Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 242/2020-T
Data da decisão: 2021-03-01  IMT  
Valor do pedido: € 21.869,91
Tema: Liquidação IMT – art. 2.º/1 a) CIMT.
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Sumário

I.             Nada impede que sejam usados numa inspecção interna elementos obtidos numa inspecção externa;

II.            A solicitação de elementos durante uma inspecção interna não impõe a alteração da natureza da mesma para externa, sendo determinante, em termos gerais, o facto de a inspecção não se fazer nas instalações do sujeito passivo;

III.          A existência de um contrato de cessão de exploração não implica que exista a tradição do imóvel a favor do cessionário nem que este usufrua do mesmo, pelo que, sendo celebrado um contrato de promessa de compra e venda, não estão preenchidos ipso facto os requisitos do art. 2.º/2 a) do CIMT.

 

Decisão Arbitral

 

I – Relatório

1. A..., Unipessoal, Lda., contribuinte fiscal n.º..., com sede na ..., n.º..., ... ... Mealhada vem requerer a constituição de Tribunal Arbitral em matéria tributária, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20.01, para apreciar a ilegalidade do acto de liquidação adicional de IMT relativa ao ano de 2017 que lhe impôs o pagamento da quantia de € 21.869.91€.

 

2.  A Requerente invoca a ilegalidade do procedimento inspectivo no qual se baseia a decisão de liquidação adicional de IMT - o que determinará a nulidade desta (por força do art.163.º/1 do CPA). Invoca ainda a ilegalidade do próprio acto de liquidação por não preencher os requisitos do art. 2.º/1 a) CIMT e por ausência de fundamentação (art. 77.º LGT).

 

3. Relativamente à ilegalidade do processo inspectivo a Requerente sustenta que a ordem de serviço que deu origem a esse processo contempla a fiscalização de carácter interno e parcial, tendo sobrevindo uma alteração dessa natureza, a qual apenas seria válida havendo despacho nesse sentido nos termos do 15.º/1 RCPIT.

 

4. De facto, o Relatório de Inspecção refere que o procedimento se destinava à comprovação e verificação, visando a confirmação do cumprimento das obrigações dos sujeitos passivos e demais obrigados tributários, na sequência do que a AT solicitou à Requerente o processo de documentação fiscal relativa ao ano de 2017.

 

5. Daqui terá resultado a referida alteração do procedimento inspectivo, que segundo a ordem de serviço deveria ter um carácter interno e parcial, mas terá passado a externo, com o pedido em causa – que envolveu o acesso a documentos e ficheiros de contabilidade e á prestação de esclarecimentos –, alteração essa que exigia um despacho fundamentado e notificação do sujeito passivo, nos termos do art. 15.º/1 RCPIT (e também do art 268.º/3 da Constituição e art.s 152.º e 153.º do CPA).

 

6. Tal despacho não ocorreu, nem da inspecção foi informada a Requerente, o que configurará uma preterição de formalidade essencial que determina a nulidade do despacho de liquidação adicional que recai sobre esse relatório de inspecção, por força do art. 163.º/1 CPA.

 

7. A ilegalidade do procedimento inspectivo decorreria ainda, se necessário, da ofensa dos princípios da legalidade, da proporcionalidade e da necessidade, da imparcialidade, da garantia e cooperação.

 

8. Quanto á liquidação do imposto, a Requerente reconhece que em 17.1.2013, celebrou um contrato de cessão de exploração com B... referente ao prédio sito na ..., n.º..., ...-... Mealhada e que, em 1.1.2017, celebrou com o mesmo indivíduo um contrato de promessa de compra e venda do mesmo imóvel, pelo valor de 300.000,00 €.

 

9. Sendo que, em consequência do contrato de cessão de exploração, se mantém desde 17.1.2013 o direito de exploração do referido imóvel para Hotelaria e Restauração, ao qual corresponde o pagamento de uma renda de 650 € mensais e nele se estipulando que quaisquer obras no edifício dependem de prévia autorização do proprietário, ficando integralmente a cargo e custeio do cessionário, revertendo as mesmas para o proprietário, sem direito a qualquer indemnização.

 

10. Diversamente, quanto ao prometido de compra e venda, não ocorreu ainda a celebração do mesmo (não tendo sido fixado prazo na respectiva promessa), mas ali se estipulou que as importâncias pagas referentes ao contrato de cessão de exploração (que se extinguirá apenas com a celebração da escritura) não serão tidas em conta para efeito deste contrato compra e venda. Esclarece-se ainda que nenhum dos contractos confere qualquer tipo de posse ao cessionário/promitente comprador e insiste-se que todos e quaisquer melhoramentos no edifício, não conferem qualquer direito a indemnização ou a desconto no contrato de compra e venda, sejam elas de que natureza forem.

 

11. Sustenta, por isso, não ter ocorrido tradição do imóvel, nem destes contratos ter decorrido transferência da posse ou do usufruto.

 

12. Não havendo posse (senão em nome alheio) nem tradição aquisitiva do bem, não se verificam os requisitos da aplicação do art. 2.º/2 a) do CIMT, no qual a AT fundou a liquidação de IMI, devendo esta, por isso ser anulada.

 

13. Pretende ainda a Requerente que, nesse sentido, a AT foi negligente por ter não ter diligenciado no sentido de apurar a verdade material, comprovando a veracidade de todas as presunções que fez, ou solicitado quaisquer esclarecimentos, conforme a lei lhe impunha (nomeadamente por força do art. 55.º da LGT e dos art. 266.º/2 e 59.º da CRP).

 

14. Considera ainda que a actuação da AT terá violado os princípios constitucionais da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé.

 

15. A Requerente assume, por fim, que terá havido falta ou insuficiência de fundamentação da decisão de liquidação adicional o que torna o acto desprovido de elementos de facto e de direito.

 

16. Em 28.04.2020, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação, nomeadamente com a notificação à AT, na mesma data.

 

17. Em conformidade com os artigos 5.º/3 a), 6.º/2 a) e 11.º/1 a), todos do RJAT, o Conselho Deontológico do CAAD designou o árbitro do tribunal arbitral singular que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

18. As partes, notificadas dessa designação em 7.07.2020, não se opuseram, nos termos dos artigos 11.º/1 a) e b) e 8.º do RJAT, 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD, sendo o tribunal arbitral singular constituído em 6.08.2020.

 

19. Beneficiando da prorrogação do prazo na sequência de um pedido seu nesse sentido, a Requerida apresentou resposta em 28.10.2020, na qual se defende por impugnação e pugna pela improcedência do pedido e consequente absolvição e juntou o processo administrativo.

 

20. Explica a requerida, em síntese que a liquidação impugnada referente ao ano de 2017 teve na sua origem um procedimento de inspecção interno o realizado com base na ordem de serviço n.º OI2019... que incidiu sobre um contrato de promessa de compra e venda que havia sido remetido pela Requerente, no âmbito de um procedimento anterior, externo (credenciado pelo despacho DI2019...).

 

21. Entende, por isso, que os actos inspectivos que estão na origem da liquidação impugnada foram realizados todos exclusivamente nos serviços da administração tributária, e consistiram na análise do contrato-promessa de compra e venda que já estava na posse da AT, pelo que o procedimento de inspecção tributária deve ser material e formalmente classificado como sendo interno, ao abrigo do art. 13.º a) do RCPITA.

 

22. Reconhece a Requerida que foi a partir do conhecimento da existência do contrato de promessa de compra e venda (que obteve no âmbito da inspecção externa parcial relativo ao ano de 2019) – e que incidia sobre o imóvel que o sujeito passivo explorava no âmbito do contrato de cessão – que foi iniciado o procedimento interno de inspecção relativo a 2017.

 

23. Conjugando os dois contratos, a AT veio a concluir que a Requerente usufruía do respectivo prédio urbano (em consequência do contrato de cessão de exploração) devendo aplicar-se o IMT nos termos do art. 2.º/2 a) que determina essa aplicação às promessas de aquisição e de alienação logo que verificada a tradição para o promitente adquirente ou quando este esteja a usufruir dos bens.

 

24. A AT justifica esse entendimento lembrando que o conceito de transmissão para efeitos de lei fiscal é mais abrangente daquele que o usado no direito civil, englobando a própria transmissão económica ou de facto, mesmo que despida das formalidades exigíveis por lei.

 

25. Defende, assim, que é neste âmbito que, para efeitos fiscais, a outorga do contrato promessa de compra e venda acompanhado da tradição da coisa se equipara a uma verdadeira transmissão, obrigando à liquidação do imposto de transmissão.

 

26. Para efeitos de IMT, os requisitos serão dois: a celebração do contrato promessa de compra e venda e a tradição do imóvel para a esfera do promitente-comprador (supondo esta a transmissão presumivelmente definitiva de facto dos poderes gerais que o proprietário detém em relação ao imóvel).

 

27. Esses requisitos estarão verificados no caso uma vez que o promitente comprador está a usufruir do imóvel (o que significará ter a posse de algo que não é sua propriedade).

 

28. Insiste ainda que a cessão de exploração – a transferência temporária mediante retribuição do gozo de um prédio ou de parte dele em conjunto com a exploração de um estabelecimento comercial nele instalado – supõe o gozo e usufruto do estabelecimento, pelo que à data da celebração do contrato promessa de compra e venda esse usufruto já se verificava, reunindo assim as condições para que o contrato promessa integre o conceito de transmissão de bens imóveis, sujeito a imposto.

 

29. Relativamente à violação de normas e princípios fundamentais no decorrer do processo inspectivo – invocada pela Requerente – a AT considera não assistir a este qualquer razão.

 

30. E fundamenta a sua posição referindo que a não notificação ao sujeito passivo da alteração do processo inspectivo não constitui uma formalidade essencial e que, a existir, estaria sanada, já que se tratou de novo procedimento que ocorreu nos serviços da AT, sendo desadequado, desnecessário e desproporcional abrir uma acção externa, até porque na nova redacção do art. 13.º a) do RCPITA o procedimento de inspecção interna pode mesmo incidir sobre documentos solicitados ao sujeito passivo ou a terceiro que mantenha com este relações profissionais ou económicas.

 

31. Não haveria, por isso, qualquer obrigação de notificação prévia.

 

32. Recorda ainda que foi notificada a Requerente do projecto de relatório para efeitos de exercício do direito de audição, o qual poderia nesse momento ter reagido contra os actos praticados e intervir no procedimento, o qual optou por não o fazer.

 

33. Considera, assim, que qualquer irregularidade no processo inspectivo terá ficado sanada com a intervenção negativa da Requerente (não a invocando).

 

34. Por fim, relativamente à alegada falta ou insuficiência de fundamentação, considera a AT que os documentos juntos aos autos demonstram que a liquidação em causa cumpre todos os requisitos indicando as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos actos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo.

 

35. Acresce que da p.i. resulta a correcta compreensão de todas as razões que fundamentaram o acto visado.

 

36. Por despacho de 12.02.2021, foi dispensada a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT bem como a bem como a apresentação de alegações escritas.

 

II. Saneamento

37. O tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objecto do processo (cf. art.s 2.º/1 a) e 5.º do RJAT).

 

38. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no art. 10.º/1 a) do RJAT.

 

39. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. art.s 4.º e 10.º/2 do RJAT e art. 1.º da Portaria 112-A/2011, de 22.03).

 

40. Não há nulidades ou matéria de excepção para conhecer, passando-se, por isso, para a análise do mérito da causa.

 

III. Matéria de facto

Factos provados

41. Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes:

A.           Em 17 de Janeiro de 2013, a Requerente celebrou com B..., um contrato de cessão de exploração do prédio inscrito na matriz sob o n.º ... da extinta freguesia da ... que deu origem ao actual artigo matricial n.º ...  da União de Freguesias ..., ... e ..., sito na ..., n.º..., ...-... Mealhada.

B.            Nos termos do contrato de cessão de exploração, a Requerente obteve o direito de exploração do referido imóvel, o que ocorreu a partir de 17.1.2013 e se manteve até ao presente, ao qual corresponde uma renda mensal de 650 €

C.            Em 01.01.2017, a Requerente celebrou, na qualidade de promitente compradora, com B... e esposa C..., um contrato promessa de compra e venda do prédio urbano, sito na União de Freguesias da ..., ... e ..., inscrito na matriz sob o artigo U-... .

D.           A sociedade A..., Unipessoal, Lda, NIF..., foi objecto de um procedimento externo de inspecção, de âmbito parcial, ao ano de 2019, com vista à consulta, recolha e cruzamento de elementos relacionados com o controlo de saldos de caixa, credenciado com o despacho n.º DI2019... datado de 2019.06.24

E.            No âmbito desse procedimento inspectivo externo foi em 2019.06.28, notificado o sujeito passivo A..., Unipessoal, Lda., para apresentação de elementos susceptíveis de revelar a sua situação tributária, tendo o mesmo remetido esses elementos por e-mail do seu contabilista certificado, em 2019.07.19, através dos quais a AT verificou que uma diminuição substancial do saldo da conta caixa, de 2017 para 2018, em resultado de um lançamento de 50.000 € em 2018.01.31 a favor de B... .

F.            Questionado o contabilista certificado do sujeito passivo sobre a natureza do referido lançamento, este remeteu, através de e-mail, de 2019.10.11, cópia do contrato-promessa de compra e venda do imóvel, celebrado em 2017.01.01, referente ao hotel onde é exercida a actividade.

G.           Tendo tomado conhecimento dessa situação, AT abriu, ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI2019..., um procedimento inspectivo interno, de âmbito parcial incidente sobre o período de 2017.

H.           Em 05.12.2019 foi enviado sob registo o ofício n.º..., pelos Serviços de Inspecção de ..., com projecto de relatório, bem como notificação para, querendo, no prazo de 15 dias, exercer o direito de audição, não tendo a Requerente exercido o seu direito de audição.

I.             No relatório final manteve-se integralmente a proposta do projecto de relatório, referindo-se nomeadamente que a Requerente se encontra a usufruir do respectivo prédio urbano, a título de cessão de exploração para o desenvolvimento da actividade de hotelaria e restauração, pelo qual paga mensalmente o valor de € 650,00 a B... . Refere-se ainda que, incidindo o IMT sobre as transmissões a título oneroso do direito de propriedade ou de figuras parcelares desse direito – incluindo as promessas de aquisição e de alienação, logo que verificada a tradição para o promitente adquirente, ou quando este esteja usufruindo os bens – e dado que o sujeito passivo se encontra a usufruir dos bens, pois é lá que desenvolve a sua actividade, reúne as condições para que o contrato-promessa celebrado integre o conceito de transmissão de bens imóveis, sujeito a imposto.

J.             O relatório final de inspecção tributária foi enviado à Requerente através do ofício n.º..., de 2020.01.16, sendo recebido por este em 17.01.2020.

K.            Na sequência do relatório final, foi a Requerente notificada da liquidação de IMT e respectivos juros compensatórios n.º..., de 09.03.2020, referente ao ano de 2017, no montante global de € 21.869,91.

L.            Em 27-04-2020 a Requerente deu entrada da presente acção arbitral. 

Factos não provados

42. Não há factos relevantes para esta decisão arbitral que não se tenham provado.

 

43. O tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada ou não provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo remetido pela AT.

 

III. Matéria de Direito

44. São três as questões invocadas pela Requerente que devem ser ponderadas: a ilegalidade do procedimento inspectivo, a não verificação dos requisitos do art. 2.º/2 a) para a liquidação adicional do IMT e a falta ou insuficiência de fundamentação.

 

45. Quanto à primeira questão, a Requerente fundamenta a pretendida ilegalidade no processo inspectivo por considerar ter havido uma alteração de processo interno para processo externo, por terem sido usados elementos de um processo inspectivo externo num processo interno, por falta de notificação prévia e por alteração do procedimento.

 

46. Na exposição desses argumentos a Requerente nem sempre é clara (repare-se, desde logo, que o primeiro fundamento se confunde com o quarto), excedendo-se em transcrições e referências que perturbam a própria exposição.

 

47. A questão central que se coloca parece ser a de saber se numa inspecção interna podem ser usados elementos obtidos numa inspecção externa.

 

48. Nesse ponto, julgamos dever admitir genericamente essa possibilidade, tal como advoga a AT, com apoio da jurisprudência judicial (ac. TCA Sul de 29.09.2016, proc.º 09395/16) e arbitral (decisão de 16.11.2018, no proc.º 184/2018-T).

 

49. Na verdade, nada parece justificar que o facto de determinados elementos terem sido obtidos no âmbito de um dado procedimento inspectivo os torne insusceptíveis de serem usados posteriormente noutro procedimento, ou que, se o primeiro procedimento teve natureza externa, tenha de ser mantida essa natureza sempre que tais elementos sejam usados.

 

50. A Requerente invoca em favor da sua posição alguma jurisprudência que, por se referir a situações distintas daquela que é agora objecto da apreciação, não parece dever ser tomada em consideração.

 

51. Assim, relativamente ao ac. do TCA Sul de 27.02.2014 – que a Requerente indica, por lapso, como sendo de 13.02.2014 – a decisão incide sobre a regra que proíbe a repetição de processos inspectivos externos sobre os mesmos factos;

 

52. Quanto ao ac. do mesmo tribunal, de 9.12.2008, a questão prende-se com a nulidade do processo inspectivo externo (no qual foram obtidos os elementos), situação essa que não é sequer invocada no actual processo.

 

53. É certo que a Requerente invoca também a alteração da natureza do próprio processo inspectivo (de interno para externo) em razão do facto de terem sido solicitados elementos, todavia, este facto não parece ser suficiente para impor a pretendida alteração.

 

54. Na verdade, tal como refere a Requerida, a alteração do art. 13.º a) do RCPITA pelo DL 36/2016, de 1 de Julho ampliou o campo de intervenção da AT, que já não está cingida á análise formal e de coerência dos documentos detidos pela AT, mas pode agora estender esta aos documentos obtidos durante o procedimento de inspecção tributária.

 

55. Ora, não se tendo verificado a pretendida necessidade de alterar a natureza do procedimento de interno para externo, desparecem as exigências de notificação prévia e fundamentação invocadas pela Requerente. E todos os demais vícios referidos decorrem desse pressuposto pelo que deixam de ter fundamentação.

 

56. Não se constatam, por isso, ilegalidades no processo inspectivo susceptíveis de invalidar a liquidação.

 

57. A segunda questão invocada pela Requerente prende-se com verificação (ou não) dos requisitos do art. 2.º/2 a) CIMT para a liquidação adicional do imposto.

 

58. A AT justifica a liquidação adicional de IMT alegando, por um lado, a existência de uma transmissão definitiva dos poderes gerais do proprietário (que configurará a tradição da coisa, referida na primeira alternativa referida naquela disposição) e, por outro, que a pré-existência do contrato de cessão da exploração implica uma situação de usufruto (o que constitui a segunda alternativa de aplicação da disposição em causa).

 

59. De facto, o art. 2.º a) do CIMT estabelece que integram o conceito de transmissões (sobre as quais incide o IMT) as promessas de aquisição e de alienação, logo que verificada a tradição para o promitente adquirente, ou quando este esteja usufruindo os bens (…).

 

60. Pelo seu lado, a Requerente defende ser indevida a liquidação do imposto uma vez que permanece o pagamento da renda e os termos dos contratos mantêm claramente distintas as situações.

 

61. Não tem razão a AT.

 

62. Na verdade, a situação descrita mostra que não houve tradição da coisa, no sentido em que não se verifica nem o elemento negativo (o abandono pelo antigo detentor) nem o elemento positivo, a tradicionalmente chamada apprehensio (acto que exprime a tomada de poder sobre a coisa) – repisando os termos do ac. do STJ de 25.3.2014, no Proc. 1729/12.6TBCTB-B.C1.S1, referido pela AT.

 

63. Não há abandono pelo proprietário, desde logo porque este continua a agir como cedente, percebendo as rendas contratadas. E não há apprehensio (ou tomada de poder sobre a coisa) já que o cessionário continua a pagar essas rendas (antes e depois da celebração do contrato promessa).

 

64. A circunstância de o contrato de cessão continuar a ser cumprido demonstra que não existe uma transmissão presumivelmente definitiva de facto dos poderes gerais que o proprietário detém em relação ao imóvel, mesmo que o promitente-comprador não venha a exercê-los (para citar a decisão arbitral referida pela AT).

 

65. Por outro lado – e também ao contrário do que pretende a AT – o contrato de cessão da exploração não implica uma situação de usufruto (nem mesmo num quadro de conceitos fiscais particulares).

 

66. Neste ponto a argumentação da AT é ainda mais frágil, na medida em que parece querer fazer equivaler o usufruto à posse (cf. art. 47.º da resposta – onde estranhamente invoca uma série de artigos relativos ao regime das águas e à compropriedade).

 

67. Importa ter presente que enquanto a posse é um poder que se manifesta quando alguém actua pela forma correspondente ao exercício do direito de propriedade (1251.º CC), o usufruto é o direito de gozar temporária e plenamente uma coisa ou direito alheio (1439.º CC).

 

68. Trata-se de realidades muito distintas que não devem confundir-se. Ao contrário do que afirma a AT, usufruir não representa ter a posse de algo que não é da sua propriedade (cf. art. 48.º da resposta). Isso será ser possuidor. Usufruir implica um direito sobre coisa alheia, mas nem por isso deixa de ser um direito – que engloba a susceptibilidade de usar e fruir (perceber os frutos ou rendas da coisa).

 

69. O cessionário beneficia de um enquadramento diferente, já que, desde logo não pode, por regra, obter os referidos frutos (não pode arrendar sem autorização do senhorio).

 

70. Em favor da sua pretensão, a Requerida insiste mesmo em introduzir no conceito de cessão – por aparente transcrição de regras do CC – o termo ‘usufruto’ que lá não está (cf. art. 55.º da resposta quando refere a noção de cessão de exploração).

 

71. Colhe, portanto, a pretensão da Requerente quando insiste na ilegalidade da aplicação do art. 2.º/2 a) CIMT, já que não estão verificadas as situações de tradição da coisa ou do usufruto do promitente comprador.

 

72. A última questão invocada pela Requerente refere-se a uma pretensa falta ou insuficiência de fundamentação.

 

73. Embora se estenda por cerca de trinta artigos (que consome explicando a relevância jurídica da fundamentação), não explica em que medida surge essa falta ou insuficiência de fundamentação.

 

74. Não pode, por isso, deixar de, neste ponto, dar-se razão à AT quando afirma que a liquidação em causa cumpre todos os requisitos, nomeadamente porque contém as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos actos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo, conforme estabelece o artigo 77º da LGT.

 

IV. Decisão

Em face do supra exposto, decide-se:

1.            Julgar procedente o pedido de anulação do acto de liquidação adicional de IMT relativa ao ano de 2017, no montante de 21.869.91€ (vinte e um mil oitocentos e sessenta e nove euros e noventa e um cêntimos) com as demais consequências legais.

2.            Condenar a Requerida no pagamento integral das custas do presente processo.

 

V. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em 21.869.91€ (vinte e um mil oitocentos e sessenta e nove euros e noventa e um cêntimos) nos termos do disposto no art. 32.º do CPTA e no art. 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º/1 a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º/2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

VI. Custas

Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de 1.224 € (mil duzentos e vinte e quatro euros), a pagar pela Requerida, nos termos dos artigos 12.º/2, e 22.º/4, do RJAT, e artigo 4.º/5, do RCPAT.

 

Notifique-se.

Lisboa, 1 de Março de 2021

 

O Árbitro

Rui M. Marrana

 

Texto elaborado em computador, nos termos do disposto

no art. 131.º, n.º 5, do CPC, aplicável por remissão do art. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT.

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.