DECISÃO ARBITRAL
I - Relatório
1. A..., titular do número de identificação fiscal..., residente na Rua ... n.º..., ..., ...-... Lisboa (doravante designada por “Requerente”) apresentou, em 03-07-2020, um pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do artigo 2.º n.º 1, alínea a) e do artigo 10.º, n.ºs 1 e 2 do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, previsto no Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66- B/2012, de 31 de Dezembro (doravante abreviadamente designado “RJAT”) e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
2. A Requerente pretende a pronúncia do Tribunal Arbitral com vista à declaração de ilegalidade e consequente anulação do ato de liquidação do Imposto Municipal sobre Transações Onerosas de Imóveis (IMT), identificado sob o n.º..., e, bem assim, do despacho do Chefe de Serviço de Finanças, de 30-01-2020, que indeferiu o pedido de revisão do ato tributário, ordenando-se o reembolso à Requerente da quantia indevidamente paga num valor total de € 24.206,40 (vinte e quatro mil duzentos e seis euros e quarenta cêntimos) acrescida ainda de juros indemnizatórios, desde a data do pagamento até à data do efetivo reembolso.
3. É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) (adiante designada por “Requerida”).
4. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira, em 06-07-2020.
5. Nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitro do tribunal arbitral singular o Exmo. Senhor Dr. Olívio Mota Amador que, no prazo aplicável, comunicou a aceitação do encargo.
6. O Requerente foi notificado, em 04-03-2020, da designação do árbitro, não tendo manifestado vontade de recusar a designação, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
7. De acordo com o disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Tribunal Arbitral foi constituído em 24-09-2020.
8. A Requerida foi notificada através do despacho arbitral, de 24-09-2020, para os efeitos previstos no artigo 17.º da RJAT.
9. A Requerida, em 27-10-2020, apresentou a Resposta bem como o Processo Administrativo.
10. O Tribunal Arbitral por despacho, de 29-10-2020, determinou: (i) dispensar a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, ao abrigo do princípio da autonomia do Tribunal na condução do processo e em ordem a promover a celeridade, a simplificação e a informalidade processuais, de acordo com o disposto nos artigos 19.º e 29.º, n.º 2, do RJAT, tendo em conta que não foi invocada matéria de excepção, requerida a produção de prova testemunhal nem outras diligências probatórias adicionais, nem existem questões que obstem ao conhecimento do pedido; (ii) notificar as partes para, caso pretendam proferir alegações escritas, deverão ser produzidas no prazo de 10 dias, com caracter sucessivo, a partir da notificação do presente despacho; (iii) indicar o dia 15 de dezembro de 2020 como prazo limite para a prolação da decisão arbitral; (iv) notificar a Requerente para proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente até à data indicada na alínea anterior.
11. A Requerente e a Requerida não apresentaram alegações.
12. O Tribunal Arbitral por despacho, de 06-01-2021, alterou a data limite para a prolação da decisão arbitral.
13. A posição da Requerente, de harmonia com o disposto no pedido de constituição do Tribunal Arbitral é, em síntese, a seguinte:
13.1. Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 78.º da Lei Geral Tributária (LGT), a revisão dos atos tributários, pela entidade que os praticou, pode ser efetuada por iniciativa da AT, no prazo de quatro anos após a liquidação, com fundamento em erro imputável aos serviços. A jurisprudência do STA tem sido unânime em considerar que a revisão do ato tributário pode ser impulsionada pelo contribuinte, tendo a AT o dever de a ela proceder, no caso de se verificarem os respetivos pressupostos legais. Também a doutrina tem sido unânime quanto a este entendimento. Assim, pelo facto de ter transcorrido o prazo de reclamação graciosa e de impugnação judicial do ato de liquidação, o contribuinte não fica impedido de pedir a revisão oficiosa e impugnar contenciosamente o ato de indeferimento desta.
13.2. Neste contexto, o pedido de revisão oficiosa utilizado pela Requerente foi o meio adequado de reação à liquidação de IMT, encontrando-se a AT adstrita à obrigação de apreciação daquele pedido. Daí a Requerente não se conformar com a fundamentação apresentada pela AT para sustentar o indeferimento do pedido de revisão de ato tributário, nomeadamente com base na inexistência de erro imputável aos serviços.
13.3. Em face do exposto, entende a Requerente que, existindo erro imputável aos serviços, o mérito do pedido de revisão de ato tributário deveria ter sido objeto de apreciação por parte da AT, e consequentemente, deveria o ato de liquidação de IMT ter sido anulado.
13.4. A liquidação de IMT efetuada pela AT por via do Ofício n.º ..., de 9 de janeiro de 2018, teve como fundamento a inaplicabilidade da isenção de IMT nos termos do artigo 270.º do CIRE, pelo facto de a mesma ter sido concedida “como tratando-se da aquisição efetuada a uma empresa, quando na realidade o alienante é pessoa singular”.
13.5. De facto, a isenção de IMT prevista no artigo 270.º do CIRE consubstancia um benefício fiscal e a sua concessão configura um ato constitutivo de direitos do beneficiário, neste caso da Requerente. Ainda que se conceda que a AT tem fundamento para revogar a isenção concedida, o que apenas por mero dever de patrocínio se equaciona, para além de representar uma limitação dos direitos adquiridos da Requerente, tal revogação estaria sempre sujeita ao prazo legalmente previsto para o efeito.
13.6. Ora, conforme resulta do disposto nos artigos 167.º, n.º 2, alínea c), e 168.º, n.º 2, do Código do Procedimento Administrativo (CPA) tratando-se a isenção de IMT, concedida à Requerente, de um ato administrativo constitutivo de direitos, o mesmo apenas poderia ter sido anulado pela AT dentro do prazo de um ano após o momento em que o mesmo foi praticado.
13.7. Efetivamente, a isenção de IMT, nos termos do artigo 270.º do CIRE, constitui um benefício dependente de reconhecimento, ainda que automático, com base em procedimento declarativo – em conformidade com o disposto no artigo 5.º do EBF –, e não um benefício puramente automático. Por sua vez, o reconhecimento, por parte da AT, do benefício fiscal em sede de IMT, nos termos do artigo 270.º do CIRE, em resultado da apresentação da declaração Modelo 1, configurou um ato administrativo constitutivo de direitos na esfera da Requerente. Nesta medida, dúvidas não deverão restar quanto ao facto de o reconhecimento automático do benefício fiscal em causa reunir os elementos exigíveis para ser considerado um ato administrativo nos termos do disposto no artigo 148.º do CPA, tratando-se, inclusivamente, de um ato administrativo constitutivo de direitos em conformidade com o disposto no n.º 3 do artigo 267.º do CPA
13.8. Em face do exposto, tendo a isenção de IMT sido concedida em 31/05/2016, a respetiva anulação apenas poderia ocorrer até 31/05/2017, pelo que a liquidação de IMT constante do Ofício n.º..., de 9 de janeiro de 2018, ocorreu já bastante tempo depois do termo do prazo de um ano para a anulação do ato de concessão de isenção de IMT.
13.9. Assim, tendo a AT revogado a concessão do benefício após o decurso do prazo de um ano, este ato de revogação e a respetiva liquidação adicional de IMT são ilegais, por violação do disposto no n.º 2 do artigo 168.º do CPA, o que determina a sua anulação.
13.10. Atendendo ao disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 100.º da LGT e à competência dos tribunais arbitrais no pagamento de juros indemnizatórios, a Requerente entende ter direito a juros indemnizatórios, pelo pagamento indevido da liquidação de IMT, que se revela ilegal.
14. A posição da Requerida, expressa na resposta, pode ser sintetizada no seguinte:
14.1. A liquidação impugnada não enferma de qualquer erro de facto ou de direito, pois foi efetuada de acordo com o previsto na lei, designadamente quanto ao benefício fiscal em causa.
14.2. A Requerente não aponta nenhum erro, à atuação dos serviços da Requerente nem vem alegada a existência de qualquer erro na atuação da Requerida, verifica-se que a AT atuou de acordo com a lei, ao liquidar o imposto após verificar que não estavam verificados os pressupostos de atribuição de isenção de imposto. Em todas estas decisões o entendimento foi no sentido de considerar que a referida isenção “não abrange a venda de prédio urbano destinado à habitação que pertence a pessoa singular, não bastando para beneficiar daquela isenção o facto de se tratar de atos de venda praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente, antes havendo de demonstrar-se que o bem vendido integra o ativo de uma empresa”.
14.3. Não há, portanto, qualquer dúvida que a liquidação de IMT é legal por não estarem verificados os pressupostos da isenção estabelecida no artigo 270.º do CIRE. Donde, forçoso é concluir que não se verifica o requisito da revisão oficiosa de atos de liquidação, que é a existência de erro imputável aos serviços.
14.4. Contrariamente ao invocado pela Requerente, não existiu qualquer ato constitutivo de direitos, porque, o benefício constante do 270.º do CIRE, é um benefício automático, nos termos do artigo 5º do EBF. O artigo supra citado determina que os benefícios fiscais automáticos são os que resultam direta e imediatamente da lei, por contraposição aos benefícios dependentes de reconhecimento, que pressupõem um ou mais atos posteriores de reconhecimento.
14.5. Da análise das disposições legais aplicáveis conclui-se que a isenção do artigo 270.º do CIRE é automática, decorre diretamente da lei e não existe uma análise prévia nem verificação prévia dos pressupostos de isenção, nem um verdadeiro ato constitutivo de direito à isenção. O que acontece é que o contribuinte apresenta uma declaração prevista no n.º 1 do artigo 19.º do CIMT, e só posteriormente é que a AT fiscaliza, analisando a verificação dos pressupostos da isenção, conforme dispõe o artigo 7.º do EBF.
14.6. Este normativo determina que o reconhecimento dos benefícios está sujeito a controlo e após esse controlo, é que é aferida a verificação dos pressupostos da isenção. Pelo que, em rigor, o documento emitido a fim de ser realizada a escritura pública de compra e venda, não é uma verdadeira liquidação nem um documento de isenção, pelo que não há nesse momento, a constituição de um direito ao benefício fiscal.
14.7. Ora, esta liquidação de imposto não pode ser considerada uma revogação de isenção, porque estando em causa um benefício automático, o procedimento ocorrido posteriormente à efetiva fiscalização dos pressupostos indicados na declaração como fundamento do benefício configura-se como liquidação e não ato administrativo revogatório de ato anterior concedente de benefício fiscal.
14.8. Pelo exposto, no caso, não se verificando os pressupostos legais para a requerente poder beneficiar da isenção de IMT, nos termos do n.º 2 do artigo 270.º do CIRE, a AT não podia deixar de liquidar o imposto devido, desde que respeitado o prazo de caducidade, que, no caso dos impostos de obrigação única, como o é o IMT, se conta da data em que o facto tributário ocorreu (cfr. artigo 45.º, n.ºs 1 e 4, da LGT).
14.9. Conclui-se assim que, estando ultrapassado o prazo de revisão oficiosa por iniciativa do sujeito passivo no prazo de reclamação administrativa previsto no artigo 68.º e seguintes do CPPT, e não existindo erro ou vício na liquidação, nem erro imputável aos serviços, tal como foi exposto anteriormente, não estão verificados os pressupostos do artigo 78.º, n.º 1, da LGT para ser possível a revisão oficiosa, no prazo de quatro anos, pela entidade que os praticou.
14.10. Verifica-se, pois, no caso em apreço, que a AT se limitou a cumprir, de acordo com o princípio da legalidade, previsto no artigo 266.º da Constituição da Republica Portuguesa (CRP) e concretizado nos artigos 55.º LGT e no artigo 3.º do CPA, o determinado em sede tributação sobre o património. Por não se verificar qualquer erro por parte dos serviços na aplicação da lei aos factos em causa, não há lugar ao pagamento de juros indemnizatórios.
II – Saneamento
15. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.ºs 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 1, do RJAT.
16. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas, de acordo com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
17. Não foram suscitadas exceções de que cumpra conhecer. Não se verificam nulidades nem quaisquer outras circunstâncias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
Nestes termos, o Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objeto do processo.
III - Matéria de facto
18. Factos dados como provados
Com relevo para a apreciação e decisão das questões suscitadas dão-se como assentes e provados os seguintes factos:
A) Em 15-06-2016, a Requerente adquiriu a fração autónoma designada pela letra “M”, correspondente ao 6.º andar, destinado a habitação, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal sito em ..., na Rua ..., números ... a ..., freguesia de ..., Concelho de Lisboa, inscrito na matriz predial sob o artigo ... (vd., n.º 12 do pedido de pronuncia arbitral e n.º 6.º, a), da resposta da AT).
B) A aquisição da fração autónoma, identificada na alínea anterior, ocorreu no âmbito de processo de insolvência de B..., pessoa singular titular do número de identificação fiscal ..., que correu termos nos Juízos Cíveis de Lisboa, ... Juízo Cível, sob o n.º .../13... YXLSB (vd., n.º 13 do pedido de pronuncia arbitral e n.º 6.º, b), da resposta da AT).
C) Relativamente à aquisição da fração autónoma, identificada na alínea A), a AT emitiu, em 31-05-2016, o documento n.º ..., no montante de € 0,00 (zero euros), o qual refere: “Liquidação: ... Valor Declarado: €450.000,00 Benefícios: 60 – Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – Transmissões integradas no âmbito da liquidação da massa insolvente (Art.º 270.º, n.º 2 do DL 53/04), 100% sobre a matéria coletável Matéria Colectável: €450.000,00 Taxa: 6,50% Coleta €0,00” (vd., documento n.º 2 anexo ao pedido de pronuncia arbitral).
D) A Requerente apresentou, em 15-06-2016, no Serviço de Finanças de ... a declaração Modelo 1 do IMT n.º 2016/..., relativa à aquisição da fração autónoma identificada na alínea A), na qual constava a isenção de IMT (vd., n.º 6.º, c), da resposta da AT).
E) Em 11-01-2018, a Requerente foi notificada, através do ofício n.º..., de 09-01-2018, do Serviço de Finanças de ..., para, nos termos dos artigo 31.º, n.ºs 2 e 4 do CIMT e 36.º do CPPT solicitar, no prazo de 30 dias, as guias para pagamento da quantia de € 24.040,68 de IMT, calculado com base na alínea a) do n.º 1 do artigo 17.º do CIMT com o fundamento seguinte: “A referida liquidação adicional teve por base a liquidação de IMT com registo n.º 2016/.... Foi concedido o benefício de IMT ao abrigo do artigo 270.º do CIRE (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas) como tratando-se da aquisição efetuada a uma empresa, quando na realidade o alienante é pessoa singular.” (vd., documento n.º 3 anexo ao pedido de pronuncia arbitral).
F) A AT emitiu, em 25-06-2018, a nota de cobrança n.º 2018... relativa ao ato de liquidação de IMT, identificado na alínea anterior, no montante de € 24.040,68 (vd., documento n.º 4 anexo ao pedido de pronuncia arbitral).
G) A Requerente não efetuou o pagamento do IMT no prazo legal e a AT instaurou, em 27-07-2018, o processo de execução fiscal para cobrança coerciva da referida dívida, com o n.º ...2018... (vd., documento n.º 5 anexo ao pedido de pronuncia arbitral e n.º 6.º, e), da resposta da AT).
H) A Requerente efetuou o pagamento do IMT em 23-08-2018 (vd., documento n.º 4 anexo ao pedido de pronuncia arbitral e n.º 6.º, e), da resposta da AT).
I) A Requerente apresentou, em 31-08-2018, um pedido de pronúncia arbitral no CAAD, tendo o Tribunal Arbitral sido constituído em 08-11-2018, e o processo corrido os seus trâmites sob o n.º 416/2018-T (vd., documento n.º 6 anexo ao pedido de pronuncia arbitral).
J) A Requerente foi notificada, em 08-05-2019, da decisão arbitral proferida, em 24-04-2019, no processo identificado na alínea anterior, com o seguinte teor: “Assim, decide o Tribunal arbitral julgar verificada a exceção dilatória de caducidade do direito de ação /intempestividade do pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, absolver a Requerida da instância.” (vd., n.º 21.º do pedido de pronuncia arbitral e documento n.º 6 anexo ao referido pedido).
K) A Requerente apresentou, em 06-09-2019, o pedido de revisão oficiosa do ato tributário da liquidação de IMT, identificado na alínea E), nos termos do disposto no artigo 78.º da LGT, que recebeu o n.º ... (vd., documento n.º 7 anexo ao pedido de pronuncia arbitral).
L) O pedido de revisão oficiosa, identificado na alínea anterior, foi indeferido por despacho do Chefe do Serviço de Finanças, ao abrigo de delegação de competências, proferido em 30-01-2020, e notificado à Requerente através do Ofício n.º..., do Serviço de Finanças de ..., de 04-02-2020 (vd., fls. 36 a 38 do Processo Administrativo junto aos presentes autos arbitrais).
19. Fundamentação da matéria de facto
Relativamente à matéria de facto, atendendo ao disposto no artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e no artigo 607.º, n.º 3, do Código do Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e), do RJAT, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da matéria não provada.
Assim, de acordo com o disposto no artigo 596.º do Código do Processo Civil (CPC), aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual foi estabelecida tendo em conta as questões de Direito suscitadas.
Tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT, a prova documental, junta aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
Na formação da convicção do Tribunal quanto à prova foram ainda relevantes o processo administrativo instrutor bem como os demais documentos juntos aos autos e que o Tribunal analisou criticamente em conjugação com as posições das partes espelhadas nos respetivos articulados.
Por fim, importa referir que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras ou, em qualquer caso, cuja apreciação seria inútil (vd., artigo 608.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
IV. Matéria de Direito
20. No caso em análise as principais questões decidendas são duas. Primeira, saber se a isenção de IMT, prevista no n.º 2 do artigo 270.º do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, (adiante abreviadamente designado por “CIRE”) abrange as aquisições de bens imóveis decorrentes de processos de liquidação da massa insolvente de pessoas singulares. Segunda, saber se a liquidação adicional de IMT, constante dos autos, constitui a revogação de um ato de concessão de benefício fiscal previsto no n.º 2 do artigo 270.º do CIRE.
Além destas questões, importa, por fim, apurar se são devidos juros indemnizatórios à Requerente.
Cumpre apreciar.
21. Relativamente à primeira questão decidenda a Requerente alega a sua discordância com a interpretação de que a isenção de IMT prevista no n.º 2 do artigo 270.º do CIRE não se aplica a operações no âmbito de insolvência pessoal (vd., n.º 49.º do pedido de pronuncia arbitral). O artigo 270.º, n.º 2, do CIRE dispõe o seguinte :
“Estão igualmente isentas de imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis os actos de venda, permuta ou cessão de empresa ou de estabelecimentos desta integrados no âmbito de planos de insolvência ou de pagamentos ou de recuperação ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente”.
21.1. O teor literal do n.º 2 do artigo 270.º do CIRE é muito claro e determina que a isenção de IMT pressupõe que as transmissões ocorram no âmbito de um processo de insolvência e incidam apenas sobre os imóveis da empresa ou de estabelecimentos. Neste contexto, não se pode, por via interpretativa, incluir no âmbito da norma as vendas de bens imóveis de pessoas singulares. Por outro lado, tratando-se de uma norma que consagra um benefício fiscal tem natureza excecional e não permite a aplicação analógica que, neste caso, se teria de fazer para que a isenção pudesse ser aplicada ao caso descrito nos presentes autos .
21.2. A este respeito, o entendimento jurisprudencial tem sido uniforme no sentido de que “(…)a referida isenção não abrange a venda de prédio urbano destinado à habitação, que pertence a pessoa singular, não bastando para beneficiar daquela isenção o facto de se tratar de actos de venda praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente, independentemente da mesma pertencer a pessoa singular ou colectiva (entidade empresarial)” (vd., Acordão do Supremo Tribunal Administrativo, de 03-07-2013, proferido no processo n.º 0765/13).
21.3. No mesmo sentido se tem pronunciado a jurisprudência do CAAD, designadamente nas decisões arbitrais proferidas no âmbito dos processos n.ºs 649/2015-T, 512/2016-T, 514/2016-T e 518/2016-T.
21.4. A isenção de IMT, prevista no artigo 270.º, n.º 2, do CIRE, não é aplicável à venda de bens imóveis de pessoas singulares. De acordo com a factualidade provada nos presentes autos arbitrais a Requerente adquiriu no âmbito de um processo de insolvência um imóvel destinado à habitação pertencente a uma pessoa singular e não uma empresa, (vd., alíneas A) e B) do n.º 18 supra). Em consequência, a transmissão descrita nos presentes autos não é subsumível à previsão do n.º 2 do artigo 270.º do CIRE.
21.5. A Requerente refere também, no n.º 48.º do pedido de pronúncia arbitral, que a liquidação de IMT sobre a transmissão do imóvel, identificada nos autos, viola diversos princípios constitucionais, mas depois não demonstra a existência de qualquer inconstitucionalidade.
21.6. Em conclusão, ficou provado nos presentes autos arbitrais que o prédio adquirido pela Requerente consta na matriz como prédio para habitação e fazia parte do património de uma pessoa singular, pelo que não fica abrangido pela isenção de IMT prevista no n.º 2 do artigo 270.º do CIRE. Assim, improcede o alegado pela Requerente neste ponto.
22. A segunda questão decidenda respeita a saber se a liquidação adicional de IMT, constante dos autos, constitui a revogação de um ato de concessão do benefício fiscal previsto no n.º 2 do artigo 270.º do CIRE. A Requerente alega que a AT para revogar a referida isenção teria de respeitar o disposto nos artigos 167.º, n.º 2, alínea c), e 168.º, n.º 2, do Código de Procedimento Administrativo (CPA). Assim, por se tratar da revogação de um ato administrativo constitutivo de direitos, só podia ser anulado dentro do prazo de um ano, após o momento em que o mesmo foi praticado.
22.1. Nos termos do n.º 1 do artigo 5.º do EBF os benefícios fiscais automáticos “(…) resultam directa e imediatamente da lei” enquanto os benefícios fiscais dependentes de reconhecimento “(…) pressupõem um ou mais actos posteriores de reconhecimento”. Atendendo ao exposto, verifica-se que a isenção do IMT ao abrigo do n.º 2 do artigo 270.º do CIRE é um benefício fiscal automático, porque a sua concessão decorre diretamente do teor da norma e não pressupõe atos de reconhecimento ou análise prévia dos respetivos pressupostos.
22.2. Sobre este ponto é útil transcrever o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 13-09-2017, proferido no processo n.º 01126/16, quando afirma:
“ Inexistindo, no caso em análise, um acto administrativo a conceder um benefício fiscal, isto é, um acto administrativo em matéria tributária sujeito ao prazo de revogação de actos administrativos constitutivos de direitos previsto no art.º 104º do CPA, não pode, naturalmente, ocorrer a violação desta norma.
O que, no caso, se verificou foi que os sujeitos passivos, ao darem cumprimento ao dever declarativo imposto pelo art.º 19º do CIMT, fizeram operar, de forma directa e automática, a isenção de tributação ao declararem que a aquisição das frações se destinava à instalação de empreendimento turístico nos termos previstos no nº 1 do art.º 20 do DL 423/83, isto é, ao declararem a existência de uma realidade que faz automaticamente espoletar a isenção. O que levou o serviço de finanças a emitir documento único de cobrança (DUC) com o valor de 0,00 euros, atenta a inexistência de obrigação de imposto perante o teor dessa declaração e a necessidade de emissão de DUC para sua apresentação junto do notário, em conformidade com o disposto no art.º 49º do CIMT.
Mas vindo a administração tributária a verificar, posteriormente, através de acção inspectiva, que a aquisição das frações não se destinava, afinal, à declarada instalação de empreendimento turístico, e que, por conseguinte, não ocorriam os pressupostos para a isenção de que aqueles haviam beneficiado de forma automática mas indevida, a administração tinha o poder/dever de proceder, como procedeu, à liquidação do tributo devido, por não ter caducado o direito a essa liquidação à luz da norma que estabelece o prazo para o efeito (“oito anos seguintes à transmissão ou à data em que a isenção ficou sem efeito”– cfr. art.º 35º do CIMT), não havendo, por conseguinte, que convocar quaisquer normas e prazos previstos no CPA.
E ainda que se considerasse que ocorreu um prévio acto de liquidação ou de autoliquidação para efeitos de emissão do documento de cobrança de IMT (“a zeros” na expressão dos impugnantes), o certo é que esse acto se limitou a assimilar e a fazer actuar a isenção que decorria, de forma automática, da declaração fiscal dos sujeitos passivos. O que nunca poderia impedir a administração tributária de proceder, posteriormente, a uma liquidação correctiva/adicional, tendo em conta que dispõe, para o efeito, de um prazo de quatro anos contado da liquidação a corrigir (cfr. art. 31º, nº 3, do CIMT), não havendo, por conseguinte, que convocar as normas contidas nos arts. 78º e 79º da Lei Geral Tributária.”
O entendimento expresso no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, supra transcrito, embora respeite à isenção de IMT a que se refere o artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 423/83, de 5 de dezembro, sufraga para efeitos de fundamentação a posição deste Tribunal no caso em análise.
22.3. Importa salientar que a concessão automática do benefício fiscal não significa ausência de verificação dos pressupostos do mesmo. Conforme resulta do disposto no n.º 1 do artigo 7.º do EBF, todas as pessoas, singulares ou coletivas, a quem sejam concedidos benefícios fiscais automáticos ficam sujeitas à fiscalização da AT e das demais entidades competentes, para controlo da verificação dos pressupostos dos benefícios fiscais respetivos e do cumprimento das obrigações impostas aos titulares do direito aos benefícios. Além disso, de acordo com o previsto na alínea d) do n.º 8 do artigo 10.º do CIMT, no caso das isenções de reconhecimento automático constantes de legislação extravagante ao CIMT compete ao serviço de finanças onde for apresentada a declaração, prevista no n.º 1 do artigo 19.º do CIMT, proceder à verificação dos seus pressupostos. Assim, compete à AT apurar se os factos declarados e que serviram de base à não liquidação do IMT se verificaram nos termos e com o alcance previstos na lei.
22.4. Considerando que a transmissão descrita nos presentes autos não é subsumível à previsão do n.º 2 do artigo 270.º do CIRE, a AT, no âmbito da fiscalização prevista n.º 1 do artigo 7.º do EBF e da alínea d) do n.º 8 do artigo 10.º do CIMT, concluiu que não se encontravam verificados os pressupostos para que a Requerente pudesse beneficiar da isenção prevista no n.º 2 do artigo 270.º do CIRE e sujeitou a aquisição do imóvel à tributação em sede de IMT, de acordo com as normas legais aplicáveis.
22.5. O procedimento tributário obedece a princípios e regras específicas, e, nesse âmbito a AT encontra-se vinculada aos prazos e às regras previstas para o procedimento tributário, nomeadamente ao respeito pelo prazo de caducidade da liquidação do imposto , o qual foi observado no presente caso. Nestes termos, o Tribunal Arbitral entende que não se vislumbra qualquer nulidade do ato ou anulabilidade por violação das regras aplicáveis ao procedimento tributário, não se aplicando ao caso o disposto nos artigos 167.º, n.º 2, alínea c), e 168.º, n.º 2, do CPA.
22.6. Em suma, o automatismo associado à isenção a que se refere o n.º 2 do artigo 270.º do CIRE não impede que a AT proceda à fiscalização para controlo da verificação dos respetivos pressupostos. Ora, foi justamente o que fez a AT. Além disso, atendendo ao exposto (vd., n.º 21.6. supra) a AT não podia deixar de liquidar o imposto devido, desde que respeitasse, como sucedeu, o prazo de caducidade do direito à liquidação do imposto.
Também aqui não assiste razão à Requerente e, nesta parte, deve improceder o pedido de pronúncia arbitral.
23. A Requerente procedeu ao pagamento da liquidação em causa nos presentes autos arbitrais (vd., alínea H) do n.º 18 supra) e solicita que lhe seja restituído o montante pago e que também que lhe seja reconhecido o direito a juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43.º da LGT.
Nos termos do n.º 1 do artigo 43.º da LGT, são devidos juros indemnizatórios "quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.” Conforme decorre do artigo 24.º, n.º 5, do RJAT, o direito aos mencionados juros pode também ser reconhecido no processo arbitral.
A condição necessária para a atribuição dos juros indemnizatórios consiste na demonstração da existência de erro sobre os pressupostos de facto ou de direito imputável aos serviços da Administração Fiscal.
Tendo este Tribunal concluído que o ato tributário contestado não enferma de qualquer vício, consequentemente, nos termos do disposto no artigo 43.º da LGT, não tem a Requerente direito a juros indemnizatórios.
V – Decisão
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:
a) Julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral e absolver a Requerida do pedido, com todas as consequências legais;
b) Condenar a Requerente no pagamento das custas do presente processo no montante abaixo indicado.
VI - Valor do Processo
Atendendo ao disposto nos artigos 32.º do CPTA, 306.º, n.º 2, do Código do Processo Civil e 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e no artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT) fixa-se o valor do processo em € 24.206,40 (vinte e quatro mil duzentos e seis euros e quarenta cêntimos).
VII - Custas
O montante das custas é fixado em € 1.530,00 (mil quinhentos e trinta euros) a cargo da Requerente, nos termos da Tabela I do RCPAT, em cumprimento do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, bem como do disposto no artigo 4.º, n.º 4, do RCPAT.
Notifique-se.
Lisboa, Centro de Arbitragem Administrativa, 20 de janeiro de 2021
O Árbitro
(Olívio Mota Amador)