanto a um não residente é aplicada uma taxa de 25% sobre a totalidade das mais-valias realizadas, a consideração de apenas metade da matéria colectável correspondente às mais-valias realizadas por um residente permite que este beneficie sistematicamente, a esse título, de uma carga fiscal inferior, qualquer que seja a taxa de tributação aplicável sobre a totalidade dos seus rendimentos, visto que a tributação do rendimento dos residentes está sujeita a uma tabela de taxas progressivas cujo escalão mais elevado é de 42%;
(d) Este regime torna a transferência de capitais menos atractiva para os não residentes e constitui uma restrição aos movimentos de capitais proibida pelo Tratado;
(e) A discriminação da norma nacional não é justificável pelo objectivo de evitar penalizar os residentes (que se encontram sujeitos a uma tabela de taxas progressivas que podem ser muito superiores e são tributados sobre uma base mundial, ao contrário dos não residentes, que são tributados à taxa proporcional de 25%, não ocorrendo o englobamento), porque, como acima salientado, sendo o escalão mais elevado 42% conduz sempre, nas mesmas condições, a uma tributação mais gravosa do não residente, tendo em conta a redução a 50% do rendimento colectável do residente, não existindo, objectivamente, nenhuma diferença que justifique esta desigualdade de tratamento fiscal no que respeita à tributação de mais-valias, entre as duas categorias de sujeitos passivos.
Deparamo-nos, portanto, com um regime discriminatório e incompatível com o Direito Comunitário, por violação do artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.
Resta saber se a opção de equiparação, introduzida no sistema tributário português após a prolação do Acórdão Hollmann, constante dos n.ºs 8 e 9 do artigo 72.º do Código do IRS, e vigente à data dos factos sub iudicio, permite afastar o juízo de discriminação do TJUE sobre a previsão restritiva do n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS a sujeitos passivos residentes.
Para além de, como bem assinalam os Requerentes, a previsão deste regime facultativo fazer impender sobre os não residentes um ónus suplementar, comparativamente aos residentes, a opção de equiparação não é, segundo entendemos, susceptível de excluir a discriminação em causa.
Neste sentido, se pronunciou o TJUE, no Acórdão, de 18 de Março de 2010, proferido no processo C-440/08 (Acórdão Gielen) numa situação que apresenta manifesto paralelismo, somente com a diferença de que neste processo estava em causa a violação do artigo 49.º e não a do artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia” Neste sentido foi, também, maioritariamente, a jurisprudência arbitral que se lhe seguiu .
Este entendimento foi direta e expressamente acolhido em recente acórdão do TJUE de 18 de março de 2021, proferido no processo C-388/19 (considerando já o regime do CIRS aprovado pela Lei n.º 67-A/2007) onde se pode ler o seguinte:
“42 Antes de mais, há que salientar que a possibilidade de as pessoas residentes na União ou no EEE optarem, ao abrigo do artigo 72.°, n.os 9 e 10, do CIRS, por um regime de tributação análogo ao aplicável aos residentes portugueses e, assim, beneficiarem do abatimento de 50 % previsto no artigo 43.°, n.° 2, desse código permite a um
contribuinte não residente, como MK, escolher entre um regime fiscal discriminatório, a saber, o previsto no artigo 72.°, n.° 1, do CIRS, e outro que não o é.
43. Ora, cumpre frisar a este respeito que, no caso em apreço, essa escolha não é suscetível de excluir os efeitos discriminatórios do primeiro desses dois regimes fiscais.
44. Com efeito, o reconhecimento de um efeito dessa natureza à referida escolha teria por consequência validar um regime fiscal que continuaria, em si mesmo, a violar o artigo 63.° TFUE em razão do seu caráter discriminatório (v., neste sentido, Acórdão de 18 de março de 2010, Gielen, C-440/08, EU:C:2010:148, n.° 52).
45. Por outro lado, como o Tribunal de Justiça já teve ocasião de precisar, um regime nacional que limite uma liberdade fundamental garantida pelo Tratado FUE, no caso em apreço a livre circulação de capitais, é incompatível com o direito da União, mesmo que a sua aplicação seja facultativa (v., neste sentido, Acórdão de 18 de março de 2010, Gielen, C-440/08, EU:C:2010:148, n.° 53 e jurisprudência referida).
46. Daqui resulta que a escolha concedida, no litígio no processo principal, ao contribuinte não residente, de ser tributado segundo as mesmas modalidades que as aplicáveis aos contribuintes residentes, não é suscetível de tornar a restrição constatada no n.° 32 do presente acórdão compatível com o Tratado.
47. Tendo em conta todas as considerações precedentes, importa responder à questão submetida que o artigo 63.° TFUE, lido em conjugação com o artigo 65.° TFUE, deve ser interpretado no sentido de que se opõe à regulamentação de um Estado-Membro que, para permitir que as mais-valias provenientes da alienação de bens imóveis situados nesse Estado-Membro, por um sujeito passivo residente noutro Estado-Membro, não sejam sujeitas a uma carga fiscal superior à que seria aplicada, para esse mesmo tipo de operação, às mais-valias realizadas por um residente do primeiro Estado-Membro, faz depender da escolha do referido sujeito passivo o regime de tributação aplicável.”
Assim sendo, à luz desta decisão, não pode deixar de se considerar procedente o vício de violação de lei alegado pelo Requerente, por incompatibilidade do n.º 2 do artigo 43.º e dos números 9 e 10, do artigo 72.º, do Código do IRS, com o artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, lido em conjugação com o artigo 65º do mesmo Tratado, com a consequente anulação dos atos tributários objeto de pronúncia arbitral.
13. Veio, ainda, o Requerente pedir a condenação da Requerida a reembolso das quantias indevidamente arrecadadas, bem como o pagamento de juros indemnizatórios que se mostrarem devidos, nos termos do artigo 43.º da Lei Geral Tributária.
No caso em apreço, é manifesto que, na sequência da ilegalidade dos atos de liquidação, é procedente a pretensão do Requerente à restituição por força dos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para restabelecer a situação que existiria se a ilegalidade em causa não tivesse sido praticada.
No que concerne aos juros indemnizatórios, cabe ainda apreciar esta pretensão à luz do artigo 43º da Lei Geral Tributária.
Dispõe o nº 1 daquele artigo que “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.
Pode ler-se, no acórdão TJUE de 4 de dezembro de 2018,no processo C 378/17, em linha com a jurisprudência do mesmo Tribunal aí referida, que:
“38. Como diversas vezes afirmou o Tribunal de Justiça, a referida obrigação de não aplicar uma legislação nacional contrária ao direito da União incumbe não só aos órgãos jurisdicionais nacionais mas também a todos os órgãos do Estado, incluindo as autoridades administrativas, encarregados de aplicar, no âmbito das respetivas competências, o direito da União (v., neste sentido, Acórdãos de 22 de junho de 1989, Costanzo, 103/88, EU:C:1989:256, n.o 31; de 9 de setembro de 2003, CIF, C 198/01, EU:C:2003:430, n.o 49; de 12 de janeiro de 2010, Petersen, C 341/08, EU:C:2010:4, n.o 80; e de 14 de setembro de 2017, The Trustees of the BT Pension Scheme, C 628/15, EU:C:2017:687, n.o 54).
39. Daqui resulta que o princípio do primado do direito da União impõe não só aos órgãos jurisdicionais mas a todas as instâncias do Estado Membro que confiram plena eficácia às normas da União.”
Na decisão do processo The Trustees of the BT Pension Scheme, C 628/15, pode também ler-se que:
“há que recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, tanto as autoridades administrativas como os órgãos jurisdicionais nacionais encarregados de aplicar, no âmbito das respetivas competências, as disposições do direito da União têm a obrigação de garantir a plena eficácia dessas disposições e de não aplicar, se necessário pela sua própria autoridade, qualquer disposição nacional contrária, sem pedir nem aguardar pela eliminação prévia dessa disposição nacional por via legislativa ou por qualquer outro procedimento constitucional (v., neste sentido, relativamente às autoridades administrativas, acórdãos de 22 de junho de 1989, Costanzo, 103/88, EU:C:1989:256, n.o 31, e de 29 de abril de 1999, Ciola, C 224/97, EU:C:1999:212, n.os 26 e 30, e, relativamente aos órgãos jurisdicionais, acórdãos de 9 de março de 1978, Simmenthal, 106/77, EU:C:1978:49, n.o 24, e de 5 de julho de 2016, Ognyanov, C 614/14, EU:C:2016:514, n.o 34).
Na doutrina nacional, refere Fausto de Quadros:
“(…) temos a obrigação para a Administração Pública de recusar a aplicação de normas ou actos nacionais contrários ao Direito Comunitário, e de aplicar este mesmo contra Direito nacional de sentido contrário, conforme doutrina acolhida, de forma modelar no caso Factortame, já referido neste livro por diversas vezes. A Administração Pública vai ter, ainda mais do que o legislador, a necessidade de levar essa doutrina em conta no desempenho da sua missão de aplicar o Direito.
No mesmo sentido, vai Miguel Gorjão-Henriques, que escrevendo sobre o princípio do primado do direito comunitário nos diz:
“(…) indubitavelmente, a dimensão clássica do princípio é aquela que, com clareza, nos enuncia Rostane MEHDII, ao salientar que o juiz e a administração têm a obrigação de «excluir as regras internas adoptadas em violação da legalidade comunitária” .
Por outro lado, considerou-se no acórdão do STA de 8 de Março de 2017, proferido no proc. 01019/14, em sintonia com jurisprudência constante do mesmo Tribunal, o seguinte:
“Sobre o denominado “erro imputável aos serviços” tem a jurisprudência desta secção uniforme e reiteradamente afirmado que o respectivo conceito compreende não só o lapso, o erro material ou o erro de facto, como também o erro de direito, e que essa imputabilidade é independente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na liquidação afectada pelo erro (Vide, entre outros, os seguintes Acórdãos da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo: de 12.02.2001, recurso nº 26.233, de 11.05.2005, recurso 0319/05, de 26.04.2007, recurso 39/07, de 14.03.2012, recurso 01007/11 e de 18.11.2015,
recurso 1509/13, todos in www.dgsi.pt.).”
Assim, no caso sub judice, à luz da jurisprudência e doutrina referidas, não estando a Requerida exonerada do dever de aplicação do primado do direito europeu, não poderá deixar de proceder o pedido de condenação da Requerida quanto aos juros indemnizatórios, com fundamento em erro imputável aos serviços.
-IV- Decisão
Termos em que se julga procedente o pedido de pronuncia arbitral, declarando-se a ilegalidade e consequente anulação dos atos tributários de liquidação impugnados, devendo a Requerida dar cumprimento ao artigo 24º do RJAT, designadamente restituindo à Requerente o imposto pago, acrescido de juros indemnizatórios contados desde a data do pagamento até à do processamento da nota de crédito, em que são incluídos (artigo 61.º, n.º 5, do CPPT), condenando-se ainda a Requerida nas custas do presente processo, por ser a parte vencida e ter dado causa ao presente processo.
Valor da ação: 36.532,87 € (Trinta e seis mil, quinhentos e trinta e dois euros e oitenta e sete cêntimos) nos termos do disposto no artigo 306º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.
Custas pela Requerida nos termos do nº 4, do artigo 22º, do RJAT.
Notifique-se.
Lisboa, CAAD, 26.04.2021
O Árbitro,
Marcolino Pisão Pedreiro