DECISÃO ARBITRAL
I – RELATÓRIO
1. A..., NIF n.º ..., e marido, B..., NIF n.º..., com domicílio fiscal na Rua ..., n.º..., ..., ...– ... SANTARÉM, apresentaram, em 06-02-2020, pedido de constituição do tribunal arbitral, nos termos dos artigos 2º e 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em conjugação com o artigo 102º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada apenas por Requerida, ou ATA).
2. Os Requerentes pretendem, com o seu pedido, a declaração de ilegalidade e subsequente anulação do acto tributário de liquidação de IRS, relativo ao ano de 2015, com n.º 2019... e respectivos juros compensatórios, no valor global de € 13.297,25.
3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 27-03-2020.
3.1. Os Requerentes não procederam à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou o signatário como árbitro do tribunal arbitral, o qual comunicou a aceitação da designação dentro do respectivo prazo.
3.2. Em 06-07-2020 as partes foram notificadas da designação do árbitro, não tendo sido arguido qualquer impedimento.
3.3. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11º do RJAT, o tribunal arbitral foi constituído em 05-08-2020.
3.4. Nestes termos, o Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objeto do processo.
4. Com o pedido de pronúncia arbitral defendem os Requerentes ser ilegal a liquidação impugnada quer, por incompetência territorial do serviço que promoveu as correcções à declaração de rendimentos apresentadas, quer por falta de fundamentação das mesmas e, ainda, por vício de violação de lei consubstanciado na desconsideração do crédito de imposto por dupla tributação internacional relativo às retenções de imposto na fonte.
5. A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, invocando em síntese:
Ser o tribunal arbitral incompetente para apreciar o pedido arbitral.
Por impugnação, estar o acto em causa devidamente impugnado e, quanto ao demais, sustentar que as autoridades fiscais são as únicas entidades competentes para atestar o imposto efectivamente suportado, pelo que os documentos apresentados pelos Requerentes não se mostrarem suficientes esse efeito.
Conclui a Requerida pela legalidade do acto de liquidação contestado pela Requerente que deverá, assim, ser mantido.
6. Tendo os Requerentes sido notificados para se pronunciarem relativamente à excepção deduzida pela Requerida, vieram a fazê-lo.
7. Por despacho de 10-12-2020, foi dispensada a reunião do artigo 18º do RJAT, bem como, com a anuência das partes, a apresentação de alegações.
II – SANEAMENTO
7.1. A AT suscitou a incompetência do tribunal arbitral para apreciação do mérito da causa, por “não ter competência para conhecer do pedido de anulação do ato de alteração da desconsideração do crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional, pois estamos perante competências que não foram legalmente cometidas ao tribunal arbitral”.
Cumpre decidir
Os Requerentes formulam o seu pedido nos seguintes termos: “deve ser alterado o ato de alteração a que a AT procedei relativamente à desconsideração do crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional”.
É sabido que a competência dos tribunais é a medida da sua jurisdição, o modo como entre eles se fraciona e reparte o poder jurisdicional. Em sentido concreto ou qualitativo, será a suscetibilidade de exercício pelo tribunal da sua jurisdição para a apreciação de uma certa causa.
Os Tribunais Arbitrais estão previstos no artigo 209.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, sendo o âmbito da jurisdição arbitral tributária recortado, em primeira linha, pelo disposto no artigo 2.º do RJAT que enuncia, no seu n.º 1, os correspondentes critérios de repartição material. Aí se determina competir a esta “espécie” de tribunais a apreciação, entre outras pretensões, “a declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta”.
Alega a Requerente, e bem, que o tribunal arbitral é incompetente para conhecer e decidir actos de reconhecimento de direitos bem como outros actos que não estejam previstos no elenco de competências legalmente previstas na lei um específico acto administrativo.
Na tese da Requerida está em causa, no presente pedido de pronúncia arbitral, a apreciação do ato de alteração a que a AT procedeu relativamente à desconsideração do crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional., matéria que, dada a delimitação de competência dos Tribunais Arbitrais tributários, efetuada pelo citado artigo 2.º, n.º 1 do RJAT e, de igual modo, pelo artigo 2.º da Portaria de Vinculação, centrada na apreciação de atos tributários (de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte, de pagamento por conta e de fixação da matéria tributável, neste último caso, quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo está excluída à competência do tribunal arbitral.
Diga-se que não se acompanha, porém, a argumentação da Requerida.
Pese embora se admita como infeliz a redacção do pedido, nos termos em que o foi, não pode deixar de considerar-se como indiscutível, tendo presente, desde logo, o proémio do pedido de pronúncia arbitral que, que o objeto do presente processo é a declaração de ilegalidade do acto de liquidação. O qual, esclareça-se, teve subjacente a alteração da declaração de rendimentos apresentada pelos Requerentes por desconsideração do crédito de imposto internacional que estes aí haviam considerado.
Improcede, assim, a alegada excepção.
7.2. O tribunal é, face ao exposto, competente e encontra-se regularmente constituído.
7.3. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (artigos 4º e 10º, n.º 2, do RJAT e artigo 1º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
7.4. O processo não enferma de nulidades.
7.5. Não foram suscitadas outras excepções que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
III – MATÉRIA DE FACTO E DE DIREITO
III.1. Matéria de facto
Atendendo às posições assumidas pelas partes e à prova documental junta aos autos, consideram-se, com relevo para apreciação e decisão da causa, como provados os seguintes factos:
Com base nos elementos que constam do processo e do processo administrativo junto aos autos, consideram-se provados os seguintes factos, com relevância para apreciar as questões suscitadas:
Consideram-se provados os seguintes factos:
a. Os Requerentes apresentaram declaração mod. 3 de IRS relativa ao ano fiscal de 2015, que incluía, entre outros, dividendos e juros obtidos no estrangeiro, relativamente aos quais declararam um crédito de imposto pago no estrangeiro.
b. Tendo declarado no quadro 8 do anexo J - rendimentos obtidos no estrangeiro - rendimentos de capitais da categoria E, no montante total de 120.466,68 €, e indicado imposto pago no estrangeiro, relativamente aos mesmos, no montante total de 14.595,82 €.
c. Os rendimentos em causa são provenientes da Alemanha (código 276), Estados Unidos da América (código 840), França código (250), Holanda (código 528), Canadá (código 124) e Espanha (código 724).
d. Os Requerentes alteraram o seu domicílio fiscal para a área de Santarém em, respectivamente, 03-10-2016 e 16-05-2016.
e. Na sequência de projecto elaborado pela Direcção de Serviços de Relações Internacionais da AT, a Direcção de Finanças de Lisboa notificou os Requerentes, por ofício de 31-07-2018, para “comprovarem os elementos das declarações, para remeterem … no prazo de 15 dias, os … documentos originais ou cópias autenticadas (sempre que não se encontrem em português, espanhol, francês, inglês ou alemão, deverão ser acompanhados de tradução autenticada” as retenções na fonte que a que tinham sido submetidos os rendimentos obtidos fora do território português”.
f. Os Requerentes deram resposta ao solicitado remetendo cópias de cartas e extractos das entidades bancárias que procederam ao pagamento dos rendimentos em causa, com a discriminação dos respectivos montantes, imposto retido, montantes brutos e líquidos dos rendimentos.
g. Nos documentos em causa inclui-se uma declaração do Banco “Millennium – Banque Privée”, onde, se refere, designadamente:
- “Salientamos que, os ativos financeiros de clientes encontram-se depositados junto de cada dos custodiantes internacionais em contas abertas em nome do Banco. Apesar destes ativos estarem depositados por conta dos clientes do Banco, os custodiantes desconhecem os detalhes dos mesmos, nomeadamente no que respeita à sua identificação.
Nestes termos, ao procederem ao pagamento de rendimentos relacionados com os ativos supra referidos, os custodiantes aplicam as respetivas deduções de imposto, de acordo com a legislação dos respetivos países, sem considerarem o país de residência do beneficiário efetivo.
Informamos que o imposto retido na fonte é da inteira responsabilidade do custodiante nacional de cada país de origem supra identificado, não tendo o Banco qualquer intervenção no processo de retenção, com exceção para o caso dos dividendos com origem nos Estados Unidos da América, relativamente aos quais o Banco, ao abrigo do estatuto Qualified Intermediary, i.e. acordo concluído entre o Banco e o Internal Revenue Service, assume a responsabilidade pela retenção na fonte.
Considerando que os custodiantes internacionais procedem à retenção do imposto devido de uma forma agregada, não é possível obter uma declaração dos mesmos confirmando a retenção do imposto na fonte para um cliente preciso. Assim, apenas o Banco pode emitir uma confirmação do imposto efetivamente retido, quer pela emissão do relatório anual de rendimentos e transações, quer pelas notas de lançamento dos pagamentos que remetemos em anexo e/ou pela presente declaração que ora redigimos”.
h. Não tendo a Direcção de Finanças de Lisboa aceite como válidos os documentos apresentados, notificou os Requerentes de que “os documentos remetidos a estes serviços, não são considerados válidos para o ano de 2015, uma vez que nenhum deles é emitido ou autenticado pela Autoridade Fiscal dos países que constam da mod. 3, não havendo por isso qualquer prova do montante total e final de imposto efectivamente suportado para o ano de 2015”, mais os tendo notificado para, querendo, exercerem o direito de audição prévia.
i. Os Requerentes exerceram o direito de audição prévia, nos termos constantes do doc. 5, que se dá como reproduzido.
j. Por ofício, remetido pela Divisão de Liquidação do Imposto sobre o Rendimento e Despesas da Direcção de Finanças de Lisboa, foram os Requerentes notificados da “alteração dos elementos declarados para efeitos de IRS” e que, “em resultado das alterações efectuadas aos rendimentos declarados, procederão estes Serviços à digitação da respectiva declaração de correcção oficiosa de IRS/2015, de que cuja liquidação será posteriormente notificado”.
k. Os Requerentes foram notificados da liquidação de IRS 2019... e respectivos juros compensatórios.
l. O prazo para pagamento do imposto liquidado terminou em 26-12-2019.
m. Os Requerentes procederam ao pagamento do imposto
Fundamentação da matéria de facto:
A matéria de facto dada como provada assenta no exame crítico da prova documental apresentada e não contestada, que aqui se dá por reproduzida, bem como do processo administrativo junto aos autos.
Não foram dados como não provados factos com relevo para a decisão da causa.
III.2. Matéria de Direito
Conforme resulta do pedido arbitral, a Requerente manifesta a sua inconformidade com o acto de liquidação suscitando três vícios que se apreciarão de seguida.
Incompetência territorial
Alegam os Requerentes ser a Direcção de Finanças de Lisboa, face à data em que os factos inspectivos e correctivos foram praticados, incompetente em razão do território, para a “instauração e decisão deste procedimento de comprovação”, por serem estes então residentes em Santarém.
É certo que, como concordam ambas as Partes, à data da prática dos factos ora em causa pela AT, estava já revogado o art. 142º do CIRS que, sobre a epígafre “competência territorial”, dispunha que: “para efeitos deste imposto, os atos tributários, qualquer que seja a sua natureza, consideram-se praticados no serviço de finanças da área do domicílio fiscal do sujeito passivo ou do seu representante”.
Todavia, dispunha, por sua vez, o artigo 16º do RCPIT, na redacção então vigente – dada pela Lei 75-A/2014, de 30 Setembro - sob a epígrafe “Competência material e territorial”:
- “1 - São competentes para a prática dos actos de inspecção tributária, nos termos da lei, os seguintes serviços da da Autoridade Tributária e Aduaneira:
a) A Unidade dos Grandes Contribuintes, relativamente aos sujeitos passivos que de acordo com os critérios definidos sejam considerados como grandes contribuintes;
b) As direções de serviços de inspeção tributária que nos termos da orgânica da Autoridade Tributária e Aduaneira integram a área operativa da inspeção tributária, relativamente aos sujeitos passivos e demais obrigados tributários que sejam selecionados no âmbito das suas competências ou designados pelo diretor-geral da Autoridade Tributária e Aduaneira;
c) As unidades orgânicas desconcentradas, relativamente aos sujeitos passivos e demais obrigados tributários com domicílio ou sede fiscal na sua área territorial”.
À data resultava, o que permanece, do artigo 61.º da LGT sob a epígrafe “Competência tributária”:
- “1 - A incompetência no procedimento deve ser conhecida oficiosamente pela administração tributária e pode ser arguida pelos interessados.
2 - O órgão da administração tributária material ou territorialmente incompetente é obrigado a enviar as peças do procedimento para o órgão da administração tributária competente no prazo de quarenta e oito horas após a declaração de incompetência, considerando-se o requerimento apresentado na data do primeiro registo do processo.
3 - O interessado será devidamente notificado da remessa prevista no número anterior.
4 - Em caso de dúvida, é competente para o procedimento o órgão da administração tributária do domicílio fiscal do sujeito passivo ou interessado ou, no caso de inexistência de domicílio, do seu representante legal.
Como se refere no Ac. STA de 22-03-2017 – Proc. 0901/16, “…esta competência fixava-se no início do procedimento, sendo irrelevantes as alterações posteriores, cfr. artigo 10º, n.º 4 do CPPT”.
No caso concreto estamos perante uma inspecção efectuada pela Direcção de Finanças de Lisboa, relativamente a contribuintes com domicílio em Santarém – artigo 19º da LGT -, sem que tenha ocorrido o circunstancialismo previsto no artigo 17º do RCPIT – extensão expressa da competência a órgão não competente.
Continuando o mesmo acórdão do STA :
- ”Resulta destes preceitos legais que a competência territorial dos diversos órgãos da AT se encontra intimamente ligada ao local onde o contribuinte visado tem o seu domicílio fiscal. Existe, assim, uma relação de proximidade entre o órgão que deve praticar os actos procedimentais inspectivos tributários e o local onde o contribuinte tem o seu domicílio.
As regras da competência territorial procedimental são regras de cumprimento obrigatório, sendo que o seu desrespeito inquina de ilegalidade o acto praticado, precisamente por o mesmo ter sido praticado por órgão sem jurisdição na área territorial, conduzindo a que o mesmo fique sujeito a ser anulado com tal fundamento.
No caso dos autos está assente, por um lado, que o órgão que efectuou a inspecção não era o órgão com competência territorial para o efeito, por outro, não vem alegado nem provado que tal acto haja sido ratificado posteriormente pelo órgão competente, ou que tenha sido cumprido o disposto no artigo 17º do RCPIT de modo a estender a competência ao órgão que praticou todos os actos.
É certo, no entanto, que a liquidação do imposto (…) a que esta inspecção veio a dar lugar foi emitida pelo serviço de finanças competente (…) , pelo que se poderia ponderar ter ocorrido uma ratificação-sanação tal como referido no parecer do Ministério Público.
Porém, não assume o acto de emissão da liquidação tal natureza uma vez que a ratificação-sanação tem que ocorrer por via de acto expresso, pelo órgão com competência para o efeito e dentro de determinado prazo, cfr., à data, o artigo 137º do CPA.
Além disso, e como resulta do artigo 63º do RCPIT, (sempre na redacção contemporânea da ocorrência dos factos aqui relevantes) há uma clara distinção entre os actos procedimentais de inspecção e a liquidação subsequente que se funda no relatório com origem nessa mesma inspecção, prevendo-se mesmo que a competência para a realização da inspecção não seja coincidente com a que é legalmente atribuída para a emissão da liquidação do imposto -os actos tributários ou em matéria tributária que resultem do relatório poderão fundamentar-se nas suas conclusões, através da adesão ou concordância com estas, devendo em todos os casos a entidade competente para a sua prática fundamentar a divergência face às conclusões do relatório, cfr. n.º 1.
Portanto, devendo o acto de ratificação-sanação consistir num acto expresso com esse preciso sentido, posto que se trata de suprimir a ilegalidade que afecta um acto primário praticado pela entidade incompetente, e tratando-se de um acto secundário que versa sobre anterior acto ilegal, não é suficiente a emissão da liquidação com base no relatório da inspecção uma vez que em si mesma não incorpora a vontade expressa de harmonização do anterior acto ilegal com a ordem jurídica, apenas se conforma, no caso dos autos de modo singelo, com as determinações constantes do relatório.
Não há dúvida, portanto, que o acto de liquidação está inquinado de ilegalidade, ilegalidade esta atinente à falta de competência territorial (incompetência relativa) do órgão que realizou a inspecção, uma vez que esta ilegalidade que afecta a inspecção se projecta directamente, com a mesma natureza invalidante, sobre a subsequente liquidação, o que implica a sua anulabilidade, cfr. artigo 135º do CPA, na redacção à data”.
Aderindo, integralmente, ao expendido neste aresto, temos de considerar estar o acto de liquidação objecto do presente pedido arbitral, inquinado de ilegalidade, atinente à falta de competência territorial.
Sem prejuízo do que se disse, analisaremos também os demais vícios apontados pelos Requerentes.
Falta de Fundamentação
Os Requerentes invocam, embora de modo confuso, padecer o acto impugnado de falta de fundamentação, transcrevendo, para o efeito, extractos da fundamentação que, precisamente, alega não existir.
Parece, pois, evidente que os Requerentes podem não concordar com a fundamentação apresentada, mas é indesmentível que ela existe, é clara, não contraditória e congruente com a conclusão que levou ao acto de liquidação.
A fundamentação do acto de liquidação mais não é do que a forma de a “AF exteriorizar os motivos porque procedeu àquela liquidação e não a qualquer outra, de uma forma clara, congruente e racional de molde a constituir a base que suporta a decisão” (Ac. TCA Sul de 25-01-2011 – Proc. 04410/10
Como se diz no Ac. STA de 2-07-2014 - Proc. nº 01074/13: “É inquestionável que a Administração tem o dever de fundamentar os actos que afectem os direitos ou os legítimos interesses dos administrados – em harmonia com o princípio plasmado no artigo 268º da CRP e acolhido nos artigos 124º do CPA e 77º da LGT. Ora, como a doutrina e a jurisprudência têm vindo exaustivamente a repetir, a fundamentação há-de ser expressa, através duma exposição sucinta dos fundamentos de facto e de direito da decisão; clara, permitindo que, através dos seus termos, se apreendam com precisão os factos e o direito com base nos quais se decide; suficiente, possibilitando ao contribuinte um conhecimento concreto da motivação do acto; e congruente, de modo que a decisão constitua a conclusão lógica e necessária dos motivos invocados como sua justificação. É também incontroverso que as exigências de fundamentação não são rígidas, variando de acordo com o tipo de acto e as circunstâncias concretas em que este foi proferido, bastando-se com a expressão clara das razões que levaram a determinada deliberação decisória. A determinação do âmbito da declaração fundamentadora pressupõe, portanto, a busca de um conteúdo adequado, que há-de ser, num sentido amplo, o suficiente para suportar formalmente a decisão administrativa. Assim, a fundamentação deve ser entendida como a obrigação de enunciar expressamente (de modo directo ou por remissão) os motivos de facto e de direito que determinaram o agente ou órgão decisor, esclarecendo o seu destinatário das razões que o motivaram e do porquê do sentido decisório, visando proporcionar ao administrado o conhecimento do itinerário cognoscitivo e valorativo do acto. Deste modo, o acto estará suficientemente fundamentado quando o administrado, colocado na sua posição de destinatário normal - o bonus pater familiae de que fala o artigo 487º, nº 2, do C.Civil – possa ficar a conhecer as razões factuais e jurídicas que estão na sua génese, de modo a permitir-lhe optar, de forma esclarecida, por aceitar, ou não, o acto”.
Da análise dos despachos postos em crise pelos Requerentes, e que sustentam o acto de liquidação impugnado, é manifesto que estes cumprem tal dever de fundamentação. Com efeito, a AT descreveu de forma clara os elementos de facto que entendeu relevantes, invocou expressamente as normas legais e administrativas em que se apoiou, permitindo aos Requerentes entender de modo claro as razões da sua actuação, entendimento esse, aliás, que as próprias demonstram ter atingido, pelo modo como atacaram o acto.
Com efeito, “não ocorre o vício formal de falta de fundamentação se a própria impugnante expressamente revela ter compreendido perfeitamente o processo lógico e jurídico que conduziu à decisão de tributação, reconhecendo ter percebido os pressupostos concretamente levados em conta pelo autor do ato e as razões por que foram alcançados os valores tributados, denunciando o percurso cognoscitivo e valorativo percorrido” (…», in (Ac. STA de 0-01-2013 – Proc. n.º 0105/12).
Estando o acto devidamente fundamentado está apto a produzir os seus efeitos.
Vício de violação de lei
Invocam, ainda, os Requerentes, padecer a liquidação adicional de IRS de vício de violação de lei, consubstanciado no facto de se ter desconsiderado o crédito de imposto por dupla tributação internacional que haviam incluído na declaração de rendimentos tempestivamente apresentada, desconsideração que a AT sustenta na falta de comprovação documental das retenções na fonte efetuadas no estrangeiro, pelo facto de “os documentos remetidos a estes serviços, não são considerados válidos para o ano de 2015, uma vez que nenhum deles é emitido ou autenticado pela Autoridade Fiscal dos países que constam da mod. 3, não havendo por isso qualquer prova do montante total e final de imposto efectivamente suportado para o ano de 2015””.
Está então em causa questão relacionada com retenções na fonte de imposto efetuadas no estrangeiro no que respeita à tributação de rendimentos de capitais.
A Diretiva 2003/48/CE do Conselho, de 03-06-2003 – Directiva Poupança –, estabelecia expressamente, no que se refere à tributação dos rendimentos da poupança sob a forma de juros, no seu artigo 1 que “a presente directiva tem por objectivo final permitir que os rendimentos da poupança sob a forma de juros, pagos num Estado-Membro a beneficiários efectivos que sejam pessoas singulares com residência fiscal num outro Estado-Membro, sejam sujeitos a uma tributação efectiva em conformidade com a legislação deste último Estado-Membro”.
Tal Diretiva foi transposta através da DL n.º 62/2005 de 11-Março (entretanto, sujeito a alterações pela Lei 37/2010, de 02-Set. e, com base, nela dispõe o n.º 2, do art. 78º do CIRS que “são ainda deduzidos à colecta os pagamentos por conta do imposto e as importâncias retidas na fonte que tenham aquela natureza, respeitantes ao mesmo período de tributação, bem como as retenções efectuadas ao abrigo do artigo 11º da Directiva 2003/48/CE do Conselho, de 03 Junho”.
Estabelece ainda o n.º 1 do art. 81º do CIRS que “os titulares de rendimentos das diferentes categorias obtidos no estrangeiro, incluindo os previstos no artigo 72º, têm direito a um crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional, dedutível até ao limite das taxas especiais aplicáveis e, nos casos de englobamento, até à concorrência da parte da colecta proporcional a esses rendimentos líquidos … que corresponde à menor das seguintes importâncias:
a) imposto sobre o rendimento pago no estrangeiro;
b) fracção da colecta do IRS, calculada antes da dedução, correspondente aos rendimentos que no país em causa possam ser tributados, líquidos das deduções específicas previstas neste Código”.
No caso em apreço estão, contudo, em causa rendimentos obtidos pela Requerente, quer noutros Estados-Membros (Alemanha, França, Holanda, Espanha), quer em países terceiros, no caso os Estados Unidos da América e Canadá.
Sucede que Portugal celebrou com todos os países em causa “Convenções para Eliminar a Dupla Tributação e Prevenir a Evasão Fiscal em Matéria de Impostos sobre o Rendimento” – CDT - constantes, respectivamente, na Lei 12/82, de 3 de Junho (com Alemanha), no DL 105/71, de 26 de Março (com a França); Resolução da Assembleia da República n.º 62/2000, de 27 de Abril (com Holanda), Resolução da Assembleia da República n.º 6/1995, de 28 de Janeiro (com Espanha), Resolução da Assembleia da República n.º 39/1995, de 12 de Outubro (com Estados Unidos da América) e na Resolução da Assembleia da República n.º 81/2000, de 6 de Dezembro (com o Canadá),;
Todas as CDT referidas têm idêntica cláusula tendente à eliminação da dupla tributação, prevista, em todas elas, no artigo 22º, mais precisamente no n.º 2, aí se se estabelecendo que quando um residente de Portugal obtiver rendimentos que, de acordo com o disposto na Convenção, possam ser tributados no outro Estado Portugal, deduzirá do imposto sobre tais rendimentos desse residente uma importância igual ao imposto ali pago.
Pois bem, é incontroverso que os Requerentes eram, pelo menos no ano de 2015, residentes, para efeitos fiscais, em território português.
Pelo que também não existem quaisquer dúvidas que, nos termos das normas legais referidas, teriam direito a deduzir o imposto retido nos países de origem, questão que não é, sequer, controvertida nos presentes autos (não questionando a Requerida o direito que em abstrato assiste aos Requerentes).
Porém, a AT desconsiderou tal dedução e operou a liquidação impugnada nos autos por considerar que, para o efeito, os Requerentes teriam de entregar documentos emitidos ou autenticados pelos serviços fiscais dos países em causa que comprovasse qual o montante do imposto pago e a que título.
Quer dizer, o dissídio resume-se à divergência de entendimento quanto à exigência de forma para emissão e consideração do documento comprovativo das retenções na fonte efetuadas no estrangeiro.
Vejamos então.
Diga-se, desde já, que nos causa alguma perplexidade que a Requerida não tenha tido qualquer dúvida no que toca ao montante e origem dos rendimentos a tributar, mas coloque em causa a veracidade dos declarados quanto ao imposto retido, quando ambos os valores constam dos mesmos documentos. Isto sem que tenha sido suscitada qualquer questão complementar com os valores mencionados como sendo de retenções relativamente aos dos rendimentos.
A admitir-se, todavia, a existência de dúvida séria quantos a tais factos, então teria de ser a própria AT a usar dos mecanismos de troca de informações e das obrigações estabelecidas entre os Estados contratantes, como é estabelecido em geral pelas Convenções sobre Dupla Tributação – no caso, no art. 25º (que estabelece que “as autoridades competentes dos Estados Contratantes trocarão entre si as informações que sejam previsivelmente relevantes para a aplicação do disposto na presente Convenção ou para a administração ou aplicação da legislação interna relativa a impostos de qualquer natureza ou denominação exigidos em benefício dos Estados” – e, de modo particular, na aludida Diretiva Poupança, no que respeita aos rendimentos obtidos noutro Estados-membros, que determina expressamente no art. 9º que “a autoridade competente do Estado-Membro do agente pagador deve comunicar as informações referidas no artigo 8º à autoridade competente do Estado-Membro de residência do beneficiário efectivo”.
Somos, pois, levados a afirmar que não se percebe como um sistema de informações, com evidentes objetivos de controlo e de fiscalização, não proceda a uma informação completa, da qual conste, como seria de esperar, os valores retidos na fonte sobre os rendimentos comunicados.
Acresce que todas as CDT contêm cláusula de não discriminação, dispondo que “os nacionais de um Estado Contratante não ficarão sujeitos no outro Estado Contratante a qualquer tributação, ou obrigação conexa, diferente ou mais gravosa do que aquelas a que estejam ou possam estar sujeitos os nacionais desse outro Estado Contratante que se encontrem nas mesmas circunstâncias, em particular no que se refere à residência” (art. 28º das Convenções). Não se percebe, por isso, como pretende a Requerida estabelecer agora uma obrigação que não impõe aos demais residentes, relativamente aos rendimentos obtidos em território português, uma vez que são as instituições bancárias que emitem os documentos e fazem as comunicações relativamente aos rendimentos de capitais que pagam aos particulares, onde mencionam as retenções na fonte que efetuaram.
Isto, além de que os Requerentes juntaram, em sede administrativa, documento emitido pela entidade bancária que centraliza e operacional as transações financeiras dos Requerentes, justificando a impossibilidade de serem fornecidos os elementos nos moldes pretendidos pela AT.
Quer dizer, os Requerentes deram cumprimento ao estabelecido no artº. 128º do CIRS, juntando, quando para tanto foram solicitados, documentos comprovativos dos factos (rendimentos e retenções na fonte) da declaração de rendimentos que apresentaram, valendo, neste âmbito, o princípio da livre apreciação da prova, em função do caso concreto, uma vez que do preceito não resulta a imposição de nenhuma formalidade especial daquela documentação.
Quanto à invocação que a Requerida faz do Ofício-Circulado n.º 20124 para sustentar a sua posição, subscreve-se o que a esse propósito se diz no Ac do TCA Sul de 23-02-2017 – Proc. 3/13.5BELRS : “as circulares administrativas não vinculam os contribuintes, mas apenas os respetivos serviços não podendo a recorrente fazer exigências probatórias não previstas expressamente na lei” (ver, no mesmo sentido, Ac. TCA Sul de 04-12-2007 – Proc. 174/04). Acrescentando que “seja como for, da leitura que fazemos do Ofício-Circulado n.º 20124, de 09.05.2007 não suporta a interpretação que dela faz a recorrente na medida em que apenas refere a «exigência da apresentação pelo contribuinte dos originais ou fotocópias autenticadas dos documentos, os quais serão apresentados devidamente traduzidos, excepto se estiverem redigidos em espanhol, francês, inglês ou alemão». Ainda que assim não se entendesse, sempre haveria de concluir-se pela ilegalidade das instruções por ele veiculadas”.
Posto isto, e em jeito de conclusão, tendo presente que, nos termos do disposto no art. 75º, n.º 1 da LGT, se presumem verdadeiras e de boa fé, até prova em contrário, as declarações dos contribuintes e não existindo qualquer norma legal que imponha, para o que ao caso importa, um concreto meio de prova, é manifesto que a prova poderá ser feita pelo contribuinte por qualquer meio admitido em direito. Prova que os Requerentes fizeram.
Desse modo, não tendo suporte na lei a exigência probatória aos documentos apresentados pelos Requerentes pretendida pela Requerida, é de concluir pela ilegalidade da liquidação de imposto impugnada.
JUROS INDEMNIZATÓRIOS
Além da restituição do imposto indevidamente pago, pretendem os Requerentes que seja declarado o direito ao pagamento de juros indemnizatórios.
Tal direito vem consagrado no art. 43º da LGT o qual tem como pressuposto que se apure, em reclamação graciosa ou impugnação judicial - ou em arbitragem tributária – que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida em montante superior ao legalmente devido.
O reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral, resulta do disposto no artigo 24º, n.º 5 do RJAT, quando estipula que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”.
No caso em apreço, é manifesto que ocorreu, de facto, erro imputável à AT na liquidação em crise que por sua iniciativa o praticou sem suporte legal.
Pelo que assiste aos Requerentes o direito ao pretendido pagamento de juros indemnizatórios relativamente àquele imposto.
IV. DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:
a) Julgar totalmente procedente o pedido arbitral formulado, determinando-se a anulação da liquidação de IRS, relativo ao ano de 2015, com n.º 2019... e respectivos juros compensatórios.
b) Condenar a Administração Tributária e Aduaneira a reembolsar os Requerentes do montante do imposto pago, acrescido dos respectivos juros indemnizatórios.
c) Condenar a Requerida nas custas do processo.
V. VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em 13.297,25 €, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
VI. CUSTAS
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 918,00 €, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.
Lisboa, 04 de Fevereiro de 2021
O Árbitro
(António Alberto Franco)