DECISÃO ARBITRAL
I. Relatório
1. No dia 8-9-2020, o sujeito passivo A..., contribuinte nº..., residente na Rua ..., n.º..., ..., ..., ...-..., ..., apresentou um pedido de constituição do tribunal arbitral singular, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), tendo em vista a declaração de ilegalidade da liquidação de ISV Nº 2020/...de 2020 (Estância Aduaneira - Alfândega de Aveiro), efectuada oficiosamente nos termos do art. 26º do Código do Imposto sobre Veículos (CISV).
2. Nos termos do n.º 1 do artigo 6.º do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem designou o árbitro ora signatário, disso notificando as partes.
3. O tribunal encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objecto do processo.
4. Os fundamentos que sustentam o pedido de pronúncia arbitral da Requerente são em súmula, os seguintes:
4.1. O Sujeito Passivo foi notificado, no dia 05/06/2020, para pagar o montante de € 15.896,63 (quinze mil oitocentos e noventa e seis euros e sessenta e três cêntimos), relativo a uma dívida de imposto sobre veículos automóveis e respetivos juros compensatórios, objecto do registo de liquidação com o número 2020/..., de 28/05/2020.
4.2. A referida liquidação surge na sequência da inspecção tributária OI2020... e do relatório que, no seu final, foi elaborado porque a Administração Tributária e Aduaneira (AT) entendeu que o Requerente incumpriu o dever de introdução no consumo do veículo automóvel usado da marca “...”, modelo “...”, com a matrícula francesa..., previsto no art.º 20.º, n.º 1, do CISV, gerador de imposto nos termos do art.º 5.º, n.º 2, al. d), do mesmo diploma legal.
4.3. E, nesse entendimento, a AT procedeu à liquidação do imposto sobre veículos (ISV) que considerou devido, no valor de € 14.674,43 (catorze mil seiscentos e setenta e quatro euros e quarenta e três cêntimos), sem efectuar qualquer redução quanto à componente ambiental, reduzindo apenas o imposto quanto à componente cilindrada em 80% por se tratar de um veículo com mais de dez anos.
4.4. Por cautela, e para evitar os transtornos associados a uma provável execução fiscal, o Requerente efectuou condicionalmente o pagamento da sobredita quantia de € 15.896,63 (quinze mil oitocentos e noventa e seis euros e sessenta e três cêntimos), no dia 29/06/2020.
4.5. Considera, porém, o Requerente que a Administração Tributária e Aduaneira não pode desconsiderar a componente ambiental na fixação do ISV devido pela introdução de veículos usados no consumo em Portugal, por violação das regras do Direito da União Europeia – cfr., em especial, os arts. 110.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) e 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (CRP).
4.6. No entender do Requerente, a liquidação que foi efectuada pela AT deve ainda ser declarada ilegal e ser anulada por diversos vícios procedimentais, conexos com a proibição de produção e valoração de meios de prova.
4.7. Isto porque, apesar do que refere o art. 74º da Lei Geral Tributária (LGT), aplicável por força do art. 4º, nº1, a) do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária e Aduaneira (RCIPTA), no caso concreto a AT não produziu qualquer prova dos factos constitutivos do seu direito a tributar o Requerente, por um alegado incumprimento do dever de introdução no consumo do veículo automóvel da marca “...”, modelo “...”, com a matrícula francesa..., previsto no art.º 20º, n.º 1, do C.I.S.V., gerador de imposto nos termos do art. 5º, nº 2, al. d), do mesmo diploma legal.
4.8. Uma vez que, para efectuar essa tributação, a AT levou, apenas, em consideração, no âmbito de um procedimento interno, (1) o processo NJ/CO/...– Alfândega de Aveiro e (2) o ofício do Presidente da Junta da União de Freguesias de ... e ... .
4.9. Louvando-se nos documentos que instruem o processo NJ/CO/... entendeu a AT:
a) Que, em 01/03/2019, pelas 12h30m., o veículo em causa foi fiscalizado na rotunda de acesso à A17/..., em ..., sendo conduzido pelo Requerente;
b) Que o veículo se encontrava em excesso de permanência, nos termos do art.º 30º, nº 1, do CISV;
c) Que foi declarado pelo Sujeito Passivo aquando da fiscalização que o veículo foi introduzido no território nacional em Março de 2018 e que desde a sua entrada efetuou duas viagens a França, não tendo aí permanecido por mais de três dias em cada um dos períodos;
d) Que desde a entrada em território nacional efetuou a inspecção ao veículo com as IPO CH... e VC...; e
e) Que, à data da fiscalização, o veículo apresentava 143515 quilómetros.
4.10. Invoca, porém, o Requerente que o processo NJ/CO/...não se encontra, ainda, decidido por qualquer decisão transitada em julgado, uma vez que o Requerente (ali Arguido) exerceu, no dia 21/03/2019, o seu direito de defesa previsto no art. 70º do RGIT, não tendo, ainda, sido proferida qualquer decisão administrativa condenatória, a qual será sempre passível de recurso judicial.
4.11. Considera por isso o Requerente que a liquidação em causa infringe regras processuais elementares como a presunção de inocência de qualquer Arguido que não foi condenado por decisão transitada em julgado (cfr. arts. 32º, nos 2 e 10, da CRP e 6º, nº 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) ).
4.12. Já que, pelo menos enquanto não houver decisão (administrativa ou judicial) transitada em julgado no âmbito de tal processo de contraordenação e que seja desfavorável ao ali Arguido, não pode a AT assumir que são verdadeiros os factos desfavoráveis ali imputados ao Sujeito Passivo, para efeitos de fundamentação e validação do relatório da inspeção com base no qual foi, subsequentemente, efetuada a liquidação do ISV.
4.13. E as declarações que, alegadamente, foram prestadas pelo Requerente aquando da fiscalização de 01/03/2019 não têm qualquer valor como meio de prova, sendo proibida a sua produção e valoração, na medida em que o autuado não foi constituído Arguido antes de as prestar (arts. 32.º da CRP e 6º da CEDH, e os arts. 58º, nos 1, al. a), 2 e 5, 59º, 60º e 61º do Código de Processo Penal (CPP), aplicável ex vi do art. 41º do Regime Geral das Contraordenações (RGCO) e 3º, al. b), do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT).
4.14. Isto porque, na fiscalização que teve lugar no dia 01/03/2019, no âmbito do processo de contraordenação NJ/CO/..., o Sujeito Passivo não foi constituído Arguido, não lhe tendo sido indicados ou explicados os direitos que lhe assistiam, nomeadamente os direitos de não prestar declarações e de ser assistido por Advogado.
4.15. De onde resulta, assim, a inexistência de qualquer prova que permita condenar o Arguido pela contraordenação que lhe foi imputada, bem como para concluir no sentido que a AT concluiu no relatório e, subsequentemente, liquidar o ISV como veio a fazer, notificando o Sujeito Passivo para o respectivo pagamento.
4.16. Não podia, por isso, a AT ter concluído, no relatório da inspecção, pela verificação de incumprimento do disposto no art. 20º, nº 1, do CISV, e, consequentemente, existência de facto gerador de imposto, nos termos dos arts. 5º, n.º 2, al. d), e 6º, n.º 2, do mesmo diploma legal.
4.17. Motivo pelo qual a liquidação com o número 2020/..., de 28/05/2020 deve ser declarada ilegal e anulada, sendo a A.T. condenada a restituir ao Sujeito Passivo a quantia de € 15.896,63 (quinze mil oitocentos e noventa e seis euros e sessenta e três cêntimos), acrescida dos correspondentes juros indemnizatórios contados nos termos legais.
4.18. O Requerente sustenta ainda subsidiariamente a ilegalidade do acto de liquidação oficiosa do ISV por violação do art. 110º do TFUE, conforme jurisprudência unânime do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) e do CAAD.
4.19. Isto porque a Comissão Europeia já notificou o Estado Português de um parecer fundamentado no sentido da desconformidade face ao Direito da União Europeia das regras de cálculo nacionais do ISV para veículos como o do Requerente, o qual conclui que a posição portuguesa é discriminatória, em razão da origem geográfica, pondo em causa as regras do mercado único, prejudicando pequenas e médias empresas, importadores de veículos e os próprios consumidores que assim não têm acesso, em condições de igualdade fiscal, a todos os produtos existentes no mercado único.
4.20. E, inclusivamente, avançou com um processo no TJUE, onde o Estado português já foi condenado pela mesma violação – vide o Acórdão do TJUE, de 16/06/2016 (proc. n.º C-200/15).
4.21. No mesmo sentido, concluiu a Decisão Arbitral 346/2019-T do Centro de Arbitragem Administrativa de 02/11/2019, tendo esse entendimento sido seguido de forma unânime pelo C.A.A.D. – vide decisões 572/2019-T, de 30/04/2019, e 498/2019-T de 31/01/2020.
4.22. No caso presente, verifica-se que a AT não efectuou qualquer redução em virtude da vetustez do veículo relativamente à componente ambiental.
4.23. A AT sabe que a liquidação que efectuou desobedece às normas comunitárias e às decisões arbitrais que se vêm de expor, mas considera não poder desvincular-se do CISV, pois termina o seu relatório com a seguinte menção, em resposta ao Requerente quando este expendeu o argumento da desconsideração da redução da componente ambiental no seu requerimento para exercício do direito de audição prévia: “em resposta ao conteúdo dos pontos 30.º a 35.º não obstante tudo o que foi invocado, não se verificou até à presente data qualquer alteração aos normativos mencionados, pelo que não será em sede de procedimento inspectivo que se deve tomar posição em relação às questões suscitadas”.
4.24. Deverá assim ser declarada a ilegalidade da liquidação com o número 2020/..., de 28/05/2020, sendo a AT condenada a restituir ao Requerente a quantia de € 15.896,63 (quinze mil oitocentos e noventa e seis euros e sessenta e três cêntimos), acrescida dos correspondentes juros indemnizatórios contados nos termos legais.
4.25. Sem conceder, e apenas subsidiariamente, deverá ser declarada a ilegalidade parcial da referida liquidação, sendo a mesma, também, parcialmente anulada, sendo a AT condenada a restituir ao Sujeito Passivo o valor correspondente a 80% (oitenta por cento) da componente ambiental, ou seja, 80% x € 12.761,47 = € 10.209,18 (dez mil duzentos e nove euros e dezoito cêntimos).
4.26. Por cautela de patrocínio desde já se argui, expressamente, a inconstitucionalidade do art. 11º do CISV, em especial por violação do disposto nos arts. 110.º do TFUE e 8.º, n.º 4, da CRP.
4.27. Requerendo, caso subsistam dúvidas sobre a interpretação e aplicação do art. 110.º do TFUE, o reenvio prejudicial desta questão ao TJUE.
4.28. Os vícios elencados no presente requerimento ancoram-se nos arts. 99.º, als. a) e d), do CPPT, aplicáveis ex vi do art.º 10.º, n.º 2, al. c), do RJAT.
5. Por seu turno, a Requerida Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, na qual se defendeu, em súmula, nos seguintes termos:
5.1. Do Processo Administrativo (PA), constituído pelo procedimento inspectivo n.º OI2020... e liquidação oficiosa de ISV efetuada através da Declaração Aduaneira de Veículo (DAV) 2020..., de 28.05.2020, da Alfândega de Aveiro, resulta o seguinte:
5.2. Em 27.01.2020 a Alfândega de Aveiro iniciou uma acção inspectiva que teve como fim a verificação do cumprimento das obrigações decorrentes do estatuto de operador reconhecido, designadamente as previstas no artigo 20º do Código do Imposto sobre os Veículos (CISV), conforme consta do relatório da mesma inspecção.
5.3. Neste âmbito, foram efectuados ao sujeito passivo, ora Requerente, os controlos descritos na parte IV do relatório, tendo sido analisados o processo de contraordenação NJ/CO/... e demais documentação relevante, atentos os fins em causa.
5.4. Em face dos factos apurados, concluiu-se, conforme resulta da parte I do mesmo relatório, que, no caso concreto, se verifica o incumprimento do disposto no nº 1 do artigo 20º do CISV, o que constitui facto gerador do imposto por força da alínea d) do nº 2 do artigo 5º do CISV.
5.5. Concluindo-se que, face do artigo 26º do CISV, com referência ao veículo em causa, da propriedade do aqui Requerente, há lugar à liquidação oficiosa do ISV, que veio a ser objeto da DAV n.º 2020/..., de 28.05.2020, processada pelos serviços aduaneiros, com vista à regularização fiscal do veículo automóvel descrito na mesma declaração.
5.6. O cálculo do imposto foi efetuado por aplicação da tabela A prevista no artigo 7.º do CISV, conforme resulta da demonstração da liquidação constante do relatório e da DAV supra identificada.
5.7. O sujeito passivo foi notificado do projecto de conclusões do relatório para efeitos do exercício do direito de audição, nos termos do artigo 60º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira, que exerceu conforme exposto no relatório final da acção (parte IX).
5.8. Face ao sancionamento superior das conclusões da ação inspectiva, o relatório final foi remetido aos serviços respetivos competentes para a liquidação oficiosa da dívida de ISV apurada e instauração do procedimento contraordenacional.
5.9. Conforme se extrai dos elementos constantes da DAV n.º 2020..., de 28.05.2020, emitida pela Alfândega, o veículo, cujas características constam do Quadro E da mesma declaração, não foi declarado pelo seu proprietário, nem por um representante em seu nome, não ostentando matrícula nacional atribuída pelo Instituto da Mobilidade e dos Transportes IP (IMT).
5.10. De acordo com o Quadro R da identificada DAV, o ISV foi calculado com recurso à tabela A tendo sido apurado o montante de imposto de € 14.674,43 e o valor de € 1.222,20, a título de juros compensatórios, resultando no total em dívida de € 15.896,63.
5.11. Em 8/9/2020 o Requerente apresentou junto da Instância Arbitral o presente pedido de constituição de tribunal arbitral, visando a declaração de ilegalidade da totalidade da liquidação ou a declaração da ilegalidade parcial por violação do artigo 110º do Tratado sobre o Funcionamento de União Europeia e peticionando, em consequência, a restituição de € 15.896,63, acrescido de juros indemnizatórios, ou, a título subsidiário, a restituição do valor de € 10.209,18.
5.12. Do nº 3 do art. 20º do CISV resulta, expressamente, que, decorrido o prazo para apresentação da DAV e até ao termo do prazo para pagamento do imposto, só é permitida a circulação em território nacional de veículos portadores de matrícula estrangeira válida, desde que acompanhados por um exemplar da DAV e conduzidos pelo proprietário ou pelo respectivo cônjuge ou unido de facto, tendo assim o Requerente infringido esta disposição.
5.13. O processo de contraordenação, que tenha sido instaurado por referência aos factos constatados, não se reflecte na validade jurídico-formal do relatório de inspecção nem, consequentemente, na responsabilidade de natureza tributária que possa decorrer dos mesmos factos.
5.14. Efectivamente, a responsabilidade criminal ou contraordenacional, em sede de infracções tributárias e aduaneiras, e a incidência subjetiva e a responsabilidade tributária (e respetiva exigibilidade de imposto) em sede de ISV obedecem a pressupostos distintos, sendo enquadradas por normas de fonte nacional (legal e constitucional) distintas.
5.15. Assim, com referência aos factos constatados em sede de inspecção, no âmbito do respetivo procedimento, aqueles deram origem ao processo tributário que culminou com a liquidação de imposto (ISV) porque verificada a incidência subjetiva e objetiva, e porque verificados os pressupostos da responsabilidade contraordenacional, aplicando-se quanto às infrações verificadas o disposto no artigo 54.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), havendo lugar à instauração do respetivo processo de infração, o qual, fica suspenso, até à verificação dos factos previstos no n.º 1 do artigo 55.º, o que sucedeu no caso concreto
5.16. Sendo que, conforme dispõe o no artigo 71.º do RGIT, é no âmbito do processo de infração que o sujeito/arguido apresenta a sua defesa, resultando, por isso, irrelevante, para a questão controvertida, o afirmado pelo Requerente quanto às declarações do sujeito passivo não terem valor como meio de prova, por se tratar de matéria que deverá ser apurada e relevada no âmbito do processo de contraordenação e não em sede de liquidação do imposto.
5.17. E o que releva, em sede de regime de ISV, é que o veículo circulava em situação irregular, sem ostentar matrícula nacional, facto que o coloca no âmbito de incidência do imposto sobre veículos porquanto a introdução no consumo de um veículo depende da sua regularização fiscal, nos termos do n.º 2 do artigo 3.º do CISV, verificando-se, no caso em apreço, uma introdução irregular no consumo de veículo sujeito a tributação e atribuição de matrícula nacional.
5.18. No caso concreto, atenta a alínea d), do n.º 2, do artigo 5.º do CISV, quanto à “permanência do veículo no território nacional em violação das obrigações previstas no presente código” enquanto ao facto gerador de imposto, e os n.ºs 1 e 2 do artigo 6.º, quanto à exigibilidade e momento da ocorrência do facto gerador do imposto, a liquidação foi efetuada de acordo com os comandos legais aplicáveis, tendo o ISV sido calculado em conformidade com o artigo 7.º e artigo 11.º.
5.19. Razões, pelas quais se revelam totalmente infundadas as alegações do Requerente quanto ao alegado “vício” ou falta de prova, pois o veículo circulava em território nacional com matrícula estrangeira, pelo menos desde 2018, sendo que o seu proprietário é residente em Portugal desde 2015, irregularidades verificadas e comprovadas por entidades oficiais, conforme melhor descrito no relatório de inspecção aduaneira.
5.20. Não obstante, vem ainda o Requerente, subsidiariamente, pôr em causa a liquidação por entender que, face à recente jurisprudência deste Tribunal Arbitral, aquela seria também parcialmente anulada porquanto defende que haveria uma violação do artigo 110.º do TFUE.
5.21. Quanto a esta apreciação importa clarificar que o facto gerador que determinou a tributação não foi a “admissão ou importação dos veículos tributáveis em território, que estejam obrigados a matrícula em Portugal”, não se incluindo no n.º 1 do artigo 5.º, relativo ao facto gerador do ISV.
5.22. No caso concreto, estamos perante o facto gerador previsto na alínea d), do n.º 2, do mesmo artigo 5.º do CISV, atinente à “permanência do veículo no território nacional em violação das obrigações previstas no presente código”.
5.23. Entende-se, pois, que a matéria de direito na qual se enquadra a presente questão controvertida não se subsume à problemática do “contencioso dos usados”, em que é defendida a violação ao artigo 110.º do TFUE, desde logo porque, no facto gerador que se consubstancia na “permanência de um veículo em território nacional em violação das obrigações do presente código”, não se verifica qualquer discriminação entre a tributação dos usados admitidos no território nacional relativamente a veículos idênticos em Portugal.
5.24. De qualquer modo, o facto de o imposto ter sido calculado de acordo com o previsto no artigo 7.º. do CISV e lhe ter sido também aplicada uma taxa de redução pelos anos de uso de acordo com a tabela D do n.º do artigo 11.º não significa que, neste caso, atentos os seus contornos fácticos e enquadramento jurídico, a aplicação deste artigo determine que o cálculo do imposto resultante da sua aplicação ultrapasse o montante de ISV contido no valor residual de veículos usados similares nacionais que já foram registados em Portugal.
5.25. Não obstante, caso assim não se entenda, defende-se que a interpretação do artigo 110.º do TFUE deve ser efetuada à luz do disposto no artigo 191.º do mesmo tratado, sob pena de conflitualidade e desarmonia entre as duas normas, a não ser que o TJUE, em sede de interpretação, venha defender a existência de tal violação e que a norma do artigo 110.º do TFUE tem valor superior ao previsto no artigo 191.º quanto à proteção e a melhoria da qualidade ambiental.
5.26. A alteração ao artigo 11.º do CISV operada pela Lei n.º 22-A/2007 encontrava-se em consonância com o disposto no artigo 1.º do CISV que consagra o princípio da equivalência, de acordo com o qual o imposto sobre veículos deve onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam nos domínios do ambiente, infraestruturas viárias e sinistralidade rodoviária, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária.
5.27. Assim, a interpretação do disposto no artigo 110.º do TFUE não poderá deixar de ter em consideração os objetivos ambientais acima referidos, sob pena de se gerarem incoerências insustentáveis entre a política fiscal e a política ambiental, havendo ainda que considerar que o n.º 2 do artigo 191.º TFUE enfatiza o princípio do poluidor pagador ao postular que “a política da União no domínio do ambiente terá por objetivo atingir um nível de proteção elevado, tendo em conta a diversidade das situações existentes nas diferentes regiões da União. Basear-se-á nos princípios da precaução e da ação preventiva, da correção, prioritariamente na fonte, dos danos causados ao ambiente e do poluidor-pagador”.
5.28. Estando em causa matéria de elevada relevância social, e bem assim, a existência de disposições legais e objectivos de defesa ambiental definidos ao nível da União Europeia, internacional e nacional, entende-se que não deve ser aplicada à componente ambiental a mesma redução que é aplicada à componente cilindrada no âmbito da tributação automóvel, concretamente no que se refere ao cálculo do imposto, que deve ser efetuado nos termos dos artigos 7.º e 11.º do CISV, na redação que lhe foi aplicada.
5.29. Acrescendo que, em rigor, os artigos 7.º e 11.º do CISV não violam a norma prevista no artigo 110.º do TFUE, por gerarem uma descriminação negativa dos veículos usados admitidos no território nacional, uma vez que estes artigos não são de aplicação exclusiva aos veículos usados admitidos no território nacional.
5.30. Pelo que não se poderá concluir que, ao fazer incidir sobre os veículos usados, nacionais e comunitários, uma componente ambiental que não é objeto de redução, o Estado Português teve por objetivo restringir a entrada de veículos usados em Portugal, mas sim como corolário orientar a escolha dos consumidores através da aplicação criteriosa das medidas de política ambiental europeia, tanto a veículos nacionais como aos provenientes de outro Estado-Membro.
5.31. Configurando a aplicação da interpretação, pugnada pela Requerente, uma desaplicação do direito internacional - do artigo 191º do TFUE, do Protocolo de Quioto e do Acordo de Paris - que vinculam o Estado Português, por força do artigo 8º da CRP, bem como uma violação do disposto no nº 1, e alíneas a), f) e h), do nº 2, do artigo 66º e do nº 2 do artigo 103º da CRP.
5.32. Concluindo-se que a liquidação de ISV, que aplicou o artigo 11º do CISV, foi efetuada em conformidade com a lei nacional e o direito comunitário, cumprindo, designadamente, o disposto nos artigos 110º e 191º do TFUE e nos artigos 66º e 103º da Constituição.
5.33. Destarte, tendo os actos impugnados sido efectuados de acordo com o direito nacional e comunitário, não enfermam de qualquer vício, devendo, consequentemente, a liquidação, na parte que vem impugnada, quanto ao cálculo do imposto efectuado nos termos do nº 1 do artigo 11º e à não aplicação de redução à componente ambiental, considerar-se conforme ao direito constituído em vigor.
5.34. Da interpretação do artigo 11º do CISV defendida pela Requerente resulta uma violação do princípio da legalidade consagrado no artigo 266º (Princípios fundamentais) da Constituição da República Portuguesa (CRP), o qual, além de estabelecer, no nº 1, que a administração pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos, impõe aos órgãos e agentes administrativos a subordinação à Constituição e à lei, devendo actuar no exercício das suas funções com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé (n.º 2).
5.35. Concomitantemente, no que concerne ao princípio da legalidade tributária, nos termos do artigo 8º da Lei Geral Tributária, estão sujeitos a este princípio a incidência, a taxa, os benefícios fiscais, as garantias dos contribuintes, bem como a liquidação e cobrança dos tributos.
5.36. Ora, no caso concreto a administração tributária agiu nos termos da lei, de acordo com as normas de incidência, taxas e liquidação do imposto em causa, não podendo ter atuado de modo diferente, face ao direito constituído sob pena de violar os referidos princípios da legalidade e da justiça tributária, da igualdade e da segurança jurídica.
5.37. Assim, relativamente à liquidação ora impugnada, a mesma foi efectuadas de acordo com as normas aplicáveis em vigor, o artigo 7º e o artigo 11º do CISV.
5.38. Na elaboração do CISV foram considerados os referidos princípios constitucionais, estando subjacentes, designadamente, nos artigos 1º e 11º do CISV, não podendo afastar-se a aplicação deste artigo, impondo-se que se afira a sua conformidade com os princípios constitucionais consagrados no artigo 9º e 66º da CRP, até porque está em causa matéria de reserva de lei (âmbito de reserva legislativa da Assembleia da República).
5.39. Acrescendo que, a interpretação defendida pelo Requerente, posto que defende a aplicação de uma fórmula de cálculo, com atribuição de uma redução não prevista na tabela D do artigo 11º, acrescenta uma redução à componente ambiental que não está consagrada na letra da lei, que não foi querida pelo legislador, consubstancia assim, também nesta parte, uma violação dos princípios constitucionais aludidos, da legalidade e da justiça tributária, da igualdade e da certeza e segurança jurídica.
5.40. Por outro lado, a aplicação de tal redução, não prevista na lei, não pode deixar de se considerar como um benefício fiscal que não se encontra previsto na lei e que é inconstitucional face ao disposto no n.º 2 do artigo 103º da CRP, que estabelece que os impostos são criados por lei, determinando esta igualmente a incidência, taxa, benefícios fiscais e garantias dos contribuintes, que coloca igualmente a Requerente em situação de vantagem face aos demais sujeitos passivos, criando também, nesta parte, uma situação de desigualdade fiscal.
5.41. Ademais, a pretensão do Requerente também olvida que estamos perante um imposto sobre o consumo não harmonizado, e que a tributação do consumo visa adaptar a estrutura do consumo à evolução das necessidades do desenvolvimento económico e da justiça social, devendo onerar os consumos de luxo, conforme o consagrado no nº 4 do artigo 104º da CRP.
5.42. E, sendo um dos princípios gerais da interpretação das normas jurídicas e “critério de interpretação” o da interpretação conforme à Constituição, de acordo com este critério, no caso de o intérprete, mediante a aplicação dos elementos interpretativos, chegar a mais do que um sentido possível a atribuir a um preceito normativo, deve preferir aquele que mais se adeque à Constituição.
5.43. Não podendo, assim, deixar de se considerar o artigo 204º da CRP, que impõe que os tribunais não apliquem normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados.
5.44. Por outro lado, ao defender a ilegalidade da liquidação por entender que existe uma desconformidade do artigo 11º do CISV com o artigo 110º do TFUE, a Requerente, além de violar, por via de tal interpretação, os já referidos princípios, consagrados na nossa Lei Fundamental, viola ainda, por via da desaplicação do artigo 11.º do CISV na redação actualmente em vigor, uma violação do princípio do acesso ao direito à tutela jurisdicional efectiva.
5.45. De facto, tendo a Requerente recorrido à arbitragem tributária para impugnar as liquidações, a administração encontra-se coartada no seu direito de reacção face aos limitados meios de recurso perante a prolação de uma decisão arbitral desfavorável, em geral e, concretamente, quanto ao recurso de decisão que desaplica norma nacional com fundamento em violação de princípio de direito da União Europeia.
5.46. É que o RJAT prevê tão somente três tipos de reações recursórias, sendo eles o recurso para o Tribunal Constitucional, o recurso para uniformização de jurisprudência e a impugnação arbitral, com base nas nulidades elencadas no artigo 28º, nº 1 do RJAT.
5.47. Ora, defendendo a Requerente a violação de um princípio do TFUE no caso concreto, e prevendo o RJAT que o recurso para o Tribunal Constitucional só pode ter como fundamento as alíneas a) e b) do artigo 70.º da Lei do TC, não há dúvida que, a vingar tal interpretação, estamos perante uma violação do princípio do livre acesso aos tribunais.
5.48. Verifica-se, pois, face ao disposto nos artigos 20º, n.º 1 e nº 4 e 266º, todos da CRP, a violação dos princípios do Estado de Direito e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva.
5.49. Em face do exposto, a interpretação do Requerente do artigo 11º do CISV viola os princípios, acima mencionados, da legalidade e da legalidade fiscal, da justiça tributária, da igualdade e da certeza e segurança jurídica, do Estado de direito ambiental e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, impondo-se a apreciação da constitucionalidade de tal entendimento, o qual, desde já, reputamos de inconstitucional, não podendo por isso, ser aplicado no caso concreto.
5.50. Quanto ao direito a juros indemnizatórios, consagrado no artigo 43º da Lei Geral Tributária, o mesmo pressupõe que se apure a existência de erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida em montante superior ao legalmente devido.
5.51. E, no caso concreto, não se verifica a existência de qualquer erro que possa ser imputável à administração tributária.
5.52. É que, efetivamente, as liquidações em causa nos presentes autos decorreram exclusivamente da aplicação da lei em vigor, tendo aquela sido efetuadas nos termos das normas aplicáveis, previstas no CISV, que determinam a exigibilidade e consequente liquidação do imposto, o que nem sequer é posto em causa pela Requerente.
5.53. E, estando a AT e os seus órgãos, vinculados, na sua atuação, ao princípio da legalidade, a Requerida AT agiu, sempre, em obediência àquele e em conformidade com o direito em vigor, não podendo ter agido de modo diverso, não devendo, consequentemente, ser-lhe atribuído qualquer erro que lhe seja imputável, nos termos do artigo 43º da LGT, posição que já foi sufragada em sede arbitral, conforme resulta das decisões proferidas nos Processos n.º 348/2019-T e n.º 34/2020-T.
5.54. Pelo que, face ao invocado, tendo a AT agido no cumprimento estrito da lei, não se verifica qualquer erro de que possa resultar o pagamento indevido do imposto, sob pena de se verificar com tal interpretação, uma violação, também aqui, do invocado princípio constitucional da legalidade e legalidade fiscal, não devendo assistir, por conseguinte, à Requerente, o direito ao pagamento de juros indemnizatórios.
6. Em 19/1/2021 foi proferido despacho arbitral, dispensando a reunião prevista no art. 18º do RJAT por não estarem preenchidas as circunstâncias que justificam a sua realização, podendo as partes requerer que a mesma tivesse lugar, o que estas não fizeram.
II – Factos provados
7. Com base na prova documental constante do processo administrativo junto aos autos pela Requerida, consideram-se provados os seguintes factos, com interesse para a decisão da causa:
7.1. Em 1 de Março de 2019, pelas 12h30m, foi fiscalizado na rotunda de acesso à A17/..., em ..., ..., o veículo ligeiro de passageiros de marca ..., modelo ..., número de quadro WDB..., com a matrícula francesa ..., conduzido pelo proprietário A... .
7.2. Foi declarado pelo sujeito passivo, aquando da fiscalização, que o veículo em causa foi introduzido no território nacional em Março de 2018 e que desde a sua entrada efectuou duas viagens com o mencionado veículo a França, não tendo aí permanecido por mais de 3 dias em cada um dos períodos.
7.3. Desde a data da entrada em território nacional foi efectuada a inspecção ao veículo com as IPO CH... e VC... .
7.4. O sujeito passivo, pelo menos desde 2015, apresenta declarações de IRS em Portugal, sendo que as declarações de IRS nos anos de 2015 a 2018 apenas apresentam rendimentos da categoria F (rendimentos prediais), com excepção da do ano de 2018 que também apresenta rendimentos da categoria G (mais-valias), não constando de nenhuma das mencionadas declarações a menção a rendimentos auferidos no estrangeiro (anexo J).
7.5. A Junta da União de Freguesias de ... e ... atestou a residência do sujeito passivo na Rua ..., nº..., ..., ...-..., ... .
7.6. Em face dos referidos factos concluiu a AT ter-se verificado o incumprimento do disposto no n.º 1 do artigo 20.º do CISV, o que constitui facto gerador do imposto por força da alínea d) do n.º 2 do artigo 5.º do CISV.
7.7. Pelo que a AT procedeu à liquidação oficiosa do ISV, que veio a ser objeto da DAV n.º 2020/..., de 28.05.2020, processada pelos serviços aduaneiros, com vista à regularização fiscal do veículo automóvel descrito na mesma declaração.
7.8. O veículo, cujas características constam do Quadro E da mesma declaração, não foi declarado pelo seu proprietário, nem por um representante em seu nome, não ostentando matrícula nacional atribuída pelo Instituto da Mobilidade e dos Transportes IP (IMT).
7.9. De acordo com o Quadro R da identificada DAV, o ISV foi calculado com recurso à tabela A tendo sido apurado o montante de imposto de € 14.674,43 e o valor de € 1.222,20, a título de juros compensatórios, resultando no total em dívida de € 15.896,63.
7.10. Pelo ofício n.º..., de 01.06.2020, da Alfândega de Aveiro, o Requerente foi notificado, em 05.06.2020, para efetuar o pagamento do ISV em dívida, que foi pago em 30.06.2020.
III - Factos não provados
8. Não há factos não provados com relevo para a decisão da causa.
IV - Do Direito
9. São as seguintes as questões a examinar no presente processo.
- Da ilegalidade da liquidação de ISV por ausência de prova do facto tributário.
- Da ilegalidade da liquidação de ISV por violação do art. 110º do TFUE.
- Da inconstitucionalidade da interpretação do artigo 11º do CISV em conformidade com o artigo 110º do TFUE.
- Do direito a juros indemnizatórios.
Examinar-se-ão assim essas questões:
DA ILEGALIDADE DA LIQUIDAÇÃO DE ISV POR AUSÊNCIA DE PROVA DO FACTO TRIBUTÁRIO.
10. Sustenta o Requerente que, não estando o processo NJ/CO/... decidido por qualquer decisão transitada em julgado, não poderia ser efectuada a liquidação com base nos factos objecto desse processo, uma vez que tal violaria a presunção de inocência de qualquer Arguido que não foi condenado por decisão transitada em julgado, nos termos do 32º, nºs 2 e 10, da CRP e 6º, nº 2, da CEDH.
E defende ainda o Requerente que as declarações que, alegadamente, foram prestadas pelo Sujeito Passivo aquando da fiscalização de 01/03/2019 não têm qualquer valor como meio de prova, sendo proibida a sua produção e valoração, na medida em que o autuado não foi constituído arguido antes de as prestar (arts. 32º da CRP e 6º da CEDH e arts. 58º, nºs 1, a), 2 e 5, 59.º, 60.º e 61.º do CPP, aplicável ex vi do art. 41º do RGCO e 3.º, al. b), do RGIT.
Considera, por isso, o Requerente não existir prova do facto tributário que permitisse à AT efectuar a liquidação oficiosa a que procedeu.
É manifesto que esta argumentação é totalmente improcedente.
Efectivamente o processo de liquidação de imposto, que é o que está em causa nestes autos, não é um processo penal nem contraordenacional, não existindo no mesmo qualquer presunção de inocência, nem qualquer privilégio que permita aos contribuintes exigir a constituição de arguido antes de prestar declarações com relevância tributária.
Antes pelo contrário, nos termos do art. 58º da LGT, "a administração tributária deve, no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido". Existe por outro lado o dever de os contribuintes colaborarem com a AT (art. 59º, nº1, da LGT), o qual "compreende o cumprimento das obrigações acessórias previstas na lei e a prestação dos esclarecimentos que esta lhes solicitar sobre a sua situação tributária, bem como sobre as relações económicas que mantenham com terceiros" (art. 59º, nº4, da LGT).
Por outro lado, o ónus da prova dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque (art. 74º, nº1, da LGT).
Ora, dos factos julgados provados acima resulta claramente ter a AT satisfeito o ónus da prova de que o sujeito passivo, residente em Portugal pelo menos desde 2015, introduziu no território nacional um veículo de matrícula francesa sem efectuar a correspondente declaração aduaneira de veículo (DAV), nem pagar o correspondente imposto, a que estava obrigado nos termos do art. 20º, nº1, CISV. Nestes termos, caberia naturalmente à AT proceder à liquidação oficiosa do ISV com base nos elementos de que dispunha, como lhe impõe o art. 26º CISV, nada havendo assim que censurar à AT ao facto de ter usado os elementos de que dispunha para proceder a essa liquidação oficiosa, já que é o que a lei lhe impõe.
Nestes termos, julga-se improcedente o pedido principal de anulação total da liquidação de ISV Nº 2020/... de 2020, efectuada pela Estância Aduaneira - Alfândega de Aveiro.
DA ILEGALIDADE DA LIQUIDAÇÃO DE ISV POR VIOLAÇÃO DO ART. 110º DO TFUE.
11. Sustenta o Requerente, no pedido subsidiário, existir ilegalidade da liquidação de ISV, uma vez que a disposição do art. 11º do CISV contraria o art. 110º do Tratado de Funcionamento da União Europeia, invocando a jurisprudência unânime do CAAD sobre esta questão.
Por sua vez, a Requerida sustenta a inaplicabilidade dessa jurisprudência a este caso, uma vez que o facto gerador aqui se consubstancia na “permanência de um veículo em território nacional em violação das obrigações do presente código”, não se verificando qualquer discriminação entre a tributação dos usados admitidos no território nacional relativamente a veículos idênticos em Portugal.
Neste ponto, não nos parece que assista razão à Requerida. Efectivamente, embora seja um facto tributário autónomo a permanência do veículo em território nacional em violação das obrigações do CISV (art. 5º, nº2, d) CISV), a taxa aplicável do ISV continua a ser neste caso a dos veículos usados, prevista no art. 11º CISV, não se fazendo a liquidação através da DAV apresentada pelo sujeito passivo, mas através de liquidação oficiosa, nos termos do art. 26º CISV.
Sendo, assim, da mesma forma aplicável o disposto no art. 11º CISV, há que verificar se o mesmo contraria ou não o art. 110º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, o qual dispõe expressamente o seguinte:
"Nenhum Estado-Membro fará incidir, directa ou indirectamente, sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidam, directa ou indirectamente, sobre produtos nacionais similares. Além disso, nenhum Estado-Membro fará incidir sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas de modo a proteger indirectamente outras produções".
Por sua vez, dispõe o artigo 11.º, nº1, do CISV o seguinte:
O imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados membros da União Europeia é objeto de liquidação provisória nos termos das regras do presente Código, com exceção da componente cilindrada à qual são aplicadas as percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respetiva, as quais estão associadas à desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional:
TABELA D
Esta redacção do art. 11º, nº1, do CISV foi introduzida pela Lei 42/2016, de 27 de Dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 2017), surgida após o Acórdão do Tribunal de Justiça (Sétima Secção) de 16 de junho de 2016, emitido no processo C-200/15 relativo à acção incumprimento interposta pela Comissão Europeia contra a República Portuguesa no qual se declarou a desconformidade da anterior redacção desta disposição com o art. 110º TFUE, nos seguintes termos:
"A República Portuguesa, ao aplicar, para efeitos da determinação do valor tributável dos veículos usados provenientes de outro estado-membro, introduzidos no território de Portugal, um sistema relativo ao cálculo da desvalorização dos veículos que não tem em conta uma desvalorização antes de estes atingirem um ano, nem a desvalorização que seja superior a 52% no caso de veículos com mais de cinco anos, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do art. 11º do TFUE (…)Este artigo (110º do TFUE) é violado sempre que a imposição que incide sobre o artigo importado e a que incide sobre o produto nacional similar são calculados de forma diferente e segundo modalidades diferentes que conduzam, ainda que apenas em certos casos, a uma imposição superior do produto importado (acórdão de 22 de fevereiro de 2001, Gomes Valente, C-393/98, EU: C:2001:109, nº 21; de 19 de setembro de 2002, Tulliasiames e Siilin, C-101/00, EU: C:2002:505, nº 53; e de 20 de setembro de 2007, Comissão/Grécia, C-74/06, EU:C:2007:534, nº 25)” (nº 24 dos fundamentos do acórdão). Assim, a cobrança, por um Estado-Membro, de um imposto sobre os veículos usados provenientes de outro Estado-membro é contrária ao artigo 110º. do TFUE, quando o montante do imposto, calculado sem tomar em conta a depreciação real do veículo, exceda o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional (v., designadamente, acórdãos de 9 de março de 1995, Nunes Tadeu, C-345/93, EU:C:1995:66, n.º 20, e de 22 de fevereiro de 2001, GomesValente, C-393/98, EU:C:2001:109, n.º 23)” (nº 25 dos fundamentos do acórdão).“ (…) Mais precisamente, um Estado-Membro não pode cobrar um imposto sobre os veículos usados importados, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares, disponíveis no mercado nacional. O valor do veículo usado importado utilizado pela Administração como base de tributação deve refletir fielmente o valor de um veículo similar já registado no território nacional (v. acórdão de 20 de setembro de 2007, Comissão/Grécia, C-74/06, EU:C:2007:534, n.ºs 27 e 28 (…) ".
Sucede, porém, que a actual redacção do art. 11º do CISV mantém uma diferenciação com os valores do ISV aplicáveis aos veículos nacionais, e que constam do art. 7º CISV e tabelas anexas, dado que o legislador, em conformidade com o acima referido acórdão do TJUE, alargou as percentagens de redução ao primeiro ano de uso do veículo, prolongando-a até aos 10 e mais anos de uso, mas introduziu uma outra alteração diferenciadora em relação aos veículos com origem noutros Estados-Membros, com impacto no cálculo do ISV, uma vez que a actual redacção do art. 11º CISV limita a aplicação das percentagens de redução apenas à componente cilindrada, excluindo-a da componente ambiental (emissão de CO2), ao contrário do que sucede com os veículos usados já matriculados no território nacional.
Por esse motivo, com bem salienta o Requerente, a jurisprudência deste CAAD tem decidido uniformemente que a actual redacção do art. 11º CISV viola o disposto no art. 110º TFUE (cfr. as decisões dos processos 572/2018-T, 346/2019-T, 348/2019-T, 350-2019-T, 459/2019-T e 660/2019-T).
É claramente essa a solução desta questão, uma vez que as normas do Direito da União Europeia, no caso o art. 110º TFUE, têm efeito directo e primado sobre o Direito Nacional, não podendo assim o art. 11º CISV contrariar aquela disposição. Ora, existe uma clara violação do artigo 110.° TFUE sempre que o montante de imposto que incide sobre um veículo usado proveniente de outro Estado-Membro exceda o montante residual do referido imposto incorporado no valor dos veículos usados similares já matriculados no território nacional, o que é o caso.
Quanto à justificação apresentada pela Requerida que a diferenciação na tributação resulta de razões ambientes, a mesma não pode proceder. Como se escreveu na Decisão no processo 660/2019-T "decorre da jurisprudência do TJUE e da própria sistemática do TFUE que, ao contrário do que indica a AT, a norma do artigo 110.º do TFUE é imperativa e sobrepõe-se às normas de cariz ambiental do artigo 191.º do TFUE. Assim, ainda que um EM utilize componente ambientais na determinação do cálculo do regime de tributação de veículos, nunca poderá, com base nessa componente, agravar a tributação de veículos usados provenientes de outros EM face aos veículos usados já matriculados em território nacional". Tal "equivale a dizer que não decorre da legislação aplicável que as regras e princípios ambientais constantes do artigo 191.º do TFUE e artigo 66.º da CRP prevaleçam sobre a regra do artigo 110.º do TFUE que é imperativa para os EM".
É manifesta assim a ilegalidade parcial da liquidação de ISV impugnada, tendo razão a Requerente em relação ao pedido subsidiário apresentado.
- DA INCONSTITUCIONALIDADE DA INTERPRETAÇÃO DO ART. 11º DO CISV EM CONFORMIDADE COM O ARTIGO 110º DO TFUE.
11. Veio ainda a Requerida alegar que a desaplicação do artigo 11º do CISV resulta numa violação do princípio da legalidade consagrado no artigo 266º da CRP e do disposto nos artigos 20º, nº 1 e nº 4, 66º, e 266º, todos da CRP, i.e. violação dos princípios do Estado de Direito ambiental e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva.
É manifesto que tal não sucede, sendo de salientar que, nos termos do art. 8º, nº4 da Constituição, "as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático". Não é assim possível aos tribunais, salvo em caso de violação dos princípios fundamentais do Estado de direito democrático, que in casu não se verificam, recusar a aplicação de normas do Direito da União Europeia invocando disposições do Direito Interno Português.
Relativamente à invocação da limitação dos recursos em sede da arbitragem tributária, tal resulta da vinculação da Administração Tributária à jurisdição do CAAD resultante da Portaria 112-A/2011, de 22 de Março, com as alterações resultantes da Portaria 287/2019, de 3 de Outubro, e ao regime instituído no RJAT que este Tribunal tem que observar. É por isso que tem o dever de apreciar a legalidade do acto tributários de liquidação de ISV aqui em causa, limitado e no âmbito da competência que lhe é conferida pelo artigo 2º nºs 1 e 2 do RJAT, não se verificando qualquer inconstitucionalidade nessa sua competência. Na verdade, a existência de tribunais arbitrais é reconhecida pelo art. 209º, nº2, da Constituição.
- DO DIREITO A JUROS INDEMNIZATÓRIOS.
12. O Requerente solicitou ainda o pagamento de juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43º da LGT, mas apenas quanto ao pedido principal, nada referindo neste sentido quanto ao pedido subsidiário.
Uma vez que o pedido principal foi julgado improcedente, naturalmente que não é possível a atribuição de juros indemnizatórios em relação ao mesmo e, não tendo esses juros sido solicitados em relação ao pedido subsidiário, único julgado procedente, não pode o Tribunal Arbitral determinar a atribuição de quaisquer juros indemnizatórios. Tal violaria o princípio do pedido, a que naturalmente este Tribunal Arbitral está vinculado.
Nestes termos, terá que improceder totalmente o pedido de condenação da Requerida nos juros indemnizatórios.
V – Decisão
Nestes termos, julga-se improcedente o pedido principal de declaração da ilegalidade total da liquidação com o número 2020/..., de 28/05/2020, absolvendo-se a Requerida do pedido de restituição da quantia de € 15.896,63.
Julga-se procedente o pedido subsidiário de declaração da ilegalidade parcial da liquidação com o número 2020/..., de 28/05/2020, condenando-se a Requerida a restituir ao Requerente o valor correspondente a 80% da componente ambiental, ou seja € 10.209,18.
Julga-se improcedente o pedido de condenação da Requerida em juros indemnizatórios, absolvendo-se a mesma desse pedido.
Fixa-se ao processo o valor de € 15.896,63 (valor indicado e não contestado) e o valor da correspondente taxa de arbitragem em € 918,00 nos termos da Tabela I do Regulamento de Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, condenando-se Requerente e Requerida nas custas do processo em partes iguais, uma vez que houve decaimento recíproco.
Lisboa, 11 de Fevereiro de 2021
O Árbitro
(Luís Menezes Leitão)