Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 32/2020-T
Data da decisão: 2021-01-05  IRS  
Valor do pedido: € 7.261,80
Tema: IRS – reinvestimento – prova da habitação própria e permanente.
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Sumário:

 

O regime de exclusão da tributação das mais-valias previsto no artigo 10.º, n.º 5, do Código do IRS, repousa sobre a qualidade do imóvel alienado enquanto “habitação própria e permanente” do sujeito passivo ou do agregado familiar respetivo. A lei não faz depender a aplicação do regime da coincidência entre a habitação própria e permanente e o domicílio fiscal. Contudo, quando estes são diferentes, torna-se necessário provar, para se poder beneficiar da aplicação do regime, que a habitação própria e permanente era, de facto, no imóvel alienado e cuja alienação gerou a realização de mais-valias.

 

Decisão Arbitral

 

                A árbitro Raquel Franco, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral, constituído em 06.07.2020, decide nos termos que se seguem:

          

                1. Relatório

 

A..., contribuinte n.º..., residente na Rua..., n.º..., ...-... Portela, (doravante, o "Requerente") apresentou pedido de pronúncia arbitral ao abrigo do artigo 2.º, n.º 1, alínea a), 3.º, n.º 1, 5.º, n.º 1, parte final e n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 10.º, n.º 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT) e, bem assim, do artigo 11.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 81/2018, de 15 de Outubro, tendo em vista a anulação da liquidação de IRS n.º 2019..., referente ao ano de 2015, no valor de € 7.261,88 (sete mil duzentos e sessenta e um euros e oitenta e oito cêntimos).

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “AT” ou simplesmente “Autoridade Tributária”).

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 06.07.2020.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular a signatária, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 10.03.2020, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação, nos termos conjugados das alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral foi constituído em 06.07.2020.

A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, em que defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.

Depois de o tribunal ter solicitado a apresentação de prova documental adicional e de o Requerente ter respondido a este pedido juntando alguma documentação adicional e prestando alguns esclarecimentos, foi marcada, através de despacho de 09.11.2020, a inquirição de testemunhas para o dia 04.01.2021. Neste dia realizou-se a referida inquirição (tendo o mandatário do Requerente prescindido da testemunha José Serras, pelo que foram inquiridas apenas as restantes três indicadas com o pedido de pronúncia arbitral). Na mesma reunião foram também apresentadas alegações orais pelas Partes, prorrogado o prazo para prolação da decisão arbitral por dois meses e advertido o Requerente de que deveria proceder ao pagamento da taxa de arbitragem subsequente.

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º, e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT e é competente.

As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades.

 

2. Matéria de facto

2.1. Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

 

A.           O Requerente entregou a declaração de rendimentos, modelo 3, de IRS referente ao ano de 2015, preenchendo o anexo G da referida declaração com a informação de que, no mês de dezembro, havia alienado o imóvel correspondente ao ... Esquerdo do n.º ... da ..., em Lisboa, pelo valor de € 102.500, o qual havia sido adquirido no ano de 2009 pelo valor de € 37.955,25.

B.            Declarou ainda, na mesma declaração, a intenção de proceder ao reinvestimento do valor de realização.

C.            Com referência ao ano de 2016, o Requerente entregou também a declaração de rendimentos modelo 3 com o Anexo G, declarando o reinvestimento do valor de € 92.500 nesse ano.

D.           A entrega dessa declaração de rendimentos referente ao ano de 2016 deu origem a um processo de divergência em que foi também incluída a declaração de rendimentos do ano de 2015.

E.            No âmbito do procedimento de gestão e análise de divergências relativo ao Anexo G da declaração modelo 3 de IRS do ano de 2016, a AT promoveu uma alteração da liquidação desse ano, tendo notificado o Requerente da mesma.

F.            O Requerente exerceu o direito de audição prévia relativamente à alteração à declaração de IRS de 2016 no dia 04.12.2017.

G.           Apesar de não ter sido feita nenhuma alteração ao IRS de 2015, a declaração desse ano foi “reliquidada” por ter sido alterada a declaração de 2016.

H.           A AT não promoveu a audição prévia do contribuinte relativamente à liquidação de IRS de 2015.

I.             Foi oficiosamente emitida pela Autoridade Tributária e Aduaneira a liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) n.º 2019..., dirigida ao Requerente, referente ao ano de 2015, no montante de € 7.261,88.

J.             O Requerente foi notificado da liquidação de imposto supra mencionada no dia 12.11.2019.

K.            O Requerente efetuou o pagamento desta liquidação no dia 16.12.2019.

L.            No dia 16.01.2020, o Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo.

M.          O Requerente casou com ... no dia 18.07.2009, tendo ido viver nesse ano para a ..., n.º ... – ..., em Lisboa, com a sua então mulher.

N.           Em 12.03.2012, o Requerente alterou o seu domicílio fiscal dessa morada para a morada correspondente à casa dos seus pais, sita na Rua ..., ..., ..., ..., ..., no ... .

O.           O casal separou-se e veio a divorciar-se em 09.04.2015 através de sentença dessa data transitada em julgado no dia 18.05.2015.

P.            O Requerente continuou a habitar na referida morada após a separação e divórcio, havendo testemunhas que atestam que vivia nessa morada em abril e agosto de 2015 e uma outra que atesta que lá viveu até vender a casa (em dezembro de 2015) e se mudar para a sua habitação subsequente, na Portela.

 

2.2. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto

 

Não há factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.

A fixação da matéria de facto baseia-se nos documentos juntos pelo Requerente, nos documentos que constam do processo administrativo e nos factos relatados pelas testemunhas. Todas as testemunhas aparentaram depor com isenção e com conhecimento dos factos que relataram.

 

3. Matéria de direito

 

A questão central carreada pelas Partes a este Tribunal Arbitral versa sobre a apreciação da legalidade do ato de liquidação de IRS de 2015, emitido pela AT ao Requerente, tendo em conta o regime legal de exclusão de tributação de mais-valias imobiliárias previsto no artigo 10.º, n.º 5, do CIRS.

 

Em suma, e deixando agora de parte aspetos relativos ao procedimento de liquidação suscitados pelo Requerente, a questão de direito submetida a este Tribunal é a de saber se, não tendo o Requerente o seu domicílio fiscal no imóvel que vendeu em 2015 e que gerou as mais-valias abstratamente sujeitas a tributação, pode, ainda assim, beneficiar daquele regime.

 

A questão de facto implicada naquela questão de direito é a de saber se, admitindo que o Requerente pode beneficiar do regime legal em casa, logrou fazer prova de que, efetivamente, usava o imóvel em causa como sua habitação própria e permanente antes de o vender.

 

À data dos factos, a redação dos n.ºs 5, alínea a) e 6, alínea a) do artigo 10.º do Código do IRS, normas que enunciam os requisitos da delimitação negativa da incidência de IRS sobre os rendimentos de mais-valias, era a seguinte:

 

“Artigo 10.º - Mais-Valias (…)

5 - São excluídos da tributação os ganhos provenientes da transmissão onerosa de imóveis destinados a habitação própria e permanente do sujeito passivo ou do seu agregado familiar, nas seguintes condições:

a) Se, no prazo de 36 meses contados da data de realização, o valor da realização, deduzido da amortização de eventual empréstimo contraído para a aquisição do imóvel, for reinvestido na aquisição da propriedade de outro imóvel, de terreno para a construção de imóvel, ou na construção, ampliação ou melhoramento de outro imóvel exclusivamente com o mesmo destino situado em território português ou no território de outro Estado membro da União Europeia ou do espaço económico europeu, desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em matéria fiscal; (…)

6 - Não haverá lugar ao benefício referido no número anterior quando:

a) Tratando-se de reinvestimento na aquisição de outro imóvel, o adquirente o não afecte à sua habitação ou do seu agregado familiar, até decorridos doze meses após o termo do prazo em que o reinvestimento deva ser efectuado; (…)”

 

Do exposto resulta que, para que o Requerente possa beneficiar da exclusão da tributação de mais-valias, deverá preencher os seguintes requisitos cumulativos:

•             Quer o imóvel alienado, quer o imóvel adquirido, destinarem-se a habitação própria e permanente “do sujeito passivo ou do seu agregado familiar”;

•             O reinvestimento do valor de realização do imóvel de partida, para os fins indicados, ocorra dentro do prazo máximo de 36 meses, na aquisição de novo imóvel com o mesmo destino exclusivo, e,

•             O novo imóvel ser afeto a habitação própria do sujeito passivo ou do seu agregado familiar, nos doze meses posteriores ao termo do prazo em que o reinvestimento deva ocorrer.

 

No presente processo, a discordância entre as Partes diz respeito ao preenchimento do primeiro dos requisitos apontados. Segundo a AT, “o que é relevante, no caso presente, é que o domicílio fiscal não era na morada do imóvel alienado. Logo, não poderia haver lugar ao reinvestimento do valor de realização.” Além deste argumento utilizado na Resposta, a AT veio, mais tarde, em sede de alegações finais, acrescentar que, ainda que se admitisse que domicílio fiscal e habitação própria e permanente pudessem corresponder a moradas diferentes, o Requerente não havia feito prova suficiente de que a sua habitação própria e permanente era, em 2015, no imóvel alienado.

 

O aditamento ao artigo 13.º do CIRS introduzido pela Lei n.º 82-E/2014, de 31 de Janeiro, veio clarificar esta questão ao estabelecer o seguinte:

“10 - O domicílio fiscal faz presumir a habitação própria e permanente do sujeito passivo que pode, a todo o tempo, apresentar prova em contrário.

11 - Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se preenchido o requisito de prova aí previsto, designadamente quando o sujeito passivo

a) Faça prova de que a sua habitação própria e permanente é localizada noutro imóvel; ou

b) Faça prova de que não dispõe de habitação própria e permanente.

12 - A prova dos factos previstos no número anterior compete ao sujeito passivo, sendo admissíveis quaisquer meios de prova admitidos por lei.

13 - Compete à Autoridade Tributária e Aduaneira demonstrar a falta de veracidade dos meios de prova mencionados no número anterior ou das informações neles constantes.”

 

Do exposto decorre a presunção legal de que o domicílio fiscal do sujeito passivo é a sua habitação própria e permanente, mas decorre também que, como em qualquer presunção em matéria fiscal, o sujeito passivo pode, a todo o tempo, apresentar prova em contrário. Esclarece-se também que o sujeito passivo pode ilidir a presunção através de qualquer meio de prova. Este esclarecimento legal veio, aliás, no seguimento de extensa jurisprudência sobre esta matéria (cf., entre muitos outros, os acórdãos CAAD 144/2016-T e 572/2016-T, e o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 23.11.2011 – Processo 0590/11 – 2ª Secção – Relator Conselheiro Lino Ribeiro).

 

A própria redação do artigo 10.º n.º 5, alíneas a) e b) do CIRS é já suficientemente clara, não deixando lugar a grandes dúvidas. Se o legislador pretendesse que o requisito para o benefício em causa fosse o estabelecimento do domicílio fiscal no imóvel adquirido, tê-lo-ia escrito expressamente ao invés de se referir a outro conceito, o de “habitação própria e permanente”. Por outro lado, o n.º 6 do mesmo artigo dispõe que “Não haverá lugar ao benefício referido no número anterior quando: a) Tratando-se de reinvestimento na aquisição de outro imóvel, o adquirente o não afete à sua habitação ou do seu agregado familiar até decorridos doze meses após o termo do prazo em que o reinvestimento deva ser efetuado;” ou seja, resulta uma vez mais a necessidade de “afetação à habitação”, e não a de “fixação do domicílio fiscal”.

 

Resulta, assim, suficientemente claro que a intenção do legislador não foi a de equiparar os conceitos de “habitação própria e permanente e de “domicílio fiscal”, no que respeita ao regime jurídico de exclusão de tributação das mais-valias imobiliárias aqui em causa.

 

Quanto à prova, o Requerente apresentou prova documental e prova testemunhal destinada a provar que manteve no imóvel em causa a sua habitação própria e permanente entre os anos de 2009 e 2015. Se a prova documental é suficiente para provar essa qualidade do imóvel alienado nos anos de 2009 a 2013, já não o é relativamente aos anos de 2014 a 2015. Contudo, as três testemunhas apresentadas disseram ter conhecimento de que o Requerente efetivamente tinha ali a sua habitação própria e permanente ainda no ano de 2015, depois de se separar e divorciar de B..., que a manteve mobilada e funcional, que ali continuou a receber amigos e a organizar convívios e que, em sentido contrário, não tinham conhecimento de nenhum facto que os tivesse levado a pensar que o Requerente tinha deixado de ali ter o centro da sua vida pessoal até vender essa casa e se mudar para outra, na Portela. Os testemunhos foram consistentes e coincidentes quanto a esse ponto.

 

Por outro lado, foi também explicada de forma satisfatória a razão pela qual o domicílio fiscal do Requerente havia sido alterado em 2012 e não coincidia com a sua habitação própria e permanente (o que, diga-se de passagem, não seria necessário para efeitos de prova do preenchimento dos pressupostos legais aqui em causa, mas que, ainda assim, concorre para a consistência das explicações apresentadas pelo Requerente).

 

Por conseguinte, podemos concluir que o Requerente provou o cumprimento dos requisitos legais de que depende a exclusão da tributação das mais-valias geradas com a alienação da sua habitação própria e permanente, e, consequentemente, que o pedido do Requerente deve ser julgado procedente, devendo o ato de liquidação impugnado ser anulado por vício de violação de lei (em concreto, por violação do artigo 10.º, n.º 5 do Código do IRS).

 

J - QUESTÕES DE CONHECIMENTO PREJUDICADO

 

Na sentença, deve o juiz pronunciar-se sobre todas as questões que deva apreciar, abstendo-se de se pronunciar sobre questões de que não deva conhecer (segmento final do n.º 1 do artigo 125.º, do CPPT). As questões sobre que recaem os poderes de cognição do tribunal, são, de acordo com o n.º 2 do artigo 608.º, do CPC, aplicável subsidiariamente ao processo arbitral tributário, por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, “as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (…)”.

 

Em face da solução dada à questão relativa aos pressupostos da exclusão da tributação do rendimento de mais-valias objeto da liquidação impugnada, e porque dessa conclusão já decorre a anulação do ato impugnado, fica prejudicado o conhecimento das restantes questões incluídas no pedido de pronúncia arbitral, nomeadamente a omissão da audição prévia e a falta de fundamentação do ato de liquidação.

 

4. Decisão

 

Termos em que este Tribunal Arbitral decide:

 

a) Julgar procedente o pedido de anulação do ato de liquidação adicional de IRS objeto do pedido;

b) Condenar a Administração Tributária e Aduaneira a restituir à Requerente o montante de imposto pago, bem como os juros compensatórios.

 

5. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto nos artigos 305.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 7.261,80.

 

6. Custas

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 612,00, de harmonia com a Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

               

Lisboa, 05.01.2021

 

A Árbitro

(Raquel Franco)