DECISÃO ARBITRAL
A Signatária, DRA. ELISABETE FLORA LOURO MARTINS CARDOSO, foi designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o Tribunal Arbitral Singular, o qual foi constituído em 11 de setembro de 2020.
I. RELATÓRIO
1. A... LDA., sociedade comercial por quotas registada com o NIPC..., com sede social na ..., ..., Vila Nova de Gaia, (doravante, Requerente), apresentou no dia 25 de junho de 2020 pedido de pronúncia arbitral, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos artigos 10.º e seguintes do Decreto Lei n.º 10/2011 de 20 de janeiro, Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante, RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira — Alfândega de Braga (doravante, Requerida).
A Requerente apresentou o presente pedido de pronúncia arbitral (PPA) alegando a ilegalidade do ato de liquidação de ISV — descrito nas Declarações Aduaneiras de Veículos (DAV) juntas pela Requerente como (Doc. 1) a (Doc. 11), que respeitam a aquisições intracomunitárias de viaturas usadas durante o ano de 2018 — pago pela Requerente no montante total de EUR 21143,67, quando o ISV devido é no montante de EUR 18263,37 (diferença a favor da Requerente no montante de EUR 2880,30).
A Requerente fundamenta o seu pedido — no PPA a Requerente pede que “seja julgada procedente por provada a impugnação e, em consequência, restituída a quantia de EUR 2880,30, acrescida de juros indemnizatórios, à Impugnante” — defendendo a ilegalidade do ato de liquidação de ISV, emitido com base no disposto no artigo 11.º do Código do ISV (CISV), por este artigo 11.º do CISV violar o artigo 110.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE), ao tributar de forma mais onerosa os veículos usados provenientes de outros Estados Membros da União Europeia (EMUE), do que os veículos usados similares disponíveis no mercado nacional.
Defende a Requerente que a Requerida liquidou o ISV considerando no seu cálculo as regras do artigo 7.º do CISV, e aplicou a dedução correspondente ao número de anos de uso dos veículos prevista no artigo 11.º do CISV apenas no que respeita à componente de cilindrada — não tendo aplicado qualquer dedução em função do número de anos de uso dos veículos à componente ambiental. Ao agir da forma descrita, entende a Requerente que o ato impugnado viola o artigo 110.º do TFUE (conforme já decidido no âmbito da Decisão Arbitral no processo nº 572/2018-T e na Decisão Arbitral no processo n.º 660/2019-T).
Alega ainda a Requerente que em 23 de outubro de 2019 apresentou Pedido de Revisão Oficiosa na Alfândega de Braga, pedindo a correção da liquidação de ISV, e que o seu Pedido foi indeferido por despacho do Diretor da Alfandega de Braga notificado em 13 de fevereiro de 2020. A Requerente reagiu a este despacho através da interposição de recurso hierárquico, o qual manteve a decisão de indeferimento proferida no âmbito do Pedido de Revisão Oficiosa. No presente PPA, a Requerente impugna:
(i) a decisão de indeferimento do recurso hierárquico proferida em 27 de maio de 2020, e notificada à Requerente em 5 de junho de 2020 (objeto imediato), e
(ii) os atos de liquidação de ISV identificados supra (objeto mediato);
(doravante, ato impugnado).
2. O pedido de pronúncia arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 26 de junho de 2020, e foi automaticamente notificado à Requerida.
3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, em 12 de agosto de 2020, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) do RJAT, o Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou a Signatária como Árbitro do Tribunal Arbitral Singular, tendo a Signatária comunicado a aceitação do encargo no prazo aplicável.
4. Em 12 de agosto de 2020, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo as mesmas manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
5. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 11 de setembro de 2020.
6. Em 12 de setembro de 2020, o Tribunal Arbitral proferiu despacho arbitral ordenando a notificação da Requerida para apresentar Resposta, juntar cópia do Processo Administrativo, e solicitar, querendo, a produção de prova adicional. Deste despacho foi a Requerida notificada em 14 de setembro de 2020.
7. A Requerida veio aos autos apresentar Resposta e juntar o processo administrativo em 16 de outubro de 2020, dentro do prazo legal.
8. A Requerida veio alegar na sua Resposta:
(A) Exceção de caducidade do direito de ação, com base na extemporaneidade do pedido de revisão das liquidações efetuadas e do recurso hierárquico subsequente;
(B) Conformidade do ato impugnado com a lei, designadamente com o acórdão proferido no Processo n.º C- 200/15 do TJUE, uma vez que o artigo 11.º na sua atual redação — que lhe foi dada pelo artigo 217.º da Lei n.º 42/2016 de 28.12.2016 (diploma que aprovou o Orçamento de Estado para 2017) — (i) visa respeitar as orientações comunitárias em matéria da redução das emissões de CO2, tendo em vista o cumprimento das responsabilidades ambientais assumidas no âmbito do Protocolo de Quioto; (ii) está em consonância com o artigo 1.º do CISV, que consagra o “Princípio da Equivalência”, nos termos do qual o ISV procura onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam nos domínios do ambiente, infraestruturas viárias e sinistralidade rodoviária, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária; (iii) respeita a interpretação do artigo 110.º do TFUE, em conjugação com a que resulta do artigo 191.º do mesmo tratado, da qual se conclui que o modelo de tributação automóvel português, ao fazer incidir sobre os veículos ligeiros de passageiros, novos e usados, a componente ambiental, não pretende restringir a entrada de veículos em território nacional para proteger a produção nacional, mas, tão só, como se referiu, direcionar as escolhas dos consumidores para a aquisição de veículos com menores emissões de dióxido de carbono, isto é, mais “amigos do ambiente” tendo por fim último a proteção do ambiente, no estrito cumprimento dos princípios consagrados no artigo 191.º do TFUE e no artigo 66.º e 103.º da Constituição da República Portuguesa (CRP); e
(C) Inconstitucionalidade da interpretação efetuada pela Requerente, por violação do direito ao Ambiente e Qualidade de Vida consagrado no n.º 1 do artigo 66.º da CRP, e por violação dos princípios da legalidade e da justiça tributária, da igualdade e da certeza e segurança jurídica, sendo a interpretação dada pela Requerida às normas em análise, uma interpretação conforme a Constituição, designadamente, conforme o disposto nos artigos 104.º e 204.º da CRP e violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva.
(D) Inadmissibilidade da prova testemunhal apresentada.
9. Em 19 de outubro de 2020, foi proferido despacho arbitral com o seguinte teor:
“Por aplicação do princípio da celeridade processual notifica-se a Requerente para: (1) se pronunciar por escrito relativamente à matéria de exceção alegada pela Requerida; (2) informar os autos se mantém interesse na inquirição das testemunhas arroladas no pedido de pronúncia arbitral; e, em caso afirmativo, (3) indicar quais os factos que, em seu entender, deverão ser objeto desse meio de prova. Prazo: 10 dias”.
10. Em 28 de outubro de 2020, em cumprimento do despacho referido, a Requerente veio apresentar Resposta à Exceção alegada pela Requerida, pugnando pela tempestividade do Pedido de Revisão Oficiosa e consequentemente, do PPA.
11. Em 15 de novembro de 2020, foi proferido despacho arbitral com o seguinte teor: “Em 20 de outubro de 2020, a Requerente foi notificada do despacho deste Tribunal (de dia 19 de outubro de 2020) para, no prazo de 10 dias:
(1) se pronunciar por escrito relativamente à matéria de exceção alegada pela Requerida;
(2) informar os autos se mantém interesse na inquirição das testemunhas arroladas no pedido de pronúncia arbitral; e, em caso afirmativo;
(3) indicar quais os factos que, em seu entender, deverão ser objeto desse meio de prova.
Decorrido o prazo fixado, a Requerente:
- pronunciou-se por escrito relativamente ao ponto (1); mas
- não se pronunciou relativamente aos pontos (2) e (3).
Assim, tendo em consideração:
- a falta de resposta da Requerente aos pontos (2) e (3) do despacho notificado em 20 de outubro,
- que a Requerida (na sua Resposta) não impugna a matéria de facto alegada pela Requerente,
- que a questão em análise nos autos é essencialmente uma questão de Direito, e
- que os autos fornecem todos os elementos de prova necessários para a prolação de decisão arbitral;
este Tribunal:
i) indefere o pedido de produção de prova testemunhal apresentado pela Requerente — nos termos do princípio da autonomia do tribunal arbitral na condução do processo e do princípio da livre determinação das diligências de produção de prova necessárias, nos termos previstos no artigo 16.º al. (c) e (e) do RJAT, e nos termos previstos nos artigos 113.º n.º 1 e 114.º do CPPT (normas para as quais remete o disposto no artigo 29.º n.º 1 al. (a) do RJAT) — uma vez que o Tribunal está proibido de praticar atos inúteis;
ii) dispensa a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT, ao abrigo do disposto no artigo 16.º al. (c) e (e) e no artigo 29.º n.º 2 do RJAT;
iii) faculta às partes a possibilidade de, querendo, apresentarem alegações escritas, sucessivas, no prazo de 10 dias; e
iv) comunica que a decisão final será proferida até ao termo do prazo fixado no art.º 21.º n.º 1 do RJAT (até dia 11 de março de 2021), devendo a Requerente, até 10 dias antes do termo de tal prazo, proceder ao depósito da taxa arbitral subsequente”.
Deste despacho foram as partes notificadas em 16 de novembro de 2020.
12. Decorrido o prazo concedido, as partes não apresentaram alegações.
II. SANEAMENTO
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram se regularmente representadas (artigos 4.º e 10.º n.º 2 do RJAT, e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011 de 22 de Março).
O tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído.
O processo não enferma de nulidades.
Cumpre apreciar e decidir.
III. MATÉRIA DE FACTO
III.1 FACTOS PROVADOS
1. A Requerente tem por objeto o comércio de automóveis, compra e venda e troca; importação e exportação; intermediário de crédito e outras atividades auxiliares de serviços financeiros;
2. No ano de 2018, no exercício da sua atividade, a Requerente efetuou várias aquisições intracomunitárias de viaturas usadas, melhor identificadas nas Declarações Aduaneiras de Veículos (DAV) n.º 2018/..., 2018/..., 2018/..., 2018/..., 2018/..., 2018/..., 2018/..., 2018/..., 2018/..., 2018/..., e 2018/..., todas (i) apresentadas na referida estância aduaneira (de Braga), por transmissão eletrónica de dados, para introdução no consumo dos veículos, ligeiros de passageiros, usados, provenientes da Alemanha; (ii) emitidas pela Alfândega de Braga; (iii) com prazo de pagamento voluntário, respetivamente, em 22.06.2018, 25.06.2018, 26.06.2018, 27.06.2018, 28.06.2018 e 04.07.2018;
3. Através das DAV referidas, a Requerente declarou os veículos das marcas e modelos indicados nas mesmas, a que foram atribuídas as matrículas nacionais nelas referidas, cujas características constam das inscrições dos Quadros E, F e G, referentes às características do veículo, apresentação do veículo e matrículas anteriores;
4. O cálculo do imposto sobre veículos, que consta do Quadro R das DAV, foi efetuado com recurso à tabela A, aplicável aos veículos ligeiros de passageiros, e calculado o ISV atendendo à componente cilindrada e à componente ambiental, nos termos do artigo 7.º do CISV, tendo, igualmente, sido deduzida a percentagem de redução correspondente, conforme o disposto na tabela D constante do n.º 1 do artigo 11.º do CISV, prevista para os veículos usados, em função do número de anos de uso do veículo (cf. citada lista das respetivas DAV);
5. Foi efetuada a liquidação do imposto, relativa aos veículos identificados nas DAV, conforme indicado nos Quadros T e V das declarações, constando destas, igualmente, a identificação dos atos de liquidação bem como a data, montante e termo final do prazo de pagamento e a identificação do autor do ato;
6. A Requerente pagou, a título de ISV, o total de EUR 21143,67 (vinte e um mil cento e quarenta e três euros e sessenta e sete cêntimos);
7. Em 24.10.2019, a Requerente apresentou junto da Alfândega de Braga, ao abrigo do artigo 78.º da Lei Geral Tributária (LGT), um Pedido de Revisão Oficiosa dos atos de liquidação de imposto, dando origem ao processo de Revisão Oficiosa a que foi atribuído o nº ...2019...;
8. Com vista à apreciação desse pedido foi elaborada a informação de serviço datada de 15.01.2020, daquela alfândega, sobre a qual recaiu despacho do Diretor da Alfândega de Braga, co a mesma data, no sentido do indeferimento;
9. Após a audição prévia da Requerente, analisada a resposta apresentada neste âmbito, conforme resulta da informação nº .../CF/2020, de 11.02.2020, sobre a qual recaiu o despacho, do Diretor da Alfândega de Braga, de 11.02.2020, de rejeição do pedido de revisão das liquidações por extemporaneidade, decisão que foi notificada à Requerente pelo ofício nº..., de 12.02.2020, rececionada pelo mesmo em 13.02.2020;
10. Desta decisão a Requerente apresentou recurso hierárquico, tendo o mesmo sido apreciado na informação nº .../2020, da DSIECIV, mais tendo sido, a Requerente, em cumprimento do despacho de 17.03.2020 do Diretor de Serviços da DSIECIV, notificada do projeto de decisão de indeferimento, para efeitos de audição prévia;
11. O recurso hierárquico veio a ser, também, indeferido, por despacho datado de 27.05.2020 do Subdiretor-Geral da área de gestão tributária-IEC, notificado em 05.06.2020 à Requerente pelo ofício n.º ... (cf. Doc. 14 da Requerente), tendo esta apresentado, em 25.06.2020, junto da Instância Arbitral, o presente pedido de constituição de tribunal arbitral, peticionando a anulação parcial das liquidações de ISV e o reembolso do montante de 2.880,30 € acrescido de juros indemnizatórios.
III.2 FACTOS NÃO PROVADOS
Não existe outra factualidade alegada que não tenha sido considerada provada e que seja relevante para a composição da lide.
III.3 FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (conforme artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil [CPC], aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de direito (conforme anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral e no processo administrativo, não havendo controvérsia sobre eles.
IV. DA APRECIAÇÃO JURÍDICA
I – DA EXCEÇÃO DE CADUCIDADE DO DIREITO DE AÇÃO:
A primeira questão jurídica que importa analisar (porque do teor do conhecimento da mesma depende o conhecimento do mérito do PPA), é a exceção de caducidade do direito de ação. Entende a Requerida que o Pedido de Revisão Oficiosa das liquidações de ISV impugnadas, e o recurso hierárquico subsequente cujo indeferimento está na origem do presente PPA, foi apresentado intempestivamente, porque foi apresentado quando há muito se encontrava já ultrapassado o prazo de reclamação graciosa, de 120 dias, contados a partir do termo do prazo de pagamento voluntário do ISV.
Conforme este Tribunal considerou como provado, o prazo de pagamento voluntário das liquidações de ISV impugnadas (ato impugnado) teve o respetivo termo, respetivamente em 22.06.2018, 25.06.2018, 26.06.2018, 27.06.2018, 28.06.2018 e 04.07.2018. O Pedido de Revisão Oficiosa do ato impugnado foi apresentado junto da Alfândega de Braga em 24 de outubro de 2019, ou seja, mais de um ano a contar da data do termo do prazo de pagamento voluntário da última das liquidações de ISV impugnadas e, consequentemente, muito para além do termo do prazo de 120 dias previsto no disposto no artigo 70.º n.º 1 do CPPT.
Contudo, o procedimento de Revisão Oficiosa consagrado no artigo 78.º da Lei Geral Tributária (LGT) é um procedimento que se distingue do procedimento de reclamação graciosa, desde logo por ser um procedimento que não depende da iniciativa do contribuinte — em cumprimento do princípio da legalidade, a AT deve oficiosamente corrigir o ato tributário, designadamente o ato de liquidação de ISV, no momento em que perceba que o ato que praticou viola (de alguma forma) aqueles que são os direitos dos contribuintes, devendo corrigir o ato (i) no prazo de quatro anos, ou (ii) a todo o tempo, se o imposto ainda não tiver sido pago.
É também jurisprudência assente do STA que, se nos termos do disposto no artigo 78.º n.º 1 da LGT, a AT pode corrigir oficiosamente o ato tributário dentro dos prazos previstos na norma legal (4 anos, ou a todo o tempo se o imposto ainda não tiver sido pago), então também o contribuinte poderá, por sua iniciativa, suscitar perante a AT a revisão do ato tributário dentro dos mesmos prazos. Entendimento este que é claro, e que ademais, é o único entendimento que traduz uma aplicação plena do princípio da legalidade.
Vide neste sentido, o Acórdão do STA de 29 de maio de 2013, no processo n.º 140/13:
“I - O artº. 78° da LGT prevê a revisão do ato tributário «por iniciativa do sujeito passivo» ou «da administração tributária», aquela «no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade», e esta «no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços».
II - De acordo com o disposto no artº 78º, nº 2 da LGT considera-se imputável aos serviços, para efeitos do número anterior, o erro na autoliquidação, pelo que, não obstante o disposto no artº 131º do CPPT, o contribuinte pode suscitar a apreciação oficiosa de ilegalidade cometida em auto liquidação.
III - Tal resulta, desde logo, dos princípios da legalidade, da justiça, da igualdade e da imparcialidade – artº. 266°, n.° 2 da CRP.
IV - Face a tais princípios, não pode a Administração demitir-se legalmente de tomar a iniciativa de revisão do ato quando demandada para o fazer através de pedido dos interessados já que tem o dever legal de decidir os pedidos destes, no domínio das suas atribuições, sendo que o dever de pronúncia constitui, de resto, um princípio abertamente assumido pelo artº. 9° do CPA, no domínio do procedimento administrativo mas aqui também aplicável por mor do disposto no artº. 2° do mesmo código.
V - Sendo assim, e sendo tempestivo o pedido de revisão oficiosa efetuado no prazo de quatro anos após a autoliquidação, deverá ser apreciado o respetivo pedido de revisão”.
Vide no mesmo sentido, o Acórdão do STA de 14 de Março de 2012, no processo n.º 01007/11:
“I – A revisão do acto tributário por iniciativa da administração tributária pode ser efectuada a pedido do contribuinte, como resulta do artigo 78.º, n.º 7, da LGT e do artigo 86.º, n.º 4, alínea a), do CPPT, no prazo de quatro anos contados da liquidação (ou, no caso o tributo não ter sido pago, a todo o tempo), ficando com isso investido de um direito a uma decisão sobre o pedido formulado.
II – E o “erro imputável aos serviços” a que alude o artigo 78.º, nº 1, in fine, da LGT compreende não só o lapso, o erro material ou o erro de facto, como, também, o erro de direito, e essa imputabilidade aos serviços é independente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na emissão da liquidação afectada pelo erro”.
Vide no mesmo sentido, o Acórdão do STA de 21 de Janeiro de 2009, no processo n.º 771/08:
“I - O art. 78º da LGT abrange, na sua previsão legal, quer os impostos, quer as taxas.
II - A revisão do acto tributário, por iniciativa da administração tributária, pode efectuar-se a pedido do contribuinte, como resulta dos artºs. 78º, nº 6, da LGT e do art. 86º, nº 4, al. a) do CPPT, bem como dos princípios da legalidade, justiça, igualdade e imparcialidade – art. 266º, nº 2, da CRP.
III - O erro imputável aos serviços, previsto na parte final do nº 1 do art. 78º da LGT, compreende o erro de direito cometido pelos mesmos”.
Resulta assim do exposto que a decisão proferida pela Requerida no âmbito do procedimento de Revisão Oficiosa do Ato Tributário viola a jurisprudência do STA, que (desde há muito tempo) admite a apresentação de Pedido de Revisão Oficiosa por parte do contribuinte dentro do prazo que é concedido à AT para rever o ato tributário nos termos do disposto no artigo 78.º da LGT, sendo a jurisprudência igualmente clara no sentido de admitir que o designado “erro imputável aos serviços” “compreende não só o lapso, o erro material ou o erro de facto, como, também, o erro de direito, e essa imputabilidade aos serviços é independente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na emissão da liquidação afectada pelo erro”.
À luz da citada jurisprudência, não tem qualquer cabimento legal a afirmação da Requerida na decisão do procedimento de Revisão Oficiosa quando afirma que o ato tributário respeita a lei porque não foi “proferida qualquer decisão que declare com força obrigatória geral, o vício de violação de lei comunitária”. Ora, nos termos do disposto no artigo 78.º da LGT, nos termos da jurisprudência citada, e ainda, entre outros, nos termos do Acórdão do STA de 8 de fevereiro de 2017 no processo n.º 678/16, o erro de direito reporta-se a qualquer ilegalidade (inclusive por violação de normas de Direito Internacional Convencional ou por violação de normas de Direito Comunitário), não sendo a ausência de jurisprudência uniformizadora fundamento para que a Requerida não reveja o ato tributário nos prazos previstos no artigo 78.º da LGT.
Ainda no mesmo sentido, vide a jurisprudência maioritária do CAAD, designadamente, entre muitas outras, a Decisão Arbitral proferida em 23 de Novembro de 2020, no processo nº 293/2020-T, que julga improcedente a exceção de intempestividade invocada pela Requerida com base na posição assumida pelo Supremo Tribunal Administrativo, no Ac. STA 14/3/2012 (Dulce Neto), processo n.º 01007/11, e a Decisão Arbitral proferida em 4 de Dezembro de 2020, no processo n.º 329/2020-T.
Note-se ainda que a Decisão Arbitral proferida no processo 345/2017-T, referenciada pela Requerida, pronunciou-se no sentido da extemporaneidade do Pedido de Revisão Oficiosa do ato de liquidação de Imposto do Selo com base em questões que não foram levantadas nos presentes autos (a falta de impugnação, no PPA, da decisão proferida no âmbito do procedimento de Revisão Oficiosa). Por sua vez, a Decisão Arbitral proferida no processo 114/2019-T, também referenciada pela Requerida, tem por fundamento a inexistência de erro imputável aos serviços (uma vez que o IUC foi emitido pela AT com base nas informações disponibilizadas pelo IMT e pelo IRN) — situação que não tem qualquer correspondência com a situação em causa nos presentes autos, em que a Requerente alega que a Requerida incorreu em erro no apuramento do ISV liquidado.
Improcedem assim na sua totalidade, os argumentos expostos pela Requerida na sua Resposta, concluindo este Tribunal que (i) o Pedido de Revisão Oficiosa foi apresentado tempestivamente (dentro do prazo de quatro anos previsto no disposto no artigo 78.º da LGT); e, por conseguinte, (ii) o presente PPA foi apresentado tempestivamente (dentro do prazo de três meses a contar da decisão de indeferimento do recurso hierárquico (despacho datado de 27.05.2020 do Subdiretor-Geral da área de gestão tributária-IEC, notificado em 05.06.2020 à Requerente pelo ofício n.º...)); sendo assim julgada improcedente a alegada exceção de caducidade do direito de ação.
II – DA LEGALIDADE DAS LIQUIDAÇÕES DE ISV:
A questão de fundo a analisar é a conformidade do disposto no artigo 11.º do CISV com o disposto no artigo 110.º do TFUE (princípio da não discriminação), na medida em que a norma do CISV tributa de forma mais onerosa os veículos usados provenientes de outros EMUE, do que os veículos similares disponíveis no mercado Nacional.
Vejamos o quadro legal em análise:
O ISV (regulado pelo Código do Imposto sobre Veículos, previsto na Lei n.º 22-A/2007, Diário da República n.º 124/2007, 1º Suplemento, Série I) “obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam nos domínios do ambiente, infra-estruturas viárias e sinistralidade rodoviária, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária” (artigo 1.º do CISV), e incide sobre os veículos automóveis identificados no artigo 2.º do CISV.
A base tributável do ISV está prevista no artigo 4.º do CISV:
“1 - O imposto sobre veículos possui natureza específica, sendo a sua base tributável constituída pelos seguintes elementos, tal como constantes do respetivo certificado de conformidade:
a) Quanto aos automóveis de passageiros, de mercadorias e de utilização mista, tributados pela tabela A, a cilindrada, o nível de emissão de partículas, quando aplicável, e o nível de emissão de dióxido de carbono (CO(índice 2)) relativo ao ciclo combinado de ensaios resultante dos testes realizados ao abrigo do 'Novo Ciclo de Condução Europeu Normalizado' (New European Driving Cycle - NEDC) ou ao abrigo do 'Procedimento Global de Testes Harmonizados de Veículos Ligeiros' (Worldwide Harmonized Light Vehicle Test Procedure - WLTP), consoante o sistema de testes a que o veículo foi sujeito para efeitos da sua homologação técnica;
b) Quanto aos automóveis ligeiros de mercadorias e de utilização mista, tributados pela tabela B, a cilindrada e o nível de emissões de partículas, quando aplicável;
c) Quanto aos veículos fabricados antes de 1970, aos motociclos, triciclos, quadriciclos e autocaravanas, a cilindrada”.
Sob a epígrafe de “Facto gerador”, o n.º 1 do artigo 5.º do CISV determina que “Constitui facto gerador do imposto o fabrico, montagem, admissão ou importação dos veículos tributáveis em território nacional, que estejam obrigados à matrícula em Portugal”. Entende-se por “Admissão”, a entrada de um veículo originário ou em livre prática noutro Estado-membro da União Europeia em território nacional; e “Importação”, a entrada de um veículo originário de país terceiro em território nacional – alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 5.º do CISV. O ISV torna se exigível “no momento da introdução no consumo”, quando o facto gerador do imposto é “o fabrico, montagem, admissão ou importação dos veículos tributáveis em território nacional” – n.º 1 do artigo 6.º do CISV. Nos termos do mesmo n.º 1 do artigo 6.º, a “introdução no consumo” considera-se verificada:
a) “No momento da apresentação do pedido de introdução no consumo pelos operadores registados e reconhecidos”;
b) “No momento da apresentação da declaração aduaneira de veículos pelos particulares”. (Vide Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 27 de janeiro de 2010, proferido no processo nº 0766/09).
As taxas de ISV são as previstas no disposto no artigo 7.º, norma que prevê:
“Artigo 7.º
Taxas normais - automóveis
1 - A tabela A, a seguir indicada, estabelece as taxas de imposto, tendo em conta a componente cilindrada e ambiental, e é aplicável aos seguintes veículos:
a) Aos automóveis de passageiros;
b) Aos automóveis ligeiros de utilização mista e aos automóveis ligeiros de mercadorias, que não sejam tributados pelas taxas reduzidas nem pela taxa intermédia.
TABELA A
2 - A tabela B, a seguir indicada, tem em conta exclusivamente a componente cilindrada, sendo aplicável aos seguintes veículos:
a) Na totalidade do imposto, aos automóveis ligeiros de mercadorias, de caixa fechada, com lotação máxima de três lugares, incluindo o do condutor, e altura interior da caixa de carga inferior a 120 cm;
b) Na totalidade do imposto, aos automóveis ligeiros de mercadorias, de caixa fechada, com lotação máxima de três lugares, incluindo o do condutor, e tracção às quatro rodas, permanente ou adaptável;
c) Aos automóveis abrangidos pelos n.os 2 e 3 do artigo seguinte, nas percentagens aí previstas;
d) Aos automóveis abrangidos pelo artigo 9.º, nas percentagens aí previstas.
TABELA B
Componente cilindrada
3 - Ficam sujeitos a um agravamento de (euro) 500 no total do montante do imposto a pagar os veículos ligeiros equipados com sistema de propulsão a gasóleo, sendo o valor acima referido reduzido para (euro) 250 relativamente aos veículos ligeiros de mercadorias referidos no n.º 2 do artigo 9.º, com exceção dos veículos que apresentarem nos respetivos certificados de conformidade ou, na sua inexistência, nas homologações técnicas, um valor de emissão de partículas inferior a 0,002 g/km.
4 - Sempre que o imposto relativo à componente ambiental apresentar um resultado negativo, será o mesmo deduzido ao montante do imposto da componente cilindrada, não podendo o total do imposto a pagar ser inferior a (euro) 100, independentemente do cálculo que resultar da aplicação da tabela A ou da tabela B.
5 - A cilindrada dos automóveis movidos por motores Wankel corresponde ao dobro da cilindrada nominal, calculada nos termos do Regulamento das Homologações CE de Veículos, Sistemas e Unidades Técnicas Relativo às Emissões Poluentes, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 202/2000, de 1 de Setembro.
6 - Nas situações previstas na alínea b) do n.º 2 do artigo 5.º, o montante do imposto a pagar é o que resulta da diferença entre o imposto incidente sobre o veículo após a respectiva operação, atento o tempo de uso entretanto decorrido, e o imposto originariamente pago, excepto nos casos de mudança de chassis, em que o imposto é devido pela totalidade.
7 - (Revogado pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro).
8 - Os veículos que se encontrem equipados com motores preparados para o consumo, no seu sistema de propulsão, exclusivamente de gás de petróleo liquefeito (GPL), gás natural ou bioetanol, são tributados, na componente ambiental, pelas taxas correspondentes aos veículos a gasolina.
9 - Os veículos que se encontrem equipados com motores preparados para o consumo, no seu sistema de propulsão, de biodiesel são tributados, na componente ambiental, pelas taxas correspondentes aos veículos a gasóleo”.
A letra do artigo 11.º n.º 1 do CISV — na redação vigente à data da emissão do ato impugnado, que é a redação da Lei 42/2016, de 27 de Dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 2017 — LOE 2017) — era, à data, a seguinte:
“Artigo 11.º
Taxas - veículos usados
1 - O imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados membros da União Europeia é objeto de liquidação provisória nos termos das regras do presente Código, com exceção da componente cilindrada à qual são aplicadas as percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respetiva, as quais estão associadas à desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional:
TABELA D
2 - Para efeitos de aplicação do número anterior, entende-se por «tempo de uso» o período decorrido desde a atribuição da primeira matrícula e respectivos documentos pela entidade competente até ao termo do prazo para apresentação da declaração aduaneira de veículos.
3 - Sem prejuízo da liquidação provisória efetuada, sempre que o sujeito passivo entenda que o montante do imposto apurado dos termos do n.º 1 excede o imposto calculado por aplicação da fórmula a seguir indicada, pode requerer ao diretor da alfândega, mediante o pagamento prévio de taxa a fixar por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, e até ao termo do prazo de pagamento a que se refere o n.º 1 do artigo 27.º, que a mesma seja aplicada à tributação do veículo, tendo em vista a liquidação definitiva do imposto:
ISV=((V/VR) x Y) + C
em que:
ISV representa o montante do imposto a pagar;
V representa o valor comercial do veículo, tomando por base o valor médio de referência determinado em função da marca, do modelo e respetivo equipamento de série, da idade, do modo de propulsão e da quilometragem média de referência, constante das publicações especializadas do setor, apresentadas pelo interessado;
VR é o preço de venda ao público de veículo idêntico no ano da primeira matrícula do veículo a tributar, tal como declarado pelo interessado, considerando-se como tal o veículo da mesma marca, modelo e sistema de propulsão, ou, no caso de este não constar de informação disponível, de veículo similar, introduzido no mercado nacional, no mesmo ano em que o veículo a introduzir no consumo foi matriculado pela primeira vez;
Y representa o montante do imposto calculado com base na componente cilindrada, tendo em consideração a tabela e a taxa aplicável ao veículo, vigente no momento da exigibilidade do imposto;
C é o «custo de impacte ambiental», aplicável a veículos sujeitos à tabela A, vigente no momento da exigibilidade do imposto, e cujo valor corresponde à componente ambiental da referida tabela.
4 - Na falta de pedido de avaliação formulado nos termos do número anterior presume--se que o sujeito passivo aceita como definitiva a liquidação do imposto feita por aplicação da tabela constante do n.º 1.
5 – (Revogado pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro)”.
A letra do artigo 110.º do TFUE é a seguinte:
“Nenhum Estado-Membro fará incidir, directa ou indirectamente, sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidam, directa ou indirectamente, sobre produtos nacionais similares.
Além disso, nenhum Estado-Membro fará incidir sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas de modo a proteger indirectamente outras produções”.
Esta redação do artigo 11º, n.º 1 do CISV introduzida pela LOE 2017 surgiu após o Acórdão do Tribunal de Justiça (Sétima Secção) de 16 de junho de 2016, emitido no processo C-200/15 relativo à ação incumprimento interposta pela Comissão Europeia contra a República Portuguesa no qual se declarou a desconformidade da anterior redação desta disposição (11º, n.º 1, do CISV) com o art. 110º TFUE, nos seguintes termos:
“A título preliminar, importa referir que a Comissão solicita, no petitum da petição, que figura no n.° 1 do presente acórdão, que seja declarado que a República Portuguesa não cumpriu os deveres que lhe incumbem por força do artigo 110.° TFUE, ao aplicar, para efeitos da determinação do valor tributável dos veículos usados provenientes de outro Estado‑Membro, introduzidos no território nacional, um método de cálculo da desvalorização destes veículos «que não tem em conta o valor real do veículo e, em particular, que não tem em conta a desvalorização antes de o veículo atingir 1 ano, nem qualquer outra desvalorização no caso de veículos com mais de 5 anos». A este respeito, embora a Comissão utilize a expressão «em particular», decorre do corpo da sua petição que a Comissão formula, na realidade, duas acusações, a saber, por um lado, para efeitos do cálculo do imposto sobre os veículos em causa, a não tomada em consideração da desvalorização dos veículos automóveis utilizados há menos de um ano e, por outro, a determinação de um limite máximo de 52% da desvalorização dos veículos automóveis utilizados há mais de cinco anos. Nestas circunstâncias, deve entender‑se que a ação intentada pela Comissão abrange estas duas acusações.
23 Conforme resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o artigo 110.° TFUE tem por objetivo assegurar a livre circulação de mercadorias entre os Estados‑Membros, em condições normais de concorrência, através da eliminação de qualquer forma de proteção que possa resultar da aplicação de imposições internas que sejam discriminatórias para os produtos originários de outros Estados‑Membros (v., designadamente, acórdãos de 18 de janeiro de 2007, Brzeziński, C‑313/05, EU:C:2007:33, n.° 27, e de 7 de abril de 2011, Tatu, C‑402/09, EU:C:2011:219, n.° 34).
24 Este artigo é violado sempre que a imposição que incide sobre o produto importado e a que incide sobre o produto nacional similar são calculadas de forma diferente e segundo modalidades diferentes que conduzam, ainda que apenas em certos casos, a uma imposição superior do produto importado (acórdãos de 22 de fevereiro de 2001, Gomes Valente, C‑393/98, EU:C:2001:109, n.° 21; de 19 de setembro de 2002, Tulliasiamies e Siilin, C‑101/00, EU:C:2002:505, n.° 53; e de 20 de setembro de 2007, Comissão/Grécia, C‑74/06, EU:C:2007:534, n.° 25).
25 Assim, a cobrança, por um Estado‑Membro, de um imposto sobre os veículos usados provenientes de outro Estado‑Membro é contrária ao artigo 110.° TFUE, quando o montante do imposto, calculado sem tomar em conta a depreciação real do veículo, exceda o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional (v., designadamente, acórdãos de 9 de março de 1995, Nunes Tadeu, C‑345/93, EU:C:1995:66, n.° 20, e de 22 de fevereiro de 2001, Gomes Valente, C‑393/98, EU:C:2001:109, n.° 23).
26 Para efeitos da aplicação do artigo 110.° TFUE e, em especial, para efeitos da comparação entre o regime de tributação dos veículos usados importados e o dos veículos usados comprados no mercado nacional, que constituem produtos similares ou concorrentes, deve tomar‑se em consideração não apenas a taxa da imposição interna que incide direta ou indiretamente sobre os produtos nacionais e os produtos importados mas também a matéria coletável e as modalidades do imposto em causa. Mais precisamente, um Estado‑Membro não pode cobrar um imposto sobre os veículos usados importados, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares disponíveis no mercado nacional. O valor do veículo usado importado utilizado pela Administração como base de tributação deve refletir fielmente o valor de um veículo similar já registado no território nacional (v. acórdão de 20 de setembro de 2007, Comissão/Grécia, C‑74/06, EU:C:2007:534, n.os 27 e 28 e jurisprudência referida).
27 No caso em apreço, o artigo 11.°, n.° 1, do Código do Imposto sobre Veículos prevê, para efeitos do cálculo do imposto aplicável aos veículos usados importados de outros Estados‑Membros, a tomada em consideração de uma desvalorização em função de uma tabela de percentagens fixas que estabelece, designadamente, em 20% a desvalorização de um veículo automóvel utilizado durante um período de um a dois anos e em 52% a desvalorização de um veículo automóvel utilizado há mais de cinco anos.
28 Daqui resulta que a República Portuguesa aplica aos veículos automóveis usados importados de outros Estados‑Membros um sistema de tributação no qual, por um lado, o imposto devido por um veículo utilizado há menos de um ano é igual ao imposto que incide sobre um veículo novo similar posto em circulação em Portugal e, por outro, a desvalorização dos veículos automóveis utilizados há mais de cinco anos é limitada a 52%, para efeitos do cálculo do montante deste imposto, independentemente do estado geral real desses veículos.
29 Ora, é facto assente que o valor de mercado de um veículo automóvel começa a diminuir a partir da data da sua compra ou da sua entrada em circulação e que esta diminuição continua para além do quinto ano da sua utilização (v., neste sentido, acórdão de 19 de setembro de 2002, Tulliasiamies e Siilin, C‑101/00, EU:C:2002:505, n.° 78).
30 Deste modo, a regulamentação nacional em causa tem por consequência que o montante do imposto de registo a pagar pelos veículos automóveis usados importados de outros Estados‑Membros para Portugal e utilizados há menos de um ano ou há mais de cinco anos é calculado sem tomar em consideração a desvalorização real desses veículos.
31 Por conseguinte, a regulamentação nacional em causa não garante que, nos casos referidos no número anterior do presente acórdão, os veículos usados importados de outro Estado‑Membro sejam sujeitos a um imposto de montante igual ao do imposto que incide sobre os veículos usados similares disponíveis no mercado nacional, o que é contrário ao artigo 110.° TFUE.
32 A este respeito, não procede o argumento da República Portuguesa segundo o qual a aplicação da tabela de percentagens fixas é frequentemente mais vantajosa para os veículos automóveis com mais de cinco anos, designadamente quando estão em causa veículos clássicos ou de coleção, dado o seu valor histórico. Com efeito, ainda que esta afirmação procedesse, esta tabela continuaria a ser, pelo menos nalguns dos casos indicados no n.° 30 do presente acórdão, discriminatória.
33 Há também que rejeitar o argumento da República Portuguesa segundo o qual o sistema de tributação misto dos veículos usados, baseado numa tabela de percentagens fixas e, complementarmente, quando o sujeito passivo o pretenda, numa avaliação do veículo, está organizado de modo a excluir qualquer efeito discriminatório, pelo que é compatível com o artigo 110.° TFUE.
34 Com efeito, não basta, para evitar que um sistema de tributação seja contrário a este artigo, que o sujeito passivo tenha possibilidade de requerer uma avaliação do veículo em causa (v., neste sentido, acórdão de 20 de setembro de 2007, Comissão/Grécia, C‑74/06, EU:C:2007:534, n.° 41). Esta possibilidade não atenua o facto de que a tabela de percentagens fixas aplicável, a não ser que o sujeito passivo requeira uma avaliação do veículo, é discriminatória e não permite garantir que os veículos usados importados de outros Estados‑Membros sejam sujeitos a um imposto que não exceda o montante do imposto residual incorporado no valor dos veículos usados similares já matriculados no território nacional.
35 Do mesmo modo, há que afastar os argumentos da República Portuguesa relativos ao facto de o artigo 11.° do Código do Imposto sobre Veículos assentar em razões de ordem prática, uma vez que, por um lado, a maioria dos veículos automóveis usados importados de outros Estados‑Membros para Portugal são veículos que têm entre um e cinco anos e que, por outro, tanto a aplicação do método de cálculo do imposto baseado na avaliação de todos os veículos automóveis em causa como a conceção e a aplicação de uma tabela que tenha exaustivamente em conta todos os critérios, tais como a idade, a quilometragem, o estado geral, o modo de propulsão, a marca ou o modelo do veículo, gerariam inconvenientes administrativos, custos elevados e perdas de tempo.
36 A este respeito, no que se refere às dificuldades práticas relacionadas com o cálculo do valor real dos veículos usados para efeitos de cálculo do imposto em litígio, admitindo que a existência dessas dificuldades possa ser comprovada, elas não podem justificar a aplicação de imposições internas discriminatórias em relação aos produtos originários de outros Estados‑Membros, contrárias ao artigo 110.° TFUE (v. acórdão de 9 de março de 1995, Nunes Tadeu, C‑345/93, EU:C:1995:66, n.° 19).
37 Além disso, o Tribunal de Justiça já declarou que a tomada em consideração da desvalorização real dos veículos não tem necessariamente que levar a uma avaliação ou a uma prova pericial de cada um deles. Com efeito, evitando as dificuldades inerentes a tal sistema, um Estado‑Membro pode fixar, através de tabelas de percentagens fixas determinadas por uma disposição legislativa, regulamentar ou administrativa e calculadas com base em critérios como a idade, a quilometragem, o estado geral, o modo de propulsão, a marca ou o modelo do veículo, um valor dos veículos usados que, regra geral, é muito próximo do seu valor real (acórdãos de 22 de fevereiro de 2001, Gomes Valente, C‑393/98, EU:C:2001:109, n.° 24, e de 20 de setembro de 2007, Comissão/Grécia, C‑74/06, EU:C:2007:534, n.° 29).
38 Assim, embora não decorra desta jurisprudência que as tabelas de percentagens fixas devam ser concebidas com base em todos estes critérios, uma vez que esta contém só, como confirma a utilização do termo «como», uma lista exemplificativa e não exaustiva de critérios de elaboração das referidas tabelas, importa contudo que, conforme resulta dos n.os 24 a 26 do presente acórdão, a aplicação destas tabelas não conduza, ainda que apenas em certos casos, a uma tributação dos veículos usados importados de outros Estados‑Membros superior à dos veículos similares já matriculados no Estado‑Membro em causa.
39 A este respeito, o Tribunal de Justiça já declarou que a tomada em consideração de vários fatores de desvalorização, como os indicados no n.° 37 do presente acórdão, é suscetível de garantir que a tabela de percentagens fixas reflita de forma muito mais precisa a desvalorização efetiva dos veículos e permita atingir o objetivo de uma tributação dos veículos usados importados que não seja em caso algum superior ao montante do imposto residual incorporado no valor dos veículos usados similares já matriculados no território nacional (v., neste sentido, acórdão de 22 de fevereiro de 2001, Gomes Valente, C‑393/98, EU:C:2001:109, n.° 28).
40 Resulta de todas as considerações precedentes que a ação da Comissão deve ser julgada procedente.
41 Por conseguinte, há que declarar que a República Portuguesa, ao aplicar, para efeitos da determinação do valor tributável dos veículos usados provenientes de outro Estado‑Membro, introduzidos no território de Portugal, um sistema relativo ao cálculo da desvalorização dos veículos que não tem em conta a sua desvalorização antes de estes atingirem um ano, nem a desvalorização que seja superior a 52% no caso de veículos com mais de cinco anos, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.° TFUE”.
Contudo, a redação do art. 11º do CISV dada pela LOE 2017 mantém uma diferenciação com os valores do ISV aplicáveis aos veículos nacionais, e que constam do art. 7º CISV e tabelas anexas, dado que o legislador, em conformidade com o acima referido acórdão do TJUE, alargou as percentagens de redução ao primeiro ano de uso do veículo, prolongando-a até aos 10 e mais anos de uso, mas introduziu uma outra alteração diferenciadora em relação aos veículos com origem noutros Estados-Membros, com impacto no cálculo do ISV, uma vez que a actual redacção do art. 11º CISV limita a aplicação das percentagens de redução apenas à componente cilindrada — não aplicando as percentagens de redução à componente ambiental (emissão de CO2).
Ora, uma vez que, nos termos do artigo 7.º do CISV, a taxa de ISV é determinada de acordo com as duas componentes (cilindrada e ambiental), tal significa que, no que respeita à componente ambiental, os veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros EMUE vão ser tributados como se fossem veículos novos — ou seja, vão ser sujeitos a um imposto superior ao montante do imposto residual incorporado no valor dos veículos usados similares já matriculados no território nacional — o que, nos termos expostos, constitui uma violação do disposto no artigo 110.º do TFUE.
Note-se que o Estado Português tanto sabe que assim é, que na Lei n.º 75-B/2020, de 31/12 (Orçamento do Estado para 2021) veio alterar a redação do n.º 1 do artigo 11.º do CISV passando a norma a prever: “1 - O imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados-Membros da União Europeia é objeto de liquidação provisória nos termos das regras do presente Código, ao qual são aplicadas as percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respetiva, tendo em conta a componente cilindrada e ambiental, incluindo-se o agravamento previsto no n.º 3 do artigo 7.º, as quais estão associadas à desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional e à vida útil média remanescente dos veículos, respetivamente”.
Embora seja discutível se a nova redação do artigo 11.º n.º 1 já respeita cabalmente o Direito Comunitário (questão que não se coloca no âmbito dos presentes autos), a verdade é que os argumentos esgrimidos pela Requerida não são suscetíveis de justificar uma tributação mais onerosa para os veículos usados importados de outro EMUE: “Mais precisamente, um Estado‑Membro não pode cobrar um imposto sobre os veículos usados importados, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares disponíveis no mercado nacional” (vide Acórdão do TJUE referido supra).
Temos assim de concluir do exposto, que a Requerente está correta quando afirma que a redação do artigo 11.º n.º 1 à data da emissão do ato impugnado (redação da LOE 2017) viola o artigo 110.º do TFUE (antigo artigo 90.º do TCE), uma vez que o quadro legal em análise não garante que “os veículos usados importados de outro Estado‑Membro sejam sujeitos a um imposto de montante igual ao do imposto que incide sobre os veículos usados similares disponíveis no mercado nacional, o que é contrário ao artigo 110.° TFUE” (vide Acórdão do TJUE referido supra).
Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 8.º n.º 3 da CRP “As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático”. Esta norma traduz o princípio do primado do Direito Comunitário (Acórdão do TJUE — Costa contra Enel, de 15 de Julho de 1964) que determina que os Estados (designadamente a Autoridade Tributária e Aduaneira) não podem aplicar normas que violem as normas de Direito Comunitário, designadamente as normas dos Tratados.
No caso concreto, a Requerida não podia (i) ter aplicado o artigo 11.º do CISV em violação artigo 110.º do TFUE, quando emitiu o ato impugnado, e (ii) ter mantido esse ato de liquidação, recusando-se a reconhecer a ilegalidade do ato, quer na decisão do procedimento de Revisão Oficiosa, quer na decisão do recurso hierárquico dessa mesma decisão. Ao fazê-lo, incorreu em erro (de Direito) imputável aos serviços da Alfândega de Braga (note-se que é já muito extensa a jurisprudência do CAAD que existe sobre esta matéria). Neste sentido, veja-se, entre muitas outras, a Decisão Arbitral proferida em 17 de dezembro de 2020 no processo n.º 296/2020-T, a qual acompanhamos integralmente:
“37. Como se disse supra, para o Tribunal de Justiça, a proibição contida no artigo 110.º TFUE serve de complemento às disposições relativas à supressão de direitos aduaneiros e encargos de efeito equivalente no âmbito do mercado interno. Muito embora os Tratados admitam compressões à proibição de restrições quantitativas à importação e exportação inscrita nos artigos 34.º e 35.º do TFUE (cf. artigo 36.º), idêntica possibilidade não procede em matéria de direitos aduaneiros e encargos de efeito equivalente, onde vale uma proibição absoluta, entenda-se, uma proibição não mediada por razões imperativas de interesse geral ou pelos interesses públicos expressamente elencados no artigo 36.º (cf., por ex., o Acórdão do Tribunal de Justiça de 11-03-1992, Sociétés Compagnie commerciale de l'Ouest, processos apensos C-78/90, C-79/90, C-80/90, C-81/90, C-82/90 e C-83/90, pontos 24 ss., disponível em http://curia.europa.eu/).
38. Acresce que a última palavra sobre a interpretação do direito primário e derivado da União pertence ao Tribunal de Justiça. Nisso consiste, aliás, o princípio da autonomia da ordem jurídica da União (cf., sobre este princípio, entre muitos outros, o Acórdão do Tribunal de Justiça de 03-09-2008, Kadi, processos apensos C-402/05 e C-415/05 P, e na doutrina, Tobias Lock, «Walking on a tightrope: the draft ECHR accession agreement and the autonomy of the EU legal order», Common Market Law Review, 48, 2011, pp. 1025-1054). Assim sendo, não pode a Requerida interpretar o artigo 110.º do TFUE à revelia daquilo que, sobre o mesmo preceito, vem sendo dito pelo Tribunal de Justiça.
39. Tenha-se presente, em todo o caso, que a jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre o artigo 110.º TFUE não desconsidera o interesse geral de proteção do ambiente. Pelo contrário, como se fez referência, admite-se que os Estados-membros estabeleçam um sistema de tributação diferenciado para certos produtos em função de critérios objetivos, como, por ex., a natureza das matérias primas utilizadas ou os processos de produção aplicados. O que o direito da União não permite é que aquela tributação resulte em desfavor para os produtos provenientes de outros Estados-membros.
40. Depois, o que o Requerente veio ao processo peticionar é – tão-só – o funcionamento dos princípios do primado e do efeito direto, ou seja, a desaplicação das normas nacionais contrárias ao direito da União, a correspondente anulação parcial do ato de liquidação e a prática do ato legalmente devido à luz da norma de direito da União dotada de efeito direto – o artigo 110.º TFUE. Daqui não resulta entorse para o princípio da legalidade da administração nem para o princípio da legalidade fiscal, antes um reforço dessa mesma legalidade, à luz de um princípio de preferência de aplicação.
41. Finalmente, a Requerida faz uma incorreta interpretação das normas do artigo 66.º CRP (als. f) e h) do n.º 2) e das convenções internacionais em matéria ambiental de que Portugal é signatário. O artigo 66.º, n.º 2, nas alíneas que agora importa apreciar, dispõe o seguinte: «2- Para assegurar o direito ao ambiente, no quadro de um desenvolvimento sustentável, incumbe ao Estado, por meio de organismos próprios e com envolvimento e a participação dos cidadãos: (...) f) Promover a integração de objetivos ambientais nas várias políticas de âmbito setorial (...); h) Assegurar que a política fiscal compatibilize desenvolvimento com proteção do ambiente e qualidade de vida» (o itálico é nosso). É certo que o direito ao ambiente e qualidade de vida, apesar de consagrado no catálogo dos direitos económicos, sociais e culturais possui, em algumas das suas dimensões, suficientemente determinidade para constituir um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias (artigo 17.º CRP) – neste sentido, cf. M. Glória Dias Garcia / Gonçalo Matias, “Artigo 66.º”, in Constituição Portuguesa Anotada (org. Jorge Miranda/Rui Medeiros), vol. 1, 2.ª edição revista, UCE, Lisboa, 2017, p. 974.
Não é o caso, todavia, dos segmentos destacados pela Requerida, porquanto aí estarão em causa normas programáticas, isto é, normas constitucionais impositivas de legislação, na determinação do conteúdo das quais goza o legislador, por via de legitimação democrática, de margem de conformação não negligenciável. Por sua vez, o Acordo de Paris, do qual – aliás – a União Europeia é subscritora, juntamente com os seus Estados-membros - contém um conjunto de compromissos vinculativos em matéria ambiental, mas não inclui nenhuma obrigação específica em matéria de tributação automóvel, que esteja apta a reduzir drasticamente a margem de conformação de que o legislador parlamentar dispõe nesta matéria.
42. Isto para dizer que, ao manter-se fiel ao princípio do primado no que respeita à interpretação do artigo 110.º TFUE – o que in casu significa estender a redução prevista no artigo 11.º CISV à componente ambiental – o Estado Português não estará, certamente, a “desaplicar” nem tampouco a violar as obrigações internacionais subscritas com o Acordo de Paris, ou as normas constitucionais impositivas de legislação em matéria ambiental, vertidas nas alíneas f) e h) do n.º 2 do artigo 66.º. O que sucede é que o empenho na construção e aprofundamento da União Europeia (artigo 7.º, n.º 6 CRP), do qual o princípio do primado é reflexo, constitui um interesse constitucionalmente relevante e que tem de ser tido em conta no momento da definição da política ambiental do Estado Português.
43. Dito de outro modo, Portugal não tem uma política ambiental – nacional ou internacional – desgarrada ou à revelia do projeto europeu, dos Tratados (TUE e TFUE) e da própria política da União em matéria de ambiente (artigo 191.º TFUE), que como se sabe é uma matéria de competência partilhada entre a União e os Estados-membros (cf. artigo 4.º, n.º 2, al. e) do TFUE). É isso que resulta, no fundo, da autocontenção soberana presente no artigo 7.º, n.º 6 e no artigo 8.º, n.º 4 CRP.
44. Uma vez que o thema decidendum levanta uma questão de interpretação do direito da União, cumpre indagar se este Tribunal Arbitral não estaria, enquanto tribunal que decide em última instância (cf. artigo 267.º TFUE), obrigado a colocar ao Tribunal de Justiça uma questão prejudicial com o propósito de dilucidar a compatibilidade do artigo 11.º do CISV com o artigo 110.º TFUE. Porém, como resulta da denominada jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre o “ato clarificado” (cf. acórdão do Tribunal de Justiça de 27-03-1963, Da Costa en Schaake NV, processos apensos 28/62, 29/62 e 30/62) não existe obrigação de reenvio prejudicial, nos termos do artigo 267.º do TFUE, quando a questão suscitada seja materialmente idêntica a questão que já tenha sido objeto anteriormente de uma decisão com caráter prejudicial. Em face da jurisprudência de que supra mencionada, parece a este Tribunal indiscutível que, apesar de o Tribunal de Justiça ainda não ter tido ensejo de se debruçar, em sede de reenvio prejudicial ou noutra, sobre a atual configuração do artigo 11.º do CISV, aquele acervo jurisprudencial, tendo por objeto questões materialmente idênticas, constitui suporte bastante para a conclusão alcançada.
45. Em consequência, entende-se que a atual legislação portuguesa vertida no artigo 11.º do Código do ISV não está em conformidade com o direito da União, designadamente com o disposto no artigo 110.º do TFUE. Por conseguinte, determina este Tribunal Arbitral a anulação parcial do ato de liquidação de ISV objeto do pedido, por o mesmo padecer de ilegalidade na parte em que não considerou aplicável a redução de ISV relativa à componente ambiental, em conformidade com o disposto no artigo 110.º do TFUE”.
Para além da Decisão transcrita, chamamos também a atenção para, entre muitas outras, as Decisões Arbitrais proferidas nos processos: (i) 572/2018-T; (ii) 346/2019-T; (iii) 158/2020-T; (iv) 201/2020-T; (v) 293/2020-T; (vi) 296/2020-T; (vii) 297/2020-T; (viii) 329/2020-T; e (ix) 391/2020-T.
III – DA INCONSTITUCIONALIDADE DA INTERPRETAÇÃO DO ART. 11º DO CISV EM CONFORMIDADE COM O ARTIGO 110º DO TFUE:
No que respeita a esta questão, acompanhamos na íntegra a Decisão Arbitral de 23 de Novembro de 2020, proferida no processo n.º 293/2020-T, para a qual remetemos:
“12. Veio ainda a Requerida alegar que a desaplicação do artigo 11.º do CISV resulta numa violação do princípio da legalidade consagrado no artigo 266.º da CRP e do disposto nos artigos 20.º, n.º 1 e n.º 4, 66º, e 266.º, todos da CRP, i.e. violação dos princípios do Estado de Direito ambiental e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva.
É manifesto que tal não sucede, sendo de salientar que, nos termos do art. 8º, nº4 da Constituição, "as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático". Não é assim possível aos tribunais, salvo em caso de violação dos princípios fundamentais do Estado de direito democrático, que in casu não se verificam, recusar a aplicação de normas do Direito da União Europeia invocando disposições do Direito Interno Português.
Relativamente à invocação da limitação dos recursos em sede da arbitragem tributária, tal resulta da vinculação da Administração Tributária à jurisdição do CAAD resultante da Portaria 112-A/2011, de 22 de Março, com as alterações resultantes da Portaria 287/2019, de 3 de Outubro, e ao regime instituído no RJAT que este Tribunal tem que observar. É por isso que tem o dever de apreciar a legalidade dos actos tributários de liquidação de ISV aqui em causa, limitado e no âmbito da competência que lhe é conferida pelo artigo 2.º n.º s 1 e 2 do RJAT, não se verificando qualquer inconstitucionalidade nessa sua competência. Na verdade, a existência de tribunais arbitrais é reconhecida pelo art. 209º, nº2, da Constituição”.
IV – DOS JUROS INDEMNIZATÓRIOS:
A obrigação de pagamento de juros indemnizatórios — (à taxa de 4%, nos termos do artigo 43.º n.º 4 e artigo 35.º n.º 10 da LGT, sendo que este último artigo remete para o disposto no artigo 559.º n.º 1 do Código Civil, que por sua vez remete para a Portaria 291/2003 de 8 de abril) em virtude da procedência total ou parcial de impugnação a favor do sujeito passivo — decorre da aplicação do disposto no artigo 100.º da LGT, que prevê a obrigação da Requerida de reconstituir a legalidade do ato objeto do litígio, tal dever compreendendo: (i) a obrigação de reembolso do montante indevidamente pago, e (ii) o pagamento de juros indemnizatórios devidos desde a data do pagamento indevido efetuado pela Requerente até à data em que o reembolso do imposto pago indevidamente seja efetivamente efetuado.
Contudo, no caso concreto, o direito da Requerente a juros indemnizatórios é regulado também pelo disposto no artigo 43.º n.º 3 al. (c) da LGT, que nos diz que são devidos juros indemnizatórios “Quando a revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte se efetuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária”. Nas palavras do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 27 de fevereiro de 2019, proferido no processo n.º 022/18.5BALSB:
“I - Só são devidos juros indemnizatórios quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária - art.º 43.º n.º 3 Lei Geral Tributária.
II - Podendo o contribuinte, ter obtido anteriormente a anulação do acto de liquidação praticado em 2012 e 2013, nada fez, desinteressando-se temporariamente da recuperação do seu dinheiro, até que em 28 de Setembro de 2016, apresentou um pedido de revisão oficiosa do acto tributário.
III - Tal justifica que o direito a juros indemnizatórios haja de ter uma extensão mais reduzida por contraposição à situação em que o contribuinte suscita a questão da ilegalidade do acto de liquidação imediatamente após o desembolso da quantia em questão.
IV - O legislador considera que o prazo de um ano é o prazo razoável para a Administração decidir o pedido de revisão e executar a respectiva decisão, quando favorável ao contribuinte, afastando-se da indemnização total dos danos a partir do momento em que surgiram na esfera patrimonial do contribuinte.
V - Impondo a lei constitucional ao Estado a obrigação de reparar os danos causados pelos seus actos ilegais, tem vindo a lei ordinária a estabelecer limites a essa reparação, sejam os decorrentes da valorização da maior ou menor diligência do lesado, seja do tempo que faculta para a Administração Tributária decidir”.
Aplicando o disposto no artigo 43.º n.º 3 al. (c) da LGT, bem como o disposto no Acórdão do STA referido supra, os requisitos do direito a juros indemnizatórios (previsto no artigo 43.º nº 1 da LGT) estão verificados, uma vez que: (a) a Requerida incorreu num erro de Direito ao emitir o ato impugnado e, posteriormente, ao não anular o mesmo no âmbito do procedimento de Revisão Oficiosa nem no âmbito do recurso hierárquico; (b) o erro foi imputável exclusivamente aos serviços da Requerida (que podia ter anulado o ato e não o anulou); (c) a existência desse erro é determinada na decisão arbitral dos presentes autos; (d) desse erro resultou o pagamento de uma dívida tributária que não era devida e, (e) a decisão arbitral (favorável à Requerente) está a ser proferida mais de um ano após a apresentação do Pedido de Revisão Oficiosa (em 23 de outubro de 2019) por parte da Requerente (vide o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 22 de maio de 2019, proferido no processo nº 1770/12.9BELRS; o Acórdão do STA de 11 de Dezembro de 2019, no processo nº 058/19.9BALSB; e o Acórdão do mesmo Tribunal, de 20 de Maio de 2020, no processo nº 05/19.8BALSB).
Termos em que, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios, à taxa legal (4%), que são devidos desde o termo do prazo de um ano após a instauração do Pedido de Revisão Oficiosa, (ou seja, desde 23 de outubro de 2020), até à data em que o reembolso do imposto pago indevidamente seja efetivamente efetuado.
VI. DECISÃO
Termos em que se decide julgar totalmente procedente o presente PPA, e por conseguinte:
a) Anular o ato impugnado;
b) Condenar a Requerida a reembolsar a Requerente no montante de ISV pago em excesso, montante este que deverá ser acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal (4%) desde 23 de outubro de 2020 até à data do reembolso efetivo;
c) Condenar a Requerida no pagamento das custas do processo.
VII. VALOR DO PROCESSO
Em conformidade com o disposto no artigo 306.º n.º 2 do CPC, no artigo 97.º-A n.º 1 alínea a) do CPPT, e no artigo 3.º n.º 2 do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, é fixado ao processo o valor de EUR 2880,30.
VIII. CUSTAS
O montante das custas (a cargo da Requerida) é fixado em EUR 612,00 (nos termos do disposto no artigo 12.º n.º 2 e no artigo 22.º n.º 4 do RJAT, e na Tabela I anexa do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária).
Notifique-se.
Lisboa, 10 de março de 2021.
Elisabete Flora Louro Martins Cardoso
(Árbitro Singular)