DECISÃO ARBITRAL
I. Relatório
A..., UNIPESSOAL LDA, doravante designada como “Demandante”, sociedade unipessoal por quotas, com capital social de € 5.000,00 (cinco mil euros), titular do número de identificação de pessoa coletiva (NIPC) ..., com sede social sita na ..., ..., ..., ...-... Lisboa, apresentou em 26-03-2020, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º1 do artigo 2.º, na alínea a) do n.º2 do artigo 5.º, no n.º 1 do artigo 6.º, e nos artigos 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), em conjugação com os artigos 99.º e 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT, pedido de pronúncia arbitral, com vista a:
1) A anulação parcial do ato de liquidação de Imposto sobre Veículos (ISV), que se desdobra nos n.ºs 2020/... de 08/03/2020 e 2020/... de 09/03/2020;
2) A condenação da Demandada à devolução do imposto indevidamente pago e ao pagamento dos correspetivos juros indemnizatórios.
É demandada a AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “Demandada”, “Autoridade Tributária” ou simplesmente “AT”).
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 27-03-2020.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular a signatária, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 07-07-2020, foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a mesma, nos termos conjugados das alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral singular foi constituído em 06-08-2020.
A Demandante baseia a sua pretensão nos seguintes factos e argumentos:
A liquidação de ISV impugnada resultou da aplicação do art. 11º do Código do Imposto sobre Veículos, o qual manda calcular a taxa de imposto, a aplicar aos veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias, aplicando uma redução percentual, variável em função da idade do veículo usado, à “componente cilindrada” da taxa normal (determinada nos termos do art. 7º do CISV), mas não aplicando a mesma ou qualquer redução à “componente ambiental” da mesma taxa;
Esta disposição do direito nacional é contrária ao art. 110º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, na medida em que tem como resultado onerar um automóvel usado oriundo de outro Estado-membro da União com um imposto superior ao que onera um automóvel igualmente usado e com a mesma idade que tenha, enquanto novo, pago ISV em Portugal.
A Autoridade Tributária e Aduaneira, notificada para o efeito, apresentou resposta em que defendeu a improcedência da impugnação, alegando em síntese:
Não obstante a alteração ao artigo 11.º do CISV tenha surgido após o acórdão proferido no Processo n.º C- 200/15 do TJUE, este não se pronuncia, em concreto, sobre a matéria em causa nos presentes autos, designadamente quanto à questão da percentagem de redução de ISV aplicável a veículo usado incidir apenas sobre o elemento específico de tributação (Cilindrada), e não sobre a componente ambiental do ISV, limitando-se aquele a analisar a questão da determinação do valor tributável dos veículos usados provenientes de outro Estado-Membro, introduzidos no território nacional, no sentido de afirmar que um sistema relativo ao cálculo da desvalorização dos veículos que não tem em conta a sua desvalorização antes destes atingirem um ano, nem a desvalorização que seja superior a 52% no caso de veículos com mais de cinco anos, não cumpre as obrigações que lhe incumbem por forca do artigo 110.º do TFUE;
A redação atual do artigo 11.º do CISV encontra-se em consonância com o disposto no artigo 1.º do mesmo código, que consagra o “Princípio da Equivalência”;
O art. 11º do CISV, na sua redação atual e, concretamente, a limitação da redução por idade à “componente cilindrada” foi determinada por razões de política ambiental, estando por isso respaldado no n.º 2 do artigo 191.º do TFUE, onde se estabelece o princípio do poluidor pagador ao postular que “A política da União no domínio do ambiente terá por objetivo atingir um nível de proteção elevado, tendo em conta a diversidade das situações existentes nas diferentes regiões da União. Basear-se-á nos princípios da precaução e da Acão preventiva, da correção, prioritariamente na fonte, dos danos causados ao ambiente e do poluidor-pagador”;
Da interpretação do artigo 110.º do TFUE, em conjugação com a que resulta do artigo 191.º do mesmo tratado, conclui-se que o modelo de tributação automóvel português, ao fazer incidir sobre os veículos ligeiros de passageiros, novos e usados, a componente ambiental, não pretende restringir a entrada de veículos em território nacional para proteger a produção nacional, mas, tão só, como se referiu, direcionar as escolhas dos consumidores para a aquisição de veículos com menores emissões de dióxido de carbono, tendo por fim último a proteção do ambiente, no estrito cumprimento dos princípios consagrados no artigo 191.º do TFUE;
A aplicação do disposto no artigo 11.º do CISV não obsta à admissão de veículos usados em território nacional, nem tampouco visa impedir a realização de negócios jurídicos de compra e venda de veículos automóveis pois são processadas, diariamente, inúmeras declarações aduaneiras de veículos, de regularização fiscal de veículos em território nacional, provenientes de outros Estados-membros;
Efetivamente, de acordo com os dados atinentes ao número de matriculas atribuídas no período de 2010 a 2018, a veículos da categoria Ligeiros, novos e importados usados, constata-se que, de acordo com os cálculo apresentados para 2018, a componente de usados ligeiros de passageiros é de 25% e o seu crescimento (relativo a 2017) foi de 14%, contra 2% apenas para os novos, constatando-se assim que não existe qualquer obstáculo ao funcionamento do mercado interno, na medida em que, entre 2010 e 2018, o número de veículos usados matriculados em Portugal aumentou 219%, tendo, especificamente, entre 2017 e 2018, tido um crescimento de 13%, muito acima da taxa de crescimento da venda de veículos novos, que é de, apenas, 3%;
A interpretação da Demandante, ao defender a aplicação da mesma percentagem de redução aplicável à componente cilindrada, pugna igualmente pela aplicação de um beneficio fiscal que não se encontra previsto na lei, o que, desde logo, é inconstitucional, posto que, face, ao n.º 2 do artigo 103.º da CRP, os impostos são criados por lei, determinando esta igualmente a incidência, taxa, benefícios fiscais e garantias dos contribuintes, verificando-se, assim, uma violação desta norma constitucional, bem como uma desaplicação do artigo 66.º da CRP;
Tendo o artigo 11.º do CISV sido alterado de acordo com o disposto na CRP em matéria ambiental, não pode ser afastado, ainda que com fundamento na aplicação, no direito interno, por via do artigo 8.º, n.º 4, da CRP, do artigo 110.º do TFUE;
A interpretação pugnada pela Demandante configura uma desaplicação do direito internacional - do artigo 191.º do TFUE, do Protocolo de Quioto e do Acordo de Paris - que vincula o Estado Português, por força do artigo 8.º da CRP, bem como uma violação do disposto no n.º 1, e alíneas a), f) e h), do n.º 2, do artigo 66.º e do n.º 2 do artigo103.º da CRP;
A interpretação defendida pela Demandante do artigo 11.º do CISV resulta numa violação do princípio da legalidade consagrado no artigo 266.º (Princípios fundamentais) da Constituição da República Portuguesa (CRP), o qual, além de estabelecer, no n.º 1, que a administração pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos, impõe aos órgãos e agentes administrativos a subordinação à Constituição e à lei, devendo atuar no exercício das suas funções com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da Justiça, da imparcialidade e da boa-fé (n.º 2).
Ademais, a pretensão da Demandante olvida que estamos perante um imposto sobre o consumo não harmonizado, e que a tributação do consumo visa adaptar a estrutura do consumo à evolução das necessidades do desenvolvimento económico e da justiça social, devendo onerar os consumos de luxo, conforme o consagrado no n.º 4 do artigo 104.º da CRP.
E, sendo um dos princípios gerais da interpretação das normas jurídicas e “critério de
interpretação” o da interpretação conforme à Constituição, de acordo com este critério, no caso de o intérprete, mediante a aplicação dos elementos interpretativos, chegar a mais do que um sentido possível a atribuir a um preceito normativo, deve preferir aquele que mais se adeque à Constituição;
Por outro lado, ao defender a ilegalidade da liquidação por entender que existe uma desconformidade do artigo 11.º do CISV com o artigo 110.º do TFUE, a Demandante viola ainda, por via da desaplicação do artigo 11.º do CISV na redacção atualmente em vigor, o princípio do acesso ao direito à tutela jurisdicional efetiva.
De facto, tendo a Demandante recorrido à arbitragem tributária para impugnar as liquidações, a administração encontra-se coartada no seu direito de reação face aos limitados meios de recurso perante a prolação de uma decisão arbitral desfavorável, em geral e, concretamente, quanto ao recurso de decisão que desaplica norma nacional com fundamento em violação de princípio de direito da União Europeia;
Pois o RJAT prevê tão somente três tipos de reações recursórias, sendo eles o recurso para o Tribunal Constitucional, o recurso para uniformização de jurisprudência e a impugnação arbitral, com base nas nulidades elencadas no artigo 28.º, n.º 1 do RJAT, não existindo o clássico recurso de direito e de facto, em princípio a interpor para o Tribunal Central Administrativo competente.
Por despacho do Tribunal Arbitral de 18-10-2020, foi decidido dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT por desnecessária, atendendo a que as Partes não requereram a produção de prova adicional para lá da prova documental já incorporada nos autos e da que foi tratada no ponto anterior, a que não existe matéria de exceção sobre a qual as Partes careçam de se pronunciar e tendo ainda em conta que no processo arbitral vigoram os princípios processuais gerais da economia processual e da proibição da prática de atos inúteis, ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º, e n.º 2 do art.º 29.º, ambos do RJAT.
Pelo mesmo despacho, foram as Partes convidadas a apresentar alegações finais escritas, em prazos sucessivos de dez dias.
Nas suas alegações, a Demandante argumenta, com interesse para a decisão da causa e além do já por si alegado na p.i., nos seguintes termos:
Ao contrário do que alega a Demandada, a Demandante de facto põe em causa a liquidação impugnada;
Quanto à justificação do art. 11º do CISV por razões de política ambiental, no Acórdão proferido nos processos apensos C‐290/05 e C‐333/05, de 5 de Outubro de 2006, o TJUE sentenciou que “não obstante o carácter ambiental do objetivo e do fundamento do imposto automóvel e mesmo não tendo estes qualquer relação com o valor de mercado do veículo, o artigo 90.°, primeiro parágrafo, CE exige que seja tida em conta a depreciação dos veículos usados que são objeto de tributação, visto que esse imposto se caracteriza por ser apenas cobrado uma vez quando do primeiro registo do veículo para efeitos da sua utilização no Estado‐Membro em causa e por ser desta forma incorporado no referido valor;”
Na Proposta de Lei 61/XIV (que contém a Proposta do Orçamento do Estado para 2021) prevê-se uma alteração ao artigo 11.º do Código do Imposto sobre Veículos (CISV), no sentido de se estabelecer uma percentagem de redução do imposto, considerando também a componente ambiental;
A 23 de abril de 2020, a Comissão Europeia apresentou junto do TJUE uma ação contra a República Portuguesa, e que segue termos como Processo C-169/20, na qual pediu ao Tribunal para que este “declare que, ao não desvalorizar a componente ambiental no cálculo do valor aplicável aos veículos usados introduzidos no território da República Portuguesa e adquiridos noutros Estados- Membros no âmbito do cálculo do imposto de registo, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia”;
E para isso a Comissão Europeia apresenta os seguintes fundamentos e argumentos: “A legislação portuguesa em causa consagra uma discriminação entre a tributação que incide sobre o veículo importado e aquela que incide sobre o veículo nacional similar. As modalidades e a forma de cálculo em vigor levam a que a tributação do veículo importado seja quase sempre mais elevada. Esta situação é tanto mais preocupante quanto ela é contrária à jurisprudência assente do Tribunal de Justiça: a legislação portuguesa relativa ao cálculo do imposto aplicável aos veículos usados adquiridos noutros Estados-Membros já foi objeto de procedimentos de infração anteriores e de vários acórdãos do Tribunal de Justiça. A legislação portuguesa não garante que os veículos usados importados de outros Estados-Membros sejam tributados num montante que não exceda o imposto refletido nos veículos usados domésticos similares. Tal pode ser explicado pelo facto de, em consequência da alteração da legislação em 2016, a componente ambiental utilizada para calcular o valor de um veículo usado não ser desvalorizada. Daqui resulta que a tabela de desvalorização adotada pela legislação nacional não conduz a uma aproximação razoável do valor real do veículo usado importado. Consequentemente, o montante pago para registar um veículo usado importado excede o montante relativo a um veículo usado similar já registado em Portugal, o que configura uma violação do artigo 110.º do TFUE e da jurisprudência do Tribunal de Justiça”.
Nas suas alegações, a demandada AT limita-se a remeter para a sua resposta.
II. Saneamento
O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º, e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT e é materialmente competente.
As Partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
Não existem exceções a apreciar.
O processo não enferma de nulidades.
III. Questões a apreciar
Constituem questões a apreciar no presente processo arbitral:
1ª questão: Saber se o art. 11º do CISV, ao prever, na determinação do imposto aplicável a automóveis usados originários de outros Estados-Membros da União, uma redução da taxa normal em função da idade, que é limitada à “componente cilindrada, excluindo a componente ambiental”, viola prima facie o art. 110º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia;
2ª questão: Saber se, existindo uma antinomia entre o art. 11º do CISV, por prever este, na determinação do imposto aplicável a automóveis usados originários de outros Estados-Membros da União, uma redução da taxa normal em função da idade, limitada à “componente cilindrada” e excluindo a “componente ambiental”, e o art. 110º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, tal antinomia se pode considerar justificada por: i) imperativos de política ambiental com assento constitucional ; e ii) pelo imperativo de cumprimento de obrigações assumidas pelo Estado Português no âmbito de Tratados Internacionais relativos a matérias ambientais;
3ª questão: Saber se a pretensão formulada pela Demandante implica o pedido de reconhecimento de um benefício fiscal, em sede de ISV, para os automóveis usados oriundos de outros Estados-Membros, em violação do princípio da legalidade dos impostos contido no art. 103º, nº 2 da CRP;
4ª questão: Saber se uma interpretação do direito interno (art. 11º CISV) e do direito europeu (art. 110º do TFUE) que conclua pela violação do segundo pelo primeiro e pela necessidade da sua desaplicação, resulta numa violação do princípio da legalidade consagrado no artigo 266.º (Princípios fundamentais) da Constituição da República Portuguesa;
5ª questão: Saber se, ao decidir pela ilegalidade da liquidação por entender que existe uma desconformidade do artigo 11.º do CISV com o artigo 110.º do TFUE, o Tribunal violaria o princípio do acesso ao direito à tutela jurisdicional efetiva;
6ª questão: Sabe se o Tribunal está, no caso concreto, obrigado a efetuar o reenvio prejudicial para o TJUE, ao abrigo do art. 267º do TFUE.
IV. Fundamentação
Matéria de facto
Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:
A) A Demandante adquiriu, em 31 de janeiro de 2020, na Bélgica, o veículo automóvel usado do tipo “ligeiro de passeiros”, da marca ..., modelo ..., movido a gasolina, com o n.º de motor ..., com uma cilindrada de 6592cc e com uma emissão de gases CO2 de 317g/km e de partículas 0.0006 g/km;
B) Este veículo entrou no território nacional a 6 de março de 2020, com 14800 km percorridos;
C) Na sequência deste último facto, a Demandante, na sua qualidade de operador sem estatuto, apresentou a 8 de março de 2020, por transmissão eletrónica de dados, dirigida à Alfândega de Faro, e para admissão do referido veículo no território nacional, a respetiva Declaração Aduaneira de Veículo (DAV) que ficou identificada com o n.º 2020...;
D) Dessa Declaração Aduaneira de Veículo resultou uma liquidação de ISV no valor de € 35.688,61 (trinta e cinco mil seiscentos e oitenta e oito euros e sessenta e um cêntimos);
E) A Demandante pagou o imposto sobre veículos liquidado na sua totalidade.
Não existem factos alegados e não provados com relevância para a decisão do mérito da causa.
A fixação da matéria de facto baseia-se nos documentos juntos pela Demandante e no processo administrativo junto pela Demandada.
Discussão de direito
a. Ordem
A questão suscitada pela Demandante no presente processo arbitral em matéria tributária é a da ilegalidade de uma liquidação de Imposto sobre Veículos (ISV), efetuada ao abrigo do art. 11º do respetivo código (CISV) por alegada violação, por parte deste preceito, do art. 110º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), no qual se consagra a proibição de os Estados-membros fazerem incidir sobre os produtos dos outros Estados-membros, imposições internas superiores às que incidem sobre produtos nacionais.
Deste modo, a apreciação da questão implica uma interpretação de uma norma do direito da União Europeia - o art. 110º do TFUE – e um exame da conformidade do direito nacional – art. 11º do CISV – com essa norma do direito europeu.
E assim sendo, o Tribunal Arbitral deve necessariamente considerar a necessidade de proceder a um reenvio prejudicial da questão decidenda para o Tribunal de Justiça da União Europeia, ao abrigo do art. 267º do TFUE.
Com efeito, nos termos do art. 267º al. a) do TFUE, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) é competente para decidir, a título prejudicial, sobre a “interpretação dos Tratados”.
De acordo com o mesmo preceito, “sempre que uma questão desta natureza seja suscitada perante um qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal que sobre ela se pronuncie.
E ainda segundo o mesmo preceito, “sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal.
Temos assim que a questão da necessidade de um reenvio prejudicial para o TJUE está dependente: i) em primeiro lugar, de um juízo sobre se se está perante um problema de “interpretação dos Tratados” que justifique um reenvio prejudicial para o TJUE; e ii) de um juízo interpretativo sobre a obrigação que impende sobre o Tribunal Arbitral de proceder ao reenvio.
Existe neste momento uma já vasta jurisprudência dos tribunais arbitrais que vai unanimemente no sentido de considerar que, efetivamente, o art. 11º do CISV viola o art. 110º do TFUE: Processo nº 572/2018-T; Processo nº 346/2019-T; Processo nº 348/2019-T; Processo nº 350/2019-T; Processo nº 459/2019-T; Processo nº 466/2019-T; Processo nº 498/2019-T; Processo nº 660/2019-T; Processo nº 776/2019-T; Processo nº 833/2019-T; Processo nº 872/2019-T; Processo n º 13/2020-T; Processo nº 34/2020-T; Processo nº 52/2020-T; Processo nº 75/2020-T; Processo nº 98/2020-T; Processo nº 113/2020-T; Processo nº 117/2020-T; Processo nº 117/2020-T; 158/2020-T; Processo nº 201/2020-T; Processo nº 209/2020-T; Processo nº 246/2020-T; Processo nº 293/2020-T; Processo nº 309/2020-T; Processo nº 329/2020-T; Processo nº 347/2020-T.
Por outro lado, referindo-nos agora já à questão da obrigatoriedade ou oportunidade de o Tribunal Arbitral proceder ao reenvio prejudicial da questão ao TJUE, o mesmo conjunto de decisões considera não existir uma “questão de interpretação dos Tratados” que justifique ou exija um tal reenvio, porquanto o sentido do art. 110º do TFUE, aplicado ao Impostos sobre Veículos, estaria perfeitamente clarificado, através quer da jurisprudência do TJUE quer da jurisprudência nacional.
Em face desta jurisprudência arbitral, e embora fosse possível outra abordagem, considera-se dever ser analisada em primeiro lugar a questão substancial da compatibilidade do art. 11º CISV com o art. 110º TFUE, no sentido de averiguar em que medida existe um problema de interpretação que justifique ou exija o reenvio prejudicial.
b. Questão da existência de uma violação do art. 110º do TFUE através do art. 11º do CISV
O artigo 110.° TFUE proíbe aos Estados-Membros que façam incidir sobre os produtos de outros Estados‑Membros imposições internas superiores às que incidam sobre os produtos nacionais similares, ou imposições internas de modo a proteger indiretamente outras produções (acórdãos De Danske Bilimportører (C‑383/01, EU:C:2003:352, n.° 36) e Brzeziński (C‑313/05, EU:C:2007:33, n.° 27).
O artigo 110.° TFUE tem por objetivo assegurar a livre circulação das mercadorias entre os Estados‑Membros, em condições normais de concorrência, através da eliminação de qualquer forma de proteção que possa resultar da aplicação de imposições internas discriminatórias relativamente a produtos originários de outros Estados‑Membros (acórdãos Stadtgemeinde Frohnleiten e Gemeindebetriebe Frohnleiten (C‑221/06, EU:C:2007:657, n.° 30 e jurisprudência referida) e Tatu (C‑402/09, EU:C:2011:219, n.° 34). Assim, este artigo deve garantir a perfeita neutralidade das imposições internas no que se refere à concorrência entre produtos nacionais e produtos importados (córdãos De Danske Bilimportører (C‑383/01, EU:C:2003:352, n.° 37) e Tatu (C‑402/09, EU:C:2011:219, n.° 35).
Segundo jurisprudência constante, um sistema de tributação de um Estado‑Membro só pode ser considerado compatível com o artigo 110.° TFUE se se verificar que está organizado de modo a excluir sempre a possibilidade de os produtos importados serem tributados mais fortemente que os produtos nacionais e, portanto, que não comporta, em caso algum, efeitos discriminatórios (acórdãos Brzeziński (C‑313/05, EU:C:2007:33, n.° 40); Stadtgemeinde Frohnleiten e Gemeindebetriebe Frohnleiten (C‑221/06, EU:C:2007:657, n.° 50) e Oil Trading Poland (C‑349/13, EU:C:2015:84, n.° 46 e jurisprudência referida).
De acordo com o art. 5º do Código, o Imposto sobre Veículos é um imposto que se aplica sobre o fabrico, montagem, admissão ou importação dos veículos tributáveis em território nacional, que estejam obrigados à matrícula em Portugal. Ou seja, trata-se de um imposto que se aplica quer sobre veículos fabricados/montados em Portugal, quer sobre veículos originários de outros países, seja por importação (de países terceiros) seja por “admissão em território nacional” (de países membros da EU).
Importante também é ter em conta que se trata de um imposto de obrigação única, que se aplica uma única vez, no momento da introdução no consumo no território nacional.
As taxas do imposto, no caso de automóveis em geral, são determinadas, nos termos do art. 7º, pela soma de duas parcelas: um montante de imposto calculado em função da cilindrada (“componente cilindrada”) e um montante de imposto calculado em função do nível de emissão de dióxido de carbono (“componente ambiental”).
O art. 11.º do CISV aplica-se especificamente à admissão de veículos usados (portadores de matrículas definitivas) provenientes de outros Estados-Membros da EU.
De acordo com este preceito, a taxa de imposto a aplicar a estes veículos também é dada pela soma de duas parcelas, a “componente cilindrada” e a “componente ambiental”.
Quanto à “componente cilindrada”, ela corresponde à taxa que o art. 7º manda aplicar à introdução no consumo de um veículo não usado, mas minorada por um coeficiente que varia com a idade do veículo. Esta minoração procura fazer corresponder uma redução do montante do imposto à redução do valor comercial que o veículo regista em função da idade.
Mas já quanto à “componente ambiental”, a taxa de imposto é igual à de um veículo novo introduzido no consumo em Portugal.
Por outro lado, no caso de um veículo que foi sujeito a ISV em estado novo, o montante do ISV (“componente cilindrada” mais “componente ambiental”) pago uma única vez no momento da introdução no consumo, vai sendo amortizado ao longo da vida útil do veículo. Neste processo, as duas componentes – “cilindrada” e “ambiental” – são amortizadas exatamente na mesma proporção.
Quando o veículo (que foi sujeito a ISV em estado novo) é vendido em estado usado, o seu valor de venda irá refletir não apenas a desvalorização/perda de utilidade do veículo, mas também a amortização do ISV pago aquando da introdução no consumo. As amortizações das duas componentes da taxa concorrerão proporcionalmente para reduzir o valor comercial do veículo.
No caso de um automóvel admitido no território português provindo de um outro Estado-Membro, por força das regras do art. 11º, a “componente ambiental” do imposto é igual à que incidiria sobre um veículo novo.
Desta forma, o montante total de imposto incorporado no custo de um veículo usado admitido no território português provindo de um outro Estado-Membro é superior ao montante total de imposto incorporado no custo de um veículo usado que foi sujeito a ISV em Portugal em estado novo.
Não há qualquer dúvida de que o art. 11º tem como efeito fazer incidir sobre os produtos de outros Estados‑Membros uma imposição interna superior à que incide sobre os produtos nacionais similares. E assim, há que concluir que, prima facie, existe uma antinomia entre o art. 11º do CISV e ao art. 110º do TFUE.
Sustenta a Demandada, contudo, que esta antinomia, a verificar-se, não constituiria uma violação do direito da União porquanto estaria justificada por: i) imperativos de política ambiental com consagração constitucional; e ii) pelo imperativo de cumprimento de obrigações assumidas pelo Estado Português no âmbito de Tratados Internacionais relativos a matérias ambientais, incluindo o próprio TFUE, no seu art. 191º.
Sobre a primeira questão, impõe-se observar que o direito da União, em virtude do princípio do primado, se sobrepõe ao direito nacional dos Estados-membros, incluindo o direito constitucional e que, no caso do ordenamento português, é a própria Constituição que, no seu art. 8º, nº 4, estabelece esse mesmo princípio. Pelo que uma violação dos Tratados da União nunca poderia, em face quer de um quer de outro, ser justificada por uma norma ou princípio de direito constitucional português que se lhe sobrepusesse.
Quanto à segunda questão, observamos, em primeiro lugar, que os Estados-Membros só podem adotar medidas que contrariem os Tratados nos casos especialmente previstos nos mesmos. E, em segundo lugar, que o TFUE não prevê a possibilidade de uma medida nacional que seja contrária ao artigo 110.° TFU poder ser justificada por qualquer razão (acórdão Valev Visnapuu, CC‑198/14, ECLI:EU:C:2015:463, nº 57). Por conseguinte, razões ambientais não são uma justificação admissível para uma medida nacional que esteja em antinomia com o art. 110º.
Conclui-se assim que o art. 11º do CISV viola efetivamente o art. 110º do TFUE, na medida em que faz incidir sobre os produtos de outros Estados‑Membros uma imposição interna superior à que incide sobre os produtos nacionais similares.
c. Questão de saber se a pretensão formulada pela Demandante implica o pedido de reconhecimento de um benefício fiscal, em sede de ISV, para os automóveis usados oriundos de outros Estados-Membros, em violação do princípio da legalidade dos impostos contido no art. 103º, nº 2 da CRP
Com este argumento, a Demandada sugere que a redução da “componente ambiental” da taxa do imposto em função da idade do veículo se traduziria num benefício fiscal para os veículos usados admitidos no território nacional vindos de outro Estado-Membro.
Um benefício fiscal é sempre um desagravamento do imposto incidente sobre um facto tributário que cabe ou que, abstratamente, caberia no âmbito de incidência desse imposto, por comparação com o imposto que incide sobre os demais factos tributários abrangidos pela incidência do mesmo imposto.
Ora, já vimos que, no caso de automóveis usados que foram sujeitos a ISV em Portugal no estado novo, a “componente ambiental” do imposto se amortiza ao longo do tempo. Ao aplicar, aos veículos usados admitidos no território nacional provindos de um Estado-Membro, uma redução dessa componente em função da idade, o resultado a que se chega é o de uma equalização do imposto incidente sobre os dois factos tributários, ao contrário de uma desigualdade, i.e de um desagravamento fiscal. Uma tal redução não implica, pois, a concessão de qualquer benefício fiscal.
d. Questão da violação do princípio da legalidade consagrado no artigo 266.º (Princípios fundamentais) da Constituição da República Portuguesa
Com o devido respeito, não alcançamos claramente o argumento da Demandada, pois o princípio da legalidade que esta invoca – o princípio da legalidade da atuação da Administração Tributária, previsto no art. 266º, nº 2 da CRP e no art. 8º, nº 2, a) da LGT – tem como destinatários os órgãos e agentes da administração tributária, não podendo os sujeitos passivos, através das suas ações ou das pretensões formuladas em juízo, cometer violações do princípio da legalidade da atuação da Administração Tributária.
Por outro lado, a legalidade da atuação da Administração Tributária tem forçosamente que se traduzir numa conformidade dessa atuação com todo o ordenamento jurídico, a começar pelas normas de nível hierárquico superior, que é o caso, precisamente, dos tratados da União. E havendo uma incompatibilidade entre uma destas normas de nível superior e uma norma de nível inferior, a legalidade da atuação da Administração Tributária exige o respeito pela primeira e o desrespeito pela segunda.
Não vemos, pois, como possa proceder esta alegação da Demandada.
e. Questão da obrigatoriedade ou necessidade de efetuar o reenvio prejudicial para o TJUE
Finalmente, resta-nos por apreciar a questão da obrigatoriedade ou necessidade de efetuar o reenvio prejudicial para o TJUE.
Antes disso, uma nota sobre a alegação da Demandada acerca de uma eventual violação do princípio do direito à tutela jurisdicional efetiva.
Sustenta a Demandada que, ao decidir pela ilegalidade da liquidação por entender que existe uma desconformidade do artigo 11.º do CISV com o artigo 110.º do TFUE, estar-se-ia a violar o princípio do acesso ao direito à tutela jurisdicional efetiva, uma vez que o RJAT não prevê um recurso de direito e de facto das decisões proferidas em processo arbitral tributário.
Efetivamente, o RJAT prevê possibilidades limitadas de recurso das decisões arbitrais, sendo que as possibilidades previstas não se baseiam num princípio abrangente do duplo grau de jurisdição, mas se limitam ao controlo de questões específicas. Nomeadamente, no caso concreto, não seria possível à Demandada interpor recurso para obter uma reapreciação da questão decidenda fundamental, que é a da compatibilidade do art. 11º do CISV com o art. 110º do TFUE.
Porém, este argumento poderia ser utilizado para toda e qualquer decisão a ser proferida em processo arbitral tributário, e não apenas para o presente processo, pelo que, a atender-se ao argumento da Demandada, nunca um tribunal arbitral poderia anular um ato da Autoridade Tributária e Aduaneira. Pelo que, só por si, a invocação da irrecorribilidade da decisão arbitral não pode impedir o tribunal arbitral de apreciar a legalidade do ato aqui em causa.
Todavia, cremos que o argumento da Demandada se enlaça, de certo modo, com a questão da obrigatoriedade de o tribunal nacional proceder ao reenvio prejudicial sempre que no processo não seja admitido recurso, nos termos do art. 267º do TFUE.
O art. 267º do TFUE dispõe que o Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial: (al. a) “sobre a interpretação dos Tratados”.
O terceiro parágrafo desta disposição diz por sua vez que “sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal.”
Não nos parece haver dúvidas de que, com esta norma, o Tratado procurou precisamente acautelar que um tribunal nacional não tenha a última palavra quanto a uma questão de “interpretação dos Tratados”, a fim de assegurar a uniformidade na interpretação do direito primário da União.
Contudo, para que esta obrigatoriedade exista, é necessário – e aqui acompanhamos, mais uma vez, a jurisprudência arbitral citada antes – que exista “uma questão de interpretação dos Tratados”, nos termos do art. 267º TFUE.
Na sua doutrina sobre a obrigação dos tribunais nacionais lhe submeterem questões prejudiciais, o Tribunal de Justiça já deixou claro que, a fim de determinar em que condições um órgão jurisdicional nacional, cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, é obrigado a submeter a questão ao Tribunal, é necessário interpretar a expressão “sempre que uma questão desta natureza seja suscitada” para efeitos do Direito da União (acórdão CILFIT, C-283/81, ECLI:EU:C:1982:335, nº 8).
No acórdão CILFIT (já citado, nº 21) o Tribunal de Justiça concretizou as condições em que um órgão jurisdicional nacional, cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, é obrigado a submeter uma questão ao Tribunal.
Nessa sentença, o Tribunal afirma que “um órgão jurisdicional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, é obrigado a submeter a questão ao Tribunal de Justiça, a menos que dê como provado que a questão suscitada não é pertinente, ou que a “disposição comunitária” de que se trata já foi objeto de interpretação pelo Tribunal de Justiça, ou que a correta aplicação do “Direito comunitário” se impõe com tal evidência que não deixa lugar a dúvida razoável alguma; a existência de tal circunstância deve ser apreciada em função das características próprias do “Direito comunitário”, das dificuldades particulares que apresenta a sua interpretação e do risco de divergência no interior da “Comunidade”.
Esta interpretação acerca da obrigação que impende sobre os órgãos jurisdicionais nacionais de submeterem uma questão de interpretação dos Tratados deve, em nosso entender, ser conjugada com a ideia, também já diversas vezes afirmada pelo TJUE, de que, no âmbito do artigo 267.° TFUE, o Tribunal de Justiça não se pode pronunciar sobre a interpretação de disposições legislativas ou regulamentares nacionais nem sobre a conformidade de tais disposições com o direito da União (v., designadamente, acórdãos de 18 de Novembro de 1999, Teckal, C‑107/98, Colect., p. I‑8121, n.° 33; de 4 de Março de 2004, Barsotti e o., C‑19/01, C‑50/01 e C‑84/01, Colect., p. I‑2005, n.° 30; e de 23 de Março de 2006, Enirisorse, C‑237/04, Colect., p. I‑2843, n.° 24 e jurisprudência aí referida).
Retira-se desta doutrina que o Tribunal de Justiça, no âmbito de um reenvio prejudicial, se pronuncia sobre a “interpretação dos Tratados”, mas não sobre se uma medida nacional é ou não compatível com a norma dos Tratados.
Sendo assim, “uma questão desta natureza”, para efeitos do art. 267º do TFUE será apenas estritamente uma questão de interpretação de uma disposição dos Tratados, e não uma questão de compatibilidade de uma medida nacional com essa mesma disposição.
Com efeito, cremos que é este o entendimento que melhor se coaduna com a formulação adotada pelo Tribunal no acórdão CILFIT, já citado (nº 21) em que se diz que não existe obrigação de reenvio quando a “disposição comunitária” de que se trata já foi objeto de interpretação pelo Tribunal de Justiça.
Ora, no caso dos autos, está em causa a aplicação de uma disposição do TFUE – o art. 110.º - que já foi interpretado pelo Tribunal de Justiça por diversas vezes, como já foi referido acima. E em todas as vezes que foi chamado a interpretar essa disposição o Tribunal afirmou que “um sistema de tributação de um Estado‑Membro só pode ser considerado compatível com o artigo 110.º TFUE se se verificar que está organizado de modo a excluir sempre a possibilidade de os produtos importados serem tributados mais fortemente que os produtos nacionais e, portanto, que não comporta, em caso algum, efeitos discriminatórios”.
Perante isto, há que concluir que a disposição cuja aplicação está em causa – o art. 110.º do TFUE – já foi interpretado diversas e bastantes vezes pelo Tribunal de Justiça, de modo que não subsiste qualquer dúvida acerca do seu alcance e significado.
O que cabe ao Tribunal Arbitral fazer é apenas averiguar a compatibilidade da medida nacional com essa disposição, com o sentido que o TJUE já por inúmeras vezes lhe fixou, pelo que se conclui que o Tribunal não está obrigado a submeter a questão ao Tribunal de Justiça.
E quanto à compatibilidade do art. 11.º do CISV com o art. 110.º do TFUE, já anteriormente chegámos à conclusão de que, ao não aplicar, aos veículos usados admitidos no território nacional provindos de um Estado-Membro, qualquer redução à componente ambiental da taxa, em função da idade do veículo, o montante total de imposto incorporado no custo de um veículo usado admitido no território português provindo de um outro Estado-Membro é superior ao montante total de imposto incorporado no custo de um veículo usado que foi sujeito a ISV em Portugal em estado novo, o que se traduz numa “possibilidade de os produtos importados serem tributados mais fortemente que os produtos nacionais”, podendo assim comportar efeitos discriminatórios.
f. Questão da devolução do imposto pago e dos juros indemnizatórios
Tendo a Demandante pago a totalidade do imposto liquidado no ato aqui impugnado, pede ao Tribunal que condene a Demandada, em caso de procedência do seu pedido, à devolução do imposto indevidamente pago e ao pagamento de juros indemnizatórios.
De harmonia com o disposto na alínea b) do art. 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”.
Embora o art. 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão “declaração de ilegalidade” para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira diretriz, que “o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária” (CAAD, proc. N.º 277/2020-T; CAAD, proc. N.º 220/2020-T).
O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de atos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do art. 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» e do art. 61.º, n.º 4 do CPPT, que dispõe que “se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea” ”( CAAD, proc. nº 277/2020-T; CAAD, proc. nº 220/2020-T).
O n.º 5 do art. 24.º do RJAT, ao dizer que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral” (CAAD, proc. N.º 277/2020-T; CAAD, proc. N.º 220/2020-T).
Na sequência da anulação do ato impugnado, a Demandante terá direito a ser reembolsada do imposto indevidamente pago, o que é efeito da própria anulação, por força dos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT.
Quanto ao direito a juros indemnizatórios, dispõe o art. 43.º n.º 3 LGT que “são também devidos juros indemnizatórios (...) d) em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução”.
É o caso dos presentes autos, em que se julga o art. 11.º do ISV, no qual se baseou o ato de liquidação impugnado, incompatível com o art. 110.º do Tratado da União Europeia.
Pelo que há que concluir que, transitada a presente decisão arbitral em julgado, a Demandada terá direito a ser ressarcida nos termos do art. 43.º, n.º 3, al. d), através do pagamento de juros indemnizatórios.
V. Decisão
Nos presentes autos a Demandante pede a anulação das liquidações de ISV nº 2020/..., de 2020-03-08, e nº 2020/... de 2020-03-09, as quais constam do Quadro R da Declaração Aduaneira de Veículo nº 2020/....
Estas liquidações foram efetuadas com base nos artigos 7º (veículos novos) e 11º (veículos usados) do CISV.
Em obediência ao disposto no art. 7º, a Autoridade Tributária calculou o imposto dividindo a taxa em duas componentes: “componente cilindrada” e “componente ambiental”.
A “componente cilindrada” da taxa, determinada com base na Tabela A do artigo 7º do CISV, foi calculada em 27 755,52 €.
A “componente ambiental” da taxa, determinada igualmente com base na Tabela A do artigo 7º do CISV, foi calculada em 28 749,73 €.
Em seguida, em aplicação da Tabela D do art. 11º, a Autoridade Tributária aplicou à “componente cilindrada” da taxa determinada nos termos do art. 7º uma percentagem de redução de 75%, correspondente à idade do veículo.
A Autoridade Tributária não aplicou qualquer redução à “componente ambiental” da taxa.
Concluiu-se anteriormente que o art. 11º do CISV é incompatível com o art. 110º do TFUE, ao não aplicar, aos veículos usados admitidos no território nacional provindos de um Estado-Membro, qualquer redução à componente ambiental da taxa em função da idade do veículo, na medida em que isso dá origem a que o montante total do imposto incorporado no custo de um veículo usado admitido no território português provindo de um outro Estado-Membro seja superior ao montante total de imposto incorporado no custo de um veículo usado que foi sujeito a ISV em Portugal em estado novo, o que se traduz numa “possibilidade de os produtos importados serem tributados mais fortemente que os produtos nacionais”, podendo assim comportar efeitos discriminatórios.
Sendo assim, deve-se concluir que o art. 110º do TFUE obriga o Estado Português a aplicar, no cálculo da “componente ambiental” da taxa de ISV incidente sobre a admissão em território português de um veículo usado provindo de outro Estado-Membro, uma redução percentual igual à aplicável à “componente cilindrada” da mesma taxa. Ou seja, a “componente ambiental” da taxa deveria ter sido fixada em 7 187,43 € (28 749,73€ * 25%).
A aplicação desta redução, em conformidade com o art. 110º do TFUE, determinaria um montante total de imposto a pagar de 14 126,31€, em vez do montante efetivamente liquidado de 35 688,61 €, o que se traduz num montante de imposto indevidamente pago de 21 562,30€.
Assim, nos termos anteriormente expostos, decide-se:
(I) Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade, por vício de violação de lei, e consequentemente anular os atos de liquidação impugnados, concretamente as liquidações nº 2020/..., de 2020-03-08, e nº 2020/... de 2020-03-09, na parte resultante da não aplicação, à “componente ambiental” da taxa prevista na Tabela A do art. 7º do CISV, de uma percentagem de redução de 75%.
(II) Julgar procedente o pedido e condenar a Demandada à devolução do imposto indevidamente pago, o qual corresponde a um montante de 21 562,30 €;
(III) Julgar procedente o pedido e condenar a Demandada ao pagamento dos juros indemnizatórios calculados sobre o montante do imposto indevidamente pago.
VI. Valor do processo
Nos termos do art. 97.º-A nº 1, al. a) do CPPT do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor do processo em 21 562,30 €.
VII. Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 1 224.00 €, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Demandada.
Notifique-se.
Porto, 23 de janeiro de 2021.
O Árbitro
(Nina Aguiar)