SUMÁRIO:
I- A inexistência física dos meios financeiros que eventualmente estejam contabilizados na Conta de Caixa faz presumir a sua saída do património do sujeito passivo e que esses valores sejam considerados como despesa não documentada para efeitos do nº 1 do artº 88º do CIRC caso não exista qualquer suporte documental sobre o destino e beneficiário dos valores.
II - Aplicam-se à tributação autónoma prevista no CIRC os princípios e regras constantes do referido artº 88º do Código para a liquidação e cobrança do próprio IRC, mas não os incompatíveis com a natureza da tributação autónoma enquanto imposto incidente sobre certas despesas e não sobre o rendimento.
DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)
1. Relatório
A..., Lda, NIPC ... com sede na Rua ..., ..., ..., apresentou em 19/05/2020 pedido de pronúncia arbitral nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (doravante “RJAT”), requerendo a constituição de Tribunal Arbitral, tendo em vista a declaração de ilegalidade e anulação da liquidação adicional de IRC-tributação autónoma relativamente ao exercício de 2016, com um valor a pagar de €13 303,41, incluindo juros compensatórios.
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 20/05/2020.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o signatário foi designado Árbitro Singular pelo Conselho Deontológico em 28/07/2020, que comunicou a aceitação do encargo, no prazo aplicável.
Em 28-07-2020, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral singular foi constituído em 27-08-2020.
A Administração Tributária e Aduaneira, conjuntamente com o PA, apresentou Resposta em que defendeu que o pedido de pronúncia arbitral deve ser julgado improcedente.
Por despacho de 06/11/2020, foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, tendo as partes sido notificadas para apresentarem, querendo, alegações escritas.
Não foram apresentadas alegações.
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O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, todos do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, contado a partir do termo do prazo para pagamento da prestação tributária [23 de dezembro de 2019], por remissão para o artigo 102.º, n.º 1, alínea a) do CPPT.
Não foram identificadas questões que obstem ao conhecimento do mérito.
2. Matéria de facto
2.1 Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos:
A Requerente é uma sociedade comercial que tem por objeto as atividades de panificação, pastelaria, cafetaria, CAE principal 10711-Panificação e CAE secundário-010712-Pastelaria, complementadas com a venda de refeições rápidas e a venda de jogos da ... .
A Requerente foi objeto de uma ação de inspeção externa referente aos exercícios de 2016 e 2017, que abrangeu o IVA e o IRC, credenciada pelas Ordens de Serviço OI2019... e OI2019..., iniciada em 19/07/2019;
Segundo o Relatório Final tempestivamente notificado, o procedimento resultou em correções que constam do quadro seguinte:
Em sede de IRC, entre outras situações, foi constatado que:
Se relativamente a um dos Doc. Interno com o nº ... foram apresentados à AT elementos que permitiram identificar todos os lançamentos correspondentes ao saldo de 5 397,99€, já relativamente ao outro Documento Interno, também com o nº..., nada foi apresentado.
Apenas se encontram junto aos autos os documentos relativos ao lançamento do Documento Interno nº ..., constituído pelo Extrato de Conta-2788-Outros, com o saldo de 24 100,00€, enviado na sequência da notificação da AT, bem como o Extrato da Conta Caixa-111, referente ao período de que constitui de 1/01/2016 a 31/12/2016, no qual conta o referido valor, conforme o Anexo II e o Doc.1 junto pela Requerente.
Nenhum outro documento relativo a esta operação foi junto pela Requerente que permita conhecer qual o destino ou beneficiário daquele montante.
Em face da não apresentação da documentação solicitada ao sujeito passivo, por forma a justificar os montantes registados, a AT considerou tratar-se de despesas que, além de não poderem ser dedutíveis para efeitos fiscais por não se encontrarem documentadas, estão as mesmas sujeitas a tributação autónoma à taxa de 50%.
Em resultado desta decisão fundada no Relatório Final, a Autoridade Tributária efetuou a liquidação da mencionada tributação autónoma, com base nos seguintes cálculos:
24 100,00€*50%=12 050,00€
A Requerente foi ainda objeto de outras correções na tributação de cada um destes dois exercícios, em sede de IVA e em sede de IRC, com recurso à utilização de métodos indiretos, conforme se constata de pág. 14 e seguintes do RIT, daí resultando liquidações adicionais em sede de ambos aqueles impostos, mas que não são objeto de sindicância arbitral nos presentes autos.
2.2. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto
Os factos provados baseiam-se no processo administrativo e nos documentos juntos pela Requerente (doc.1).
O saldo constante do documento acima referido como constituindo o Anexo não vem impugnado.
Não se provou qual o destino que a Requerente deu às quantias em falta correspondentes ao saldo devedor da conta 2788-Caixa-Outros, nem foi apresentada qualquer prova, documental ou outra, sobre esse destino.
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT.
No que se refere aos factos provados, a convicção do tribunal fundou-se essencialmente na análise crítica da prova documental junta aos autos e no consenso das Partes em relação à mesma.
Não se provaram outros factos com relevância para a decisão da causa.
3 - Matéria de direito
Como emerge do RIT, a Autoridade tributária e Aduaneira constatou que em 31/12/2016 constava um saldo de 24 100,00€ registado na Conta 2788, correspondente ao lançamento do Documento Interno nº ..., mas que não existia qualquer documento comprovativo da natureza deste montante, nem o sujeito passivo o forneceu após instância específica para o efeito, através de notificação dos responsáveis da Requerente.
Tendo por base estes factos, a Requerida concluiu que existiram saídas de fluxos financeiros da empresa relativamente aos quais não foi apresentado qualquer documento de suporte, o que motivou a consideração desse valor, além de não poder ser dedutível para efeitos fiscais nos termos do artº 23º-A do CIRC por não se encontrar documentado, como tratando-se de despesas não documentadas, pelo que aplicou a esse valor a taxa de 50% a título de tributação autónoma conforme está previsto no nº do artº 88º do Código do IRC.
Deste modo a AT liquidou o montante de 12 488,14€ a título de tributação autónoma e 1 250,55€ a título de juros compensatórios (e ainda 2,86€ a título de juros de mora), tudo no total de 13 303,41, conforme liquidação nº 2020... .
3.1 Posição das partes
No essencial, a Requerente alega o seguinte:
Não existe qualquer prova de que este movimento contabilístico se tenha traduzido na saída efetiva de meios líquidos da empresa.
É abusivo, a menos que haja presunção legal nesse sentido, em que o ónus probatório se inverte, afirmar, sem mais, que tal lançamento consubstancia a realização de despesas não documentadas.
Por ignorar as causas de tal desfasamento, entre a contabilidade e a realidade, o gabinete responsável pela execução da escrita alocou tal diferença numa conta de Devedores e credores diversos (conta 2788 no SNC),
Importando notar que tal movimento contabilístico não teve quaisquer reflexos nos resultados da empresa (contabilísticos ou fiscais), nem existe qualquer prova de que este movimento contabilístico se tenha traduzido na saída efetiva de meios líquidos da empresa.
É abusivo afirmar, sem mais, que tal lançamento consubstancia a realização de despesas não documentadas, a menos que haja presunção legal nesse sentido, em que o ónus probatório se inverte.
Importando ainda notar que, como a IT bem sabe, tal movimento contabilístico não teve quaisquer reflexos nos resultados da empresa (contabilísticos ou fiscais).
Face ao artº 88º do CIRC, importa definir o que se entende por “despesa não documentada”.
A despesa não documentada é, antes de mais, uma despesa.
À míngua de caracterização deste conceito no âmbito do direito fiscal importa recorrer aos ramos onde esse conceito é comummente usado, como sejam os da economia e contabilidade onde a despesa é definida como a assunção da obrigação de pagar custos ou, como se ensina na Faculdade de Economia do Porto, Licenciatura em Gestão a “Despesa: origina uma obrigação de realizar um pagamento e corresponde à remuneração dos fatores produtivos”.
Nestes termos, o movimento contabilístico efetuado e considerado fiscalmente relevante pela AT/IT não configura a realização de qualquer despesa, porque a despesa relevante para efeitos de tributação autónoma tem que ser, também uma despesa não documentada (antes igualmente designada por despesa confidencial).
Conforme o Acórdão de 07-07-2010, proferido no processo 0204/10, o STA vem confirmar o entendimento de 05-07-2000, reafirmando, expressamente que os gastos ou despesas atendíveis para este efeito (de tributação autónoma) são “os encargos ou despesas suportadas pelo sujeito passivo que em termos contabilísticos afetam o resultado líquido do exercício, diminuindo-o …”,
O reconhecimento de uma despesa não documentada (…) não pode prescindir da demonstração da efetiva ocorrência da mesma”.
Apela ao entendimento que foi perfilhado no Acórdão do TCA Sul de 08-05-2019, proferido no processo 1119/16BELRA quando reconhece que “o objetivo da tributação autónoma das despesas confidenciais parece ser o de tentar evitar (…) que (…) o sujeito passivo utilize para fins não-empresariais bens que geraram custos dedutíveis. (…) A realização de tais despesas implica um encargo fiscal adicional para quem nelas incorre porque a lei supõe que, assim, outra pessoa deixa de pagar imposto” e que “O reconhecimento de uma despesa não documentada (…) não pode prescindir da demonstração da efetiva ocorrência da mesma”.
Daí que a apreciação judicial desta questão passe, inevitavelmente, pela verificação sobre se tal alegada despesa afeta ou não o valor da empresa.
A despesa não documentada é, para este efeito, aquela que conduz a um empobrecimento (contabilístico) da empresa, em consequência do registo de operações a débito da classe 6 do SNC;
Essa qualificação dependerá não tanto da existência, ou não, de documento suporte (situação dificilmente entendível face ao que dispõe o artigo 123º, nº 2 a) do CIRC, segundo o qual todos os registos estão suportados em documentos);
E o CIRC estipula as regras de determinação de resultados da empresa, réditos ou encargos, refletidos na contabilidade definindo aqueles a que a lei atribui relevância para efeitos fiscais.
Quaisquer movimentos que, direta ou indiretamente, se não repercutam em resultados (na situação patrimonial geral da empresa) não cabem no âmbito regulatório do CIRC.
Contabilisticamente o movimento que originou a tributação autónoma objeto do presente pedido de anulação provocou uma mera alteração qualitativa do património, sem quaisquer reflexos em resultados.
Portanto, nem o movimento objeto de tributação autónoma (movimento contabilístico a crédito da conta caixa e débito de uma conta 2788 Outros devedores e credores) é passível de qualificação como despesa - e, particularmente, não documentada, por não contender com resultados-, nem há qualquer demonstração, por parte da AT/IT da realidade desta alegada despesa.
Por isso, o comportamento da AT violou, entre outros, os artº.s 266º da CRP, 5º da LGT, 88º do CIRC e 6º do RCPITA, o que é justificativo para que declare a ilegalidade da liquidação, anulando-a, e a restituição do imposto pago acrescido de juros indemnizatórios.
Discordando da posição da Requerente e requerendo o indeferimento do pedido, respondeu a Administração Tributária e Aduaneira nos termos seguintes:
No decurso do procedimento inspetivo verificou-se em 31-12-2016, que na conta “caixa”, existiam dois documentos registados com o n.º..., contudo apenas um constava dos arquivos da Requerente, que é o documento interno n.º..., no valor de € 5.397,99, que diz respeito a retificações de várias contas. Ou seja, o outro registo contabilístico com o n.º..., no valor de € 24.100,00, não tinha qualquer documento de suporte.
Da leitura ao registo contabilístico antes referido, verifica-se que houve um desembolso de dinheiro por parte da Requerente (redução do saldo de caixa), no valor de € 24.100,00, tendo como destinatário um terceiro não identificado, não sendo possível conhecer a natureza e finalidade da despesa por ausência de documento de suporte.
O artigo 123.º do CIRC obriga a que as sociedades comerciais possuam uma contabilidade organizada nos termos da lei, devendo todos os registos contabilísticos estar suportados por documentos justificativos, datados e suscetíveis de serem apresentados sempre que necessário.
Não devendo ser efetuado qualquer lançamento contabilístico sem existir um documento representativo e comprovativo da respetiva operação, seja documento de movimento externo, seja documento de movimento interno.
De acordo com a alínea a) do n.º 2 do artigo 123.º do Código do IRC, na execução da contabilidade todos os lançamentos devem estar apoiados em documentos justificativos, datados e suscetíveis de serem apresentados sempre que necessário.
Se as regularizações forem efetuadas sem estes documentos de suporte, poderão ser consideradas despesas não documentadas, estando sujeitas a uma tributação autónoma de 50%, conforme o n.º 1 do artigo 88.º do CIRC, bem como não serem consideradas para efeitos fiscais, conforme alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º-A do CIRC.
Desta forma, e analisando o caso, a Requerente tinha dois registos contabilísticos com o mesmo número..., um com o montante de € 5.397,99, que retificava várias contas devidamente identificadas e passiveis de serem confirmadas pela AT, o que comprova que o Contabilista Certificado fez as devidas reconciliações e o outro registo contabilístico com o n.º..., no valor de €24.100,00, que não tinha qualquer documento de suporte e foi contabilizada numa conta 2788 “outros”,
Ou seja, o Contabilista Certificado não obteve, após a reconciliação entre os documentos que titulam essas compras e vendas e os respetivos recebimentos, os documentos de suporte da saída dos €24.100,00.
Assim, o artigo 88.º n.º 1 do Código do IRC determina que as despesas não documentadas são tributadas autonomamente, à taxa de 50%, sem prejuízo da sua não consideração como gastos nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º-A.
Conclui-se que o objetivo da norma não é só a contabilização da despesa como gasto e/ou ser necessário afetar o resultado líquido do período, visto, poder alcançar-se o que a lei não deseja, sem qualquer influência no respetivo resultado, como sucede no presente caso.
Por seu turno, por “despesas não documentadas” entende-se todas as despesas em que não existe documento como prova da operação, nem se sabe o destino desses gastos e, portanto, não se consegue provar a natureza, finalidade e origem dos gastos, nem tão pouco conhecer o(s) seu(s) beneficiário(s).
In casu, sabemos que com data de 31 de dezembro de 2016 a importância em causa foi creditada na conta “Caixa” e correlativamente debitada numa conta de “Outros devedores e credores”.
Todavia a Requerente (que é o sujeito passivo) imputa tal movimento a terceiro (o gabinete da contabilidade), enjeitando qualquer conhecimento ou responsabilidades sobre tal operação.
Apenas aduz que tal lançamento visou «ajustar a contabilidade à realidade», sem esclarecer de que realidade, afinal, se tratara.
Ora, o artigo 75.º da LGT estabelece, in limine, uma presunção de veracidade e de boa-fé das declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal (n.º 1).
No presente caso, não existem dúvidas de que a contabilidade do sujeito passivo revelou uma omissão, pelo não suporte documental do lançamento contabilístico – o que impediu o conhecimento da matéria tributável real – e pelo não esclarecimento da situação tributária por parte da Requerente.
Ora, um saldo de caixa devedor elevado é um indício forte de que houve saídas de caixa à margem da contabilidade, eventualmente para aquisição de mercadorias/produtos, que depois são omissos à contabilidade, ou foram efetuados pagamentos de despesas sem o respetivo documento.
A conta “2788 – Outros”, de acordo com o SNC, é uma subconta da conta “27 - Outras Contas a Receber e a Pagar”, servindo para registar as operações com terceiros que não estejam abrangidas por quaisquer outras contas de terceiros, ou seja, é uma conta residual, devendo permitir identificar a pessoa ou entidade a que se refere, o que não foi o caso.
A escolha desta conta sem identificação deve-se ao facto de o Contabilista Certificado não ter conhecimento do tipo de despesas efetuadas pela gerência à margem da contabilidade ao longo do período de tributação.
Há um desembolso de dinheiro (redução do saldo de caixa), no valor de € 24.100, tendo como destinatário um terceiro não identificado. O mesmo é dizer, não é possível conhecer a natureza e finalidade da despesa por ausência de documento de suporte.
Sendo que, a saída de fundos para terceiros, que se desconhece a sua identidade, provocou uma diminuição das suas disponibilidades, no valor de € 24.100 e no seu património.
Donde que, apresentando a Requerente na sua contabilidade o lançamento que reduziu o saldo de “Caixa”, é sobre o mesmo (e não sobre a administração tributária) que impende o ónus da prova quanto a tal facto.
O que não veio a ser cumprido: seja aquando a ação de inspeção propriamente dita, seja aquando o direito de audição ante a notificação do projeto de relatório de inspeção (que, podendo, não veio a ser exercido), seja agora em sede de pedido de pronúncia arbitral.
Em momento algum a ora Requerente veio justificar ou fundamentar o lançamento contabilístico em causa.
3.2 Questões suscitadas
a) Despesas não documentadas
Estabelece o artigo 88.º, n.º 1, do CIRC, na redação da Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, que «as despesas não documentadas são tributadas autonomamente, à taxa de 50 %, sem prejuízo da sua não consideração como gastos nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º-A».
Da análise desta norma depreendemos de imediato, conjugando-a com o disposto no artº 23º do CIRC, que o conceito de despesas não é coincidente com o conceito de gastos (o qual inclui designadamente perdas e ajustamentos), nem no Código encontramos qualquer definição de despesas pelo que será curial que se atribua à expressão o alcance de saída de dinheiro do património da empresa.
A jurisprudência do STA começou por decidir que no artigo 88.º, n.º 1, do CIRC, na redação da Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, se estabelece que as despesas não documentadas são tributadas autonomamente, à taxa de 50 %, sem prejuízo da sua não consideração como gastos nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º». Mais entende o STA , que tratar-se-á de encargos ou despesas suportadas pelo sujeito passivo que em termos contabilísticos afetam o resultado líquido do exercício, diminuindo -»: a apreciação da existência ou não da devida documentação e da confidencialidade da despesa é feita tendo por objeto o ato através do qual o sujeito passivo suporta o encargo ou a despesa que é suscetível de afetar o resultado líquido do exercício, para efeitos de determinação da matéria tributável de IRC.
Isto é, o encargo não estará devidamente documentado quando não houver a prova documental exigida por lei que demonstre que ele foi efetivamente suportado pelo sujeito passivo e a despesa será confidencial quando não for revelado quem recebeu a quantia em que se consubstancia a despesa.
Todavia, mais recentemente, a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo não faz depender a tributação autónoma baseada em despesas não documentadas da sua relevância como gastos para determinação do lucro tributável:
“… O art.º 81.º do CIRC, na redação vigente à data da tributação definia as diversas taxas que seriam utilizadas para tributação dos tipos de despesas ali enunciadas, sem haver qualquer dispositivo legal que determinasse que essa tributação só ocorreria se estas despesas houvessem sido tidas como custos fiscais da empresa para a determinação do seu lucro tributável.
…
As despesas em questão são tributadas apenas porque são efetuadas, havendo mesmo a cargo do contribuinte a obrigação de as tornar aparentes na sua declaração de rendimentos. Se todas ou parte delas poderiam ter sido consideradas como custos da empresa para efeitos da determinação do seu lucro tributável, aumentando a despesa fiscal com a consequente diminuição do lucro tributável, e a empresa por decisão consciente, ou esquecimento, não as considerou desse modo na sua declaração de rendimentos, nem por isso, elas perdem a sua natureza de despesas tributáveis em sede de tributação autónoma, que, por definição é uma tributação destacável da tributação em sede de IRC.”.
Por outro lado, a jurisprudência do CAAD segue igualmente este este entendimento, como pode ser conferido, por todos, no Acórdão nº 235/2020-T, de 2020/10/20.
Assim, subscrevendo esta jurisprudência, é entendimento deste tribunal arbitral que as despesas não documentadas a que se refere o artigo 88.º, n.º 1, do CIRC mais não serão do que saídas de meios financeiros do património da empresa sem um documento de suporte que permita apurar o seu destino ou o seu beneficiário.
Este entendimento constitui-se como o que melhor garante o sentido útil e a teleologia regulatória do preceito.
“A tributação autónoma constitui o exercício de uma função regulatória através do CIRC, inerente às finalidades e exigências de um Estado de direito material, onde se incluem objetivos incentivar a formalização da economia, o rigor e a fiabilidade das contas das empresas, prevenir a fraude e a evasão fiscal, nomeadamente através da retirada dissimulada de ativos monetários” .
b) Da prova da existência das despesas
No âmbito do procedimento inspetivo a AT apurou, conforme os factos dados como provados, que a conta “Caixa” tinha um saldo de 24 100,00 €, mas não foram encontrados na empresa os meios financeiros correspondentes a esse saldo nem se conseguiu apurar quais as razões da divergência porque, embora notificada para o efeito, a Requerente não logrou apresentar qualquer prova ou justificação, declarando mesmo não saber qual a razão para que o Técnico de Contas efetuasse esses lançamentos.
A Requerente afirma que se ignora a verdadeira causa da discrepância entre a realidade e a contabilidade, não existindo prova de que este movimento contabilístico se tenha traduzido na saída efetiva de meios líquidos da empresa, pelo que é abusivo que o ónus probatório se inverte, sem mais, e que tal lançamento consubstancia a realização de despesas não documentadas.
Por seu turno a Requerente alega apenas que desconhece a razão pela qual o Contabilista procedeu a esse registo, não podendo a AT, com base no desconhecimento, considerar que a divergência constitua uma verdadeira saída de meios líquidos da empresa.
É verdade que a Administração Tributária não desencadeou qualquer procedimento para apurar a que se deve a divergência entre o valor que deveria existir na caixa física e o que existia, relativamente ao saldo da Conta 111-Caixa.
Efetivamente a AT não apurou, designadamente, se se trata eventualmente de pagamentos efetuados a alguém sem emissão de documentos, se se trata de lucros distribuídos ou adiantamento por contas de lucros efetuados a sócios, se se trata de apropriações ou furtos, etc.
Porém, à face da experiência comum, é de presumir que os meios financeiros que estão contabilizados na conta 111-Caixa e na conta 2788-Outros Devedores e Credores deviam estar no património da empresa, pois é essa existência que justifica a contabilização. Por outro lado, se esses meios financeiros não foram encontrados, justifica-se, à face da experiência comum, a presunção de que saíram dele, pois esta é a explicação normal para meios financeiros que deviam estar num património deixarem de estar.
Citando o Ac. nº 235/2020-T do CAAD, de 20/10,2020, “em direito são admitidas presunções em matéria de prova, que permitem concluir, com fundamento num facto conhecido, pela existência de um facto desconhecido (artigo 349.º do Código Civil).
Como entendeu o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 06-10-2010, proferido no processo n.º 936/08.JAPRT:
«A verdade processual, na reconstituição possível, não é nem pode ser uma verdade ontológica. A verdade possível do passado, na base da avaliação e do julgamento sobre factos, de acordo com procedimentos, princípios e regras estabelecidos. Estando em causa comportamentos humanos da mais diversa natureza, que podem ser motivados por múltiplas razões e comandados pelas mais diversas intenções, não pode haver medição ou certificação segundo regras e princípios cientificamente estabelecidos. Por isso, na análise e interpretação – interpretação para retirar conclusões – dos comportamentos humanos há feixes de apreciação que se formaram e sedimentaram ao longo dos tempos: são as regras da experiência da vida e das coisas que permitem e dão sentido constitutivo à regra que é verdadeiramente normativa e tipológica como meio de prova – as presunções naturais».
«A presunção permite, deste modo, que perante os factos (ou um facto preciso) conhecidos, se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado, na convicção, determinada pelas regras da experiência, de que normal e tipicamente (id quod plerumque accidit) certos factos são a consequência de outros. No valor da credibilidade do id quod, e na força da conexão causal entre dois acontecimentos, está o fundamento racional da presunção, e na medida desse valor está o rigor da presunção».
«A consequência tem de ser credível; se o facto base ou pressuposto não é seguro, ou a relação entre a base e o facto adquirido é demasiado longínqua, existe um vício de raciocínio que inutiliza a presunção».
«Deste modo, na passagem do facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) do facto desconhecido, têm de intervir, pois, juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem diretamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido».
«A presunção intervém, assim, quando as máximas da experiência da vida e das coisas, baseadas também nos conhecimentos retirados da observação empírica dos factos, permitem afirmar que certo facto é a consequência típica de outros».
Por tudo isto, há efetivamente uma presunção natural que constitui meio de prova admissível em direito, e que não foi minimamente contrariada por qualquer prova ou facto em contrário apresentados pela Requerente, tendo em conta que, como se disse, à face da experiência comum, é de presumir que os meios financeiros que estão contabilizados na conta 111-Caixa e na conta 2788-Outros Devedores e Credores deviam estar no património da empresa, pois é essa existência que justifica a contabilização. Por outro lado, se esses meios financeiros não foram encontrados, justifica-se, à face da experiência comum, a presunção de que saíram dele, pois esta é a explicação normal para meios financeiros que deviam estar num património deixarem de estar.
Carece, portanto, de fundamento a alegação da Requerente de que a AT, face à ausência de provas em contrário, não poderia concluir tratar-se de despesas não documentadas, já que há fundamento factual para a conclusão subjacente à liquidação impugnada de que se está perante «despesas não documentadas», para efeitos do artigo 88.º, n.º 1, do CIRC, consubstanciadas por saída de meios financeiros da empresa sem documentos de suporte que permitam concluir pelo destino que lhes foi dado.
c) Do mérito
Defende a Requerente que “a apreciação judicial desta questão passa, inevitavelmente pela verificação sobre se tal alegada despesa afeta ou não o valor da empresa. A despesa não documentada é, para este efeito, aquela que conduz a um empobrecimento (contabilístico) da empresa, em consequência do registo de operações a débito da classe 6 do SNC;
Essa qualificação dependerá não tanto da existência, ou não, de documento suporte (situação dificilmente entendível face ao que dispõe o artigo 123º, nº 2 a) do CIRC, segundo o qual todos os registos estão suportados em documentos), mas antes da verificação dos requisitos que a jurisprudência tem considerado exigíveis para qualificar uma despesa como não documentada.
nem o movimento objeto de tributação autónoma (movimento contabilístico a crédito da conta caixa e débito de uma conta 2788 Outros devedores e credores) é passível de qualificação como despesa - e, particularmente, não documentada, por não contender com resultados.”
Na realidade o que a Requerente defende é que as despesas não documentadas referidas no artº 88º do CIRC “…reconduzem-se a saída de meios financeiros do património sem documento de suporte que permita determinar a natureza da despesa ou do beneficiário… e que a tributação das despesas não documentadas pressupõe a demonstração da existência das operações que são tributadas subjacentes a tais movimentos a crédito da conta de disponibilidades”.
Por outro lado, a Requerente alega ainda que “quaisquer movimentos que, direta ou indiretamente se não repercutam em resultados (na situação patrimonial da empresa) não cabem no âmbito regulatório do IRC.
Contabilisticamente o movimento que originou a tributação autónoma objeto do presente pedido de anulação provocou uma mera alteração qualitativa do património, sem quaisquer reflexos em resultados.”
Salvo melhor opinião, a Requerente sustenta-se em posições que vêm sendo pacificamente contrariadas pela jurisprudência quer do STA quer do CAAD.
Já ficou expresso atrás que os conceitos de despesas e gastos em sede de IRC não são coincidentes para efeitos de tributação autónoma e que a lei não faz depender a tributação autónoma incidente sobre despesas não documentadas da respetiva relevância como gasto para efeitos de determinação do lucro tributável, e que para efeitos do artº 88º do CIRC basta que estejamos perante meras saídas de meios financeiros da empresa sem um documento de suporte que permita apurar o destino ou o beneficiário dos valores em causa.
Como melhor entende o citado Ac. nº 505/15, “… As despesas em questão são tributadas apenas porque são efetuadas, havendo mesmo a cargo do contribuinte a obrigação de as tornar aparentes na sua declaração de rendimentos. Se todas ou parte delas poderiam ter sido consideradas como custos da empresa para efeitos da determinação do seu lucro tributável, aumentando a despesa fiscal com a consequente diminuição do lucro tributável, e a empresa por decisão consciente, ou esquecimento, não as considerou desse modo na sua declaração de rendimentos, nem por isso, elas perdem a sua natureza de despesas tributáveis em sede de tributação autónoma, que, por definição é uma tributação destacável da tributação em sede de IRC”.
Improcede, pois, a alegação de que o conceito de despesa não documentadas para efeitos de tributação autónoma implique que quaisquer movimentos que, direta ou indiretamente se não repercutam em resultados (na situação patrimonial da empresa) não cabem no âmbito regulatório do artº 88º do IRC já que o movimento que originou a tributação autónoma objeto do presente pedido de anulação provocou uma mera alteração qualitativa do património, sem quaisquer reflexos em resultados.
Estando comprovada a inexistência física dos meios financeiros constantes da Conta Caixa e provado está que a Requerente não apresentou qualquer prova ou fundamento do destino e beneficiário dos valores em falta, julga-se verificada a regra de incidência da tributação autónoma prevista no nº 1 do artº 88º do CIRC, pelo que improcede o pedido de anulação por não verificação, por um lado de qualquer violação do artº 256º da CRP, ou do artº 88º citado, ou sequer do artº 6º do RCPIT porque, neste caso, o ónus da prova para afastamento da citada presunção natural impende sobre a Requerente que não logrou apresentar qualquer prova durante o procedimento de inspeção.
4. Do pedido de reembolso e pagamento de juros indemnizatórios
A Requerente pede que a Requerida que seja condenada no reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT.
Improcedendo o pedido de anulação da autoliquidação de IRC, improcede também o pedido de restituição do imposto pago e dos juros indemnizatórios.
5. Decisão
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:
a) Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral;
b) Julgar improcedente o pedido de reembolso e de juros indemnizatórios;
c) Absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira de todos os pedidos.
6. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 13 303,41 nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
7. Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 918,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa, 16 de fevereiro de 2021
O Árbitro Singular
José Ramos Alexandre