DECISÃO ARBITRAL
Acordam os Árbitros Conselheiro José Poças Falcão (Árbitro Presidente), Dr. Leonardo Marques dos Santos e Dr. Arlindo José Francisco, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral, no seguinte:
1. Relatório
O A...,S.A., SUCURSAL EM PORTUGAL, NIPC ... sedeado na ..., n.º..., ...-..., Lisboa, entidade que sucedeu, para todos os efeitos legais, ao B...,S.A., titular do NIPC..., tendo sido notificado dos atos tributários de liquidação de Imposto do Selo n.º 2019..., no montante de €101.414,79 e 2019..., no montante de €67.330,82, referentes, respetivamente, aos anos de 2015 e 2016, bem como das respetivas liquidações de juros compensatórios, vem, nos termos e para os efeitos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (“RJAT”) deduzir PEDIDO DE PRONÚNCIA ARBITRAL, contra as aludidas liquidações.
O pedido de constituição do Tribunal foi aceite pelo Ex.mo Senhor Presidente do CAAD em 27-02-2020 e notificado à Requerida na mesma data, não tendo a Requerente procedido à nomeação de árbitro.
Nos termos e para efeitos do disposto no artigo 6.º, n.º 2 alínea a) do RJAT, foram designados em 07-04-2020, pelo Ex.mo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, os árbitros, o Senhor Juiz José Poças Falcão (Árbitro Presidente), e os vogais Dr. Leonardo Marques dos Santos e Dr. Arlindo José Francisco que comunicaram ao Conselho Deontológico de Arbitragem Administrativa a aceitação do encargo no prazo legalmente estipulado.
As partes foram notificadas dessa designação não tendo, qualquer delas, manifestado vontade de as recusar, vindo o Tribunal a ser constituído em 05/08/2020, de harmonia com as disposições contidas no artigo 11.º, n.º 1, alínea c) do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro.
Foi proferido despacho a ordenar a notificação da Requerida para, no prazo de 30 dias, apresentar resposta e, caso quisesse, solicitar a produção de prova adicional e remeter ao Tribunal Arbitral cópia do processo administrativo dentro do prazo de apresentação da resposta.
Em 23/09/2020 foi apresentada a resposta pela Requerida, vindo o Tribunal em 10/10/2020 a proferir despacho de dispensa da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, atendendo tratar-se de processo sem trâmites diferentes dos normalmente seguidos no CAAD, não haver exceções ou questões prévias a decidir e concedeu um prazo de alegações de 20 dias, fixando o dia 30 de janeiro de 2021 para a prolação da decisão, devendo, até esta data, a Requerente fazer prova do pagamento da taxa de justiça subsequente, de acordo com o disposto no artigo 4.º n.º 3, do Regulamento de Custas.
Dentro do prazo concedido, as partes produziram as respetivas alegações, nas quais mantiveram os seus pontos de vistas que procuraram reforçar.
2. Da posição das Partes
Da posição da Requerente:
2.1. A Requerente começa por alegar que entende que as comissões que cobrou às várias instituições não estão sujeitas a Imposto do Selo, por não serem enquadráveis na verba 17.3.4 da TGIS, nos termos da lei em vigor até 31.03.2016, uma vez que, na redação vigente até 31 de março de 2016, era estabelecido: “Outras comissões e contraprestações por serviços financeiros 4%”.
2.2. Com a entrada em vigor, em 31 de março de 2016, da LOE para 2016, a redação da verba 17.3.4 passou a ter outra redação: “Outras comissões e contraprestações por serviços financeiros incluindo as taxas de pagamento baseadas em cartões 4%”, supostamente só aplicáveis aos factos posteriormente verificados após esta data.
2.3. Porém, a referida Lei do OE para 2016, no seu artigo 154.º estabeleceu que “As redações dadas ao n.º 1, n.º 3 e alínea b) do n.º 5, todos do artigo 2.º, ao n.º 8 do artigo 4.º, ao n.º 7 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo e à verba 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo têm carácter interpretativo”.
2.4. Desta forma, o legislador pretendeu que a verba 17.3.4 tivesse aplicação retroativa, contornando desta forma a proibição da retroatividade das leis fiscais.
2.5. A Requerente, considera, porém, que o caráter interpretativo que o legislador pretendeu dar à norma, não é admissível numa norma de incidência tributária, dado que viola o artigo 103.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa. Pelo que a redação da verba 17.3.4, só poderá ter aplicação a partir de 31 de março de 2016, sendo inconstitucional a sua aplicação a factos anteriores, pelo que as liquidações aqui em causa são ilegais.
2.6. Por outro lado considera ainda a Requerente que o quadro de incidência de Imposto do Selo sobre a TMI e comissões interbancárias cobradas pela utilização de caixas de pagamento automáticas apenas ficou completo com a introdução, pela Lei n.º 22/2017, da nova alínea h) do n.º 3 do artigo 3.º do Código do Imposto do Selo, o que permite concluir que as liquidações em causa são ilegais dado que o Requerente não poder ser considerado sujeito passivo de imposto quanto às comissões alusivas à TMI e comissões interbancárias, até à entrada em vigor da Lei n.º 22/2017.
2.7. Mas também, mesmo que não se concorde com os fundamentos já expostos, as referidas comissões estavam isentas de Imposto do Selo ao abrigo do regime geral previsto no artigo 7.º, n.º 1, alínea e), do CIS, na medida em que nenhuma das entidades se encontra posicionada no final do circuito económico. Em suporte do seu ponto de vista realça alguma doutrina e jurisprudência de Tribunais do CAAD que acolheram os pontos de vista por si propugnados.
Da posição da Requerida:
2.8. A Requerida entende que não assiste razão à Requerente uma vez que as comissões TMI e as comissões interbancárias cobradas pela utilização de Caixas Automáticas em operações efetuadas com cartões bancários encontrando-se sujeitas a IVA, embora dele isentas ao abrigo do artigo 9.º, verba 27), al. c); e por isso sujeitas a Imposto do Selo, nos termos do artigo 1.º, n.ºs 1 e n.º 2 do CIS, sendo os sujeitos passivos de imposto, nos termos da alínea b) do n.º 1 do referido normativo as “entidades concedentes do crédito e da garantia ou credoras de juros, prémios, comissões e outras contraprestações”.
2.9. A sua tributação está prevista na verba 17.3.4 da TGIS e não estão abrangidas pela isenção contemplada no artigo 7.º, n.º 1, al. e) do CIS, dado que as isenções previstas nesta norma se restringem especificamente a operações financeiras diretamente destinadas à concessão de crédito, o que não é o caso, remetendo para o Relatório da inspeção a comprovação da matéria de facto a considerar para a boa decisão da causa.
2.10. As comissões TMI e as comissões interbancárias cobradas pela utilização de Caixas Automáticas, encontram-se sujeitas a Imposto de Selo nos termos do artigo 1.º, n.º 1 do respetivo Código de Imposto do Selo, não sendo de aplicar o n.º 2 do referido artigo, sendo tributadas pela verba 17.3.4 da TGIS, que prevê expressamente a incidência de Imposto do Selo em comissões cobradas nas operações realizadas por ou com a intermediação de instituições de crédito, sociedades financeiras ou outras entidades.
2.11. Quanto à invocada aplicação retroativa da verba 17.3.4, apoiando-se no decidido pelo STA no Acórdão de 29/06/2016, Pº 01630/15 entende que uma norma declarada de “interpretativa” pelo legislador, assim deve ser entendida, uma vez que vem explicitar um conceito ou norma controvertidos, como é o caso, tal preceito tem efetivamente um carácter interpretativo, não havendo qualquer retroatividade legal.
2.12. Antes da norma do artigo 154.º da LOE de 31 de março de 2016 havia várias interpretações do quadro legal existente e o legislador veio tomar uma posição expressa, que classifica como “interpretativa”, e assim terá de ser entendida, ainda que, eventualmente, esse entendimento possa ser minoritário.
2.13. Não aceitar este ponto de vista seria violar um princípio constitucional essencial da separação de poderes, que impede o julgador de invadir a esfera reservada ao legislador, independentemente da sua concordância ou não, desde logo por falta de legitimidade democrática.
3. Matéria de facto
3.1. Factos provados:
a) O Requerente é uma instituição de crédito constituída de harmonia com Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro.
b) O Requerente está sujeito a IRC por força do artigo 2.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”), sendo tributado pelo regime especial de tributação dos grupos de sociedades, por aplicação do disposto nos artigos 69.º e 69.º-A do CIRC.
c) No exercício da sua atividade, a Requerente emite cartões bancários de débito e de crédito aos seus clientes, os quais passam a poder realizar, com os mesmos, operações de pagamento por via eletrónica em estabelecimentos comerciais que disponham de um terminal de pagamento automático, cobrando uma comissão designada de “taxa multilateral de intercâmbio” “TMI” em resultado da autorização concedida à realização da operação de pagamento através do TPA e ao reembolso do montante da compra pago ao estabelecimento comercial.
d) Nos anos de 2015 e 2016, o Requerente cobrou comissões respeitantes a TMI nos montantes de €2.197.029,39 e €1.573.456,41, respetivamente, sobre as quais não fez recair Imposto do Selo, por entender que estas comissões, cobradas a instituições financeiras, a ele não estavam sujeitas.
e) Ao abrigo da ordem de serviço n.º OI2018..., os Serviços de Inspeção Tributária da AT (“SIT”) efetuaram uma ação inspetiva externa de âmbito geral ao período de tributação de 2015, que no âmbito do imposto do selo, previsto na verba 17.3.4 TGIS, apuraram o montante de € 101 414,79 de imposto em falta, conforme notificação oportunamente realizada para se pronunciar sobre o Projeto de Relatório da Inspeção Tributária, no qual a ATA se propunha efetuar o referido apuramento.
f) Exerceu o direito de audição prévia discordando deste apuramento nos termos e fundamentos que servem também de suporte ao presente pedido de pronúncia, vindo posteriormente ser notificado do Relatório de Inspeção Tributária que manteve integralmente as correções já referidas.
g) Ao abrigo da ordem de serviço n.º OI2018..., os SIT efetuaram uma ação inspetiva externa de âmbito geral ao período de tributação de 2016, na sequência dessa ação de inspeção, foi o B... notificado para se pronunciar sobre o Projeto de Relatório da Inspeção Tributária, no qual a AT se propunha efetuar correções em sede de Imposto do Selo no montante €67.330,82, conforme notificação oportunamente realizada para se pronunciar sobre o Projeto de Relatório da Inspeção Tributária, no qual a ATA se propunha efetuar o referido apuramento, vindo posteriormente ser notificado do Relatório de Inspeção Tributária que manteve integralmente as correções já referidas.
h) Na sequência das correções efetuadas pela AT, foi o Requerente notificado das liquidações de Imposto do Selo n.º 2019..., no montante de €101.414,79 e 2019..., no montante de €67.330,82, referentes, respetivamente, aos anos de 2015 e 2016, bem como das respetivas liquidações de juros compensatórios, cujo montante total apagar ascende a €188.096,54, que o Requerente pagou com vista a evitar a instauração de processo de execução fiscal pela ATA.
i) Apesar do pagamento referido e por não concordar com as referidas liquidações, o Requerente apresentou, no dia 12.07.2019, reclamação graciosa que veio a ser totalmente indeferida, o que motivou a apresentação do presente pedido.
Não se provaram outros factos com relevância para a decisão da causa.
3.2. Factos não provados
Não se verificaram quaisquer factos que não tenham sido provados.
3.3. Fundamentação da matéria de facto provada
A convicção dos árbitros fundou-se nos documentos juntos aos autos pelas partes.
4. Matéria de direito
4.1. Objeto e âmbito do presente processo
A questão essencial de direito que se coloca neste processo é a de saber se as comissões que a Requerente cobrou resultantes da designada de taxa multilateral de intercâmbio ou TMI, nos anos de 2015 e 2016 estavam ou não sujeitas a imposto do selo.
4.2. Do Direito
4.2.1. Nos termos do Código do Imposto do Selo, artigo 1.º, n.º 1, o “imposto do selo incide sobre todos os atos, contratos, documentos, títulos, papéis e outros factos ou situações jurídicas previstos na Tabela Geral, incluindo as transmissões gratuitas de bens”.
4.2.2. Importa começar por analisar a evolução legislativa a que foi sujeita a verba 17.3.4. da TGIS, nos períodos em causa, i.e., 2015 e 2016.
4.2.3. A este respeito, salientamos que a redação em vigor pré orçamento do estado para 2016 era a seguinte:
17.3.4 – Outras comissões e contraprestações por serviços financeiros … 4%”
17 – Operações financeiras:
(…)
4.2.4. O Orçamento do Estado para 2016 (Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março), veio introduzir a seguinte redação:
“17.3.4 - Outras comissões e contraprestações por serviços financeiros, incluindo as taxas relativas a operações de pagamento baseadas em cartões – 4%”.
4.2.5. Desta feita, a norma de incidência foi alterada, passando a fazer referência expressa a “taxas relativas a operações de pagamento baseadas em cartões”.
4.2.6. A Lei do Orçamento do Estado para 2016 apenas entrou em vigor em 31.03.2016, contudo, nos termos já descritos acima, que nos termos do artigo 154.º da Lei do Orçamento do Estado para 2016, que referida redação tem “carácter interpretativo”.
4.2.7. Antecipando o que abaixo se fundamentará, entendemos que as normas interpretativas em matéria fiscal devem seguir o mesmo regime que quaisquer outras normas retroativas.
4.2.8. Como refere a Requerente, o quadro jurídico-tributário aplicável a operações financeiras parece não ser aplicável a operações baseadas em cartões.
4.2.9. Com efeito, são sujeitos passivos de Imposto do Selo as: (i) Entidades concedentes do crédito e da garantia ou credoras de juros, prémios, comissões e outras contraprestações; (ii) Instituições de crédito, sociedades financeiras ou outras entidades a elas legalmente equiparadas residentes em território nacional, que tenham intermediado operações de crédito, de prestação de garantias ou juros, comissões e outras contraprestações devidos por residentes no mesmo território a instituições de crédito ou sociedades financeiras não residentes; (iii) Entidades mutuárias, beneficiárias de garantia ou devedoras dos juros, comissões e outras contraprestações no caso das operações referidas na alínea anterior que não tenham sido intermediadas por instituições de crédito, sociedades financeiras ou outras entidades a elas legalmente equiparadas, e cujo credor não exerça a atividade, em regime de livre prestação de serviços, no território português. (Cfr.artigo 2.º, n.º 1, als. b), c) e d) do Código do Imposto do Selo)
4.2.10. Por outro lado, o encargo do imposto “[n]as restantes operações financeiras realizadas por ou com intermediação de instituições de crédito, sociedades ou outras instituições financeiras”, onde se incluem as comissões, é do “cliente”, das referidas instituições (Cfr.artigo 3.º, n.º 3, al. g) do Código do Imposto do Selo);
4.2.11. Isto porque a Requerente não cobra as comissões que aqui se discutem aos seus clientes.
Como resulta do Acórdão proferido no Processo n.º 103/2018-T, que acompanhamos, na redação vigente antes da entrada em vigor do Orçamento do Estado para 2016, as comissões “cobradas entre entidades bancárias, não eram enquadráveis na verba 17.3.4. da TGIS.
4.2.12. Na verdade, fazia-se referência a «operações financeiras» e a «outras comissões e contraprestações por serviços financeiros» e o artigo 3.º, n.º 3, alínea g) do CIS estabelecia que «considera-se titular do interesse económico» «nas restantes operações financeiras realizadas por ou com intermediação de instituições de crédito, sociedades ou outras instituições financeiras, o cliente destas».
Do conjunto destas normas, inferia-se que as «operações financeiras» a que se reportava a verba 17.3.4 seriam aquelas que são praticadas entre estas e os clientes, que são os titulares do interesse económico que, neste tipo de actos sujeitos a imposto do selo, constituía fundamento para imposição do encargo da tributação, nos termos do artigo 3.º.
Sendo assim, não haveria fundamento para tributar as comissões e contraprestações cobradas entre entidades bancárias para repartirem entre si as despesas necessárias para suportar o funcionamento do sistema de pagamentos automáticos (TMI), pois é manifesto quem nesses pagamentos interbancários não havia qualquer relevância do interesse dos clientes.
Por outro lado, no que concerne à utilização cartões bancários, estava vedado às instituições de crédito, «cobrar quaisquer encargos directos pela realização de operações bancárias em caixas automáticas» (artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 3/201, de 5 de Janeiro). Isto é, se é certo que no que concerne às operações em caixas automáticas (multibanco), havia prestação de serviços financeiros aos clientes de instituições bancárias, também o é que pela prestação destes não poderia haver comissões ou contraprestações enquadráveis na verba 17.3.4”.
Desta feita, a verba 17.3.4., na redação vigente antes da entrada em vigor do Orçamento do Estado para 2016, não abrangia a TMI nem as comissões interbancárias cobradas pela utilização de Caixas Automáticos em operações com cartões bancários.
Recuperando, uma vez mais, as palavras do Acórdão proferido no Processo n.º 103/2018-T “tem de se concluir que as alterações legislativas introduzidas pela Lei n.º 7-A/20116 e pela Lei n. 22/2017 não podem ser aplicadas à situação em apreço, por força da proibição constitucional da retroatividade da criação de impostos.
Na verdade, o artigo 103.º, n.º 3, da CRP estabelece que ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que tenham natureza retroactiva.
A lei interpretativa, integrando-se na lei interpretando, nos termos do artigo 13.º do Código Civil, tem forçosamente efeitos anteriores à sua vigência, pelo menos o de eliminar uma ou mais das interpretações possíveis da lei interpretada.”.
Conforme afirma OLIVEIRA ASCENSÃO “1) A lei é uma determinação, e não uma declaração de ciência. O legislador não sabe melhor qual o verdadeiro sentido da lei que qualquer outra pessoa. Dentro de uma posição objectivista, a fixação de um sentido da lei anterior como o único admissível é uma nova injunção. Seria ficção pretender que o sentido que o legislador agora impõe foi sempre o verdadeiro sentido da fonte.
2) Há retroactividade quando uma fonte actua obre o passado. Ora a lei retroactiva, se bem que não suprima a fonte anterior, não se confunde com ela. O título é necessariamente composto, engloba também a lei nova. Se a lei nova está a regular o passado, então é necessariamente retroactiva” (José de Oliveira Ascensão, O Direito - Introdução e Teoria Geral, Coimbra: Almedina pp. 563-564”
Desta feita, “A proibição constitucional de retroactividade das normas criadoras de obrigações fiscais que se retira do n.º 3 do artigo 103.º da CRP visa obstar a violações legislativas do princípio da segurança jurídica, nas suas vertentes de certeza na orientação das condutas dos contribuintes e de segurança dos efeitos criados por situações já ocorridas.
Poderá entender-se, na esteira da lição de BAPTISTA MACHADO, que nas situações em que a interpretação que é dada na lei nova vem fixar uma das interpretações possíveis da lei antiga com que os interessados podiam e deviam contar não é susceptível de violar expectativas seguras e legitimamente fundadas, pelo que não se verificam as razões que justificam a proibição da retroactividade. Como interpretações possíveis da lei antiga com que os interessados podiam e deviam contar não se poderão considerar aquelas que extravasam, restritiva ou extensivamente, o seu teor literal, pelo menos enquanto não houver posições doutrinais ou prática jurisprudencial que as adoptem, mas incluem-se aquelas que são viáveis à face do texto legal anterior numa mera interpretação declarativa.
É essencialmente neste sentido que tem decidido, recentemente, o Tribunal Constitucional, com o se pode ver pelo acórdão n.º 644/2017, cuja jurisprudência é reafirmada no acórdão n.º 92/2018:
Como se explicou no Acórdão n.º 267/2017, devido à integração da lei interpretativa na lei interpretada estatuída no artigo 13.º, n.º 1, do Código Civil, pode em certo sentido falar-se de uma retroatividade formal inerente a toda a lei interpretativa: há retroatividade, porque tal lei se aplica a factos e situações anteriores, e a mesma retroatividade é “formal”, visto que a lei, «vindo consagrar e fixar uma das interpretações possíveis da [lei anterior – cujo sentido e alcance não se podiam ter como certos –] com que os interessados podiam e deviam contar, não é suscetível de violar expectativas seguras e legitimamente fundadas» (cfr. Batista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1983, p. 246). Diferentemente, se a lei nova se pretende aplicar a factos e situações jurídicas anteriormente disciplinados por um direito certo, então este último é modificado, violando-se expectativas quanto à sua continuidade, e tal lei, na medida em que inove relativamente ao direito anterior, será substancial ou materialmente retroativa (cfr. idem, ibidem, p. 247).
Na ótica da tutela da confiança dos destinatários do direito, releva que a lei interpretativa formalmente retroativa apenas declara o direito preexistente; ao passo que a lei interpretativa substancialmente retroativa, ao modificar o direito preexistente, constitui direito novo. Pode suceder – e sucede com alguma frequência – que o legislador declare ou qualifique expressamente como “interpretativa” certa disposição de uma lei nova, mesmo quando essa disposição seja na realidade inovadora. Uma lei que modifique o direito preexistente – o mesmo é dizer, que constitua direito novo – sob a capa de “lei interpretativa” violará necessariamente uma eventual proibição de leis retroativas válida para o seu âmbito de aplicação material.
No caso em apreço, verifica-se uma situação em que a nova lei a que foi atribuída natureza interpretativa é verdadeiramente inovadora, pelo que aquele artigo 154.º da Lei n.º 7-A/2016 é materialmente inconstitucional, por ser incompaginável com a proibição de retroactividade que consta do artigo 103.º, n.º 3, da CRP, por estatuir uma aplicação retroactiva da alteração que aquela Lei introduziu na verba 17.3.4 da TGIS.
Por isso, por força do disposto no artigo 204.º da CRP, que estabelece que «nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados», tem de ser recusada a aplicação daquele artigo 154.º, bem como da nova redacção da verba 17.3.4..
Estando afastada a possibilidade aplicar a nova legislação, é de concluir, pelo que se referiu, que não se podem enquadrar na verba 17.3.4 da TGIS, vigente em 2014, a TMI e as comissões interbancárias cobradas pela utilização de Caixas Automáticos em operações com cartões bancários.
Pelo exposto, a correcção relativa à TMI e às comissões interbancárias cobradas pela utilização de Caixas Automáticos em operações com cartões bancários é ilegal, por enfermar de vício de violação de lei, que justifica a anulação da liquidação (…)”. (Cfr. Acórdão proferido no Processo n.º 103/2018-T).
5. Do pedido de juros indemnizatórios
Por último a Requerente pede a imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, o que determina o reembolso ao B... da quantia indevidamente liquidada e paga, bem como o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º da LGT.
De acordo com o disposto no artigo 24.º, n.º 1, alínea b) do RJAT «A decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, alternativa ou cumulativamente, consoante o caso:
(…)
b) Restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito. (…)».
No mesmo sentido, o artigo 100.º da LGT prevê que «A Administração está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros, nos termos e condições previstos na lei».
A doutrina e jurisprudência têm defendido que se enquadra no âmbito das competências dos tribunais arbitrais a fixação dos efeitos das suas decisões, nos mesmos termos previstos para a impugnação judicial, designadamente, quanto à condenação em juros indemnizatórios ou a condenação por indemnização por garantia indevida (cfr. Carla Castelo Trindade (2016), Regime Jurídico da Arbitragem Tributária Anotado, p. 121, e Jorge Lopes de Sousa (2013), Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, p. 116).
Com efeito, na autorização legislativa concedida ao Governo para aprovação do RJAT, constante do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril, proclama-se, indubitavelmente, a intenção de uma verdadeira alternatividade entre o processo judicial e o processo arbitral tributários, ali se lendo que “o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária”.
Assim, pese embora o artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão “declaração de ilegalidade” para definir a competência dos tribunais arbitrais tributários, não fazendo referência expressa a decisões constitutivas (anulatórias) e decisões condenatórias, deverá entender-se, de harmonia com a autorização legislativa supra transcrita e, bem assim, com os efeitos assacados às decisões arbitrais previstos no artigo 24.º do RJAT, que se compreendem nas competências dos tribunais arbitrais tributários os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais judiciais tributários em relação aos atos cuja apreciação de (i)legalidade se insere nas suas competências.
Deste modo, se apesar de o processo de impugnação judicial ser essencialmente um processo de mera anulação – conforme o disposto nos artigos 99.º e 124.º do CPPT – pode nele ser proferida condenação da administração tributária no pagamento de juros indemnizatórios e de indemnização por garantia indevida, idêntica conclusão deverá resultar no âmbito do processo arbitral tributário.
Quanto aos juros indemnizatórios, prevê o artigo 43.º, n.º 1, da LGT que «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido».
No caso sub judice, como ficou dito, o pedido da Requerente é assim julgado procedente no que se refere:
– ao Imposto do Selo liquidado respeitante ao ano de 2015, na parte referente à taxa multilateral de intercâmbio (“TMI”) e comissões interbancárias por operações com cartões em caixas automáticas, tendo-se concluído que tal liquidação adicional era ilegal;
– ao Imposto do Selo liquidado sobre a taxa multilateral de intercâmbio e sobre comissões interbancárias por operações com cartões em caixas automáticas, referente ao exercício de 2016, tendo-se concluído que tal liquidação adicional era ilegal.
Por outro lado, é manifesto que, na sequência da ilegalidade dessas componentes da liquidação adicional impugnada, há lugar ao reembolso do imposto indevidamente pago, por força dos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT, e 100.º da LGT, pois tal é essencial para «restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado».
A Requerente tem, ainda, direito ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, relativamente ao valor do imposto e juros pagos, contados desde a data em que tais valores foram indevidamente pagos até à data do processamento da respetiva nota de crédito.
Por seu turno, no que concerne à Taxa de Serviço do Comerciante, referente ao exercício de 2014, e à correção de Imposto do Selo no montante de €1.117.109,57, improcede o pedido da Requerente, absolvendo-se, nesta sequência, a Autoridade Tributária e Aduaneira no que se reporta ao respetivo pedido de restituição do imposto pago e respetivos juros indemnizatórios.
6. Decisão
Nestes termos, acorda neste Tribunal Arbitral em:
(i) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;
(ii) Anular a liquidação de Imposto do Selo n.º 2019..., no montante de €101.414,79 e 2019..., no montante de €67.330,82, referentes, respetivamente, aos anos de 2015 e 2016, bem como das respetivas liquidações de juros compensatórios;
(iii) Condenar a AT à respetiva restituição, com os correspondentes juros indemnizatórios, desde a data em que a Requerente efetuou o pagamento do imposto em causa nos autos até ao integral reembolso do montante pago.
7. Valor
Fixa-se o valor do processo em €165.054,77, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
8. Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 3.672,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa, 20 de janeiro de 2021
Os Árbitros,
(José Poças Falcão)
(Leonardo Marques dos Santos)
(Arlindo José Francisco)