SUMÁRIO:
1. O regime fiscal dos artigos 43.º, n.º 2, e 72.º, nº 1, 9 e 10 do CIRS, estabelece uma discriminação injustificada entre residentes e não residentes relativamente à tributação de mais-valias provenientes da alienação de bens imóveis situados em Portugal, incompatível com os artigos 63.° e 65.º do TFUE.
2. Essa incompatibilidade não é sanada pelo facto de, para evitar que o não residente fique sujeito a uma carga fiscal superior à que seria aplicada, para esse mesmo tipo de operação, às mais-valias realizadas por um residente, aquele tenha que escolher entre um regime fiscal discriminatório e outro não discriminatório.
DECISÃO ARBITRAL
O árbitro Professor Doutor Jónatas Machado, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para constituir o presente Tribunal Arbitral, profere a seguinte decisão:
1 RELATÓRIO
1. A..., NIF..., (doravante Requerente ou SP) residente em..., n.°..., ..., ..., Espanha, vem nos termos dos artos 95.º da Lei Geral Tributária, 99.º, alínea a) do Código de Procedimento e de Processo Tributário, 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, requerer a Constituição de Tribunal Arbitral Singular e apresentar o seguinte pedido de Pronúncia Arbitral, com vista à declaração de ilegalidade, e consequente anulação, respeitante à liquidação de IRS, especificamente no que se refere às mais-valias imobiliárias, referentes ao ano de 2019 - liquidação n.° 2020... .
2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD, em 06.11.2020.
3. Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 2, alínea a), 6.º, n.º 1 e 11.º, n.º 1 do RJAT, o Conselho Deontológico deste Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) nomeou como árbitro singular o Professor Doutor Jónatas Machado, em 12.11.2020.
4. As partes foram devidamente notificadas dessa designação, à qual não opuseram recusa, nos termos conjugados dos artigos 11.º, n.º 1, alíneas b) e c) e 8.º do RJAT e 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
5. Por força do preceituado na alínea c) do n.º 1 e do n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 29.01.2021.
6.A AT, tendo para o efeito sido devidamente notificada, ao abrigo do disposto no artigo 17.º do RJAT, apresentou a sua resposta, em 11.02.2021, onde, por impugnação, sustentou a improcedência da pretensão da Requerente ou, subsidiariamente, a suspensão da instância até decisão de reenvio prejudicial de questão idêntica por parte do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE).
7. Por não ter sido requerida pelas partes e ser considerada desnecessária, o Tribunal dispensou a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, concedendo um prazo para alegações finais, através de despacho proferido em 12.02.2021.
8. Em Despacho proferido em 26.02.2021 o Tribunal, em virtude de os Processos do CAAD n.ºs 598/2018-T e 569/2019-T, que versam sobre esta mesma temática, se encontrarem pendentes de análise e decisão no Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), respetivamente sob os n.ºs C-388/19 e C-103/20, determinou a suspensão do processo até à emissão da correspondente pronúncia, o que veio a suceder no dia 18.03.2021
1.1 Descrição dos factos
9. A Requerente, em 2019, residente em Espanha, o que se mantém na presente data, adquiriu por via sucessória, a 12.08.2011, 1/4 das frações C e E ambas do imóvel destinado a habitação, sito na Rua ..., no ..., respetivamente no ... e ... do mesmo, no concelho de Lisboa, Freguesia de ..., inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ... da referida freguesia, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número ... .
10. Em 17.09.2019, a Requerente procedeu à venda da fração E do imóvel destinado a habitação, sito na Rua ..., nº..., ..., concelho de Lisboa, Freguesia de ..., inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ... da referida freguesia, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número ..., pelo preço de €220.000,00 (1/4 = €55.000,00).
11. Em 26.11.2019 de 2019, a Requerente procedeu à venda da fração C do imóvel destinado a habitação, sito na Rua ..., no ..., ..., concelho de Lisboa, Freguesia de ..., inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ... da referida freguesia, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número ..., pelo preço de €235.000,00 (1/4 = €58.750,00).
12. A Requerente apresentou atempadamente a sua declaração de IRS de 2019, em 06.05.2020, correspondendo o valor de aquisição dos imóveis declarado no anexo G a 1/4 do VPT dos imóveis à data da aquisição: €1.397,66 (fração C) € €1.307,47 (fração E).
13. Na quantificação da mais-valia tributária, a AT considerou o valor do resultado por inteiro — 103.886,94 Euros - nos termos do n.º 1 do artigo 43.º do CIRS, desconsiderando o regime de exclusão de tributação de 50%, previsto no n.º 2 do mesmo artigo, motivo pelo qual veio a emitir, à Requerente, liquidação de IRS, no valor total de 29.106,54 Euros, que ora se impugna.
14. A Requerente pagou a liquidação no dia 08.09.2020.
1.2 Argumentos das partes
15. Os argumentos trazidos aos autos centram-se na aplicação, a cidadãos da União Europeia não residentes, do regime de exclusão de tributação de 50% previsto no n.º 2 do artigo 43.º do CIRS.
16. A Requerente sustenta a ilegalidade da liquidação n.° 2020... com argumentos que a seguir se sintetizam:
a) A alínea a) do nº 1 do artigo 10.º Código do IRS determina que os ganhos resultantes da alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis constituem mais-valias, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, estabelecendo-se no seu nº 4 que o referido ganho é constituído pela diferença entre o valor da realização e o valor de aquisição, líquidos das partes qualificadas como rendimento de capitais;
b) No que respeita à tributação de não residentes em território português, dispõe o n° 1 do artigo 13.º do Código do IRS que "Ficam sujeitas a IRS as pessoas singulares que residam em território português e as que, nele não residindo, aqui obtenham rendimentos”, acrescentando o n° 2 do artigo 15.º do mesmo diploma legal que, quanto aos não residentes, aquele imposto “incide unicamente sobre os rendimentos obtidos em território português”;
c) Nos termos do artigo 18.", n.º 1, alínea h) do Código do IRS, “Consideram-se obtidos em território português: (...) h) os rendimentos respeitantes a imóveis nele situados, incluindo as mais valias resultantes da sua transmissão”;
d) Nos termos do artigo 43.°, n.º 1 do Código do IRS “o valor dos rendimentos qualificados como mais valia é o correspondente ao saldo apurado entre as mais valias e as menos valias realizadas, no mesmo ano, acrescentando o n.º 2 do referido artigo, que “o saldo positivo referido no número anterior, respeitante às transmissões efetuadas por residentes previstas nas alíneas a), c) e d) do n.º 1 do artigo 10.°, positivo ou negativo, é apenas considerado em 50%;
e) Diferentemente, do que entendeu a AT, ao proceder ao cálculo do imposto devido, nos termos do n.º 1 do artigo 43.º do CIRS, o regime de exclusão de tributação de 50% previsto no n.º 2 do artigo 43.º do CIRS por, no seu entendimento, deve aplicar-se a não residentes, nesse sentido apontando o princípio da não discriminação, previsto no TFUE, que deve ser lido como imposição de tratamento igual entre cidadãos europeus, independentemente da sua nacionalidade ou residência;
f) A não aplicação desse regime de exclusão de tributação de 50% a cidadãos europeus não residentes em Portugal constitui uma discriminação injustificada e contrária ao direito da União Europeia, dos residentes noutros estados membros face aos residentes em território nacional, violadora do princípio da livre circulação de capitais entre Estados-Membros.
17. A AT sustenta a manutenção do ato impugnado com base nos seguintes fundamentos:
a) No sentido de adaptar a legislação nacional à jurisprudência do TJUE, a Lei n.º 67-A/2007, aditou ao artigo 72.º do CIRS, dois números, estabelecendo um que “Os residentes noutro Estado membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em matéria fiscal, podem optar, relativamente aos rendimentos referidos nas alíneas a) e b) do n.º 1 e no n.º 2, pela tributação desses rendimentos à taxa que, de acordo com a tabela prevista no n.º 1 do artigo 68.º, seria aplicável no caso de serem auferidos por residentes em território português”, e outro que “Para efeitos de determinação da taxa referida no número anterior são tidos em consideração todos os rendimentos, incluindo os obtidos fora deste território, nas mesmas condições que são aplicáveis aos residentes”;
b) Por força dessa alteração legislativa as declarações de rendimentos de IRS respeitantes aos anos fiscais de 2008 e seguintes têm um campo para que possa ser exercida a opção pela taxa consagrada no artigo 68.º do CIRS;
c) O Acórdão Hollman, do TJUE, de 11.10.2007, foi proferido antes das alterações introduzidas ao artigo 72.º do CIRS precisamente para permitir uma tributação igualitária entre residentes em território português e não residentes, desde que os sujeitos passivos o requeiram - o que não foi o caso;
d) Na declaração de IRS entregue pela Requerente verifica-se que no Quadro 8 do Rosto foi assinalado o campo 4 (não residente), o campo 6 (país de residência) e o campo 7 (opção pela tributação pelo regime geral), sendo que para que a tributação da mais-valia fosse feita pela taxa consagrada no artigo 68.º, como residente, era necessário ter preenchido os campos 9, opção pelas taxas do artigo 68.º do CIRS, e 11, total dos rendimentos obtidos no estrangeiro;
e) Ao não ter optado pela tributação das suas mais-valias imobiliárias, pela aplicação das taxas do artigo 68.º do CIRS e das demais regras aplicáveis aos residentes, mas sim pelas taxas gerais, não assiste razão à Requerente;
f) Nem aos residentes as normas do CIRS permitem esta dualidade de tratamento, ou seja, redução a 50% das mais-valias imobiliárias e aplicação das taxas do artigo 72.º do CIRS, obrigando sempre, neste caso, ao englobamento deste saldo com os demais rendimentos para aplicação à totalidade dos rendimentos auferidos as taxas gerais do artigo 68.º do Código do IRS;
g) O regime escolhido pela Requerente, embora invoque que é uma residente na União Europeia, foi o da tributação pelas taxas do artigo 72.º aplicáveis a não residentes e não as aplicáveis a residentes, pelo que o regime escolhido deve ser aplicado "in toto", não se poderá invocar a discriminação negativa como pretende o Requerente e isto porque as suas opções foram respeitadas;
h) A norma do n.º 2 do artigo 43.º, encontra-se no capítulo II do CIRS que tem como epígrafe "Determinação do rendimento coletável”, respeitando à determinação do rendimento, relevando para efeitos de incidência, e no que respeita à matéria das mais-valias, os artigos 9.º e 10.º do CIRS;
i) É jurisprudência assente do TJUE que “(…) o uso da residência como elemento de conexão, bem como a diferenciação fiscal entre sujeitos passivos residentes e não residentes, tanto na legislação interna dos Estados como nas Convenções sobre Dupla Tributação, é aceitável e não contraria as liberdades de circulação, nem consubstancia uma discriminação contrária aos Tratados Europeus”;
j) Pugnar por um entendimento diverso do supra consubstanciaria uma discriminação positiva, violadora do princípio constitucional da igualdade chamado à colação pela Requerente, e, essa sim, totalmente inaceitável à luz do direito nacional e comunitário;
k) Tendo em consideração que os Processos do CAAD n.ºs 598/2018-T e 569/2019- T, que versam sobre esta mesma temática, se encontram pendentes de análise e decisão no Tribunal de Justiça da União Europeia, sob os n.ºs C-388/19 e C-103/20, respetivamente, entende a Requerida que se justifica, e o que desde já se requer, a suspensão da instância até que seja emitida a pronúncia pelo TJUE, nos termos do disposto nos artigos 269.º, n.º 1, alínea c), e 272.º do CPC;
1.3. Saneamento
18. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, nos termos n.º 1 do artigo 10.º do RJAT e as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e mostram-se devidamente representadas.
19. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído (artigos 5.º, n.º 2, 6.º, n.º 1, e 11.º do RJAT), e é materialmente competente (artigos 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT), de acordo com os fundamentos infra.
20. O processo não padece de nulidades podendo prosseguir-se para a decisão sobre o mérito da causa.
2 FUNDAMENTAÇÃO
2.1 Factos dados como provados
21. Com base nos documentos trazidos aos autos são dados como provados os seguintes factos relevantes para a decisão do caso sub judice:
a) A Requerente, em 2019, residente em Espanha, o que se mantém na presente data
b) A Requerente adquiriu por via sucessória, a 12.08.2011, 1/4 das frações C e E ambas do imóvel destinado a habitação, sito na Rua ..., no..., respetivamente no ... e ... do mesmo, no concelho de Lisboa, Freguesia de ..., inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ... da referida freguesia, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número ... (Doc. 1)
a) Em 17.09.2019, a Requerente procedeu à venda da referida fração E pelo preço de €220.000,00 (1/4 = €55.000,00), conforme escritura púbica de compra e venda junta aos autos (Doc. 2)
b) Em 26.11.2019 de 2019, a Requerente procedeu à venda da mencionada fração C pelo preço de €235.000,00 (1/4 = €58.750,00), conforme escritura púbica de compra e venda junta como (Doc. 3.)
c) A Requerente apresentou atempadamente a sua declaração de IRS de 2019, em 06.05.2020, correspondendo o valor de aquisição dos imóveis declarado no anexo G a 1/4 do VPT dos imóveis à data da aquisição: €1.397,66 (fração C) € €1.307,47 (fração E) (Doc. 4).
d) Na quantificação da mais-valia tributária, a AT considerou o valor do resultado por inteiro — 103.886,94 Euros - nos termos do n.º 1 do artigo 43.º do CIRS, desconsiderando o regime de exclusão de tributação de 50%, previsto no n.º 2 do mesmo artigo, motivo pelo qual veio a emitir, ao Requerente, liquidação de IRS, no valor total de 29.106,54 Euros, que ora se impugna. (Doc. 5)
e) O requerente pagou a liquidação no dia 08.09.2020. (Doc. 6)
2.2 Factos não provados
22. Com relevo para a decisão sobre o mérito não existem factos alegados que devam considerar-se como não provados.
2.3 Motivação
23. Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da matéria não provada (cf. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
24. Os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões objeto do litígio (v. 596.º, n.º 1, do CPC, ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
25. Assim, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
2.4 Questão decidenda
26. A questão decidenda prende-se com saber se a não aplicação, a cidadãos da União Europeia não residentes, do regime de exclusão de tributação de 50% previsto no n.º 2 do artigo 43.º do CIRS, constitui uma violação do princípio geral de não descriminação, consagrado no artigo 18.º do TFUE e subjacente às liberdades fundamentais do mercado interno, com especial relevo para sua concretização na regra específica de não discriminação no domínio da liberdade de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE.
27. Não subsiste qualquer dúvida quanto ao facto de uma alienação onerosa de um bem imóvel situado no território português, efetuada por pessoas singulares não residentes, como a que está em causa neste processo, constituir um movimento de capitais integrando o âmbito normativo do artigo 63.º do TFUE. A dúvida prendia-se com saber se a diferenciação mencionada poderia ser justificada nos termos previstos no artigo 65.°, n.º3, do TFUE, onde se permite que os Estados-Membros estabeleçam, na sua regulamentação nacional, uma distinção entre contribuintes residentes e contribuintes não residentes, desde que essa distinção não constitua um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais.
28. Trata-se de uma questão amplamente discutida e controvertida na jurisprudência arbitral do CAAD, tendo suscitado respostas tanto no sentido da violação do princípio da não discriminação como no da conformidade com o mesmo .
29. As dúvidas que pudessem subsistir prendiam-se com o facto de o Acórdão Hollman, do TJUE, de 11.10.2007, ter sido proferido antes das alterações introduzidas ao artigo 72.º do CIRS, precisamente para permitir uma tributação igualitária entre residentes em território português e não residentes, desde que os sujeitos passivos o requeiram. Foram as mesmas que justificaram que, nos que os Processos do CAAD n.ºs 598/2018-T e 569/2019- T, versando sobre esta mesma temática, se encontram pendentes de análise e decisão no Tribunal de Justiça da União Europeia, sob os n.ºs C-388/19 e C-103/20.
30. Entretanto, o pleno da secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, veio pronunciar-se sobre a questão fundamental de direito sub judice, no Acórdão de 09/12/2020, proferido no processo 075/20.6BALSB, tendo uniformizado jurisprudência no sentido de considerar que «o n.º 2 do art. 43.º do CIRS, na redação aplicável, ao prever uma limitação da tributação a 50% das mais-valias realizadas apenas para os residentes em Portugal, e não para os não residentes, constitui uma restrição aos movimentos de capitais, incompatível com o art. 63.° do TJUE, não tendo essa discriminação negativa dos não residentes sido ultrapassada pelo regime opcional introduzido no art. 72.o do CIRS pela Lei n.° 67-A/2007, de 31 de Dezembro, previsto, aliás, apenas para os residentes noutro Estado-membro da União Europeia” .
31. Nesta mesma linha, com a autoridade interpretativa do direito da UE que lhe é juridicamente reconhecida, o TJUE, no caso MK , veio sustentar que o regime constante dos artigos 43.°, n.° 2, e 72.°, n.° 1, do CIRS, segundo o qual as mais-valias realizadas por residentes no momento da alienação de bens imóveis situados em Portugal eram apenas consideradas em 50 % do seu valor, ao passo que os não residentes se sujeitavam à tributação dessas mesmas mais-valias sobre a totalidade do seu montante à taxa autónoma de 28 %, se traduzia numa matéria coletável deste tipo de mais-valias diferente para residentes e não residentes, ficando estes à mercê de uma carga fiscal superior àquela que era aplicada aos residentes. Nesta matéria, o TJUE reiterou o entendimento proferido no caso Hollmann .
32. O TJUE julgou particularmente relevante o facto de a consideração de apenas metade da matéria coletável das mais-valias realizadas por um residente, como constante do artigo 43.º, n.º 2, do IRS, permitir que este beneficiasse sistematicamente de uma carga fiscal inferior, por comparação com a do não residente, qualquer que fosse a taxa de tributação aplicada à totalidade dos seus rendimentos. Tratou-se, no entender da suprema instância europeia, de um dado factual da maior importância para a análise desta restrição em concreto à luz do artigo 65.º, n.º 3, do TFUE e dos inerentes critérios da comparabilidade objetiva e da imperiosidade do interesse geral.
33. Neste domínio, o TJUE já tinha, em abstrato, considerado compatível com o direito da UE a diferença de tratamento entre contribuintes não residentes e residentes, consistindo na sujeição dos rendimentos brutos dos primeiros a uma tributação a título definitivo a uma taxa única, através de retenção na fonte, e na tributação dos rendimentos líquidos dos segundos de acordo com uma tabela progressiva incluindo um abatimento de base . No entanto, o TJUE condicionou este entendimento a não ser a taxa única praticada mais elevada do que a taxa resultante da aplicação efetiva para o interessado da tabela progressiva aos rendimentos líquidos que excedem o abatimento de base, condição que o TJUE considerou não se verificar no regime fiscal ora em discussão.
34. No caso Holmann o TJUE já havia apontado três notas essenciais do regime fiscal em causa. Por um lado, a tributação das mais-valias resultantes da alienação de um bem imóvel incide, nos termos do artigo 43.°, n.° 2, e do artigo 72.°, n.° 1, do CIRS, sobre uma única categoria de rendimentos dos contribuintes, quer sejam residentes ou não residentes. Por outro lado, essa tributação diz respeito a essas duas categorias de contribuintes. A isto acresce que o Estado-Membro de onde o rendimento coletável provém é sempre a República Portuguesa.
35. De acordo com o TJUE, e tendo em conta os três aspetos apontados, não existe nenhuma diferença objetiva entre contribuintes residentes e não residentes suscetível de justificar uma sistemática desigualdade de tratamento fiscal entre eles, como a que resulta da leitura conjugada dos artigos 43.°, n.° 2, e 72.°, n.° 1, do CIRS, não estando excluído que a ratio legis do abatimento de 50 % às mais-valias realizadas pelos residentes – de evitar a tributação excessivamente onerosa desses rendimentos considerados anormais e fortuitos – possa valer para os não residentes. Aplicando este entendimento ao caso concreto, a situação em que se encontra um contribuinte não residente, como a Requerente, é comparável à de um contribuinte residente.
36. Por outro lado, o tribunal supremo da União Europeia considerou que o benefício fiscal concedido aos residentes, traduzido numa redução de metade da matéria coletável correspondente às mais-valias realizadas, excedia a contrapartida que consiste na aplicação de uma taxa progressiva à tributação dos seus rendimentos, sem que haja razões de interesse geral que o justifiquem, nomeadamente de garantia da coerência do regime fiscal.
37. Quanto à possibilidade de as pessoas residentes na UE ou no EEE optarem, ao abrigo do artigo 72.°, n.os 9 e 10, do CIRS, por um regime de tributação análogo ao aplicável aos residentes portugueses e, assim, beneficiarem do abatimento de 50 % previsto no artigo 43.°, n.° 2, o que está em causa, segundo o TJUE, é permitir a um contribuinte não residente, como a Requerente, escolher entre um regime fiscal discriminatório – do artigo 72.°, n.° 1, do CIRS – e outro que não o é. Ora a suprema instância europeia já havia alertado, no Acórdão proferido no caso Gielen , para o facto de que “escolher entre um regime fiscal discriminatório e um outro regime fiscal que não seja discriminatório não é suscetível de excluir os efeitos discriminatórios do primeiro desses dois regimes fiscais”, não podendo haver lugar à validação de um regime fiscal, ainda que facultativo, violador do artigo 63.° TFUE em razão do seu caráter discriminatório.
38. No respeito pela primazia do direito da União Europeia sobre o direito nacional e pela autoridade interpretativa do TJUE, acolhe o presente tribunal o entendimento de que o regime fiscal dos artigos 43.º, n.º 2, e 72.º, nº 1, 9 e 10 do CIRS, estabelece uma discriminação injustificada entre residentes e não residentes relativamente à tributação de mais-valias provenientes da alienação de bens imóveis situados em Portugal, incompatível com os artigos combinados 63.° e 65.º do TFUE, de igual vício padecendo o facto de, para evitar que o não residente fique sujeito a uma carga fiscal superior à que seria aplicada, para esse mesmo tipo de operação, às mais-valias realizadas por um residente, aquele tenha que escolher entre um regime fiscal discriminatório e outro não discriminatório, devendo, por conseguinte, ser declarada a ilegalidade parcial e anulação da liquidação de IRS de 2019 n.° 2020..., com todas as consequências legais.
39. Devendo ser reconhecida a legitimidade da Requerente para solicitar o pagamento dos juros indemnizatórios devidos nos termos do disposto no artigo 43.º da Lei Geral Tributária e sendo o Tribunal competente em razão da matéria, sendo havendo lugar à declaração de ilegalidade da liquidação em causa e consequente anulação do montante do IRS indevidamente pago, mostram-se preenchidos os pressupostos previstos no artigo 43.º da Lei Geral Tributária para a exigência legal dos mesmos.
3 DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:
a) Declarar a ilegalidade parcial e anulação da liquidação de IRS de 2019 n.° 2020..., com todas as consequências legais;
b) Condenar a Requerida, nos termos do artigo 43.º, n.º 1 da LGT e 61.º, n.ºs 2 e 5 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), no pagamento dos juros indemnizatórios, à taxa resultante do n.º 4 do artigo 43.º da LGT, calculados sobre as quantias indevidamente pagas, desde o dia em que foram pagas até ao efetivo e integral reembolso das mesmas.
4 VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em 14.544,17€, nos termos do artigo 306.º, n.º 1 do CPC e do 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, interpretados em conformidade com o artigo 10.º, n.º 2, alínea e), do RJAT.
5 CUSTAS
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 918.00 €, a cargo da Requerida, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e do artigo 4.º, n.º 4, do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I anexa ao mesmo.
Notifique-se.
Lisboa, 23 de março de 2021
O Árbitro
Jónatas E. M. Machado