DECISÃO ARBITRAL
I. RELATÓRIO
1. Pedido
A…, … LDA, doravante designada como “Demandante”, sociedade unipessoal por quotas, titular do número de identificação de pessoa coletiva (NIPC) …, com sede social na R… … … …, …, …-… …, apresentou, em 28-04-2020, ao abrigo do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT) e do artigo 99.º e do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT, pedido de pronúncia arbitral, com vista a:
1) A anulação parcial dos atos de liquidação de Imposto sobre Veículos (ISV) praticados pelo Diretor da Alfândega de Leixões:
2020/…, de 28.02.2020;
2020/…, de 21.01.2020;
2020/…, de 30.01.2020;
2020/…, de 25.02.2020;
2020/…, de 07.02.2020;
2020/…, de 18.02.2020;
2020/…, de 27.02.2020;
2020/…, de 19.02.2020;
2020/…, de 28.02.2020;
2020/…, de 28.02.2020;
2020/…, de 01.04.2020.
2) A condenação da Demandada à devolução do imposto indevidamente pago e ao pagamento dos correspetivos juros indemnizatórios.
É demandada a AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “Demandada”, “Autoridade Tributária” ou simplesmente “AT”).
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 28-04-2020.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular a signatária, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 07-07-2020, foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a mesma, nos termos conjugados das alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral singular foi constituído em 06-08-2020.
A Demandante baseia a sua pretensão nos seguintes factos e argumentos:
A liquidação de ISV impugnada resultou da aplicação do art. 11º do Código do Imposto sobre Veículos, o qual manda calcular a taxa de imposto, a aplicar aos veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias, aplicando uma redução percentual, variável em função da idade do veículo usado, à “componente cilindrada” da taxa normal (determinada nos termos do art. 7º do CISV), mas não aplicando a mesma ou qualquer redução à “componente ambiental” da mesma taxa;
Esta disposição do direito nacional é contrária ao art. 110º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, na medida em que tem como resultado onerar um automóvel usado oriundo de outro Estado-membro da União com um imposto superior ao que onera um automóvel igualmente usado e com a mesma idade que tenha, enquanto novo, pago ISV em Portugal.
2. Resposta
A Autoridade Tributária e Aduaneira, notificada para o efeito, apresentou resposta em que defendeu a improcedência do pedido, alegando em síntese:
Por exceção:
As DAV’s n.ºs 2020/…, 2020/… e 2020/… não estão completas;
Na página 2 da DAV n.º 2020/… não consta o campo/quadro T (LIQUIDAÇÃO) com identificação das casas que o incluem, designadamente das relativas aos dados atinentes à identificação da estância aduaneira, ao ato de liquidação (ano e número da liquidação), à data da liquidação, ao montante liquidado, à data do termo do prazo de pagamento e à data da cobrança;
Quanto às DAV n.ºs 2020/… e 2020/…, o campo/quadro T não inclui informação relativa ao estado da liquidação, não constando do mesmo a cobrança efetiva do montante de imposto liquidado, não contendo, consequentemente, igualmente, a identificação da entidade cobradora e a data de cobrança, elementos de preenchimento obrigatório que permitem concluir que, de facto, o imposto foi pago;
De acordo com a informação disponibilizada pela alfândega de jurisdição/estância aduaneira competente para a liquidação, relativamente aos veículos referenciados no Doc.1 como 7, 10 e 11, não existem DAV’s ou matrículas nacionais para as datas indicadas (Doc. 1), o que é, aliás, corroborado pela casa 90 do campo/quadro N das supra identificadas DAV das quais não consta a indicação e, consequentemente, a atribuição de qualquer matrícula;
Não se suscitando, pois, quaisquer dúvidas que estas DAV’s não deram origem a liquidação e pagamento de imposto, não existindo qualquer documento que comprove o invocado pela Requerente;
Assim, não sendo a Requerente sujeito da relação jurídico-tributária em causa, não tem legitimidade ativa para deduzir, nesta parte, qualquer pedido à Requerida;
Efetivamente, dispondo o n.º 1 e n.º 4 do artigo 9.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) que: “Têm legitimidade no procedimento tributário, além da administração tributária, os contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido” (n.º 1) e que “têm legitimidade no processo judicial tributário, além das entidades referidas nos números anteriores, o Ministério Público e o representante da Fazenda Pública” (n.º 4), sempre se terá de concluir que a Requerente não tem legitimidade no presente processo de impugnação de liquidação nos termos sobreditos;
Por impugnação:
O artigo 11º do CISV foi objeto de alteração pela Lei nº 42/2016, de 28.12, através da qual se procedeu ao alargamento das percentagens de redução da tabela D, tendo sido criado o escalão “até um ano”, a que corresponde uma percentagem de redução de 10%, sendo ainda criados novos escalões a partir dos cinco anos de uso, com percentagens de redução que atingem os 80% para veículos com mais de 10 anos, permitindo estabelecer uma maior correspondência entre a desvalorização comercial média sofrida pelos veículos usados no mercado nacional e o seu nível de tributação, em sede de ISV, que na redação anterior se cifrava no máximo de 52% para veículos com mais de 5 anos de uso;
O art. 1º do CIS consagra o princípio da equivalência, segundo o qual o imposto deve onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam nos domínios do ambiente, infraestruturas viárias e sinistralidade rodoviária;
E não obstante o artigo 110.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE), afirmar que: “Nenhum Estado-Membro fará incidir, direta ou indiretamente, sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidam, direta ou indiretamente, sobre produtos nacionais similares”, o art. 191º consagra a obrigação de a União ter uma política que prossiga objetivos vários no domínio do ambiente;
O art. 66º da Constituição da República Portuguesa por sua vez, consagra igualmente o direito dos cidadãos ao ambiente e qualidade de vida, incumbindo o Estado de realizar esse direito;
Não obstante a alteração ao artigo 11.º do CISV tenha surgido após o acórdão proferido no Processo n.º C- 200/15 do TJUE, este não se pronuncia, em concreto, sobre a matéria em causa nos presentes autos, designadamente quanto à questão da percentagem de redução de ISV aplicável a veículo usado incidir apenas sobre o elemento específico de tributação (Cilindrada), e não sobre a componente ambiental do ISV, limitando-se aquele a analisar a questão da determinação do valor tributável dos veículos usados provenientes de outro Estado-Membro, introduzidos no território nacional, no sentido de afirmar que um sistema relativo ao cálculo da desvalorização dos veículos que não tem em conta a sua desvalorização antes destes atingirem um ano, nem a desvalorização que seja superior a 52% no caso de veículos com mais de cinco anos, não cumpre as obrigações que lhe incumbem por forca do artigo 110.º do TFUE;
Sendo que, tal opção legislativa, pretendendo imprimir coerência entre a tributação dos veículos novos e veículos usados, não contraria o direito comunitário nem aquela decisão do TJUE, antes visa respeitar as orientações comunitárias em matérias da redução das emissões de CO2, tendo em vista o cumprimento das responsabilidades ambientais assumidas no âmbito do Protocolo de Quioto.
A alteração ao artigo 11.º do CISV nos moldes acima mencionados encontra-se, assim, também, em consonância com o disposto no artigo 1.º do mesmo código, que consagra o “Princípio da Equivalência”, nos termos do qual o imposto sobre veículo obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam nos domínios do ambiente, infraestruturas viárias e sinistralidade rodoviária, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária.
A matéria em discussão extravasa, pois, a questão da legalidade da liquidação, que se repercute na esfera jurídica da Requerente, na medida em que o que está em causa não se cinge à mera liquidação de um tributo e anulação desse ato, mas a questões mais complexas, que têm na sua génese preocupações de ordem ambiental.
Como se referiu, as vertentes da justiça fiscal e a da proteção do meio ambiente, constituem dois objetivos da prossecução de política fiscal a que se encontra adstrito o Estado Português, que se atingem gerindo o imposto, enquanto instrumento de política fiscal, de forma inversa.
O modelo de tributação do ISV resultante da aprovação do CISV pela Lei 22-A/2007, de 29 de Junho, foi norteado por preocupações ambientais com respeito pelas orientações emanadas pelas instâncias comunitárias e pelos compromissos assumidos no âmbito do Protocolo de Quioto e, mais tarde, pelo Acordo de Paris.
Por isso, não pode deixar de se referir o estabelecido no artigo 191.º do TFUE, o qual tendo surgido depois do artigo 90.º do TCE (anterior 110.º do TFUE), exige que se proceda a uma interpretação atualista, no que concerne ao enquadramento da questão sub judice, que deve atender aos elementos sistemático e teleológico, porquanto naquele dispositivo, afirma-se, expressamente, no n.º 1, que a política da União, no domínio do ambiente, contribuirá́ para a prossecução, entre outros, da preservação, da proteção e a melhoria da qualidade do ambiente, não podendo o artigo 110.º do TFUE ser interpretado nos termos defendidos pela Requerente.
Devendo, pois, a interpretação do artigo 110.º do TFUE ser efetuada à luz do disposto no artigo 191.º do mesmo tratado, sob pena de conflitualidade e desarmonia entre as duas normas, a não ser que o TJUE, em sede de interpretação, venha defender a existência de tal violação e que a norma do artigo 110.º do TFUE tem valor superior ao previsto no artigo 191.º quanto à proteção e a melhoria da qualidade ambiental.
Face ao previsto no n.º 1, do artigo 11.º do CISV, constata-se que o legislador teve em consideração que a componente ambiental representa o custo do impacto ambiental, em conformidade com o disposto no n.º 3 do artigo 11.º do CISV, também suportada pelos veículos novos, devendo a mesma ser entendida como um montante que os sujeitos passivos pagam ao Estado, destinado a compensar os efeitos nefastos que o veículo automóvel causa ao ambiente, sendo que esse montante é progressivo em função das emissões de dióxido de carbono.
Isto porque, quanto maior for o nível de emissões de dióxido de carbono do veículo, maior será o montante de imposto relativo à componente ambiental, no estrito cumprimento do princípio do poluidor pagador, como já se aludiu, estando esta filosofia do imposto em conformidade com o referido princípio da equivalência, consagrado no artigo 1.º do Código do Imposto Sobre Veículos;
Pelo que, em nome da unidade e da coerência do modelo de tributação automóvel vigente em Portugal, a não aplicação da totalidade da componente ambiental aos veículos usados violaria os princípios suprarreferidos, tornando-se fonte de graves injustiças, já que beneficiaria claramente os veículos usados em detrimento dos novos, sem que, para tal, se encontrem razões válidas.
Assim, da interpretação do artigo 110.º do TFUE, em conjugação com a que resulta do artigo 191.º do mesmo tratado, conclui-se que o modelo de tributação automóvel português, ao fazer incidir sobre os veículos ligeiros de passageiros, novos e usados, a componente ambiental, não pretende restringir a entrada de veículos em território nacional para proteger a produção nacional, mas, tão só, como se referiu, direcionar as escolhas dos consumidores para a aquisição de veículos com menores emissões de dióxido de carbono, tendo por fim último a proteção do ambiente, no estrito cumprimento dos princípios consagrados no artigo 191.º do TFUE;
A aplicação do disposto no artigo 11.º do CISV não obsta à admissão de veículos usados em território nacional, nem tampouco visa impedir a realização de negócios jurídicos de compra e venda de veículos automóveis pois são processadas, diariamente, inúmeras declarações aduaneiras de veículos, de regularização fiscal de veículos em território nacional, provenientes de outros Estados-membros;
Efetivamente, de acordo com os dados atinentes ao número de matriculas atribuídas no período de 2010 a 2018, a veículos da categoria Ligeiros, novos e importados usados, constata-se que, de acordo com os cálculo apresentados para 2018, a componente de usados ligeiros de passageiros é de 25% e o seu crescimento (relativo a 2017) foi de 14%, contra 2% apenas para os novos, constatando-se assim que não existe qualquer obstáculo ao funcionamento do mercado interno, na medida em que, entre 2010 e 2018, o número de veículos usados matriculados em Portugal aumentou 219%, tendo, especificamente, entre 2017 e 2018, tido um crescimento de 13%, muito acima da taxa de crescimento da venda de veículos novos, que é de, apenas, 3%;
A interpretação da Demandante, ao defender a aplicação da mesma percentagem de redução aplicável à componente cilindrada, pugna igualmente pela aplicação de um beneficio fiscal que não se encontra previsto na lei, o que, desde logo, é inconstitucional, posto que, face, ao n.º 2 do artigo 103.º da CRP, os impostos são criados por lei, determinando esta igualmente a incidência, taxa, benefícios fiscais e garantias dos contribuintes, verificando-se, assim, uma violação desta norma constitucional, bem como uma desaplicação do artigo 66.º da CRP;
Tendo o artigo 11.º do CISV sido alterado de acordo com o disposto na CRP em matéria ambiental, não pode ser afastado, ainda que com fundamento na aplicação, no direito interno, por via do artigo 8.º, n.º 4, da CRP, do artigo 110.º do TFUE;
Em última análise, procurou-se, como se viu, aplicar o princípio da equivalência consagrado no artigo 1.º do CISV, bem como o princípio do poluidor pagador, já que, se o regime nacional atribuísse um desconto comercial à componente ambiental do ISV para veículos usados adquiridos noutro Estado-Membro da União Europeia, estaria a subverter por completo aquele princípio e a atribuir um alívio fiscal à admissão e importação de veículos usados mais poluentes;
A interpretação da Demandante ao defender a aplicação da mesma percentagem de redução aplicável à componente cilindrada, pugna igualmente pela aplicação de um benefício fiscal que não se encontra previsto na lei, o que, desde logo, é inconstitucional, posto que, face, ao n.º 2 do artigo 103.º da CRP, os impostos são criados por lei, determinando esta igualmente a incidência, taxa, benefícios fiscais e garantias dos contribuintes, verificando-se, assim, uma violação desta norma constitucional, bem como uma desaplicação do artigo 66.º da CRP.
Configurando a aplicação da interpretação, pugnada pela Requerente, uma desaplicação do direito internacional - do artigo 191.º do TFUE, do Protocolo de Quioto e do Acordo de Paris;
Tendo os atos impugnados sido efetuados de acordo com o direito nacional e comunitário, não enfermam de qualquer vicio, devendo, consequentemente, as liquidações, na parte que vem impugnada, efetuada pela identificada Alfândega, manter-se na ordem jurídica.
Mas ainda que assim não fosse:
A interpretação defendida pela Demandante do artigo 11.º do CISV resulta numa violação do princípio da legalidade consagrado no artigo 266.º (Princípios fundamentais) da Constituição da República Portuguesa (CRP), o qual, além de estabelecer, no n.º 1, que a administração pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos, impõe aos órgãos e agentes administrativos a subordinação à Constituição e à lei, devendo atuar no exercício das suas funções com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da Justiça, da imparcialidade e da boa-fé (n.º 2).
A interpretação da Requerente ofende claramente o princípio da equivalência previsto no artigo 1.º do CISV, sobre o qual assenta o atual modelo de tributação automóvel, e o artigo 9.º, alínea e) e artigo 66.º, n.º 1 e n.º 2, ambos da CRP, ocorrendo uma violação do princípio constitucional do Estado de direito ambiental.
Está em causa um direito constitucional fundamental, o direito ao Ambiente e Qualidade de Vida consagrado no n.º 1 do artigo 66.º da CRP, isto é, o direito de todos a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender, e do qual resulta (n.º 2), a obrigação, para o Estado, de assegurar o direito ao ambiente, a obrigação de prevenir e controlar a poluição e seus efeitos, promover a integração de objetivos ambientais nas várias políticas de âmbito setorial, bem como assegurar que a política fiscal compatibilize desenvolvimento com proteção do ambiente e qualidade de vida (artigo 66.º, n.º 2, alíneas a), f) e h), da CRP).
Acrescendo que a interpretação defendida pela Requerente, posto que defende a aplicação de uma fórmula de cálculo, com atribuição de uma redução não prevista na tabela D do artigo 11.º, acrescenta uma redução à componente ambiental que não está consagrada na letra lei, que não foi querida pelo legislador, consubstancia assim, também nesta parte, uma violação dos princípios constitucionais aludidos, da legalidade e da justiça tributária, da igualdade e da certeza e segurança jurídica.
Ainda que se considere que o sistema de tributação em vigor não é perfeito, aplicar a mesma percentagem de redução resulta claramente numa subversão da tributação da componente ambiental, resultando na atribuição de um benefício que incentiva os consumidores a utilizarem veículos mais poluentes.
Ora, ao atribuir, em resultado de tal aplicação, um desagravamento, que, no caso, redunda na atribuição de um verdadeiro benefício fiscal, tal interpretação não pode deixar de se considerar inconstitucional face ao disposto no n.º 2 do artigo 103.º da CRP.
Por outro lado, ao defender a ilegalidade da liquidação por entender que existe uma desconformidade do artigo 11.º do CISV com o artigo 110.º do TFUE, a Demandante viola ainda, por via da desaplicação do artigo 11.º do CISV na redacção atualmente em vigor, o princípio do acesso ao direito à tutela jurisdicional efetiva.
De facto, tendo a Demandante recorrido à arbitragem tributária para impugnar as liquidações, a administração encontra-se coartada no seu direito de reação face aos limitados meios de recurso perante a prolação de uma decisão arbitral desfavorável, em geral e, concretamente, quanto ao recurso de decisão que desaplica norma nacional com fundamento em violação de princípio de direito da União Europeia;
Pois o RJAT prevê tão somente três tipos de reações recursórias, sendo eles o recurso para o Tribunal Constitucional, o recurso para uniformização de jurisprudência e a impugnação arbitral, com base nas nulidades elencadas no artigo 28.º, n.º 1 do RJAT, não existindo o clássico recurso de direito e de facto, em princípio a interpor para o Tribunal Central Administrativo competente.
3. Pronúncia da Demandante em relação à exceção suscitada pela Demandada
Em 24-09-2020, a Demandante dirigiu requerimento ao Tribunal, em que se pronunciou sobre a exceção de ilegitimidade suscitada pela Demandada.
Nesse requerimento, a Demandante alegou:
Por lapso, havia juntado à sua impugnação as DAV’s indicadas pela Requerida (Demandada), as quais se encontravam em validação;
O ISV em questão foi liquidado e pago pela requerente em 14-04-2020, 09-04-2020 e 15-04-2020;
A alegada ilegitimidade ficou sanada a partir das liquidações referidas.
4. Tramitação subsequente
Por despacho do Tribunal Arbitral de 27-01-2021, foi decidido dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT por desnecessária, atendendo a que:
“I) A questão principal suscitada no pedido de pronúncia é uma questão meramente de interpretação do direito aplicável;
II) Não existe matéria de facto sobre a qual se justifique a produção de qualquer prova adicional para além da prova documental incorporada no processo;
III) Foi suscitada, pela Demandada, na sua resposta, uma questão dilatória sobre a qual a Demandante já se pronunciou;
IV) As posições das partes acerca das questões principais já se encontram suficientemente definidas nos articulados;
V) Constitui imperativo legal a não realização de atos inúteis no processo”.
Em 12-04-2021, foi proferido despacho arbitral em que se convidou a Demandante a clarificar ou corrigir o seu pedido, nos seguintes termos:
“No seu pedido, a Demandante pede ao Tribunal Arbitral que ordene ‘a retificação da liquidação do ISV, de forma a aplicar-se a redução prevista no artigo 11º, à componente ambiental.’ Ora, uma vez que não cabe na competência do tribunal ordenar a retificação da liquidação, mas apenas declarar a ilegalidade e anular, total ou parcialmente, os atos de liquidação, convida-se a Demandante, ao abrigo do artigo 16º, al. c) do RJAT, a, no prazo de cinco dias, corrigir ou clarificar o pedido.”
Em requerimento remetido ao tribunal no dia 14-04-2021, a Demandante veio retificar o seu pedido nos seguintes termos:
“O pedido formulado no seu requerimento de impugnação deve ser corrigido, passando a ter a seguinte redação, em substituição da inicialmente formulada: ‘Nestes termos deve a presente impugnação ser julgada provada e procedente, ordenando-se a anulação parcial da liquidação do ISV, de forma a aplicar-se a redução prevista no art. 11º do CISV à componente ambiental’”.
II. SANEAMENTO
O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º, e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT e é materialmente competente.
As Partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
O processo não enferma de nulidades.
Cumpre apreciar a exceção suscitada pela Demandada.
Na sua petição, a Demandante impugna onze atos de liquidação de ISV.
Esses onze atos de liquidação de ISV encontram-se documentados através das Declarações Aduaneiras de Veículo (DAV) nºs: 2020/…, de 28.02.2020; 2020/…, de 21.01.2020; 2020/…, de 30.01.2020; 2020/…, de 25.02.2020; 2020/…, de 07.02.2020; 2020/…, de 18.02.2020; 2020/…, de 27.02.2020; 2020/…, de 19.02.2020; 2020/…, de 28.02.2020; 2020/…, de 28.02.2020; 2020/…, de 01.04.2020.
A Demandante junta todas as DAV’s indicadas.
A Demandada alega que faltam elementos em algumas dessas DAV’s:
Na DAV n.º 2020/…: não consta o campo/quadro T (LIQUIDAÇÃO) com identificação das casas que o incluem, designadamente das relativas aos dados atinentes à identificação da estância aduaneira, ao ato de liquidação (ano e número da liquidação), à data da liquidação, ao montante liquidado, à data do termo do prazo de pagamento e à data da cobrança;
Nas DAV n.ºs 2020/… e 2020/…: o campo/quadro T não inclui informação relativa ao estado da liquidação, não constando do mesmo a cobrança efetiva do montante de imposto liquidado, não contendo, consequentemente, igualmente, a identificação da entidade cobradora e a data de cobrança, elementos de preenchimento obrigatório que permitem concluir que, de facto, o imposto foi pago;
Diz ainda que “De acordo com a informação disponibilizada pela alfândega de jurisdição/estância aduaneira competente para a liquidação, relativamente aos veículos referenciados no Doc.1 como 7, 10 e 11, não existem DAV’s ou matrículas nacionais para as datas indicadas (Doc. 1), o que é, aliás, corroborado pela casa 90 do campo/quadro N das supra identificadas DAV das quais não consta a indicação e, consequentemente, a atribuição de qualquer matrícula.
Destas alegações, a Demandada conclui que as DAV’s não deram origem a liquidação e pagamento de imposto.
E que assim sendo, a Requerente não é sujeito da relação jurídico-tributária em causa, não tendo legitimidade ativa para deduzir, nesta parte, qualquer pedido à Requerida (Demandada).
Analisando as DAV’s em causa, verifica-se que as mesmas não contêm, efetivamente, nem a data da cobrança do imposto, nem a matrícula portuguesa dos veículos.
Contudo, as DAV’s contêm:
A identificação completa do veículo a introduzir no território nacional;
A identificação do adquirente do veículo, a qual coincide com a identidade da Demandante e que é o sujeito passivo do imposto;
O cálculo do ISV a pagar;
A indicação do prazo e modo de pagamento.
Desta forma, estão reunidos os elementos para se poder afirmar estar na presença de uma liquidação de imposto.
O que não existia, de acordo com as DAVs em causa, era pagamento do imposto, o que não significa que não haja liquidação, nem matrícula nacional, o que igualmente não é impeditivo de que haja liquidação.
Os documentos juntos pela Demandante em 24-09-2020, em nossa opinião, não são os que fazem com que a liquidação passe a existir, mas provam que a liquidação efetivamente existia, tanto assim que o imposto liquidado foi pago e ocorreu a atribuição de matrícula.
Considerando, com julgamos correto, que as onze liquidações existiam no momento da apresentação do pedido, não procederá a alegação da Demandada de que “as DAV’s não deram origem a liquidação e pagamento de imposto.”
Tal basta para invalidar a conclusão subsequente, da Demandada de que “a Requerente não é sujeito da relação jurídico-tributária em causa, não tendo legitimidade ativa para deduzir, nesta parte, qualquer pedido à Requerida”, sem que se nos afigure necessário discutir se a consequência da inexistência de liquidação (apontada pela Demandada no caso das três DAV’s questionadas) teria como consequência a ilegitimidade da Demandante.
III. QUESTÕES A APRECIAR
Constituem questões a apreciar no presente processo arbitral:
1ª questão: Saber se o art. 11º do CISV, ao prever, na determinação do imposto aplicável a automóveis usados originários de outros Estados-Membros da União, uma redução da taxa normal em função da idade, que é limitada à “componente cilindrada, excluindo a componente ambiental”, viola prima facie o art. 110º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia;
2ª questão: Saber se, existindo uma antinomia entre o art. 11º do CISV, por prever este, na determinação do imposto aplicável a automóveis usados originários de outros Estados-Membros da União, uma redução da taxa normal em função da idade, limitada à “componente cilindrada” e excluindo a “componente ambiental”, e o art. 110º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, tal antinomia se pode considerar justificada por: i) imperativos de política ambiental com assento constitucional ; e ii) pelo imperativo de cumprimento de obrigações assumidas pelo Estado Português no âmbito de Tratados Internacionais relativos a matérias ambientais;
3ª questão: Saber se a pretensão formulada pela Demandante implica o pedido de reconhecimento de um benefício fiscal, em sede de ISV, para os automóveis usados oriundos de outros Estados-Membros, em violação do princípio da legalidade dos impostos contido no art. 103º, nº 2 da CRP;
4ª questão: Saber se uma interpretação do direito interno (art. 11º CISV) e do direito europeu (art. 110º do TFUE) que conclua pela violação do segundo pelo primeiro e pela necessidade da sua desaplicação, resulta numa violação do princípio da legalidade consagrado no artigo 266.º (Princípios fundamentais) da Constituição da República Portuguesa;
5ª questão: Saber se, ao decidir pela ilegalidade da liquidação por entender que existe uma desconformidade do artigo 11.º do CISV com o artigo 110.º do TFUE, o Tribunal violaria o princípio do acesso ao direito à tutela jurisdicional efetiva;
6ª questão: Sabe se o Tribunal está, no caso concreto, obrigado a efetuar o reenvio prejudicial para o TJUE, ao abrigo do art. 267º do TFUE.
IV. FUNDAMENTAÇÃO
1. Matéria de facto
Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:
A) A Demandante adquiriu, em 01-12-2019, em Espanha, o veículo automóvel usado do tipo “ligeiro de passeiros” em estado usado, da marca …, a que foi atribuída em Portugal a matrícula …;
B) Para efeito de introdução do supra referido veículo no território nacional, foi emitida pela Alfândega de Leixões a Declaração Aduaneira de Veículos nº 2020/…, na qual foi liquidado ISV no valor de 2.037,44 €;
C) A Demandante adquiriu, em 10-12-2019, na Bélgica, o veículo automóvel usado do tipo “ligeiro de passeiros” em estado usado, da marca …, a que foi atribuída em Portugal a matrícula …;
D) Para efeito de introdução do supra referido veículo no território nacional, foi emitida pela Alfândega de Leixões a Declaração Aduaneira de Veículos nº 2020/…, na qual foi liquidado ISV no valor de 1.876,45 €;
E) A Demandante adquiriu, em 02-12-2019, em Itália, o veículo automóvel usado do tipo “ligeiro de passeiros” em estado usado, da marca …, a que foi atribuída em Portugal a matrícula …;
F) Para efeito de introdução do supra referido veículo no território nacional, foi emitida pela Alfândega de Leixões a Declaração Aduaneira de Veículos nº 2020/…, na qual foi liquidado ISV no valor de 1.633,65 €;
G) A Demandante adquiriu, em 13-12-2019, em França, o veículo automóvel usado do tipo “ligeiro de passeiros” em estado usado, da marca …, a que foi atribuída em Portugal a matrícula …;
H) Para efeito de introdução do supra referido veículo no território nacional, foi emitida pela Alfândega de Leixões a Declaração Aduaneira de Veículos nº 2020/…, na qual foi liquidado ISV no valor de 1.443,86 €;
I) A Demandante adquiriu, em 24-01-2020, em Bélgica, o veículo automóvel usado do tipo “ligeiro de passeiros” em estado usado, da marca …, a que foi atribuída em Portugal a matrícula …;
J) Para efeito de introdução do supra referido veículo no território nacional, foi emitida pela Alfândega de Leixões a Declaração Aduaneira de Veículos nº 2020/…, na qual foi liquidado ISV no valor de 1.195,45 €;
K) A Demandante adquiriu, em 30-01-2020, em Bélgica, o veículo automóvel usado do tipo “ligeiro de passeiros” em estado usado, da marca …, a que foi atribuída em Portugal a matrícula …;
L) Para efeito de introdução do supra referido veículo no território nacional, foi emitida pela Alfândega de Leixões a Declaração Aduaneira de Veículos nº 2020/…, na qual foi liquidado ISV no valor de 1.948,24 €;
M) A Demandante adquiriu, em 30-01-2020, em Bélgica, o veículo automóvel usado do tipo “ligeiro de passeiros” em estado usado, da marca …, a que foi atribuída em Portugal a matrícula …;
N) Para efeito de introdução do supra referido veículo no território nacional, foi emitida pela Alfândega de Leixões a Declaração Aduaneira de Veículos nº 2020/…, na qual foi liquidado ISV no valor de 4.222,01 €;
O) A Demandante adquiriu, em 11-12-2020, em Espanha, o veículo automóvel usado do tipo “ligeiro de passeiros” em estado usado, da marca …, a que foi atribuída em Portugal a matrícula …;
P) Para efeito de introdução do supra referido veículo no território nacional, foi emitida pela Alfândega de Leixões a Declaração Aduaneira de Veículos nº 2020/…, na qual foi liquidado ISV no valor de 2.322,80 €;
Q) A Demandante adquiriu, em 05-02-2020, na Alemanha, o veículo automóvel usado do tipo “ligeiro de passeiros” em estado usado, da marca …, a que foi atribuída em Portugal a matrícula …;
R) Para efeito de introdução do supra referido veículo no território nacional, foi emitida pela Alfândega de Leixões a Declaração Aduaneira de Veículos nº 2020/…, na qual foi liquidado ISV no valor de 1.666,89 €;
S) A Demandante adquiriu, em 10-12-2019, na Alemanha, o veículo automóvel usado do tipo “ligeiro de passeiros” em estado usado, da marca …, a que foi atribuída em Portugal a matrícula …;
T) Para efeito de introdução do supra referido veículo no território nacional, foi emitida pela Alfândega de Leixões a Declaração Aduaneira de Veículos nº 2020/…, na qual foi liquidado ISV no valor de 4.277,92 €;
U) A Demandante adquiriu, em 12-12-2019, em Itália, o veículo automóvel usado do tipo “ligeiro de passeiros” em estado usado, da marca …, a que foi atribuída em Portugal a matrícula …;
V) Para efeito de introdução do supra referido veículo no território nacional, foi emitida pela Alfândega de Leixões a Declaração Aduaneira de Veículos nº 2020/…, na qual foi liquidado ISV no valor de 1.643,28 €;
W) Nas liquidações em causa, e no que diz respeito à determinação das taxas de imposto, a Autoridade Tributária e Aduaneira (Demandada) não aplicou à “componente ambiental” qualquer redução em função da idade do veículo.
X) Procedendo dessa forma, a “componente ambiental” da taxa foi calculada em 7.396,35 €.
Y) A aplicação, à “componente ambiental” da taxa, das percentagens de redução em função da idade dos veículos constantes da Tabela D do art. 11º, teria determinado para essa componente o valor de 4.720,62 €, traduzindo-se numa redução de 2.675,73 €.
Z) A Demandante pagou todo o imposto liquidado nas onze DAV’s indicadas.
Não existem factos alegados e não provados com relevância para a decisão do mérito da causa.
A fixação da matéria de facto baseia-se nos documentos juntos pela Demandante e no processo administrativo junto pela Demandada.
2. Discussão de direito
a. Ordem
A questão suscitada pela Demandante no presente processo arbitral em matéria tributária é a da ilegalidade de onze liquidações de Imposto sobre Veículos (ISV), efetuadas ao abrigo do art. 11º do respetivo código (CISV) por alegada violação, por parte deste preceito, do art. 110º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), no qual se consagra a proibição de os Estados-membros fazerem incidir sobre os produtos dos outros Estados-membros, imposições internas superiores às que incidem sobre produtos nacionais.
Deste modo, a apreciação da questão implica uma interpretação de uma norma do direito da União Europeia - o art. 110º do TFUE – e um exame da conformidade do direito nacional – art. 11º do CISV – com essa norma do direito europeu.
E assim sendo, o Tribunal Arbitral deve necessariamente considerar a necessidade de proceder a um reenvio prejudicial da questão decidenda para o Tribunal de Justiça da União Europeia, ao abrigo do art. 267º do TFUE.
Com efeito, nos termos do art. 267º al. a) do TFUE, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) é competente para decidir, a título prejudicial, sobre a “interpretação dos Tratados”.
De acordo com o mesmo preceito, “sempre que uma questão desta natureza seja suscitada perante um qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal que sobre ela se pronuncie.
E ainda segundo o mesmo preceito, “sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal.”
Temos assim que a questão da necessidade de um reenvio prejudicial para o TJUE está dependente: i) em primeiro lugar, de um juízo sobre se se está perante um problema de “interpretação dos Tratados” que justifique um reenvio prejudicial para o TJUE; e ii) de um juízo interpretativo sobre a obrigação que impende sobre o Tribunal Arbitral de proceder ao reenvio.
Existe neste momento uma já vasta jurisprudência dos tribunais arbitrais que vai unanimemente no sentido de considerar que, efetivamente, o art. 11º do CISV viola o art. 110º do TFUE: Processo nº 572/2018-T; Processo nº 346/2019-T; Processo nº 348/2019-T; Processo nº 350/2019-T; Processo nº 459/2019-T; Processo nº 466/2019-T; Processo nº 498/2019-T; Processo nº 660/2019-T; Processo nº 776/2019-T; Processo nº 833/2019-T; Processo nº 872/2019-T; Processo n º 13/2020-T; Processo nº 34/2020-T; Processo nº 52/2020-T; Processo nº 75/2020-T; Processo nº 98/2020-T; Processo nº 113/2020-T; Processo nº 117/2020-T; Processo nº 117/2020-T; 158/2020-T; Processo nº 201/2020-T; Processo nº 209/2020-T; Processo nº 246/2020-T; Processo nº 293/2020-T; Processo nº 309/2020-T; Processo nº 329/2020-T; Processo nº 347/2020-T.
Por outro lado, referindo-nos agora já à questão da obrigatoriedade ou oportunidade de o Tribunal Arbitral proceder ao reenvio prejudicial da questão ao TJUE, o mesmo conjunto de decisões considera não existir uma “questão de interpretação dos Tratados” que justifique ou exija um tal reenvio, porquanto o sentido do art. 110º do TFUE, aplicado ao Impostos sobre Veículos, estaria perfeitamente clarificado, através quer da jurisprudência do TJUE quer da jurisprudência nacional.
Em face desta jurisprudência arbitral, e embora fosse possível outra abordagem, considera-se dever ser analisada em primeiro lugar a questão substancial da compatibilidade do art. 11º CISV com o art. 110º TFUE, no sentido de averiguar em que medida existe um problema de interpretação que justifique ou exija o reenvio prejudicial.
b. Questão da existência de uma violação do art. 110º do TFUE através do art. 11º do CISV
O artigo 110.° TFUE proíbe aos Estados-Membros que façam incidir sobre os produtos de outros Estados‑Membros imposições internas superiores às que incidam sobre os produtos nacionais similares, ou imposições internas de modo a proteger indiretamente outras produções (acórdãos De Danske Bilimportører (C‑383/01, EU:C:2003:352, n.° 36) e Brzeziński (C‑313/05, EU:C:2007:33, n.° 27).
O artigo 110.° TFUE tem por objetivo assegurar a livre circulação das mercadorias entre os Estados‑Membros, em condições normais de concorrência, através da eliminação de qualquer forma de proteção que possa resultar da aplicação de imposições internas discriminatórias relativamente a produtos originários de outros Estados‑Membros (acórdãos Stadtgemeinde Frohnleiten e Gemeindebetriebe Frohnleiten (C‑221/06, EU:C:2007:657, n.° 30 e jurisprudência referida) e Tatu (C‑402/09, EU:C:2011:219, n.° 34). Assim, este dispositivo legal deve garantir a perfeita neutralidade das imposições internas no que se refere à concorrência entre produtos nacionais e produtos importados (acórdãos De Danske Bilimportører (C‑383/01, EU:C:2003:352, n.° 37) e Tatu (C‑402/09, EU:C:2011:219, n.° 35).
Segundo jurisprudência constante, um sistema de tributação de um Estado‑Membro só pode ser considerado compatível com o artigo 110.° TFUE se se verificar que está organizado de modo a excluir sempre a possibilidade de os produtos importados serem tributados mais fortemente que os produtos nacionais e, portanto, que não comporta, em caso algum, efeitos discriminatórios (acórdãos Brzeziński (C‑313/05, EU:C:2007:33, n.° 40); Stadtgemeinde Frohnleiten e Gemeindebetriebe Frohnleiten (C‑221/06, EU:C:2007:657, n.° 50) e Oil Trading Poland (C‑349/13, EU:C:2015:84, n.° 46 e jurisprudência referida).
De acordo com o art. 5º do Código, o Imposto sobre Veículos é um imposto que se aplica sobre o fabrico, montagem, admissão ou importação dos veículos tributáveis em território nacional, que estejam obrigados à matrícula em Portugal. Ou seja, trata-se de um imposto que se aplica quer sobre veículos fabricados/montados em Portugal, quer sobre veículos originários de outros países, seja por importação (de países terceiros) seja por “admissão em território nacional” (de países membros da EU).
Importante também é ter em conta que se trata de um imposto de obrigação única, que se aplica uma única vez, no momento da introdução no consumo no território nacional.
As taxas do imposto, no caso de automóveis em geral, são determinadas, nos termos do art. 7º, pela soma de duas parcelas: um montante de imposto calculado em função da cilindrada (“componente cilindrada”) e um montante de imposto calculado em função do nível de emissão de dióxido de carbono (“componente ambiental”).
O art. 11.º do CISV aplica-se especificamente à admissão de veículos usados (portadores de matrículas definitivas) provenientes de outros Estados-Membros da EU.
De acordo com este preceito, a taxa de imposto a aplicar a estes veículos também é dada pela soma de duas parcelas, a “componente cilindrada” e a “componente ambiental”.
Quanto à “componente cilindrada”, ela corresponde à taxa que o art. 7º manda aplicar à introdução no consumo de um veículo não usado, mas minorada por um coeficiente que varia com a idade do veículo. Esta minoração procura fazer corresponder uma redução do montante do imposto à redução do valor comercial que o veículo sofre em função da idade.
Mas já quanto à “componente ambiental”, a taxa de imposto aplicável é igual à de um veículo novo introduzido no consumo em Portugal.
Por outro lado, no caso de um veículo que foi sujeito a ISV em estado novo, o montante do ISV (“componente cilindrada” mais “componente ambiental”) pago uma única vez no momento da introdução no consumo, vai sendo amortizado ao longo da vida útil do veículo. Neste processo, as duas componentes – “cilindrada” e “ambiental” – são amortizadas exatamente na mesma proporção.
Quando o veículo (que foi sujeito a ISV em estado novo) é vendido em estado usado, o seu valor de venda irá refletir não apenas a desvalorização/perda de utilidade do veículo, mas também a amortização do ISV pago aquando da introdução no consumo. As amortizações das duas componentes da taxa concorrerão proporcionalmente para reduzir o valor comercial do veículo.
No caso de um automóvel admitido no território português provindo de um outro Estado-Membro, por força das regras do art. 11º, a “componente ambiental” do imposto é igual à que incidiria sobre um veículo novo.
Desta forma, o montante total de imposto incorporado no custo de um veículo usado admitido no território português provindo de um outro Estado-Membro é superior ao montante total de imposto incorporado no custo de um veículo usado que foi sujeito a ISV em Portugal em estado novo.
Não há qualquer dúvida de que o art. 11º tem como efeito fazer incidir sobre os produtos de outros Estados‑Membros uma imposição interna superior à que incide sobre os produtos nacionais similares. E assim, há que concluir que, prima facie, existe uma antinomia entre o art. 11º do CISV e ao art. 110º do TFUE.
Sustenta a Demandada, contudo, que esta antinomia, a verificar-se, não constituiria uma violação do direito da União porquanto estaria justificada por: i) imperativos de política ambiental com consagração constitucional; e ii) pelo imperativo de cumprimento de obrigações assumidas pelo Estado Português no âmbito de Tratados Internacionais relativos a matérias ambientais, incluindo o próprio TFUE, no seu art. 191º.
Sobre a primeira questão, impõe-se observar que o direito da União, em virtude do princípio do primado, se sobrepõe ao direito nacional dos Estados-membros, incluindo o direito constitucional e que, no caso do ordenamento português, é a própria Constituição que, no seu art. 8º, nº 4, estabelece esse mesmo princípio. Pelo que uma violação dos Tratados da União nunca poderia, em face quer de um quer de outro, ser justificada por uma norma ou princípio de direito constitucional português que se lhe sobrepusesse.
Quanto à segunda questão, observamos, em primeiro lugar, que os Estados-Membros só podem adotar medidas que contrariem os Tratados nos casos especialmente previstos nos mesmos. E, em segundo lugar, que o TFUE não prevê a possibilidade de uma medida nacional que seja contrária ao artigo 110.° TFU poder ser justificada por qualquer razão (acórdão Valev Visnapuu, CC‑198/14, ECLI:EU:C:2015:463, nº 57). Por conseguinte, razões ambientais não são uma justificação admissível para uma medida nacional que esteja em antinomia com o art. 110º.
Conclui-se assim que o art. 11º do CISV viola efetivamente o art. 110º do TFUE, na medida em que faz incidir sobre os produtos de outros Estados‑Membros uma imposição interna superior à que incide sobre os produtos nacionais similares.
Sempres se poderia ainda, contudo, acrescentar que, para atender ao argumento do imperativo ambiental sem violar o art. 110º do TFUE, o legislador português deveria assegurar que não se verificava, em relação ao um veículo revendido em Portugal em estado usado, o efeito descrito acima. Como se referiu acima, o problema está em que, no caso de um veículo que foi sujeito a ISV em território nacional em estado novo, o montante do ISV (“componente cilindrada” mais “componente ambiental”) pago uma única vez no momento da introdução no consumo, vai sendo amortizado ao longo da vida útil do veículo, sendo as duas componentes – “cilindrada” e “ambiental” – amortizadas exatamente na mesma proporção. E desta forma, quando o veículo é revendido em estado usado, em território nacional, não se verifica a penalização fiscal que a Demandada reclama dever-se aplicar aos veículos provenientes de outro Estado membro.
Ora, não se nega que a questão ambiental deva ser levada em conta na tributação dos veículos usados. Tem é de o ser de forma não discriminatória, quando estejam em causa veículos vendidos em estado usado dentro do território nacional e veículos usados originários de outros Estados Membros.
c. Questão de saber se a pretensão formulada pela Demandante implica o pedido de reconhecimento de um benefício fiscal, em sede de ISV, para os automóveis usados oriundos de outros Estados-Membros, em violação do princípio da legalidade dos impostos contido no art. 103º, nº 2 da CRP
Com este argumento, a Demandada sugere que a redução da “componente ambiental” da taxa do imposto em função da idade do veículo se traduziria num benefício fiscal para os veículos usados admitidos no território nacional vindos de outro Estado-Membro.
Um benefício fiscal é sempre um desagravamento do imposto incidente sobre um facto tributário que cabe ou que, abstratamente, caberia no âmbito de incidência desse imposto, por comparação com o imposto que incide sobre os demais factos tributários abrangidos pela incidência do mesmo imposto.
Ora, já vimos que, no caso de automóveis usados que foram sujeitos a ISV em Portugal no estado novo, a “componente ambiental” do imposto se amortiza ao longo do tempo. Ao aplicar, aos veículos usados admitidos no território nacional provindos de um Estado-Membro, uma redução dessa componente em função da idade, o resultado a que se chega é o de uma equalização do imposto incidente sobre os dois factos tributários, ao contrário de uma desigualdade, i.e de um desagravamento fiscal. Uma tal redução não implica, pois, a concessão de qualquer benefício fiscal.
d. Questão da violação do princípio da legalidade consagrado no artigo 266.º (Princípios fundamentais) da Constituição da República Portuguesa
Com o devido respeito, não alcançamos claramente o argumento da Demandada, pois o princípio da legalidade que esta invoca – o princípio da legalidade da atuação da Administração Tributária, previsto no art. 266º, nº 2 da CRP e no art. 8º, nº 2, a) da LGT – tem como destinatários os órgãos e agentes da administração tributária, não podendo os sujeitos passivos, através das suas ações ou das pretensões formuladas em juízo, cometer violações do princípio da legalidade da atuação da Administração Tributária.
Por outro lado, a legalidade da atuação da Administração Tributária tem forçosamente que se traduzir numa conformidade dessa atuação com todo o ordenamento jurídico, a começar pelas normas de nível hierárquico superior, que é o caso, precisamente, dos tratados da União. E havendo uma incompatibilidade entre uma destas normas de nível superior e uma norma de nível inferior, a legalidade da atuação da Administração Tributária exige o respeito pela primeira e o desrespeito pela segunda.
Não vemos, pois, como possa proceder esta alegação da Demandada.
e. Questão da obrigatoriedade ou necessidade de efetuar o reenvio prejudicial para o TJUE
Finalmente, resta-nos por apreciar a questão da obrigatoriedade ou necessidade de efetuar o reenvio prejudicial para o TJUE.
Antes disso, uma nota sobre a alegação da Demandada acerca de uma eventual violação do princípio do direito à tutela jurisdicional efetiva.
Sustenta a Demandada que, ao decidir pela ilegalidade da liquidação por entender que existe uma desconformidade do artigo 11.º do CISV com o artigo 110.º do TFUE, estar-se-ia a violar o princípio do acesso ao direito à tutela jurisdicional efetiva, uma vez que o RJAT não prevê um recurso de direito e de facto das decisões proferidas em processo arbitral tributário.
Efetivamente, o RJAT prevê possibilidades limitadas de recurso das decisões arbitrais, sendo que as possibilidades previstas não se baseiam num princípio abrangente do duplo grau de jurisdição, mas se limitam ao controlo de questões específicas. Nomeadamente, no caso concreto, não seria possível à Demandada interpor recurso para obter uma reapreciação da questão decidenda fundamental, que é a da compatibilidade do art. 11º do CISV com o art. 110º do TFUE.
Porém, este argumento poderia ser utilizado para toda e qualquer decisão a ser proferida em processo arbitral tributário, e não apenas para o presente processo, pelo que, a atender-se ao argumento da Demandada, nunca um tribunal arbitral poderia anular um ato da Autoridade Tributária e Aduaneira. Pelo que, só por si, a invocação da irrecorribilidade da decisão arbitral não pode impedir o tribunal arbitral de apreciar a legalidade do ato aqui em causa.
Todavia, cremos que o argumento da Demandada se enlaça, de certo modo, com a questão da obrigatoriedade de o tribunal nacional proceder ao reenvio prejudicial sempre que no processo não seja admitido recurso, nos termos do art. 267º do TFUE.
O art. 267º do TFUE dispõe que o Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial: (al. a) “sobre a interpretação dos Tratados”.
O terceiro parágrafo desta disposição diz por sua vez que “sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal.”
Não nos parece haver dúvidas de que, com esta norma, o Tratado procurou precisamente acautelar que um tribunal nacional não tenha a última palavra quanto a uma questão de “interpretação dos Tratados”, a fim de assegurar a uniformidade na interpretação do direito primário da União.
Contudo, para que esta obrigatoriedade exista, é necessário – e aqui acompanhamos, mais uma vez, a jurisprudência arbitral citada antes – que exista “uma questão de interpretação dos Tratados”, nos termos do art. 267º TFUE.
Na sua doutrina sobre a obrigação dos tribunais nacionais lhe submeterem questões prejudiciais, o Tribunal de Justiça já deixou claro que, a fim de determinar em que condições um órgão jurisdicional nacional, cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, é obrigado a submeter a questão ao Tribunal, é necessário interpretar a expressão “sempre que uma questão desta natureza seja suscitada” para efeitos do Direito da União (acórdão CILFIT, C-283/81, ECLI:EU:C:1982:335, nº 8).
No acórdão CILFIT (já citado, nº 21) o Tribunal de Justiça concretizou as condições em que um órgão jurisdicional nacional, cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, é obrigado a submeter uma questão ao Tribunal.
Nessa sentença, o Tribunal afirma que “um órgão jurisdicional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, é obrigado a submeter a questão ao Tribunal de Justiça, a menos que dê como provado que a questão suscitada não é pertinente, ou que a “disposição comunitária” de que se trata já foi objeto de interpretação pelo Tribunal de Justiça, ou que a correta aplicação do “Direito comunitário” se impõe com tal evidência que não deixa lugar a dúvida razoável alguma; a existência de tal circunstância deve ser apreciada em função das características próprias do “Direito comunitário”, das dificuldades particulares que apresenta a sua interpretação e do risco de divergência no interior da “Comunidade”.
Esta interpretação acerca da obrigação que impende sobre os órgãos jurisdicionais nacionais de submeterem uma questão de interpretação dos Tratados deve, em nosso entender, ser conjugada com a ideia, também já diversas vezes afirmada pelo TJUE, de que, no âmbito do artigo 267.° TFUE, o Tribunal de Justiça não se pode pronunciar sobre a interpretação de disposições legislativas ou regulamentares nacionais nem sobre a conformidade de tais disposições com o direito da União (vd., designadamente, acórdãos de 18 de Novembro de 1999, Teckal, C‑107/98, Colect., p. I‑8121, n.° 33; de 4 de Março de 2004, Barsotti e o., C‑19/01, C‑50/01 e C‑84/01, Colect., p. I‑2005, n.° 30; e de 23 de Março de 2006, Enirisorse, C‑237/04, Colect., p. I‑2843, n.° 24 e jurisprudência aí referida).
Retira-se desta doutrina que o Tribunal de Justiça, no âmbito de um reenvio prejudicial, se pronuncia sobre a “interpretação dos Tratados”, mas não sobre se uma medida nacional é ou não compatível com a norma dos Tratados.
Sendo assim, “uma questão desta natureza”, para efeitos do art. 267º do TFUE será apenas estritamente uma questão de interpretação de uma disposição dos Tratados, e não uma questão de compatibilidade de uma medida nacional com essa mesma disposição.
Com efeito, cremos que é este o entendimento que melhor se coaduna com a formulação adotada pelo Tribunal no acórdão CILFIT, já citado (nº 21) em que se diz que não existe obrigação de reenvio quando a “disposição comunitária” de que se trata já foi objeto de interpretação pelo Tribunal de Justiça.
Ora, no caso dos autos, está em causa a aplicação de uma disposição do TFUE – o art. 110º - que já foi interpretado pelo Tribunal de Justiça por diversas vezes, como já foi referido acima. E em todas as vezes que foi chamado a interpretar essa disposição o Tribunal afirmou que “um sistema de tributação de um Estado‑Membro só pode ser considerado compatível com o artigo 110.° TFUE se se verificar que está organizado de modo a excluir sempre a possibilidade de os produtos importados serem tributados mais fortemente que os produtos nacionais e, portanto, que não comporta, em caso algum, efeitos discriminatórios”.
Perante isto, há que concluir que a disposição cuja aplicação está em causa – o art. 110º do TFUE – já foi interpretado diversas e bastantes vezes pelo Tribunal de Justiça, de modo que não subsiste qualquer dúvida acerca do seu alcance e significado.
O que cabe ao Tribunal Arbitral fazer é apenas averiguar a compatibilidade da medida nacional com essa disposição, com o sentido que o TJUE já por inúmeras vezes lhe fixou, pelo que se conclui que o Tribunal não está obrigado a submeter a questão ao Tribunal de Justiça.
E quanto à compatibilidade do art. 11º do CISV com o art. 110º do TFUE, já anteriormente chegámos à conclusão de que, ao não aplicar, aos veículos usados admitidos no território nacional provindos de um Estado-Membro, qualquer redução à componente ambiental da taxa, em função da idade do veículo, o montante total de imposto incorporado no custo de um veículo usado admitido no território português provindo de um outro Estado-Membro é superior ao montante total de imposto incorporado no custo de um veículo usado que foi sujeito a ISV em Portugal em estado novo, o que se traduz numa “possibilidade de os produtos importados serem tributados mais fortemente que os produtos nacionais”, podendo assim comportar efeitos discriminatórios.
f. Questão da devolução do imposto pago e dos juros indemnizatórios
Tendo a Demandante pago a totalidade do imposto liquidado nos atos aqui impugnados, pede ao Tribunal que condene a Demandada, em caso de procedência do seu pedido, à devolução do imposto indevidamente pago e ao pagamento de juros indemnizatórios.
De harmonia com o disposto na alínea b) do art. 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”.
Embora o art. 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão “declaração de ilegalidade” para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira diretriz, que “o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária” (CAAD, proc. nº 277/2020-T; CAAD, proc. nº 220/2020-T).
O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de atos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do art. 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» e do art. 61.º, n.º 4 do CPPT, que dispõe que “se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea” ”( CAAD, proc. nº 277/2020-T; CAAD, proc. nº 220/2020-T).
O n.º 5 do art. 24.º do RJAT, ao dizer que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral” (CAAD, proc. nº 277/2020-T; CAAD, proc. nº 220/2020-T).
Na sequência da anulação do ato impugnado, a Demandante terá direito a ser reembolsada do imposto indevidamente pago, o que é efeito da própria anulação, por força dos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT.
Quanto ao direito a juros indemnizatórios, dispõe o art. 43º nº 3 LGT que “são também devidos juros indemnizatórios (...) d) em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução”.
É o caso dos presentes autos, em que se julga o art. 11º do ISV, no qual se basearam os atos de liquidação impugnados, incompatível com o art. 110º do Tratado da União Europeia.
Pelo que há que concluir que, transitada a presente decisão arbitral em julgado, a Demandada terá direito a ser ressarcida nos termos do art. 43º, nº 3, al. d), através do pagamento de juros indemnizatórios.
V. DECISÃO
Nos presentes autos a Demandante pede a anulação das liquidações de ISV constantes das Declarações Aduaneiras de Veículos (“DAV”) nºs: 2020/…, de 28.02.2020; 2020/…, de 21.01.2020; 2020/…, de 30.01.2020; 2020/…, de 25.02.2020; 2020/…, de 07.02.2020; 2020/…, de 18.02.2020; 2020/…, de 27.02.2020; 2020/…, de 19.02.2020; 2020/…, de 28.02.2020; 2020/…, de 28.02.2020; 2020/…, de 01.04.2020.
Estas liquidações foram efetuadas com base nos artigos 7º (veículos novos) e 11º (veículos usados) do CISV.
Em obediência ao disposto no art. 7º, a Autoridade Tributária calculou o imposto dividindo a taxa em duas componentes: “componente cilindrada” e “componente ambiental”.
A “componente cilindrada” da taxa, determinada com base na Tabela A do artigo 7º do CISV, foi calculada em 16.872,17 €.
Em aplicação da Tabela D do art. 11º, a Autoridade Tributária aplicou à “componente cilindrada” da taxa determinada nos termos do art. 7º uma percentagem de redução correspondente à idade de cada veículo.
A “componente ambiental” da taxa, determinada igualmente com base na Tabela A do artigo 7º do CISV, foi calculada em 7.396,35 €.
A Autoridade Tributária não aplicou qualquer redução à “componente ambiental” da taxa.
Concluiu-se anteriormente que o art. 11º do CISV é incompatível com o art. 110º do TFUE, ao não aplicar, aos veículos usados admitidos no território nacional provindos de um Estado-Membro, qualquer redução à componente ambiental da taxa em função da idade do veículo, na medida em que isso dá origem a que o montante total do imposto incorporado no custo de um veículo usado admitido no território português provindo de um outro Estado-Membro seja superior ao montante total de imposto incorporado no custo de um veículo usado que foi sujeito a ISV em Portugal em estado novo, o que se traduz numa “possibilidade de os produtos importados serem tributados mais fortemente que os produtos nacionais”, podendo assim comportar efeitos discriminatórios.
Sendo assim, deve-se concluir que o art. 110º do TFUE obriga o Estado Português a aplicar, no cálculo da “componente ambiental” da taxa de ISV incidente sobre a admissão em território português de um veículo usado provindo de outro Estado-Membro, uma redução percentual igual à aplicável à “componente cilindrada” da mesma taxa.
Assim, nos termos anteriormente expostos, decide-se:
(I) Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade, por vício de violação de lei, e consequentemente anular os atos de liquidação impugnados, concretamente as liquidações constantes das Declarações Aduaneiras de Veículos nºs 2020/…, de 28.02.2020; 2020/…, de 21.01.2020; 2020/…, de 30.01.2020; 2020/…, de 25.02.2020; 2020/…, de 07.02.2020; 2020/…, de 18.02.2020; 2020/…, de 27.02.2020; 2020/…, de 19.02.2020; 2020/…, de 28.02.2020; 2020/…, de 28.02.2020; 2020/…, de 01.04.2020, na parte resultante da não aplicação, à “componente ambiental” das taxas de minoração previstas na Tabela A do art. 7º do CISV.
(II) Julgar procedente o pedido e condenar a Demandante à devolução do imposto indevidamente pago, no montante de 2.675,73 euros.
(III) Julgar procedente o pedido e condenar a Demandante ao pagamento dos juros indemnizatórios calculados sobre o montante do imposto indevidamente pago.
VI. Valor do processo
Nos termos do art. 97.º-A nº 1, al. a) do CPPT do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor do processo em 2.675,73 €.
VII. Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 612.00 €, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Demandada.
Notifique-se.
Porto, 19 de abril de 2021.
O Árbitro
(Nina Aguiar)