Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 383/2020-T
Data da decisão: 2021-02-22  Selo  
Valor do pedido: € 2.781,71
Tema: Imposto do Selo – Aquisição por usucapião.
Versão em PDF

SUMÁRIO: 1. A aquisição de imóveis por usucapião foi assimilada pelo legislador a uma transmissão gratuita, o que constitui uma ficção legal com fins estritamente fiscais, conforme decorre dos normativos do n.º 1 e da alínea a) do n.º 3 do artigo 1.º e da alínea b) do n.º 2 do artigo 2.º do Código do Imposto do Selo.

2. Os beneficiários da aquisição por usucapião, cuja obrigação tributária se constitui nos termos da alínea r) do n.º 1 do artigo 5.º do CIS, estão isentos do Imposto do Selo desde, que sejam uma das pessoas singulares identificadas na norma da alínea e) do artigo 6.º do CIS.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I.             RELATÓRIO

 

1.            A..., com o número de identificação fiscal..., residente em ..., ..., ..., Montijo, (doravante designada por Requerente), apresentou junto do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), pedido de constituição de Tribunal Arbitral singular, ao abrigo das disposições conjugadas nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 3.º, n.º 1, 5.º, n.º 3, alínea a), e 10.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), sendo requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), (adiante designada por Requerida).

2.            No pedido de pronúncia arbitral (ppa), apresentado em 21.07.2020, a Requerente peticiona que o ato de liquidação de Imposto do Selo, no valor de € 2.781,71  relativo à liquidação n.º... , motivada pela aquisição por usucapião de uma quota-parte em três prédios urbanos inscritos na matriz predial da freguesia de ..., concelho de Lisboa, sob os artigos..., ... e ..., seja anulado com fundamento em ilegalidade, em virtude da não consideração por parte dos serviços da Autoridade Tributária e Aduaneira da isenção automática prevista no normativo da alínea e) do artigo 6.º do código do Imposto do Selo (CIS), porquanto, a aludida aquisição por usucapião, resultou da transmissão da posse em benefício de cônjuges e descendentes.

3.            A Requerente pede a restituição do Imposto do Selo, eventualmente por si pago, no valor de € 2.781,75, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º da Lei Geral Tributária (LGT).

4.            Em 22.07.2020, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e, em 30.07.2020, foi notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira. A Requerente optou por não designar árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 6.º do RJAT, em 11.09.2020 foi designado, pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, o ora signatário como Árbitro para integrar o Tribunal arbitral singular, o qual, no prazo legal, comunicou a aceitação do encargo.

5.            Tendo sido notificadas desta designação, as Partes não manifestaram vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

6.            Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, em 14.10.2020 verificou-se a constituição do Tribunal arbitral.

7.            Em 15.10.2020, a Autoridade Tributária e Aduaneira foi notificada do despacho arbitral, no sentido de apresentar resposta ao pedido formulado pela Requerente, nos termos e para os efeitos previstos nas normas do artigo 17.º do RJAT.

8.            Em 18.11.2020, a Requerida veio juntar aos autos a sua resposta, a qual se dá aqui por integralmente reproduzida, tendo juntado ainda o processo administrativo (PA).

9.            A Requerida, na sua defesa por impugnação, alega que o ato de liquidação do Imposto do Selo não padece dos vícios invocados pela Requerente, tendo a AT atuado de acordo com todos os normativos aplicáveis, logo, a liquidação impugnada não enferma de qualquer ilegalidade, devendo, consequentemente, manter-se na ordem jurídica, porquanto:

a)            A produção de efeitos da isenção constante da alínea e) do artigo 6.º do CIS depende da verificação dos seus pressupostos, ou seja, transmissão gratuita do direito de propriedade entre cônjuges ou unidos de facto, descendentes e ascendentes. Sendo que a demonstração dos factos dependerá dos meios de prova apresentados, considerando-se a escritura pública de justificação notarial insuficiente para o efeito.

b)           In casu, será necessário evidências de que os pressupostos para a invocação da usucapião se encontravam reunidos nas figuras dos anteriores titulares da posse, não fazendo a documentação prova de que os pressupostos para a invocação da usucapião já se encontravam reunidos na figura dos pais/sogros dos justificantes.

c)            Não basta a prova da relação de parentesco, sendo também necessário haver evidência de que os pressupostos da usucapião se verificavam nos anteriores titulares da posse.

10.          A Requerida considera que a extensão da isenção subjetiva prevista na alínea e) do artigo 6.º do CIS à aquisição por usucapião depende da demonstração casuística e concreta da verificação dos respetivos pressupostos legais, e que tal demostração dependerá dos meios de prova apresentados, pelo que, em princípio, considera que a escritura pública de justificação notarial é insuficiente para o efeito, preferindo os meios de prova de maior valor probatório, isto é, de força probatória plena sobre os demais meios de prova, como é o caso da prova documental, tendo para o efeito aduzido a Instrução de Serviço n.º..., Série, de 22.12.2017, da DSIMT, que aqui, parcialmente, se reproduz:

“1- Face às normas constantes do n.º 1 e da al. a) do n.º 3 do art.º 1.º do CIS, bem como da norma constante da verba 1.2 da respetiva Tabela Geral (TGIS), conclui-se pela qualificação da usucapião, estritamente para efeitos de Imposto do Selo (IS}, como uma transmissão gratuita de direitos reais sobre prédios. Tal qualificação é extensível a todas as disposições normativas do CIS, nomeadamente as relativas às isenções. 2- Porém, a qualificação da usucapião como transmissão gratuita não é, por si só, suficiente para atestar a aplicabilidade da isenção prevista na al. e) do art.º 6.º do CIS às escrituras públicas de justificação notarial. 3- Como em qualquer isenção automática, a produção de efeitos da isenção constante da al. e) do art.º 6.º do CIS depende da verificação dos seus pressupostos. Neste caso, a transmissão gratuita do direito de propriedade deve ocorrer entre cônjuges ou unidos de facto, descendentes e ascendentes. 4- Constituindo a usucapião uma forma de aquisição originária do direito de propriedade em sede de Direito Civil, a transmissão gratuita que pode existir para efeitos do disposto na al. e) do art.º 6.º do CIS pode verificar-se: (i) na relação existente entre o titular do direito real ora extinto e o justificante, ou (ii) na relação existente entre o anterior titular na posse e o justificante que lhe sucedeu nessa posse, quando, à data da sucessão ou acessão na posse, esta se encontrava apta a ser invocada para fundamentar a aquisição originária por parte do anterior titular na posse. 5- O teor da escritura de justificação notarial não é suficiente para demonstrar a verificação dos pressupostos da isenção constante da al. e) do art.º 6.º do CIS, pois o valor probatório da escritura pública, enquanto documento autêntico, limita-se aos factos ocorridos na presença do notário. O notário atesta as declarações do justificante e dos demais declarantes, provando a escritura pública de justificação notarial que as declarações foram feitas, mas não tendo a capacidade de provar que os factos contidos nas declarações são verdadeiros ou efetivamente ocorreram. 6- Assim, a Administração Tributária tem o ónus de demonstrar a existência dos factos que preenchem a norma de incidência (sendo bastante para tal a existência de escritura pública de justificação notarial, que titula a aquisição por usucapião), e, quando os elementos de prova não estão em poder da Administração, os contribuintes têm o ónus de demonstrar os factos que verificam os pressupostos da norma de isenção [cf. n.º 1 do art.º 74.º da Lei Geral Tributária (LGT)]. 7- A demonstração dos factos que suportam a aplicabilidade da isenção, i.e., a demonstração da relação familiar com o titular do direito real extinto ou com o anterior titular da posse, pode ser efetuada por todas as formas legalmente admitidas, preferencialmente mediante os meios de prova identificados no art.º 50.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário CPPT).

8- Nos termos gerais do Direito Civil, a prova será tanto mais forte quanto maior o valor probatório do meio utilizado, preferindo a prova documental à prova testemunhal.

(…)”

11.          Em face do conhecimento que decorre das peças processuais apresentadas pelas Partes – pedido de pronúncia arbitral e resposta da Requerida –, que se julga suficiente para a decisão, por despacho de 20.11.2020, o Tribunal arbitral decidiu: i) dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT; e ii) determinar às Partes a junção de alegações, o que veio a acontecer, por parte da Requerente, em 10.12.2020. Em 14.12.2020, a Requerida comunicou que não apresentava alegações, visto que considera que a sua posição está devidamente definida na contestação junta aos autos.

12.          A Requerente, nas suas alegações, vem reafirmar que a aludida aquisição por usucapião, assimilada no código do Imposto do Selo a transmissão gratuita, resultou da transmissão da posse, feita pelos sogros da Requerente em benefício da Requerente e do seu marido, e posteriormente por sucessão por morte deste, em 2008.

13.          Das alegações da Requerente salientam-se os segmentos em que é alegado o seguinte:

a)            Conforme resulta da escritura de justificação notarial, a posse que habilitou a Requerente a exercer o seu direito de aquisição dos referidos imóveis por usucapião, foi-lhe transmitida de ascendentes para descendentes, ininterruptamente, de geração em geração, e por último por morte do seu cônjuge, tanto por doação como por via sucessória, desde pelo menos 27.03.1889, data em que B... os recebeu por morte de seu pai, C... (conforme escritura pública de partilha e a respetiva transcrição, juntas ao requerimento inicial como doc. n.º 3).

b)           E desse titular dos imóveis B..., aquelas transmissões ininterruptas, feitas de geração em geração, resultaram de transmissões gratuitas efetuadas em vida ou por via sucessória entre ascendentes e descendentes, até chegarem à posse da Requerente e seu marido, este entretanto falecido no ano de 2008 (documento junto ao requerimento inicial como doc. n.º 4).

c)            Do teor dos documentos juntos ao requerimento inicial como documento n.º 4, a Requerente (n. 18/01/1948) é viúva de D... (n. 22/01/1943), neto de E... (n. 14/05/1879), cuja certidão de nascimento (documento junto ao requerimento inicial como documento n.º 5) comprova ser por sua vez filho de B... .

d)           Como as sucessivas transmissões foram sendo feitas pela via sucessória, com o passar das gerações os descendentes diretos de B...— no caso particular da impugnante, além de ter recebido a posse conjuntamente do seu marido, em 2008 recebeu ainda por morte deste a parte que lhe coube, como sua sucessora universal (documento junto ao requerimento inicial como documento n.º 4) — deixaram de dispor de título bastante para efetuar o registo dos mencionados prédios a seu favor na conservatória do registo predial.

e)           Tendo todos acordado em celebrar a escritura de justificação notarial da aquisição por usucapião junto ao requerimento inicial como documento n.º 2, como forma de assim obter o título que lhes permita efetuar o registo do prédio que pertence à sua família há gerações.

f)            Resulta não apenas do declarado na escritura junta ao requerimento inicial como documento n.º 2, mas também da comprovação circunstanciada que segue, feita através dos documentos igualmente aí juntos como documentos n.ºs 4 e 5, que:

1)            a posse sobre os identificados imóveis que habilitou todos os outorgantes a exercer o direito de aquisição por invocação da usucapião, pertence há várias gerações à mesma família, tendo sido objeto de sucessivas transmissões gratuitas a descendentes diretos e cônjuges até ingressar na esfera jurídica dos mesmos, entre os quais a Requerente;

e ainda que,

2)            como o ato translativo da posse fora sempre verbal e pela via sucessória entre ascendentes e descendentes e cônjuges, com o passar das gerações os descendentes diretos de B...– não dispondo de um título para efetuar o registo do indicado prédio no registo predial apesar de manterem o referido prédio na sua posse há gerações – celebraram a escritura pública de justificação notarial da aquisição por usucapião, de modo a assim obter um título que lhe permitisse registar tal prédio a seu favor na Conservatória do Registo Predial.

 

II.            SANEAMENTO

14.          O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

15.          As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas (cfr. art.º 4.º e n.º 2 do art.º 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011 e art.º 1.º da Portaria n.º 112/2011, de 22/03).

16.          O processo não enferma de nulidades e não são invocadas exceções.

17.          Assim, passa-se à análise do mérito da causa.

 

III.          FUNDAMENTAÇÃO

III.1. MATÉRIA DE FACTO

III. 1. 1. Factos provados

 

18. Com base nos articulados e nos diversos elementos documentais que integram o processo arbitral, o Tribunal destaca os elementos factuais infra descritos que, não tendo sido contestados pelas Partes, se consideram provados:

18.1 Em 17.12.2019, no Cartório Notarial de Lisboa, a Requerente celebrou escritura de justificação notarial de usucapião, na qual foi declarada a posse sobre três prédios urbanos inscritos na matriz predial da freguesia de ..., concelho de Lisboa, sob os artigos..., ... e ... .

18.2 Os prédios atrás identificados encontravam-se anteriormente inscritos na matriz predial urbana, respetivamente sob os artigos ..., ... e ... da freguesia do ... (extinta), do concelho de Lisboa.

18.3 Em 03.02.2020, a Requerente apresentou, nos termos do artigo 26.º do CIS, a Participação de Transmissão Gratuita de Imposto do Selo (Modelo 1), com o n.º... .

18.4 Em 10.06.2020 foi emitida a Nota de cobrança n.º 2020 ... referente à liquidação do Imposto do Selo, n.º ..., no montante de € 2.781,75, com termo da data de pagamento voluntário em 31.08.2020.

18.5 O Tribunal considera provada a realização do pagamento do imposto do Selo no valor de € 2.871,75. Todavia, deixa a confirmação deste facto à Requerida, porquanto, a Requerente, quer no pedido de pronúncia arbitral, quer nas suas alegações, pede o pagamento de juros indemnizatórios, com fundamento no eventual pagamento indevido do Imposto do Selo, e a Requerida na sua Reposta, apresentada em 18.11.2020, embora refira que a Requerente não fez prova da realização do pagamento, não invoca de forma determinada a falta de efetivação do pagamento, quando tem condições para o fazer, pois, terminado o prazo de pagamento voluntário, e este terminou em 31.08.2020, se o pagamento não tiver sido realizado, nos termos da lei, a Requerida tem de proceder à cobrança coerciva do imposto. Na sua comunicação de 14.12.2020, a Requerente também nada diz de forma determinada e definitiva sobre o pagamento do imposto.

18.6 O pedido de pronúncia arbitral foi apresentado em 21.07.2020.

 

III.1.2. Factos não provados

 

19. Os factos provados baseiam-se nos documentos apresentados pelas Partes e juntos ao processo arbitral, não existindo, com relevo para a decisão, factos que devam considerar-se como não provados.

 

III.2. MATÉRIA DE DIREITO

 

20. Em face do pedido de pronúncia arbitral a questão de direito que importa decidir é a de determinar se a isenção subjetiva ínsita na norma da alínea e) do artigo 6.º do Código do Imposto do Selo -  e de que beneficiam o cônjuge ou unido de facto, descendentes e ascendentes -  é aplicável à aquisição de imóvel por usucapião, uma vez que, para efeitos da verba 1.2 da Tabela Geral do Imposto do Selo, o legislador, na norma da alínea a) do n.º 3 do artigo 1.º e na alínea b) do n.º 2 do artigo 2.º do CIS, estabeleceu que são transmissões gratuitas, designadamente, as que tenham por objeto o direito de propriedade ou figuras parcelares deste direito sobre bens imóveis, incluindo a aquisição por usucapião.

21. A usucapião traduz-se na posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, que, salvo disposição em contrário, faculta ao possuidor a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação. E a posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (cfr. art.ºs 1251.º e 1287.º do Código Civil).

22. A usucapião, uma vez invocada, determina a aquisição originária do direito correspondente à posse exercida, pelo que há que concluir que não estamos aqui perante uma transmissão do direito anteriormente incidente sobre a coisa e correspondente ao adquirido por usucapião. A usucapião é uma forma de constituição de direitos reais e não uma forma de transmissão. Daí que os direitos que nela tenham a sua origem não sofrem em nada com os vícios de que pudessem eventualmente padecer os anteriores direitos sobre a mesma coisa, v.g a falta de título ou a falta de registo. Na aquisição por usucapião estamos perante uma forma de aquisição de direitos que se funda na posse (poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real), quando esta reveste certas características e desde que se mostrem verificados alguns requisitos, relativos, nomeadamente, ao seu tempo de duração, sendo certo que a usucapião tem sempre na sua base uma situação possessória e essa posse pode ter sido constituída ex novo pelo sujeito a quem a usucapião aproveita ou pode derivar da transmissão, a favor desse sujeito, de posse anterior. A invocação desta posse apta à usucapião, tanto pode ser feita judicial como extrajudicialmente (como no presente caso aconteceu) e, uma vez invocada, a usucapião atua retroativamente, tendo-se a aquisição como operada desde o início da posse (cfr. art.ºs. 1288° e 1317°, al. c).

23. A usucapião consubstancia uma aquisição originária, nunca uma aquisição derivada, assente numa alegada transmissão de bens operada por escritura pública de compra e venda, de doação, ou de partilha, assim, atento o carácter originário das aquisições por usucapião que, por isso, nunca são verdadeiras transmissões, pois o usucapiente não sucede nos direitos dum qualquer anterior titular do direito de propriedade (bem como de qualquer outro direito real do gozo) sobre o bem adquirido por usucapião.

24. In casu, na escritura de justificação exara-se que “(…), em data que desconhecem, mas, seguramente, anteriormente ao ano de mil novecentos e oitenta e cinco, no seguimento de ajuste verbal de partilhas dos ditos prédios, que fizeram entre si, (…) ajustaram verbalmente com os aqui primeiro ao décimo outorgantes fazer a favor deles em comum e nas proporções adiante referidas doações dos bens imóveis supra identificados, com dispensa da colação não o tendo, contudo, feito na forma escrita, pelo que não ficaram a dispor de título formal que lhes permitisse obter a inscrição de aquisição a seu favor daqueles referidos prédios no registo predial” – cfr. pág. 8 do Doc. 2 junto ao ppa) e mais adiante é dito que “(…) esta posse em nome próprio, pacífica, contínua e pública (…) conduziu à aquisição por eles do direito de propriedade daqueles prédios por usucapião, o que ora invocam, para justificação do seu direito de propriedade sobre os mesmos prédios, para efeitos da sua primeira inscrição no registo predial (…)”.

25. Verifica-se que, no caso dos autos, embora se trate de uma aquisição originária, porque estamos perante aquisição por usucapião, na verdade, a justificação tem subjacente o fim material de reatar o trato sucessivo tendo em vista suprir a falta de um título formal para registo relativo a transmissões derivadas (transmissão de ascendente, cônjuge e descendentes).

26. Todavia, atento o carácter originário das aquisições por usucapião que, por isso, nunca são verdadeiras transmissões, pois o usucapiente não sucede nos direitos dum qualquer anterior titular do direito de propriedade (bem como de qualquer outro direito real do gozo) sobre o bem adquirido por usucapião. Na verdade, nas aquisições originárias, ao contrário do que ocorre nas aquisições transmissivas - que importam a translação do direito de propriedade de uma para outra pessoa e que, nessa medida, têm perfeitamente identificado o adquirente e o transmitente – aquelas não acarretam a translação do direito de propriedade de uma para outra pessoa e que, por essa razão, apenas têm o adquirente, inexistindo, portanto e por princípio, o transmitente.

27. Portanto, a exegese jurídica sobre a possibilidade da isenção subjetiva prevista na norma da alínea e) do artigo 6.º do Código do IS ser ou não aplicável quando o Imposto do Selo, liquidado com base nos normativos do n.º 1 e da alínea a) do n.º 3 do artigo 1.º do Código do IS, tiver por fundamento a aquisição por usucapião, é razoável e pertinente, porquanto, não havendo na aquisição por usucapião um transmitente, como é que pode ser considera uma isenção subjetiva em benefício do cônjuge ou unido de facto, descendentes e ascendentes.

28. É esta linha de raciocínio que pode justificar os dois votos de vencidos apostos no Acórdão do Pleno da secção do Contencioso Tributário do STA, proferido no processo n.º 0746/11, de 02.05.2012, ou o voto de vencido aposto no Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, proferido no processo n.º 1119/15.9BELSB, de 07.08.2018, que pela sua relevância se transcreve quase na íntegra “(…). Votei vencido o presente acórdão pelas razões que exponho infra, resumidamente. O que está em causa no presente processo é saber se a aquisição de imóveis com base na figura da usucapião e através de escritura de justificação notarial está, ou não, isenta de imposto de selo, dado se enquadrar (?) na previsão da norma de isenção constante do art.° 6º, al. e), do C. l. Selo. Antes de mais se dirá que a usucapião consubstancia uma forma de aquisição originária de um ou mais bens, pelo que não se trata de uma transmissão de bens, uma vez que ao direito de propriedade constituído pelo novo titular não corresponde a cessação de idêntico direito de outrem. O direito do novo titular não deriva de um direito anterior de outro possuidor, mas é um direito que se constitui "ex novo", de forma originária na ordem jurídica, entre um titular e um bem (cfr.art°s.1287 e 1288, do C. Civil). A incidência do Imposto do Selo sobre as aquisições por usucapião está consagrada no art.° 1.º, n.° 3, al. a), do C. l. Selo, tal como na verba 1.2 da Tabela Geral do Imposto do Selo (cfr. José Maria Fernandes Pires, Lições de Impostos sobre o Património e do Selo, Almedina, 3.ª, Edição, 2016, pág.498 e seg.).

Não consideramos que o citado art.º 6.º, al. e), do C. l. Selo, abranja na sua previsão as aquisições por usucapião, visto que o legislador não se refere expressamente a tal situação, apenas se limitando a considerar as transmissões gratuitas, sendo que a usucapião não tem a natureza de uma transmissão de bens, seja ela gratuita ou onerosa, conforme supra mencionado. Contrariamente ao entendimento vertido na posição que logrou vencimento neste acórdão, na interpretação sistemática das normas do C. l. Selo (cfr. art.° 9.º, do C. Civil), em causa nos presentes autos, deve o intérprete concluir que o legislador sentiu necessidade de consagrar a equivalência das aquisições por usucapião às transmissões gratuitas (cfr. art.°s 1.º, n.° 3, al. a), e 2, n°.2, al. b), do C. l. Selo), apesar da diferente natureza jurídica de ambas as situações.

No mencionado art.º 6.º, al. e), do C.l.Selo, tal equivalência legislativa não se verifica, assim não sendo defensável que se possa considerar um qualquer grau de parentesco face a um hipotético e inexistente titular anterior à aquisição. (…)”.

29. Todavia, a consideração desta posição jurídica ficou prejudicada, porquanto, a Requerida – Autoridade Tributária e Aduaneira – acolheu a jurisprudência uniformizada ínsita no Acórdão do STA, proferido no processo n.º 0746/11, de 02.05.2012, em que é sumariado o entendimento seguinte: “I. Quando o legislador veio, no art.º 1.º, n.º 3, do CIS, dizer que para efeitos da verba 1.2 da Tabela Geral são consideradas transmissões gratuitas, designadamente a aquisição por usucapião, não ignorava que a usucapião não consubstancia uma aquisição translativa da propriedade, nem quis alterar essa natureza, visando apenas alargar a base de incidência, equiparando a usucapião às transmissões gratuitas, o que equivale a uma ficção legal para efeitos fiscais. II. É, portanto, irrelevante o momento da aquisição do direito de propriedade para efeitos do nascimento da obrigação tributária, pois esta se constitui com a transmissão gratuita operada por via da escritura de justificação notarial [al. r) do art.º 5.º do CIS], incluindo o imposto sobre o ato de aquisição por usucapião. III. O art.º 6.º, alínea e), do CIS, ao isentar de imposto de selo o cônjuge ou unido de facto, descendentes e ascendentes, remetendo para as transmissões gratuitas sujeitas à verba 1.2 da tabela geral de que são beneficiários, significa que por mera interpretação declarativa se chega ao resultado de incluir a usucapião nas “transmissões gratuitas” para efeitos da referida isenção. IV. Deve considerar-se contrário ao princípio da confiança e da certeza e segurança jurídica, enquanto sub-princípios do princípio do Estado de Direito, que o legislador possa utilizar, sobretudo ao nível de normas de isenção fiscal e no âmbito do mesmo imposto, os mesmos conceitos com significados opostos, para daí extrair encargos económicos sobre os contribuintes de forma pouco clara e transparente”.

30. Com efeito, e talvez ex vi a norma do n.º 4 do artigo 68.º-A da LGT, a Requerida - AT - acolheu a jurisprudência uniformizada do STA e desviou a temática controvertida do plano da hermenêutica jurídica e colocou-a no plano casuístico dos elementos e meios probatórios, como se pode verificar em função das conclusões da doutrina administrativa ínsita na Instrução de Serviço n.º 40.054, Série I, de 22.12.2017, da DSIMT, que prescrevem no sentido de que:

“a) A aplicabilidade da isenção subjetiva prevista na al. e) do art.º 6.º do CIS à aquisição por usucapião, dependerá da demonstração casuística e concreta da verificação dos pressupostos constantes daquela norma;

b) A demonstração dos factos dependerá dos meios de prova apresentados, considerando-se, em princípio, a escritura pública de justificação notarial insuficiente para o efeito, preferindo os meios de prova de maior valor probatório, i. e. de força probatória plena sobre os demais meios de prova, como é o caso da prova documental”.

31. Nesta medida, há que salientar que se, a título exemplificativo, tivermos em consideração as alegações da Requerida produzidas nos recursos jurisdicionais que deram azo ao Acórdão do STA, proferido no processo n.º 01112/12, de 20.02.2013, e ao Acórdão do TCAS proferido n.º 1119/15.9 BELSB, de 07.06.2018, verifica-se que se registou uma profunda evolução na sua posição doutrinal sobre a temática sub judice, senão vejamos um segmento do que foi alegado no primeiro processo indicado, a saber: “(…). 3.º A questão que aqui se coloca é de saber, se aos factos em apreço nos autos, é de aplicar ou não a isenção prevista na alínea e) do art.° 6.° do Código de Imposto do Selo relativamente à aquisição por usucapião do direito de propriedade, a favor da impugnante B……, operada em 2004.09.23, através da celebração da escritura pública de justificação notarial, na qual é mencionado que o referido prédio lhe foi doado verbalmente em parte, pelos seus pais, sem contudo ter sido reduzida a escrito tal doação. 4º Considerando que a doação foi feita verbalmente, não se poderá invocar com base em facto translativo da propriedade do imóvel a favor da impugnante, pelos pais da impugnante, através da doação, porque este não ocorreu uma vez que a doação foi feita verbalmente e por conseguinte, por se tratar de um imóvel, a mesma não é válida por falta de forma, art.° 947.° n.° 1 do Código Civil. 5º A aquisição por usucapião, é uma aquisição originária, da qual resulta a inexistência de transmitente do imóvel, por conseguinte. 6º Está fora do âmbito das transmissões gratuitas a favor de herdeiros legitimários, porque estas pressupõem a existência de um transmitente. 7º A isenção do imposto do selo, prevista e regulada no normativo do art.° 6.° e) do CIS, contempla as transmissões gratuitas a favor de herdeiros legitimários. 8º No caso em apreço, a transmissão gratuita do direito de propriedade sobre o imóvel, é resultante da sua aquisição por usucapião a qual tem por base a inexistência de um transmitente.9º Entendemos que o caso em apreço não se enquadra no normativo da isenção, previsto no art.° 6.° e) do CIS e consequentemente o tributo liquidado é devido. 10.º Por outro lado, a Meritíssima Juiz “a quo” ao enquadrar os factos na alínea e) do art.° 6.° do CIS, isentando o ato impugnado de imposto, fez uma interpretação extensiva que as leis fiscais não permitem no tocante às isenções, violando assim o art.° 103.° n.° 2 da CRP. 11.º Considerando que o legislador, quer, no art.° 1 n.° 3 alínea a) parte final, quer na tabela geral do imposto do selo no seu 1.2 do imposto do selo, menciona a referência “incluindo a aquisição por usucapião”. 12.° Não tendo feito tal menção na citada na alínea e) do art.° 6.°, teve a intenção de não abranger as isenções derivadas de aquisições por usucapião, a fim de evitar fraude fiscal”.

32. A atual posição da Requerida, vertida designadamente na Instrução de Serviço n.º 40.054, Série I, de 22.12.2017, da DSIMT, e que foi reproduzida na sua resposta nos presentes autos, vai ao encontro da jurisprudência uniforme firmada no STA que, em síntese, pugna no sentido de que, sendo o ato formal de aquisição por usucapião de um imóvel objeto de incidência de tributação em imposto de selo, quando o imposto do selo, porém, constituir encargo do cônjuge, a alínea e) do artigo 6.º do Código do Imposto de Selo consagra a isenção subjetiva do cônjuge (cfr. acórdão do STA, proc.º 0431/10, de 13.10.2010).

33. Com a reforma do património, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de novembro, ocorreu uma importante inovação do Imposto do Selo relativamente ao antigo Imposto Sucessório, materializada na sujeição a imposto das aquisições de bens por usucapião.

34. A aquisição por usucapião é uma aquisição originária de um ou mais bens, pelo que não se trata de uma transmissão de bens, uma vez que ao direito de propriedade constituído pelo novo titular não corresponde a cessação de idêntico direito de outrem. O direito do novo titular não deriva de um direito anterior de outro titular, mas é um direito que se constitui de novo, de forma originária na ordem jurídica, entre um titular e um bem.

35. Não se tratando de uma transmissão, a aquisição por usucapião não estava sujeita ao Imposto Sucessório. Apesar disso, esse tipo de aquisição consubstancia, pelo menos formalmente, um enriquecimento do novo titular, uma vez que no seu património é inscrito um novo direito sem contrapartida patrimonial direta.

36. As aquisições por usucapião passaram a estar sujeitas a Imposto do Selo sobre as transmissões gratuitas, em razão, fundamentalmente, da necessidade de prevenir a evasão fiscal. Na verdade, na vigência do Imposto Sucessório, a falta de previsão da sua sujeição havia conduzido à utilização dos instrumentos de justificação da aquisição por usucapião para titular aquisições de bens que, na verdade, eram transmissões por compra e venda, doações ou através de outros tipos de contratos sujeitos àquele imposto.

37. Nessas situações a escritura de justificação era utlizada, fundamentalmente, como instrumento de evasão fiscal, para evitar o imposto que incidia sobre as transmissões tituladas pelos contratos em que realmente assentavam essas transmissões.

38. A previsão da sujeição a imposto das aquisições por usucapião consta da verba 1.2 do Tabela Geral do CIS, cuja redação é a seguinte: "1.2 - Aquisição gratuita de bens, incluindo por usucapião, a acrescer, sendo caso disso, à da verba 1.1 sobre o valor 10%", bem como da alínea a) do n.º 3 do artigo 1, ambos do CIS, que tem a seguinte redação: "a) Direito de propriedade ou figuras parcelares desse direito sobre bens imóveis, incluindo a aquisição por usucapião".

39. Nestas aquisições, o facto gerador ocorre na data em que se tornam definitivos os efeitos do instrumento que lhe serve de título, seja a justificação judicial, notarial ou administrativa. Assim o prevê a alínea r) do n.º 1 artigo 5.º do CIS, que dispõe que "[n]as aquisições por usucapião, na data em que transitar em julgado a ação de justificação judicial, for celebrada a escritura de justificação notarial ou no momento em que se tornar definitiva a decisão proferida em processo de justificação nos termos do Código do Registo Predial”.

40. Assim, na sequência da referida reforma do património, o Imposto do Selo passou a tributar as transmissões, e o legislador acrescentou ao âmbito da sujeição das transmissões gratuitas as aquisições por usucapião, sem contudo as considerar transmissões, que na verdade não são.

41. Na verdade, quando, através do normativo do n.º 3 do artigo 1.º do CIS, o legislador estabeleceu que, para efeitos da verba 1.2 da Tabela Geral, são consideradas transmissões gratuitas, designadamente a aquisição por usucapião, não ignorava que a usucapião não consubstancia uma aquisição translativa da propriedade, pelo que se impõe concluir que o legislador não quis alterar essa natureza, tendo apenas visado alargar a base de incidência do imposto do selo, equiparando a usucapião às transmissões gratuitas, o que equivale a uma ficção legal para efeitos fiscais.

42. Esta ficção legal é repetida na alínea b) do n.º 2 do artigo 2.º do CIS, quando o legislador, ao regular a incidência subjetiva do imposto, estabelece que [n]as demais transmissões gratuitas, incluindo as aquisições por usucapião, o imposto é devido pelos beneficiários”.

43. Finalmente, e no que concerne às isenções subjetivas, no artigo 6.° do CIS, o legislador  prescreve que nas transmissões gratuitas sujeitas à verba 1.2. da tabela geral de que são beneficiários, são isentos de imposto do selo, quando este constitua seu encargo, o “cônjuge ou unido de facto, descendentes e ascendentes”. Todavia, neste normativo o legislador não fez constar o segmento relativo à “aquisição por usucapião”.

44. Será legitimo questionar a técnica legislativa, na medida em que nos artigos 1° e 2° do CIS, a usucapião é considerada equiparada ou ficcionada a uma transmissão gratuita, mas já não o será nos normativos que estabelecem as isenções (art.º 6.º do CIS). É verdade que o legislador nos normativos anteriores referiu-se sempre à usucapião e no artigo 6° do CIS não o faz, mas será que era necessário fazê-lo.

45. Há que sublinhar que no artigo 2° do CIS, o legislador regula a incidência subjetiva do imposto do selo, referindo expressamente que “nas demais transmissões gratuitas, incluindo as aquisições por usucapião, o imposto é devido pelos beneficiários.” Importa, assim, concluir que quando se chega ao artigo 6.° já não há necessidade de voltar a repetir-se a expressão, na medida em que o objetivo do preceito está centrado na enumeração das pessoas que estão isentas de imposto e não nas operações, temática que já foi tratada anteriormente.

46. Por outro lado, há que realçar que o preceito diz expressamente que são isentos “o cônjuge ou unido de facto, descendentes e ascendentes, nas transmissões gratuitas sujeitas à verba 1.2 da tabela geral de que são beneficiários”. Isto é, o preceito ao remeter expressamente para as “transmissões gratuitas sujeitas à verba 1.2 da tabela geral” dispensa a necessidade de repetir a expressão usucapião porque o n.° 3 do artigo 2.° do CIS, para onde a alínea e) do artigo 6.° do CIS remete, já contém, precisamente, a noção de “transmissões gratuitas” para efeitos daquela tabela onde se inclui a usucapião. O que significa que, por mera interpretação declarativa, se chega ao resultado de incluir a usucapião nas “transmissões gratuitas” para efeitos da isenção da alínea e) do artigo 6.° do CIS.

47. A não ser assim, ficaria por responder qual a razão de ser de dar tratamento diferente discriminando a usucapião das demais aquisições gratuitas, quando o objetivo da isenção prevista na alínea e) do artigo 6.º do CIS é o de favorecer precisamente o cônjuge ou equiparado e os descendentes e ascendentes. Não se vendo, assim, razão para adotar nesta sede uma noção restrita de “transmissão gratuita”, distinta do sentido amplo adotado nos demais preceitos, se o objetivo da lei é proteger as pessoas indicadas na alínea e) do artigo. 6.º do CIS, então, o mais natural é que valha aqui a noção ampla de “transmissão gratuita” adotado pelo legislador nos demais preceitos do CIS.

48. A nosso ver, não colhe o argumento, fundado no princípio da igualdade, de que a uma situação de justificação de propriedade de dado prédio, fundada na usucapião, não deverá ser admissível a materialização da isenção a que alude a alínea e) do artigo 6.º do CIS, pela razão de que, atenta as características de aquisição originária, inexiste transmitente da propriedade relativamente ao qual se possa estabelecer o vínculo de parentesco, ou a ele equiparado, exigido pelo normativo - cônjuge ou unido de facto, descendentes e ascendentes -, para que, ao mesmo, se possa fazer apelo.

49. Com efeito, estatui o princípio da igualdade - que consiste em tratar de forma igual aquilo que é igual e de forma diferente, aquilo que é diferente, na justa medida dessa diferença -, plasmado, em primeira linha, no artigo 13.º da CRP, mas também no artigo 55.° da LGT e no artigo 6.° do CPA, sobre a imposição de um tratamento de igualdade efetiva entre os cidadãos e, necessariamente, às situações com que, estes, se vêem confrontados, ou seja, "Este princípio obriga a administração tributária a tratar de forma idêntica os administrados que estejam em situações semelhantes e a aplicar tratamentos diferentes aos que se encontrem em situações substancialmente distintas."

50. Ora, a nosso ver, é exatamente por força do princípio da igualdade que se justifica a extensão da isenção subjetiva prevista na alínea e) do artigo 6.º do CIS à transmissão gratuita, aquisição por usucapião, porquanto, como é o caso nos presentes autos, o recurso à justificação notarial apenas teve por objetivo a obtenção de título formal, por forma a permitir o registo na Conservatória do Registo Predial, pois, se tal não fosse necessário, a transmissão ter-se-ia verificado por transmissão sucessória e, consequentemente, verificar-se-ia a isenção do Imposto do Selo.

51. Ora, o legislador não terá pretendido criar uma solução legal diametralmente oposta para uma realidade factual e material, e com um efeito equivalente, e que, embora configure institutos jurídicos diferentes, é completamente igual, ao que acresce que, em sede interpretativa das leis fiscais, quando persistir alguma dúvida, deve atender-se à substância económica dos factos (cfr. art.º 11.º da LGT).

52. Assim, e como é conhecido, até 31 de dezembro de 2003, o sistema de tributação em Portugal sobre o património incluía a existência de uma regra em matéria de tributação no que respeita às transmissões gratuitas de bens, qual seja, a da sua tributação. A partir dessa data, com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de novembro, através da qual se introduziu na ordem jurídica a grande reforma relativa à tributação sobre o património, esse sistema regra de tributação deixou de existir, tendo sido substituído pela implementação de “um conjunto de transformações que mudaram o paradigma da tributação das transmissões gratuitas em Portugal”. Em especial, atento a questão que nos prende agora a atenção, assumindo o legislador expressamente uma opção de não tributação “das transmissões gratuitas sempre que os beneficiários sejam os membros do núcleo familiar mais restrito, ou seja, os chamados herdeiros legitimários”, opção que surge suportada no entendimento de que a tributação dessas transmissões nesse especial “circunstancialismo familiar” se afigurava desnecessária ou menos justificável face aos princípios fundamentais de tributação e aos reais objetivos subjacentes a esta reforma.

53. Nesta linha de raciocínio, há que realçar que foi precisamente essa opção que ficou positivada na alínea e) do artigo 6.º do CIS, no qual, como já se viu, se estabelece que estão isentos do imposto "[o] cônjuge ou unido de facto, descendentes e ascendentes, nas transmissões gratuitas sujeitas à verba 1.2 da tabela geral de que são beneficiários".

54. Na jurisprudência do CAAD - área tributária – identificaram-se três processos arbitrais – n.ºs 105/2015-T, 488/2016-T e 268/2017-T – que se ocuparam da tributação das aquisições por usucapião, porém, os factos determinantes da causa de pedir são diversos dos factos controvertidos nos presentes autos. Todavia, não deixámos de ponderar e de refletir sobre a interpretação e aplicação do direito aos factos que foi feita no âmbito dos referidos processos arbitrais.

55. Como se vem referindo, a temática controvertida no presente processo arbitral já foi exaustivamente analisada e decidida pelos Tribunais Tributários Superiores, inclusive, é hoje unânime o entendimento que o STA tem sobre esta temática, como resulta evidenciado dos acórdãos da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de que se destacam os acórdãos seguintes: proc.º 0922/09, de 27.01.2010; proc.º 0746/11, de 02.05.2012; proc.º 01112/12, de 20.02.2013; proc.º 0718/15, de 12.10.2016; proc.º 01372/16, de 29.03.2017, e proc.º 0121/16.8BEMDL, de 20.05.2020.

56. Importa, ainda, fazer referência ao Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, proferido no processo n.º 1119/15.9 BELSB, de 07.06.2018, que sumaria jurisprudência uniforme no sentido de que: I. A equiparação da aquisição por usucapião a uma transmissão gratuita, consagrada no artigo 1.º, n.º 3, do Código de Imposto de Selo (CIS), constitui uma ficção que o legislador fiscal estabeleceu exclusivamente para efeitos fiscais. II. A isenção estabelecida no artigo 6.º alínea e) do CIS de pagamento de imposto do selo por parte cônjuge ou unido de facto, descendentes e ascendentes e a remessa aí realizada para as transmissões gratuitas sujeitas à verba 1.2 da Tabela Geral de que são beneficiários, implica que se deva julgar como incluído no âmbito de aplicação da referida norma de isenção a usucapião. III. Considerando que na fixação do sentido e alcance da lei o intérprete deve presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, não é de acolher um sentido interpretativo de uma norma que implique o reconhecimento de que o legislador utilizou (pretendeu utilizar) um mesmo conceito com significados opostos na regulamentação de um mesmo imposto, especialmente no estabelecimento dos pressupostos de isenção do seu pagamento. IV. Tal reconhecimento, para além de contrariar as regras interpretativas, teria sempre que ter-se como contrário aos princípios da confiança, da certeza e da segurança jurídicas e da transparência, enquanto subprincípios do princípio do Estado de Direito. V. Tendo o Supremo Tribunal Administrativo proferido acórdão uniformizador de jurisprudência e mantendo-se pacifico desde então o entendimento jurídico que aí perfilhou, não existem razões – na presença de uma situação de facto idêntica à considerada no referido aresto e na ausência de novos argumentos jurídicos a ponderar – para que sejam postos em causa os objetivos, princípios e valores que estão na base da existência da própria previsão legal de acórdãos com aquela natureza, a saber: a pacificação/uniformização da jurisprudência dos sentidos de decisão dos Tribunais Centrais e dos Tribunais de 1.ª instância; a pacificação das atuações e decisões administrativas e uma maior segurança e certeza jurídica na interpretação e aplicação da lei, especialmente quando a Administração Tributária já conformou a sua própria atuação ao julgamento realizado pelo Pleno do Supremo Tribunal Administrativo no referido acórdão uniformizador”.

57. A Requerente, recorreu à justificação extrajudicial, através de escritura notarial, com vista a obter título formal pleno e idóneo, no sentido de reatar o trato sucessivo em sede de registo predial, tendo para o efeito intervindo na escritura diversos outorgantes que declararam todo o historial sobre a posse dos bens imóveis em causa, cujo probatório está devidamente demonstrado nos documentos anexos ao pedido de pronúncia arbitral e, em relação aos quais, a Requerente, por força da aquisição por usucapião, é titular de uma quota-parte.

58. Importa considerar que a escritura pública de justificação da usucapião é o ato final de um procedimento especificamente regulado por lei, designadamente nos artigos 89.º a 101.º do Código do Notariado, que inclui diversas cautelas e verificações destinadas a assegurar um elevado grau de fidedignidade de que depende a legalidade dos atos de justificação.

59. Acresce que a escritura pública de justificação da usucapião constituí prova plena das declarações produzidas pelos outorgantes e pelas testemunhas, tendo estas afirmado que “confirmam as declarações que antecedem, por corresponderem inteiramente à verdade”, sendo que, ainda que uma determinada prova, por alguma circunstância, não possa fazer prova plena, não significa que a mesma deva ser pura e simplesmente inutilizada ou liminarmente desconsiderada.

60. A verdade, é que o processo notarial está cuidadosamente previsto na lei, tendo, inclusive uma função social, pelo que o depoimento que é recolhido por notário em ato público, se não for suficiente para justificar e estabilizar na ordem jurídica o depoimento prestado por terceiros idóneos, e objeto de subsequente publicação obrigatória, não pode tal depoimento ser colocado em causa por argumentos estritamente formais.

61. Pois, tentando ir ao encontro da doutrina administrativa ínsita na Instrução de Serviço n.º..., Série I, de 22.12.2017, da DSIMT, in casu, o Tribunal não vislumbra que provas poderiam ser careadas para os autos, a não ser aquelas que o histórico cadastral da vida fiscal da Requerente e demais outorgantes possa proporcionar, todavia, há que considerar que estes elementos probatórios serão do conhecimento da Requerida.

62. Em face do que fica explanado, e por adesão à jurisprudência uniforme dos Tribunais Tributários Superiores, considera-se que o normativo da alínea e) do artigo 6.º do CIS abrange as transmissões gratuitas, incluindo a aquisição por usucapião, e sendo a Requerente, viúva de D..., e este neto de E..., por sua vez filho de B..., fica claro que adquiriu a posse sobre os imóveis em causa por transmissão de ascendentes para descendente, e por último do seu cônjuge, transmissões ininterruptas de geração em geração, tanto por via de doação como por via sucessória, o que justifica a aquisição dos referidos bens imóveis por via da usucapião.

63. Nesta conformidade, o ato de liquidação do Imposto do Selo n.º..., no valor de € 2.781,75, enferma de ilegalidade, pelo que se determina a sua anulação, com fundamento em vício de lei.

 

IV.          JUROS INDEMNIZATÓRIOS

 

64. Conjuntamente com o pedido de anulação do ato de liquidação do Imposto do Selo, e o consequente reembolso do valor pago indevidamente, a Requerente requer, ainda, que lhe seja reconhecido o direito a juros indemnizatórios, nos termos previstos no artigo 43.º da LGT.

65. Dispondo o normativo da alínea b), do n.º 1, do artigo 24.º do RJAT, que a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta - nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários - restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito, sendo que tal dispositivo está em sintonia com o disposto no artigo 100.º da LGT, aplicável ao caso por força do disposto na alínea a), do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, no qual se estabelece que: “A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.”

66. E que, por sua vez, a norma do n.º 1 do artigo 43.º da LGT, estabelece que serão devidos juros indemnizatórios "quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido."

67. Há, ainda, que referir que, em face da norma do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, o direito aos mencionados juros indemnizatórios pode ser reconhecido no processo arbitral, pelo que, assim, importa conhecer do pedido.

68. O direito a juros indemnizatórios pressupõe que haja sido pago imposto por montante superior ao devido, ou pago imposto indevidamente, e que tal derive de erro, de facto ou de direito, imputável aos serviços da AT.

69. No caso dos autos, é manifesto que os serviços da AT procederam à realização do ato liquidação do Imposto do Selo escudados numa interpretação da lei que choca com a interpretação e aplicação da lei que vem sendo pugnada pela jurisprudência dos Tribunais Tributários, o que consubstancia um erro subsumível no n.º 1 do artigo 43.º da LGT, tanto mais que se trata de jurisprudência uniformizada pelo pleno da Secção do Contencioso Tributário do STA.

70. Por todas as razões supras enunciadas, e a confirmar-se que a Requerente efetivamente procedeu ao pagamento do imposto, logo, um pagamento indevido, reconhece-se à Requerente o direito ao pagamento dos juros indemnizatórios peticionados, contados, à taxa legal, sobre o montante do imposto indevidamente pago, desde a data do respetivo pagamento até ao momento do processamento da nota de crédito, conforme decorre do n.º 1 do artigo 43.º da LGT e do artigo 61.º do CPPT.

 

V.           DECISÃO

Nestes termos, o Tribunal Arbitral decide:

a) Julgar totalmente procedente o pedido da Requerente;

b) Anular o ato de liquidação de Imposto do Selo n.º ..., no valor de € 2.781,75, acrescido de juros indemnizatórios, contados desde a data do pagamento indevido atá à data de emissão da nota de crédito;

c) Condenar a Requerida no pagamento das custas processuais.

 

VALOR DO PROCESSO

Fixa-se o valor do processo em € 2.781,75 (dois mil, setecentos e oitenta e um euros e setenta e cinco cêntimos), de harmonia com o disposto no artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT), no artigo 97.º-A, n.º 1, al. a) do CPPT e no artigo 306.º do Código de Processo Civil (CPC).

 

CUSTAS

O valor das custas é fixado em € 612,00 (Seiscentos e doze euros) ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4 do RJAT e da Tabela I anexa ao RCPAT, a cargo da Requerida, de acordo com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 do RJAT e 4.º, n.º 4 do RCPAT.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 22 de fevereiro de 2021

 

O Árbitro

Jesuíno Alcântara Martins