Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 835/2019-T
Data da decisão: 2021-02-03  IVA  
Valor do pedido: € 362.887,23
Tema: IVA - indeferimento de pedido de reembolso; incompetência absoluta; conceito de sujeito passivo: critérios de ligação ao território nacional.
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SUMÁRIO:

 

I.             Os Tribunais Arbitrais são apenas competentes para apreciar a legalidade dos “actos de liquidação, em sentido estrito”, que provocam uma modificação na situação tributária do contribuinte, definindo a existência de uma obrigação (que através desse acto se torna certa, líquida e exigível, inclusivamente por via coerciva no caso de não cumprimento voluntário), o que não é o caso dos actos que recusam o reembolso de IVA, pois deles não resulta para os contribuintes qualquer obrigação que não tivessem anteriormente;

II.            A legislação do IVA não atribui uma “nacionalidade” ao conceito de sujeito passivo, podendo este encontrar-se ligado ao território nacional pelos critérios da sede (sujeitos passivos que têm em Portugal a sede da sua atividade), do estabelecimento estável (sujeitos passivos que têm em Portugal um estabelecimento estável a partir do qual os serviços sejam prestados), do domicílio (para pessoas singulares), ou do simples registo, para efeitos de IVA, em Portugal;

III.          O facto de um determinado sujeito passivo ter um estabelecimento num outro Estado diferente da sede ou um “mero” registo de IVA não conduz à aquisição de diferentes personalidades tributárias nesses Estados, num fenómeno de “multiplicação de sujeitos passivos” (um por cada estabelecimento ou registo).

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros Fernanda Maçãs (árbitro-presidente), Paulo Lourenço e Marisa Almeida Araújo (árbitros-vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o presente Tribunal Arbitral, constituído em 26 de fevereiro de 2020, acordam no seguinte:

 

I.             RELATÓRIO

 

1.            A... SA, sociedade de direito finlandês, com sede em …, …, Finlândia, com o número de identificação finlandês FI ..., registada em Portugal para efeitos de IVA sob o número ..., adiante designada por “Requerente”, vem, por pedido de 16 de dezembro de 2019, requerer a constituição de Tribunal Arbitral Coletivo, ao abrigo do regime excecional constante do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 81/2018, de 15 de outubro e nos termos conjugados do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º n.º 3 e 6.º n.º 2, alínea a), todos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

 

2.            A Requerente peticiona a declaração de ilegalidade e anulação dos atos de liquidação de IVA n.º 2019 ... e juros compensatórios n.º 2019 ..., relativos ao período 09T de 2018, com as devidas consequências legais, designadamente o reembolso do montante de imposto pago, respetivamente no valor de € 55.760,21 e € 1.688,06, acrescido de juros indemnizatórios, bem como a declaração de ilegalidade do indeferimento do pedido de reembolso do IVA, relativo ao mesmo período, (ID. Doc. IVA n.º OR…2018...) com o valor de € 361.634,17.

 

3.            É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT”).

 

4.            Como fundamento da sua pretensão a Requerente alega, sumariamente que,

4.1. É uma sociedade de direito finlandês, com sede na Finlândia e número de identificação finlandês FI ..., sem estabelecimento estável em Portugal, mas registada para efeitos de IVA, neste país, desde 01 de janeiro de 2017, sob o número ..., sob o regime normal trimestral, registada para o exercício da atividade de “Fabrico de Máquinas para Metalurgia”, CAE 28910.

4.2. No dia 30 de março de 2017, celebrou com a B..., Lda. (doravante “B...”), entidade estabelecida em Portugal, com NIF ... um contrato “Power Plant Delivery Contract for Biomass Dust Fired Power Plan”, que tem por objeto o fornecimento e montagem de equipamentos na construção de uma central energética em ..., Portugal. São partes do contrato a A... Finlândia – na qualidade de “Contractor” – e a B... – na qualidade de “Owner” –, sendo esta última a proprietária do terreno no qual se instalará a central energética.

4.3. No que respeita à intervenção da A... Finlândia (NIF finlandês), esta será responsável por prestar serviços de desenho, engenharia, aquisição de equipamento, supervisão de construção, arranque, testes e formação para a instalação da central energética, alegando que não é responsabilidade da A... Finlândia, na qualidade de “Contractor”, a construção propriamente dita da central energética, pois esta incumbência está a cargo da B..., na qualidade de “Owner”.

4.4. Para a prossecução desta atividade, a Requerente importa, através do registo de IVA em Portugal, bem originários de países terceiros, em particular da Índia, e efetua a aquisição intracomunitária de bens – oriundos de países comunitários. Sendo que, para efeitos de importação, a Requerente alega ter suportado o IVA, no montante de €305.438,96, pago junto dos serviços aduaneiros competentes, mediante intervenção de despachante nomeado para o efeito.  Por sua vez, o mesmo valor de IVA (€ 305.438,96) foi deduzido e, como tal, reportado no campo 22 da Declaração Periódica de IVA do período 09 de 2018.

Quanto às aquisições intracomunitárias de bens, a Requerente alega ter procedido (conforme o estipulado no artigo 1.º, n.º 1, al. c) do CIVA e artigo 1.º, al. a) do RITI) à autoliquidação do IVA, no montante de € 56.195,21, e correspondente dedução do mesmo valor de imposto, na Declaração Periódica de IVA do período 09 de 2018. Os bens importados e os bens adquiridos através de aquisições intracomunitárias destinam-se, segundo a Requerente, a ser incorporados na mencionada obra em ....

4.5. A Requerente não registou nas Declarações Periódicas de IVA (desde o início da sua atividade) operações ativas, uma vez que é, em Portugal, um mero registo de IVA e as atividades são prosseguidas pela entidade Finlandesa (com o respetivo NIF finlandês, conforme decorre do contrato). Atento o facto de a Requerente não ter realizado operações ativas, os valores de IVA reportados como operações passivas, originaram, segundo a Requerente, no período 09 de 2018, um crédito de IVA a seu favor no montante de € 305.438,96.

4.6. Considerando o crédito de imposto apurado pela Requerente, esta solicitou, aquando da submissão da declaração o respetivo reembolso na declaração periódica de IVA do período 09 de 2018, no montante de € 305.438,96. Na sequência de pedido de reembolso de IVA, foi desencadeado um procedimento inspetivo.

4.7. A Requerente foi notificada em 06 de junho de 2019 do Projeto de Correções, não tendo respondido ao direito de audição, e a 26 de julho de 2019 a Requerente foi notificada da Ordem de Serviço n.º OI2018..., emitida pelos Serviços de Inspeção Tributária, que contém em anexo as conclusões da ação de inspeção efetuadas no âmbito do pedido de reembolso n.º .../..., do qual resulta o indeferimento total do pedido de reembolso, no valor de € 305.438,96 e ainda a liquidação adicional no valor de € 56.195, 21.

Nesta sequência foi ainda a Requerente notificada das liquidações de IVA e de juros, bem como das respetivas demonstrações de acertos de contas, todas emitidas em 09 de agosto de 2019.

4.8. A Requerente alega que os serviços da A... Finlândia se limitam à instalação da turbina com o condensador (que foi importado da Índia) e à caldeira (esta última produzida pela A... na Finlândia), sendo a instalação feita em Portugal por esta entidade, sendo que o local onde estes serviços são prestados é propriedade da B....

Concluindo a Requerente que, enquanto registo de IVA em Portugal, não é parte no contrato, atuando meramente como importadora dos bens necessários em território português.

4.9. A Requerente alega que os bens e serviços necessários ao cumprimento do objeto do contrato foram entregues e faturados pela A... estabelecida na Finlândia e, portanto, as faturas relevantes são emitidas pelo NIF Finlandês da A... (FI ...) à B..., como prestações de serviços intracomunitária sujeita a IVA em Portugal.

4.10. A Requerente sustenta que, ainda que não de forma direta, porque não constitui um estabelecimento estável da A... em Portugal, realizou operações de fornecimento e de instalação de equipamentos, os quais constituem transmissões de bens e prestações de serviços localizadas e sujeitas a IVA (tributáveis) em Portugal, seja pelo artigo 6.º, n.º 1 (transmissões de bens), seja pelo artigo 6.º, n.º 6, alínea a) e n.º 8 alínea a) (prestações de serviços), todos do Código do IVA. A Requerente sustenta que estamos perante um único sujeito passivo, i.e., o facto de ter um estabelecimento (na Finlândia) e um mero registo de IVA (em Portugal), não conduz à aquisição de diferentes personalidades tributárias nesses Estados. Concluindo que não estará correta a presunção de que os bens e serviços adquiridos pela Requerente (com o NIF Português), devem, nos termos da presunção do artigo 3.º, n.º 3, al. f) do Código do IVA, ser tidos como autoconsumo e assim uma transmissão de bens sujeitas a imposto – uma vez que a transmissão foi efetuada pela A... Finlândia, operações suportadas pelas faturas, já, juntas, e aceites pela AT segundo a Requerente.

A Requerente afirma que não existiu autoconsumo mas outrossim que aqueles bens e serviços foram “incorporados nos serviços de construção da central energética, prestação de serviços a efetuar pelo fornecedor Finlandês ao cliente português” (expressão aliás da AT no relatório de inspeção), importa delimitar o âmbito daquela norma (artigo 3.º, n.º 3, al. f) do Código do IVA), para se aferir que não estamos perante uma situação de autoconsumo, conforme previsto no artigo 3.º, n.º 3, al. f) do Código do IVA , o que não é o caso.

4.11. Por outro lado, a Requerente sustenta em particular no sentido em que as operações ativas tributáveis, que conferem o direito à dedução, foram prosseguidas pela A… Finlândia (e que tal é aceite pela jurisprudência nacional e comunitária) importa agora clarificar que, cumulativamente (é já defendido em doutrina administrativa – emitida pela própria AT) os meros registos de IVA não devem, ao abrigo do artigo 2.º, n.º 1, alínea g) do Código do IVA, liquidar imposto.

Efetivamente, segundo a Requerente, no pressuposto de que esta possui um simples registo de IVA em Portugal – o que a AT não põe em causa – os fornecimentos efetuados pela A... Finlândia, sendo tributáveis em Portugal (face aos critérios de conexão enunciados), estariam abrangidos pelo mecanismo de autoliquidação, a cargo do adquirente - B..., conforme previsto no artigo 2.º, n.º 1, alínea g) do Código do IVA, que estabelece uma regra geral de substituição do devedor do imposto, utilizando a prerrogativa concedida ao legislador português pelo artigo 194.º da Diretiva IVA. 

4.12. Conclui a Requerente, assim, que quanto ao pedido de reembolso de IVA, no montante de € 305.438,96, está verificado o direito à dedução daqueles montantes, pelo que resta confirmar que o procedimento adotado foi o legalmente previsto. Os reembolsos solicitados por sujeitos passivos não residentes, sem sede, estabelecimento estável ou domicílio em Portugal, sem representante, que aqui tenham um registo para efeitos de IVA, deverão ser concedidos ao abrigo do art.º 22.º do CIVA e respetiva legislação complementar, ou seja, através da apresentação da respetiva declaração periódica do imposto.

Peticionando que, havendo direito à dedução do imposto e sendo o procedimento adotado o correto, então não poderá, por ilegal, ser indeferido o pedido de reembolso efetuado pela Requerente (no montante de € 305.438,96).

4.13. Por outro lado, concluindo que não se verifica autoconsumo terá de se concluir- segundo a Requerente - que não lhe cabia proceder à liquidação de IVA nas vendas efetuadas, por ser a respetiva sede (A... Finlândia) que fatura tais operações. Concluindo que deverá ser anulada a liquidação de IVA, no montante de € 55.760,21 (muito embora, o valor alegadamente objeto de contestação pelos Serviços de Inspeção Tributária fosse de 56.195,21, ou seja, o valor correspondente ao IVA, que para além de ter sido liquidado pela REQUERENTE, foi deduzido no campo 22 da declaração periódica de IVA do período 09 de 2018) e consequentes juros compensatórios (no montante de € 1.688,06), por vício de violação de Lei.

4.14. Perante esta posição, a Requerente termina peticionando o reembolso dos valores pagos no montante global de € 55.760,21, ao qual acrescem juros indemnizatórios.

 

5.            Com o pedido de pronúncia arbitral (doravante “PPA”), a Requerente juntou 10 documentos.

 

6.            Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Conselho Deontológico do CAAD designou os árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, aqui signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

7.            O Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 26 de fevereiro de 2020.

 

8.            Tendo sido notificada para o efeito, a Requerida apresentou Resposta a 29 de junho de2020, e junto o respetivo processo administrativo na mesma data, na qual se defende por exceção e impugnação e pugna pela improcedência e consequente absolvição do pedido. Invoca, em síntese que,

8.1. A Requerida suscitou a incompetência material do CAAD para apreciar o ato de indeferimento do pedido de reembolso do IVA.

A AT defende que in casu o que está em apreço é um mero (pretenso) acto de liquidação aqui em questão mais não é do que um acto de indeferimento de reembolso. Admitindo que mesmo que haja alguma falha, quer quanto ao modo como notifica tais actos de indeferimento, quer quanto ao modo como pode induzir em erro o sujeito passivo, tal não pode redundar numa assunção de competência, por parte do Tribunal, quando muito numa eventual responsabilidade em matéria de custas.

Ou seja, segundo a Requerida o acto aqui em causa, nomenclado de liquidação adicional, mais não se traduz do que no resultado do acerto de contas entre o reembolso solicitado pela Requerente e as correcções efectuadas pelos serviços de inspecção tributária após se ter procedido à aferição da legitimidade do referido pedido de reembolso.

Concluindo que, os actos que indeferem pedidos de reembolsos não são passíveis de serem sindicados em jurisdição arbitral, muito simplesmente porque, nem no RJAT, nem na Portaria de Vinculação o legislador aí inseriu a declaração de ilegalidade de actos de indeferimento que provenham de pedidos de reembolsos.

Está-se, segundo a Requerida, perante a excepção dilatória de incompetência absoluta do foro arbitral para conhecer da matéria a que se reporta os deferimentos parciais de reembolsos solicitados, o que obstaculiza a que esse Tribunal conheça do mérito da acção e, em conformidade, devendo a Requerida ser absolvida da instância.

                8.2. Quanto à questão de mérito a Requerida sustenta que, tendo em consideração que nos termos da alínea f) do n.º3 do artigo 3.º do CIVA, a transmissão de bens da empresa, quando, relativamente a esses bens tenha havido dedução total do imposto, é enquadrada em sede de IVA como transmissão de bens. Nada diferente se poderá concluir, senão, que a referida transmissão de bens sem contraprestação, para execução do contrato entre a sociedade “B…” e o operador com registo na Finlândia, se considera uma transmissão de bens sujeito a imposto em território Português, com observância legal de todas as normas fiscais anteriormente referidas. Do anteriormente exposto e para efeitos de apuramento do valor sujeito a imposto nas transmissões realizadas sem contraprestação, atendendo que a operação de aquisição e transmissão ocorrem simultaneamente, apenas se poderá considerar, o valor da aquisição dos referidos bens ou o valor que serviu de base ao apuramento do imposto pago na Alfândega. Nesta medida, nas transmissões dos referidos bens, conforme descrito anteriormente, o sujeito passivo em análise, teria de apurar a liquidação do IVA, para efeitos de apuramento do imposto, tendo em consideração o imposto suportado para efeitos do exercício da atividade em que se encontra registada em território português. Refira-se, que apenas desta forma se encontra assegurado o Princípio da Neutralidade, por que se regem as regras do IVA.

Resulta que o valor da dedução seria neutralizado pelo valor da liquidação agora proposta, assegurando desta forma o princípio da neutralidade prevista no CIVA no seu art.º 20º, que estabelece que apenas confere direito à dedução o IVA suportado em aquisições de bens e serviços que sirvam para a realização de operações ativas sujeitas a imposto e dele não isentas. Assim, e atendendo a que o crédito de imposto se reporta ao 3.º trimestre/ 2018, o valor do imposto a liquidar relativamente às transmissões realizadas, deveria incidir sobre o montante das aquisições realizadas, conforme descrito no quadro da pág.3.) Tal correção, resulta na liquidação de IVA em falta, no de € 361.634,17, e consequentemente no indeferimento do reembolso solicitado, no montante de € 305.428,96, e liquidação adicional de imposto no montante de € 56.195,21.”

                8.3. A Requerida entende que os atos não enfermam de vícios, pelo que não são devidos juros indemnizatórios, pugnando pela improcedência do pedido arbitral.

 

9.            Foi dado direito de contraditório à Requerente tendo esta apresentado resposta à matéria de exceção no dia 31 de agosto de 2020, alegando sumariamente que,

9.1. a exceção invocada nunca poderá proceder porque, em primeiro lugar, configura abuso de direito – proibido de acordo com o disposto no artigo 334.º do Código Civil – por a sua invocação ser contrária à lei e à posição perfilhada em diversos Acórdãos do Tribunal Arbitral Tributário que funcionam no âmbito do CAAD. 

9.2. Por outro lado, a Requerente sustenta que o PPA foi deduzido para suscitar a apreciação e declaração de ilegalidade dos atos tributários consubstanciados na liquidação de IVA e respectivos juros, do período de 09T de 2018 (cf.Doc. n.º 1 e Doc. n.º 2 juntos ao PPA) e também, por razões de indissociabilidade, do indeferimento do pedido de reembolso relativo ao mesmo período tributável (cf. Doc. n.º 3 junto ao PPA), o qual resulta de uma “correção efetuada ao valor do excesso a reportar existente na conta corrente de IVA” (cf.Doc. n.º 4 junto ao PPA).

Concluindo a Requerente pela improcedência da exceção invocada pela Requerida.

 

10.          No dia 31 de agosto de 2020 foi proferido despacho a dispensar a reunião a que alude o art. 18.º do RJAT. As Partes foram notificadas para apresentar alegações sucessivas e designado o dia 26 de outubro de2020 como data limite para a prolação e notificação às partes da decisão arbitral final.

 

11.          Em 14 de setembro de2020 a Requerente apresentou as respetivas Alegações mantendo a posição anteriormente assumida e a Requerida apresentou as suas alegações a 7 de outubro de 2020.

 

II.            SANEAMENTO

 

Questão Prévia – Da incompetência material do tribunal arbitral

 

12.A Requerente termina o Pedido Arbitral pedindo a anulação dos atos de liquidação de IVA e de juros compensatórios relativos ao período 09T de 2018, bem como do reembolso do IVA objeto de indeferimento do pedido.

Na resposta veio a Requerida, como vimos, suscitar a incompetência material do CAAD para apreciar o acto de indeferimento do pedido de reembolso de IVA.

Alega a Requerida, em suma, que, se por um lado, “(…) as referidas liquidações adicionais (de IVA e juros)” “(…)”  podem ser apreciados nos presentes autos, em virtude da competência para o efeito atribuída ao CAAD, (…) assim já não é, no que concerne à apreciação do acto de indeferimento do pedido de reembolso de IVA” (cfr. ponto 8 da Resposta). 

Para a Requerida, os actos que indeferem pedidos de reembolsos, por se tratarem de atos administrativos tributários e não de actos de liquidação puros, não são passíveis de serem sindicados em jurisdição arbitral, muito simplesmente porque, nem no RJAT, nem na Portaria de Vinculação o legislador aí inseriu a declaração de ilegalidade de actos de indeferimento que provenham de pedidos de reembolsos.

Segundo a Requerida, estamos perante a excepção dilatória de incompetência absoluta do foro arbitral para conhecer da matéria a que se reporta os deferimentos parciais de reembolsos solicitados, o que obstaculiza a que esse Tribunal conheça do mérito da acção e, em conformidade, devendo a Requerida ser absolvida da instância.

Argumenta a Requerida que qualquer interpretação normativa que o Tribunal efectuasse acerca do artigo 2.º, n.º1, do RJAT e do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, no sentido da competência material para apreciar seta parte do pedido, sempre seria inconstitucional por violação do artigo 212.º, n.º3, da CRP e bem assim por violação do princípio do livre acesso aos tribunais , na vertente do direito ao duplo grau de jurisdição.  

Em exercício do contraditório, veio, por sua vez a Requerente, defender a improcedência da excepção, por, entre o mais, estar em causa a declaração de ilegalidade dos actos tributários consubstanciados na liquidação de IVA e respectivos juros, do período de 09T de 2018 e também, por razões de indissociabilidade, de indeferimento do pedido de reembolso relativo ao mesmo período  tributável, “o qual resulta de uma correção efetuada ao valor do excesso a reportar existente na conta corrente de IVA “.

Como vimos, invoca igualmente a Requerente que a excepção configura abuso de direito – proibido de acordo com o disposto no artigo 334.º do Código Civil – por a sua invocação ser contrária à lei e à posição perfilhada em diversos Acórdãos do Tribunal Arbitral Tributário que funcionam no âmbito do CAAD. 

Alega ainda a Requerente, remetendo para a Decisão Arbitral proferida no processo n.º 731/2015-T, que  “Mesmo que assim não se entendesse, desde há muito que se vem adoptando o entendimento de que os administrados não devem ser prejudicados no exercício de direitos processuais quando forem induzidos em erro por actos de entidades públicas competentes, regra que tem afloramentos explícitos, para os tribunais, no artigo 157.º, n.º 6, e no artigo 191.º, n.º 3, do CPC de 2013 (anteriores artigos 161.º, n.º 1, 198.º, n.º 3) e para os actos da administração, no artigo 7.º do CPA e no artigo 60.º, n.º 4, do CPTA).” – negrito nosso”. A apoiar a sua argumentação a Requerente remete para a Decisão Arbitral proferida no processo n.º 731/2015.

 

Cumpre apreciar e decidir.

Nos termos do previsto no artigo 2.º, n.º 1, do RJAT, os tribunais arbitrais são, em matéria tributária, competentes para conhecer: “a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta; b) A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais”.

Por sua vez, segundo o artigo 2.º alínea a) da Portaria 112-A/2011, de 22 de Março, pela qual a Administração Tributária se vinculou à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam junto do CAAD, excluem-se expressamente do âmbito de vinculação da Administração Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais, as “pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código do Procedimento e de Processo Tributário”. 

O que significa que a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD se limita à declaração de ilegalidade de actos dos tipos referidos no artigo 2.º do RJAT, estando-se, assim, perante um mero contencioso de anulação de actos, estruturado segundo o modelo processual anterior à reforma do contencioso administrativo de 2002-2004, que continua a vigorar no contencioso tributário.

Por outro lado, entende-se que a competência dos tribunais arbitrais se restringe “à atividade conexionada com atos de liquidação de tributos, ficando fora da sua competência a apreciação da legalidade de atos administrativos de indeferimento total ou parcial ou de revogação de isenções ou outros benefícios fiscais, quando dependentes de reconhecimento da Administração Tributária, bem como de outros atos administrativos relativos a questões tributárias que não comportem apreciação do ato de liquidação, a que se refere a alínea p) do n.º 1 do art. 97.º do CPPT” .

Em reação aos actos de indeferimento de pedidos de reembolso de IVA, segundo alguma doutrina, o conceito de reembolso de IVA utilizado para os efeitos dos números 4 e seguintes do artigo 22.º do Código de IVA corresponde uma situação em que, do saldo apurado no período, resulta um crédito de IVA a favor do sujeito passivo que será utilizado em períodos seguintes (numa lógica de conta- corrente), a menos que use a faculdade de solicitar o reembolso do mesmo, obviando ao seu reporte e aplicação nos períodos seguintes. De tal modo que “o pedido de reembolso, assim como a sua apreciação pela Autoridade Tributária não constituem factos jurídicos, uma vez que não constituem per si qualquer facto que determine uma alteração jurídica da situação de qualquer uma das partes” .     

Doutrina esta que acompanha a jurisprudência do STA, consignada no Acórdão de 12/7/2007, processo n.º 0303/07, onde se pode ler, entre o mais, que apenas “os actos de liquidação, em sentido estrito”, provocam “uma modificação na situação tributária do contribuinte, definindo a existência de uma obrigação (que através desse acto se torna certa, líquida e exigível, inclusivamente por via coerciva no caso de não cumprimento voluntário)”, o que não é o caso dos actos que recusam o reembolso de IVA, pois deles não resulta para os contribuintes qualquer obrigação que não tivessem anteriormente.” No mesmo sentido, cfr., entre outros, o Acórdão Arbitral, de 4 de Abril de 2014, processo n.º 238/2013-T, onde se pode ler que no que concerne ao pedido de reembolso, não se prevê expressamente a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD para apreciação da legalidade de actos de indeferimento de pedidos de reembolso de quantias pagas, em cumprimento de anteriores actos de liquidação. No mesmo sentido, cfr. a Decisão Arbitral proferida no processo n.º 48/2015-T, que estamos a seguir.

 

Atento o quadro legal acima mencionado, para apurar a competência do Tribunal Arbitral cabe averiguar o conteúdo dos actos impugnado, de modo a verificar em que medida comportam ou não a apreciação de um acto de liquidação.

No caso dos autos, resulta do PA e dos factos dados como provados, que a Requerente efectuou um pedido de reembolso de IVA, no montante de €305.438,96, na declaração periódica de 2018-09T, na sequência do qual foi instaurada a Ordem de Serviço OI2018..., com vista a aferir do direito ao mesmo.

Daquela Ordem de Serviço resultou por um lado, o indeferimento total do reembolso e, por outro lado, a liquidação adicional de IVA no montante de 56.195, 21€., bem como a liquidação de juros no montante de € 1.688,06.

Neste contexto, veio a Requerente apresentar Pedido Arbitral cumulando os pedidos de anulação das liquidações adicionais de IVA e juros, com o pedido de anulação do acto de indeferimento do pedido de reembolso.

A Requerente tende a configurar o pedido de reembolso como acto consequente da anulação da liquidação, mas pressupondo o pedido da Requerente a apreciação da legalidade de actos de reembolso, que são independentes do acto de liquidação, não se pode falar sequer de um acto consequente da anulação da liquidação.

Realce-se que, a demonstrar que a Requerente tem consciência de que se trata de actos autónomos e independentes está o pedido que faz de cumulação de pedidos, sendo claro ao longo do Pedido a distinção que faz entre liquidações de IVA e juros que totalizam um montante de imposto a pagar de €57.448,27 e o montante de €305.438,96 , correspondente ao valor de reembolso solicitado e indeferido (ver artigos  1.º a 3.º).

Por outro lado, ao longo do PA, este é muito claro ao esclarecer que o crédito de imposto alegado pela Requerente originou correções, resultantes na liquidação de IVA em falta, no valor de € 361.634,17, e “consequentemente no indeferimento do reembolso solicitado, no montante de € 305.428,96, e liquidação adicional de imposto no montante de €56.195, 21.”

No mesmo sentido vão os pareceres e Despacho (18 de Julho de 2019- respetivamente do Chefe de Divisão e do Chefe de Equipa) que acompanham a decisão final, despois da Requerida não ter exercido o direito de audiência, são muito claros quando referem: “(…) mantem-se a proposta de indeferimento total do pedido de reembolso em análise no montante de €305 438,96 e ainda a liquidação adicional no valor de €56.195,21 conforme Documento de correção emitido” (ver doc 9 junto aos autos).

Finalmente, conforme resulta dos autos e da matéria de facto dada como provada, quer o acto de indeferimento do pedido de reembolso, quer o relativo à liquidação adicional foram objecto de notificação à Requerente de forma autónoma.

Alega a Requerente que foi induzida em erro pela Requerida quando na notificação do indeferimento do reembolso remete para os meios de defesa, dizendo que “da liquidação efetuada poderá deduzir, no prazo de 120 dias, reclamação graciosa a apresentar no competente Serviço de Finanças ou no prazo de três meses, impugnação judicial a apresentar nos competentes Tribunais Tributários ou Serviços de Finanças, nos termos dos artigos 70.º e 102.º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

Ora, afigura-se que este esclarecimento, obedece aos requisitos exigidos para orientar os sujeitos passivos, quer quanto ao uso de meios administrativos, quer contenciosos, dirigidos em geral aos tribunais tributários. Em vez de se dirigir a estes tribunais, optou a Requerente, por apresentar impugnação nos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, sujeitos a regime jurídico diferente em muitos aspetos, desde logo quanto à competência e até ao prazo para a impugnação. Ora, neste contexto afigura-se desproporcionado concluir pura e simplesmente que a Requerida incorreu em erro. Ao optar por se dirigir aos tribunais arbitrais tributários, impenderá sobre a Requerente o ónus de conhecer o regime jurídico e as competências desta jurisdição arbitral, tal como configuradas no Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro e Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março. Acresce que a institucionalização de um puro contencioso de anulação, com competências restritas à declaração de ilegalidade e anulação previstas no artigo 2.º do DL 10/2011, torna impossível satisfazer a pretensão da Requerente, que terá de passar necessariamente por um pedido de reconhecimento do direito ao reembolso ou pela cumulação de um pedido de anulação com a condenação da Requerida a um comportamento (reembolso). Para alcançar este efeito são apenas competentes os tribunais tributários.  

Mas mesmo que assim se não entendesse, a argumentação da Requerente teria sempre de cair perante o facto de estarmos perante normas sobre a competência que são de ordem pública, que não podem ceder perante um alegado erro de notificação da Requerida. Acresce que a Decisão Arbitral proferida no Proc. 731/2015-T configura situação com contornos muito diferentes, desde logo, por ter ocorrido de facto apenas um ato de liquidação notificado ao SP.

Finalmente, neste contexto improcede o alegado abuso de direito invocado pela Requerente e muito menos que tenha sido induzido em erro pela Requerida.  

Termos em que, assistindo razão à Requerida quanto à incompetência absoluta deste Tribunal para conhecer da matéria a que se reporta, nos presentes autos, o segundo pedido da Requerente, se julga procedente a excepção dilatória por aquela alegada.    

Nesta sequência fica igualmente prejudicado o pedido de cumulação de pedidos.

***

 

13.O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 81/2018, de 15 de outubro, conjugado com o artigo 2.º n.º 1, alínea a) “declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação”, 5.º n.º 3 e 6.º n.º 2, alínea a) do RJAT.

14.O processo não enferma de vícios que o invalidem na totalidade.

15.As partes têm personalidade e capacidade judiciárias e mostram-se legítimas.

 

Cabe apreciar e decidir.

 

III.          MATÉRIA DE FACTO

 

A.           Factos provados

 

1.            A Requerente é uma sociedade de direito finlandês, com sede em …, …, Finlândia, com o número de identificação finlandês FI ..., registada em Portugal para efeitos de IVA sob o número ... e encontra-se enquadrada no regime normal trimestral, registada para o exercício da atividade de “Fabrico de Máquinas para Metalurgia”, CAE 28910.

2.            No dia 30 de março de 2017, a Requerente celebrou com a B..., Lda. (doravante “B...”), entidade estabelecida em Portugal, com NIF ... um contrato “Power Plant Delivery Contract for Biomass Dust Fired Power Plan”, que tem por objeto o fornecimento e montagem de equipamentos na construção de uma central energética em ..., Portugal.

3.            São partes do contrato a A... Finlândia (isto é, com identificação do NIF finlandês) – na qualidade de “Contractor” – e a B... – na qualidade de “Owner” –, sendo esta última a proprietária do terreno no qual se instalará a central energética.

4.            A A... Finlândia é responsável por prestar serviços de desenho, engenharia, aquisição de equipamento, supervisão de construção, arranque, testes e formação para a instalação da central energética, o que não inclui a respetiva construção. Em termos de instalação, os serviços da A... Finlândia limitam-se à instalação da turbina com o condensador (que foi importado da Índia) e à caldeira (esta última produzida pela A... na Finlândia), sendo a instalação feita em Portugal por esta entidade.

5.            Os serviços são prestados na propriedade da B....

6.            A Requerente, enquanto registo de IVA em Portugal, não é parte no contrato, atuando meramente como importadora dos bens necessários em território português.

7.            Para a prossecução desta atividade, a Requerente importa, através do registo de IVA em Portugal, bem originários de países terceiros, em particular da Índia, e efetua a aquisição intracomunitária de bens – oriundos de países comunitários.

8.            Para efeitos de importação, a Requerente suportou o IVA, no montante de €305.438,96, pago junto dos serviços aduaneiros competentes, mediante intervenção de despachante nomeado para o efeito.

9.            O mesmo valor de IVA referido no ponto precedente foi deduzido e, como tal, devidamente reportado no campo 22 da Declaração Periódica de IVA do período 09 de 2018.

10.          Quanto às aquisições intracomunitárias de bens, a Requerente procedeu à autoliquidação do IVA, no montante de € 56.195,21, e correspondente dedução do mesmo valor de imposto, na Declaração Periódica de IVA do período 09 de 2018 (campos 11, 13 e 22).

11.          Os bens importados e os bens adquiridos através de aquisições intracomunitárias destinam-se a ser incorporados na mencionada obra em ....

12.          A Requerente não registou nas Declarações Periódicas de IVA (desde o início da sua atividade) operações ativas, uma vez que é, em Portugal, um mero registo de IVA e as atividades são prosseguidas pela entidade Finlandesa.

13.          A Requerente não registou nas Declarações Periódicas de IVA (desde o início da sua atividade) operações ativas, os valores de IVA reportados como operações passivas, originaram, no período 09 de 2018, um crédito de IVA a seu favor no montante de € 305.438,96.

14.          Face ao crédito de imposto apurado, a Requerente solicitou, aquando da submissão da declaração o respetivo reembolso na declaração periódica de IVA do período 09 de 2018, no montante de € 305.438,96.

15.          Na sequência de pedido de reembolso de IVA, foi desencadeado um procedimento inspetivo, de modo a aferir da legitimidade do referido pedido e foi notificada em 06 de junho de 2019 do Projeto de Correções, não tendo respondido ao direito de audição.

16.          Ao referido pedido foi atribuído o número de procedimento .../... e, para efeitos de aferição do direito ao reembolso foi instaurada a Ordem de Serviço OI2018....

17.          Daquela OI resultou o indeferimento total do reembolso e a liquidação adicional de IVA no montante de 56.195,21€, bem como a liquidação de juros no montante de € 1.688,06.

18.          A Requerente foi notificada dos atos de liquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”) n.º 2019 ... e de Juros Compensatórios e n.º 2019 ..., relativos ao período de 09T de 2018, respetivamente no valor de € 55.760,21 e no valor de € 1.688,06, e bem assim, notificada do Indeferimento do Pedido de Reembolso (ID.DOC.IVA N.º OR…2018...), todas emitidas em 09 de agosto de 2019.

19.          Estas notificações foram objecto de notificação autónoma (cfr. docs 3 e 4 juntos aos autos pelo SP).

20.          A data-limite de pagamento das liquidações foi o dia 19 de setembro de 2019 tendo as mesmas sido pagas pela Requerente nesse mesmo último dia.

21.          O pedido de pronúncia arbitral deu entrada a 6 de dezembro de 2019.

 

B.            Factos não provados

 

Não se deram como não provados factos com relevância para a apreciação do mérito da causa.

 

C.            Motivação da matéria de facto

 

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e factos notórios.

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC. Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g. força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.

 

IV.          DO MÉRITO

 

§1.º Quanto à ilegalidade da liquidação adicional

 

Tendo presente o exposto, importa decidir se a Requerente, enquanto entidade que se encontra registada em Portugal para efeitos de IVA pode ou não exercer o direito à dedução do imposto suportado nas importações e nas aquisições intracomunitárias de bens.

Em primeiro lugar, há que referir que não estamos na presença de duas entidades juridicamente distintas, não obstante existirem dois números de identificação fiscal, um atribuído pelas autoridades fiscais da Finlândia e um outro, próprio para ser utilizado pelas entidades equiparadas a pessoas coletivas e que foi atribuído pela Autoridade Tributária portuguesa, tendo em conta a necessidade que a empresa finlandesa teve de se registar para efeitos de IVA em Portugal, uma vez que iria realizar operações ativas e operações passivas.

Ainda assim, a verdade é que, como se referiu, a entidade é só uma, o que significa que a existência de dois números de identificação em dois Estados membros da União Europeia encontra a sua justificação no facto de ter operações em Portugal e na Finlândia, tendo, consequentemente, obrigações de carácter fiscal a cumprir nos dois Países referidos.

Este entendimento tem vindo a ser sufragado pela jurisprudência arbitral tributária.

Na verdade, no acórdão nº 59/2013 T, o colégio arbitral decidiu que pelo facto de um determinado sujeito passivo ter um estabelecimento num outro Estado diferente da sede ou um “mero” registo de IVA, não conduz à aquisição de diferentes personalidades tributárias nesses Estados, num fenómeno de “multiplicação de sujeitos passivos” (um por cada estabelecimento ou registo).

De facto, continua o referido acórdão, não é a obtenção de um registo de IVA em Portugal que confere à Requerente a natureza de sujeito passivo, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do Código do IVA. A qualidade de sujeito passivo da Requerente é preexistente ao seu registo de IVA em Portugal, pois, para tal, basta ser uma entidade que desenvolve uma atividade económica (que o é, nos termos do citado artigo 2.º, n.º 1 do Código do IVA).

Acresce ainda que, conforme salienta ainda o acórdão mencionado, …a legislação do IVA não atribui uma “nacionalidade” ao conceito de sujeito passivo, podendo este encontrar-se ligado ao território nacional pelos critérios da sede (sujeitos passivos que têm em Portugal a sede da sua atividade), do estabelecimento estável (sujeitos passivos que têm em Portugal um estabelecimento estável a partir do qual os serviços sejam prestados), do domicílio (para pessoas singulares), ou do simples registo, para efeitos de IVA, em Portugal (vejam-se, a título de exemplo, as referências feitas no artigo 6.º, n.ºs 4 e 11 do Código do IVA). 

Assim, os critérios da sede ou do estabelecimento estável e simples registo para efeitos de IVA estabelecem o tipo de conexão que os sujeitos passivos de IVA têm com o território nacional, mas não são constitutivos de novos sujeitos passivos de IVA. Esta questão encontra-se clarificada pelo Acórdão do TJ, Processo C-210/04, de 23 de Março de 2006, em particular nos n.ºs 37 a 51, contra o entendimento então preconizado pelos Estados italiano e português. 

Por outro lado, importa salientar que mesmo os sujeitos passivos que não têm qualquer conexão com o território português, nem mesmo o simples registo de IVA, podem realizar operações tributáveis em Portugal, e/ou obter o crédito do IVA incorrido no território nacional através do mecanismo do reembolso .

                Em síntese, existe, um único sujeito passivo de IVA.

Acresce que nem sequer é relevante o facto de haver ou não operações ativas realizadas pela entidade registada para efeitos de IVA em território nacional.

Na verdade, conforme se pode verificar através do acórdão supra mencionado, o direito à dedução do IVA incorrido em Portugal pela Requerente não está condicionado ao cumprimento, por esta, de obrigações de faturação ou pela liquidação do imposto nas operações ativas realizadas em território nacional. As questões suscitadas não se situam no plano do direito à dedução, mas sim na vertente das obrigações acessórias (faturação) e do IVA liquidado.

O eventual incumprimento pela Requerente nessa sede (quod demonstrandum), poderia ter como consequência a aplicação da disciplina sancionatória própria prevista no Regime Jurídico das Infracções Tributárias (RJIT) e suscitar liquidações adicionais de imposto por falta de liquidação do IVA no(s) fornecimento(s) efetuado(s) à B…, mas não é suscetível de qualquer produtividade de efeitos no plano do exercício do direito à dedução do IVA incorrido pela Requerente.

Recorda-se que o direito à dedução não pode ser limitado nem usado como regime sancionatório consequente à falta de liquidação do imposto nas operações ativas .

Refira-se ainda que as liquidações adicionais em crise não têm por fundamento nem derivam da falta de liquidação de IVA nas operações ativas, pelo que não se afigura pertinente a invocação desta argumentação pela Autoridade Tributária e Aduaneira, que, em tempo, poderia ter atuado em conformidade.

O entendimento supra evidenciado é o que consta igualmente do acórdão de 7 de agosto de 2018, referente ao Processo C-16/17, que opôs a TGE Gas Engineering Gmbh-Sucursal em Portugal à Autoridade Tributária e Aduaneira.

De acordo com o decidido no referido acórdão, os artigos 167º e 168º da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, bem como o princípio da neutralidade devem ser interpretados no sentido de que se opõem a que a Administração Fiscal de um Estado membro considere que uma sociedade que tem a sua sede noutro estado membro e a sucursal que a mesma detém no primeiro desses Estados constituem dois sujeitos passivos distintos por cada uma dessas entidades dispor de um número e, por essa razão, recuse à sucursal o direito de deduzir o Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) liquidado nas notas de débito emitidas por um agrupamento complementar de empresas do qual a referida sociedade, e não a sua sucursal, é membro.

O acórdão em causa foi proferido a título prejudicial no âmbito do Processo 772/2015 T, que correu seus termos no Centro de Arbitragem Administrativa, no qual se decidiu em termos finais que o direito à dedução faz parte integrante do mecanismo do IVA e não pode em princípio ser limitado.

Por outro lado, decidiu-se também, em consonância com o acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, que a empresa e a respetiva sucursal em Portugal constituem uma só e mesma entidade jurídica e, portanto, um único sujeito passivo.

Por essa razão, a Autoridade Tributária e Aduaneira não pode recusar ao sujeito passivo a dedução do IVA pago a montante, apenas por este sujeito passivo ter utilizado um número de identificação fiscal como entidade não residente sem estabelecimento estável, aquando da constituição de um ACE, e ter utilizado o número de identificação fiscal da sua sucursal residente nesse mesmo estado, para a refaturação dos custos desse agrupamento.

Posto isto, importa então concluir que, não obstante estarmos perante uma sociedade de direito finlandês, com sede na Finlândia e com o número de identificação finlandês, que é igualmente registada em Portugal para efeitos de IVA, a Requerente não deixa ser, para efeitos de IVA,  uma única e a mesma entidade. Nesta sequência, também não é correto afirmar-se que não tem em Portugal operações ativas, já que, conforme a própria Autoridade Tributária reconhece, a empresa finlandesa prestou serviços à empresa portuguesa, no que diz respeito à instalação da central em Portugal, mais concretamente em ….

Nem sequer é relevante invocar que enquanto registada em Portugal não procedeu à liquidação do IVA em função dos serviços prestados pela empresa finlandesa, já que, por via do mecanismo de funcionamento do imposto, tais liquidações incumbem ao adquirente, conforme resulta claramente do disposto na alínea g) do nº 1 do artigo 2º do Código do IVA, normativo que dispõe expressamente que são sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares ou coletivas referidas na alínea a), que sejam adquirentes em transmissões de bens ou prestações de serviços efetuadas no território nacional por sujeitos passivos que aqui não tenham sede, estabelecimento estável ou domicílio nem disponham de representação nos termos do artigo 30º.

Uma vez aqui chegados, pode concluir-se que a empresa finlandesa não tem, nem é obrigada a ter, em Portugal um representante fiscal, menos certo não é também que não possui um estabelecimento estável, uma vez que foi efetuado o registo com o único propósito de dar cumprimento às obrigações fiscais decorrentes das transmissões de bens e das prestações de serviços que a empresa finlandesa leva a efeito no território nacional.

Assim sendo, a liquidação do imposto nas operações praticadas pela empresa finlandesa deve ser efetuada pela entidade adquirente, o que significa que há operações ativas praticadas em Portugal, não tendo, no entanto, enquanto registada em Portugal para efeitos de IVA que proceder à liquidação do imposto.

Nem sequer existe a obrigatoriedade, para a sucursal em Portugal da empresa finlandesa, de proceder à emissão de fatura pelos bens transmitidos ou pelos serviços prestados pela empresa finlandesa, já que tal obrigatoriedade apenas será exigível a partir do dia 1 de julho de 2021, conforme resulta do despacho nº 404/2020-XXII, de 20 de outubro, de Sua Excelência o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais.

Acresce, finalmente, que a sucursal da empresa finlandesa, procedeu à liquidação do IVA nos casos em que a lei impõe tal obrigatoriedade, como aconteceu nas aquisições intracomunitárias que efetuou, facto este que é expressamente reconhecido pela Autoridade Tributária.

Tudo visto, pode concluir-se que, não obstante a existência de dois números de identificação fiscal, estamos perante uma única entidade, que realiza operações ativas em Portugal, procedendo à transmissão de bens e à prestação de serviços que, sendo localizados em Portugal, não determinam a obrigatoriedade de proceder, nem direta nem indiretamente através da sua sucursal, à liquidação do IVA, incumbência essa que, por via do disposto na alínea g do nº 1 do artigo 2º do Código do IVA, compete ao adquirente dos bens e dos serviços.

 

§2. Quanto ao pedido de reembolso e de juros indemnizatórios

Na sequência da notificação do acto de liquidação de IVA e de juros compensatórios, respetivamente no valor de € 55.760,21 e no valor de € 1.688,06, a Requerente procedeu ao respectivo pagamento, solicitando a restituição daqueles valores e juros indemnizatórios. 

O artigo 43.º, n.º 1, da LGT determina que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”, estatuindo o n.º 5 do artigo 61.º do CPPT que os “juros são contados desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito, em que são incluídos”.

No caso, como ficou dito, verifica-se que a ilegalidade da liquidação adicional de IVA e respectivos juros é imputável à AT por, naquelas liquidações, ter incorrido em vício de violação de lei, pelo que a Requerente tem direito à devolução do montante de imposto indevidamente pago, bem como direito a juros indemnizatórios, nos termos do estatuído nos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º do CPPT, relativamente ao montante a reembolsar, calculados desde a data em que efetuou o pagamento até à data do processamento da respetiva nota de crédito, em que são incluídos, à taxa legal supletiva, nos termos estatuídos nos artigos 43.º, n.º 4 e 35.º, n.º 10, da LGT, 61.º do CPPT e 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de abril.   

 

V.           DECISÃO

Nestes termos, e com os fundamentos expostos, decide este Tribunal Arbitral:

a.            Julgar procedente a exceção de incompetência absoluta invocada, absolvendo-se da instância a Autoridade Tributária, na parte que diz respeito ao indeferimento do pedido de reembolso, no montante de € 305 438,96;

b.            Julgar parcialmente procedente o pedido arbitral, na parte em que diz respeito à liquidação adicional do IVA e juros compensatórios, no montante de € 56 195,21;

c.            Julgar procedente o pedido de reembolso do montante de imposto e juros compensatórios indevidamente pago, bem como direito a juros indemnizatórios, nos termos legais.

 

* * *

(i)           VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em € 362.887,23, de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (“CPC”), este último ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

(ii)          CUSTAS

O montante das Custas é fixado em € 6 120,00 o qual, segundo as regras gerais de proporção no decaimento, fica 15,5% a cargo da Autoridade Tributária e 84,5% a cargo da Requerente.

 

Notifique.

 

Lisboa, 03 de Fevereiro de 2021

 

Maria Fernanda dos Santos Maçãs

(árbitro-presidente),

 

Paulo Lourenço

(árbitro-adjunto)

 

Marisa Almeida Araújo

(árbitro-adjunto)

(Com alteração parcial à posição que anteriormente assumimos, numa evolução de pensamento, subscrevemos hoje o sustentado na presente decisão)