DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)
O árbitro Ricardo Marques Candeias, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o presente Tribunal Arbitral, decide nos termos que se seguem:
I – RELATÓRIO
A.
1. No dia 16 de janeiro de 2020, a A..., LDA, NIF..., com residência na Rua ..., ..., ..., ...-... Amora, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a "retificação da liquidação de ISV, de forma a aplicar-se a redução prevista no art. 11.º do CISV à componente ambiental", devendo, consequentemente, "a AT ser condenada a restituir à impugnante a quantia de € 7.689,2, cobrada em excesso, acrescida dos juros indemnizatórios calculados à taxa legal, desde a data do pagamento do imposto até à efetiva restituição".
2. No dia 17 de janeiro de 2020 o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado ao Requerente e à AT.
3. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, 1, e artigo 11.º, 1, b), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o signatário como árbitro do tribunal arbitral singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
4. Em 10 de março de 2020 as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.
5. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 06 de julho de 2020.
6. No dia 31 de julho de 2020, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.
7. Ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art. 16.º, e n.º 2 do art. 29.º, ambos do RJAT, foi dispensada a realização da reunião a que alude o art. 18.º do RJAT, bem como a apresentação de alegações escritas.
8. Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no art. 21.º, 1, do RJAT, com a prorrogação que o n.º 2 admite.
9. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, 1, a), 5.º e 6.º, 1, do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
O processo não enferma de nulidades.
Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.
B. Posição das partes
Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, o seguinte:
i. Importou diversas viaturas automóveis provenientes de Espanha, França, Itália, Alemanha e Holanda, entre 24.10.2019 e 03.01.2020, tendo a AT procedido à liquidação do ISV no valor global de 41.573,72 euros, sendo que 13.791,35 euros corresponde à componente ambiental;
ii. O art. 11.º do CISV, que sustenta a liquidação referida, viola o disposto no art. 110.º do TFEU (Tratado de Funcionamento da União Europeia);
iii. O ato de liquidação encontra-se ferido de ilegalidade, na parte correspondente ao montante de 7.689,37 euros, que deve ser restituída ao SP, por ser a relativa à redução da componente ambiental resultante do número de anos de uso do veículo, e que não foi considerada.
Por sua vez, a AT defende que nas liquidações de ISV em causa se aplicou o artigo 11.º, CISV, em conformidade com a lei nacional e o direito comunitário, cumprindo, designadamente, o disposto nos artigos 110.º e 191.º do TFUE e nos artigos 66.º e 103.º da CRP, não lhes podendo ser assacada qualquer vicio ou ilegalidade. Mais refere que posição contrária (a defendida pela Requerente) é ferida de inconstitucionalidade, por violar os arts. 9.º, e), 66.º, 1, e 2, 103.º, 2, e 266.º, CRP.
II. DECISÃO
A. MATÉRIA DE FACTO
A.1. Factos dados como provados
1 - A Requerente é uma sociedade comercial que se dedica à comercialização de automóveis usados.
2 - No exercício da sua atividade comercial a Requerente introduziu em Portugal os seguintes automóveis, provenientes de Estados que integram a União Europeia:
3 Para cumprimento das suas obrigações tributárias, apresentou na Alfandega do Jardim do Tabaco as Declarações Aduaneiras de Veículo (DAV's) n.ºs 2019/... de 24.10.2019; 2019/..., de 24.10.2019; 2019/..., de 30.10.2019; 2019/..., de 30.10.2019; 2018/..., de 30.10.2019; 2019/..., de 30.10.2019; 2019/..., de 05.11.2019; 2019/... de 13.11.2019; 2019/..., de 13.11.2019; 2019/..., de 16.11.2019; 2019/..., de 21.11.2019; 2019/..., de 21.11.2019; 2018/..., de 23.11.2019; 2019/..., de 28.11.2019; 2019/..., de 30.11.2019; 2019/..., de 30.11.2019; 2018/..., de 30.11.2019; 2019/..., de 05.12.2019; 2019/..., de 13.12.2019; 2019/..., de 12.12.2019; 2019/..., de 17.12.2019; 2019/..., de 18.12.2019; 2019/... de 19.12.2019; 2019/..., de 21.12.2019; 2019/..., de 27.12.2019 e 2019/..., de 02.01.2020, relativos a Imposto Sobre Veículos (ISV), praticados pelo Diretor da Alfândega do Jardim do Tabaco.
4. Das referidas DAV's a Requerente, através de representante indireto, declarou nos campos F e G que os veículos identificados eram usados e provenientes de Espanha, França, Itália, Alemanha e Holanda.
5. As datas das primeiras matrículas são as constantes do quadro G das referidas DAV's, e que aqui se reproduzem, das quais resulta que são veículos com pelo menos mais de dois anos de uso.
6. Tendo em consideração o referido anteriormente, os veículos identificados foram considerados como usados e, para efeitos dos escalões da Tabela D, previsto no art. 11.º, 1, CISV, determinada a correspondente percentagem de redução face aos anos de uso de cada um deles, conforme mencionado no ponto 1, tabela junta, coluna "Redução de anos de uso — componente cilindrada".
7. Do campo R dos DAV's resulta o cálculo de ISV para cada um dos veículos, tendo sido efetuado com recurso à Tabela A, aplicável aos veículos ligeiros de passageiros, do qual se obtém o total de ISV a pagar, e que se encontra reproduzido no quadro do ponto 1, coluna "ISV PAGO".
8. Do imposto pago (41.573,72 euros), 13.791,35 euros resultaram da "Componente ambiental".
9. Da "Componente cilindrada", no total de 68.254,08 euros, o SP beneficiou das percentagens de reduções resultantes do 'Anos de Uso', conforme descrito no quadro do ponto 1.
10. A "Componente ambiental" não beneficiou de qualquer redução por aplicação do 'Anos de Uso', que se calcula no montante de 7.689,37 euros.
11. O SP pagou um total de 41.573,72 euros a título de ISV.
12. Aos veículos identificados no quadro do ponto 1 foram atribuídas as matrículas referidas a coluna "MATRÍCULA".
A.2. Factos dados como não provados
Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, 7, do CPPT, e a prova documental aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.
B. DO DIREITO
A questão que se apresenta a resolver no presente processo arbitral gravita em redor do pedido formulado pela Requerente, isto é, a declaração de ilegalidade parcial dos atos de liquidação de ISV já melhor identificados e a sua subsequente anulação parcial e restituição do imposto pago, bem como os juros indemnizatórios calculados sobre os referidos montantes.
Como vimos, na sequência da apresentação das DAV's referidas, foi liquidado à Requerente o valor total de 41.573,72 euros, correspondendo 27.782,37 euros à componente cilindrada, e 13.791,35 euros à componente ambiental, sobre a qual não incidiu qualquer redução por 'Anos de Uso'.
Ora, de acordo com a posição do SP, deveria ter sido aplicada à "componente ambiental' uma percentagem de redução de acordo com o número de anos de uso dos veículos.
Para o efeito, o SP defende que as liquidações em causa, que tiveram como fundamento o art. 11.º, CISV, violam o disposto no art. 110.º do TFEU, por desconsiderar essa desvalorização na componente mais relevante do cálculo de imposto — a emissão de CO2 — nomeadamente, porque "o montante de imposto, calculado sem tomar em consideração a depreciação real do veículo, excede o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados em território nacional".
É na sequência deste posição que o SP pretende que lhe seja restituída a quantia de 7.689,37 euros, pagos em excesso, acrescido dos correspondentes juros indemnizatórios calculados à taxa legal, desde a data do pagamento do imposto até à efetiva restituição.
Em sentido diametralmente oposto, a AT defende a legalidade da liquidação, argumentando que "em nome da unidade e da coerência do modelo de tributação automóvel vigente em Portugal, a não aplicação da totalidade da componente ambiental aos veículos usados violaria os princípios suprarreferidos, tornando-se fonte de graves injustiças, já que beneficiaria claramente os veículos usados em detrimento dos novos" já que "destinando-se a componente ambiental a compensar os efeitos nefastos de qualquer redução em função da depreciação comercial ou dos anos de uso do automóvel, dado que o potencial poluidor do automóvel não diminui com a sua idade, muito pelo contrário, agrava-se, como é do conhecimento comum, a mesma não deve ser objeto de qualquer redução pois representa o “custo de impacte ambiental”, sendo o seu objetivo orientar a escolha dos consumidores para uma maior seletividade na compra dos automóveis, em função do seu grau poluidor."
O thema decidendum é, deste modo, o seguinte: se o disposto no art. 11.º, CISV viola ou não o disposto no art. 110.º, TFUE.
Ora, sobre este ponto já o CAAD se pronunciou nos autos do proc. 572/2018-T. A situação sub judice com que nos deparamos é basicamente a mesma.
Sigamos o referido acórdão, com o qual concordamos na íntegra.
Pugnamos por opinião idêntica, que se aplica, vis a vis, nos presentes autos.
Também aqui entendemos que o teor do art. 11.º, CISV, viola o disposto no direito comunitário, nomeadamente, o art. 110.º, TFUE.
Consequentemente, será de anular parcialmente os atos tributários de ISV já melhor identificados, na medida em que os mesmos padecem de ilegalidade na parte em que não se considerou a aplicação das percentagens de redução em resultado dos 'Anos de Uso' da componente ambiental, conforme determina o citado art. 110.º
Quanto à questão da alegada inconstitucionalidade, defende a Requerida a violação dos arts. 9.º, e), 66.º, 1, e 2, 103.º, 2, e 266.º, da Lei Fundamental.
Ora, não vemos como a interpretação defendida viola o disposto nos preceitos citados, atentas as razões expostas. O direito fiscal do ambiente também é considerado na melhor interpretação do art. 11.º, CISV, pois a pedra basilar determinante é no sentido de, recordemos, "o art. 11.º do Código do ISV está em desconformidade com o disposto no artigo 110.º do TFUE porquanto aquele artigo não pode, em conformidade com o que este artigo dispõe, calcular o imposto sobre veículos usados oriundos de outro EM sem ter em conta a depreciação dos mesmos, de tal forma que, neste caso, o imposto calculado ultrapasse o montante de ISV contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no EM de importação, ou seja, dos veículos usados nacionais."
Quanto aos juros indemnizatórios.
Determina o art. 24.º, 5, RJAT que "“é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”.
Nos processos arbitrais tributários pode haver lugar ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do disposto nos artigos 43.º, 1 e 2, e 100.º, LGT, quando se determine que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
Determina o art. 24.º, 1, b), RJAT, que “a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito”.
Consequentemente, terá de se proceder ao reembolso parcial dos montantes pagos pelo SP, relativos ao ISV na parte em que a liquidação é anulada, de modo a que se reconstitua a situação que existiria se não se tivesse cometido a ilegalidade já identificada.
Deste modo, considerando o disposto no art. 61.º, CPPT, como se verificam preenchidos os requisitos do direito a juros indemnizatórios, o SP terá direito a esses juros, calculados à taxa legal sobre os montantes de ISV pagos indevidamente, contabilizados de acordo com o disposto no art. 61.º, 3, CPPT, isto é, desde a data do pagamento do imposto indevido até à data da emissão das respetivas notas de crédito.
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C. DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:
a) Determinar a anulação parcial das liquidações de ISV identificadas no pedido arbitral, ordenando-se o reembolso à Requerente da quantia paga em excesso, no montante de 7.689,37 euros, e condenando a Requerida no pagamento dos respetivos juros indemnizatórios, calculados nos termos legais, de acordo com o peticionado;
b) Condenar a Requerida no pagamento integral das custas do presente processo.
D. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em 7.689,37 euros, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
E. Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 612 euros nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, conforme o disposto no artigo 22.º, n.º 4, RJAT.
Notifique-se.
Lisboa, 27 de janeiro de 2021
O Árbitro Singular
(Ricardo Marques Candeias)