DECISÃO ARBITRAL
Carla Almeida Cruz, árbitro das listas do CAAD, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral singular, constituído em 06-08-2020, elabora nos seguintes termos a decisão arbitral no processo identificado.
I. RELATÓRIO
A..., LDA, sociedade comercial, com sede na Rua ..., ..., ..., ...-... ..., contribuinte número ... (doravante “Requerente”), veio, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, constante do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, (doravante, abreviadamente designado de “RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral.
O pedido de pronúncia arbitral tem por objeto a liquidação de Imposto do Selo constante do ofício nº 2020/... de 16-03-2020, respeitante à liquidação adicional de Imposto do selo da verba 1.1. da TGIS, no montante de € 10.680,00, relativa à aquisição do prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ..., da freguesia de ..., concelho de Vila Nova de Gaia (atual artigo ..., da União das freguesias de ... e ..., concelho de Vila Nova de Gaia).
A Requerente peticiona que seja anulada a referida liquidação adicional de Imposto do Selo, com fundamento em:
i) Falta de fundamentação da liquidação;
ii) Erro na qualificação do facto tributário; e
iii) Violação de lei, pela não aplicação do benefício fiscal previsto na alínea e) do artigo 269.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (“CIRE”).
A Requerente peticiona ainda que seja determinada a devolução do valor do imposto por si pago, acrescido de juros indemnizatórios desde a data do respetivo pagamento (17-04-2020) até à data da efetiva restituição por parte da Autoridade Tributária e Aduaneira.
A Requerente juntou 5 (cinco) documentos, não tendo requerido a produção de quaisquer outros meios de prova.
É Requerida nestes autos a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (“Requerida” ou “AT”).
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 07-05-2020 e foi notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) também em 07-05-2020.
Nos termos do disposto no artigo 6.º, n.º 1 e do artigo 11.º, n.º 1, alínea b) do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitro do Tribunal Arbitral com árbitro singular a signatária, que manifestou a aceitação do encargo, no prazo legal.
Em 07-07-2020 as partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado intenção de recusar a designação do árbitro, nos termos previstos nas normas do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e nas normas dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, e em conformidade com a disciplina constante do artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 06-08-2020.
A Requerida foi notificada através de despacho arbitral, de 10-08-2020, para os efeitos previstos no artigo 17.º da RJAT.
A Requerida, a 28-09-2020, requereu a prorrogação, por 30 dias do prazo para apresentação de Resposta e a junção do Processo Administrativo.
O Tribunal Arbitral, por despacho datado de 29-09-2020, deferiu o requerimento da AT (conforme ponto anterior) e prorrogou, por 30 dias, o prazo para apresentação de Resposta e a junção do Processo Administrativo.
Em 27-10-2020, a Requerida, apresentou a sua Resposta, na qual defendeu que o pedido de pronúncia arbitral deve ser julgado improcedente, com a sua consequente absolvição do pedido.
A Requerida não requereu a produção de prova e procedeu à junção do processo administrativo (doravante, “PA”) aos autos.
Por despacho de 29-10-2020, foi dispensada a realização da reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT e determinada a notificação das partes para produzirem alegações escritas.
Ambas as Partes apresentaram alegações escritas, nas quais reiteraram as posições anteriormente assumidas nos respetivos articulados.
II. SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente, face ao preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.
O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.
As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT, e artigo 1.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades, não tendo sido invocadas quaisquer exceções ou suscitadas questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito e de que cumpra conhecer.
III. FUNDAMENTAÇÃO
III/1. MATÉRIA DE FACTO
III/ 1.1. Factos provados
Com relevância para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:
A) A Requerente é uma sociedade comercial por quotas, anteriormente com a firma “B..., Lda.” e que desde 21-02-2020 adotou a firma “A..., Lda.” [cf. documento n.º 5, junto à P.I. ];
B) Em 28-09-1998, no âmbito do Processo de falência nº .../98 que correu termos no Tribunal de Recuperação da Empresa e de Falência de Vila Nova de Gaia, foi proferida sentença, já transitada em julgado, que declarou a falência de C... [cf. documento n.º 4, junto à P.I.];
C) C..., faleceu em 27-07-1998, na pendência do processo de falência identificado no antecedente facto provado B) [cf. documento n.º 4, junto à P.I.];
D) O processo de falência identificado no facto provado B), tem atualmente o nº .../14...TYVNG e corre termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia, Juiz 1 [cf. documento n.º 4, junto à P.I.];
E) Em 26-10-2018, por escritura pública de compra e venda, celebrada no Cartório Notarial do Porto do Notário D..., a Requerente, então com a designação de “B..., Lda.” adquiriu à Massa Insolvente de C..., pelo preço de € 1.335.000,00, o prédio urbano composto por terreno destinado a construção, sito no Lugar ..., União das freguesias de ... e ..., concelho de Vila Nova de Gaia, inscrito na respetiva matriz sob o artigo ..., com o valor patrimonial tributário de € 1.153.240,00 [cf. documento n.º 2, junto à P.I.];
F) A Requerente reclamou créditos no processo de falência identificado no facto provado B), sendo detentora de créditos hipotecários reconhecidos, no montante de € 1.335.000,00 sobre o imóvel referido no antecedente facto provado E) [cf. documento n.º 2, junto à P.I.];
G) Na liquidação do IMT devido pela aquisição identificada no facto provado E), foi indicado como facto tributário a “Aquisição de imóveis do Estado, Regiões Autónomas e Autarquias Locais; aquisição de imóveis por arrematação judicial ou administrativa ou ao abrigo de regimes legais de apoio financeiro à habitação”, tendo sido emitido o DUC n.º..., datado de 09-07-2018, no montante de €0,00, por ter sido indicado o benefício do Art.º 8.º, n.º 1 do CIMT “Aquisições por instituições de crédito – Processo de execução, falência ou insolvência” [cf. documento n.º 2, junto à P.I. e P.A. ];
H) Relativamente ao Imposto do Selo – verba 1.1 da TGIS, devido pela aquisição identificada no facto provado E), em 09-07-2018 foi emitida a liquidação n.º..., no montante de €0,00, por ter sido indicado o benefício do art.º 269.º do CIRE, aprovado pelo DL 53/04 “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas - Transmissões integradas em Planos de insolvência ou de pagamentos ou no âmbito da liquidação da massa insolvente” [cf. documento n.º 2, junto à P.I. e P.A.];
I) Em 02-04-2019, a Requerente foi notificada através do ofício n.º..., datado de 29-03-2019 da demonstração da liquidação do Imposto de Selo - Verba 1.1 da TGIS, com o valor a pagar de €10.680,00 €, tendo também sido notificada para exercer o direito de audição sobre a demonstração da liquidação, nos termos previstos no artigo 60º da Lei Geral Tributária ” [cf. P.A., pp. 39-40);
J) Na demonstração da liquidação identificada no antecedente facto provado I), refere-se, além do mais o seguinte [cf. P.A., p. 40):
“É devido Imposto de Selo – Verba 1.1., nos termos do artigo 269º do CIRE, uma vez que só há direito a isenção daquele imposto se o insolvente for uma pessoa coletiva, ou se a pessoa singular provar que a insolvência provém de uma actividade.”
K) Em 23-04-2019, a Requerente exerceu o seu direito de audição quanto à demonstração da liquidação identificada no facto provado I), tendo alegado, além do mais que [cf. P.A., pp. 42-53]:
“(…) o bem em causa foi apreendido num processo de insolvência que teve como origem a atividade profissional do insolvente, sendo por isso de manter o direito a isenção do IS, pelo que a presente liquidação deverá se anulada.”
L) A Requerente foi notificada, através do ofício n.º..., datado de 16-03-2020, da liquidação adicional de Imposto do Selo - Verba 1.1. da TGIS, objeto do pedido de pronúncia arbitral, onde se refere, além do mais o seguinte ” [cf. nota de liquidação junta à P.I.]:
“Fica V. Exª. NOTIFICADO(A) nos termos do nº 2 do artº 19 do Código do Imposto Municipal Sobre as Transmissões Onerosas de imóveis (IMT), e do artº 36º do Código de Procedimento e do Processo Tributário, para, no prazo de trinta (30) dias, solicitar neste Serviço de Finanças de V.N. Gaia ..., guias para pagamento da importância de €10.680,00 relativa a Imposto de Selo – Verba 1.1. da TGIS, com referência à aquisição que efectuou do prédio abaixo mencionado, e conforme despacho da Chefe do Serviço de Finanças datado de 26-02-2020, que se anexa.
Demonstração da Liquidação referente ao Nº de Registo de Declaração 2018/...:
1- Prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ..., da freguesia de ..., concelho de Vila Nova de Gaia, (actual artº ... da União das freguesias de ... e ..., do mesmo concelho, afectação: Terreno para Construção.
Valor patrimonial; €1.170.538,60 Valor aquisição: €1.335.000,00
Liquidação: 1.335.000,00 X 0,80% (taxa) = €10.680,00
Imposto de Selo – Verba 1.1 da TGIS = €10.680,00”
M) O despacho da Chefe do Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia ..., datado de 26-02-2020, anexo à liquidação adicional de Imposto do Selo, identificada no facto provado L), tem o seguinte teor [cf. nota de liquidação junta à P.I.]:
“Com os fundamentos que constam na informação e parecer infra, prossiga para notificação da liquidação do imposto (IMT) devido, contra a qual querendo, poderá reclamar nos prazos previstos na Lei.”
N) A liquidação adicional de Imposto do Selo identificada no facto provado L), tem a seguinte fundamentação, que consta do parecer anexo da Adjunta do Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia ..., datado de 20-01-2020 [cf. nota de liquidação junta à P.I.]:
“Os actos de venda, permuta ou cessão, de bens imóveis ou de estabelecimentos desta, estão isentos de IMT, desde que integrados no âmbito de planos de insolvência, de pagamentos ou de recuperação, ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente (artigo 270, nº2, do CIRE). No caso, sendo a aquisição efetuada à herança ilíquida e indivisa, sou de parecer que não há lugar àquela isenção de IMT.”
O) A Requerente em 13-04-2020, solicitou a emissão de guia para pagamento do adicional de Imposto do Selo cuja liquidação impugna nos presentes autos [cf. P.A., p.89];
P) A Requerente em 17-04-2020 procedeu ao pagamento do adicional de Imposto do Selo cuja liquidação aqui impugna, no valor de € 10.680,00 € [cf. documento n.º 1, junto à P.I.];
Q) Em 06-05-2020, a Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo [cf. sistema informático de gestão processual do CAAD].
III/1.2 Factos considerados não provados
Não foram considerados como não provados nenhuns dos factos alegados, com efetiva relevância para a boa decisão da causa.
III.1.3 - Fundamentação da decisão da matéria de facto
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, à face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), e 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
Não há controvérsia sobre a matéria de facto, pelo que no tocante à matéria de facto dada como provada, a convicção do Tribunal fundou-se nos factos articulados pelas Partes, cuja aderência à realidade não foi posta em causa e, portanto, admitidos por acordo, bem como na análise crítica da prova documental que consta dos autos, designadamente o processo administrativo e os documentos juntos pela Requerente, cuja correspondência à realidade não é contestada pela Autoridade Tributária e Aduaneira.
III/2 - MATÉRIA DE DIREITO
Delimitação do objeto da pronúncia arbitral
São as seguintes, as questões suscitadas ao Tribunal, que importa apreciar e decidir:
i. Da falta de fundamentação da liquidação;
ii. Do erro na qualificação do facto tributário;
iii. Da violação de lei, pela não aplicação do benefício fiscal previsto na alínea e) do artigo 269º do CIRE.
III/2.1 - Questão da falta de fundamentação da liquidação
III/2.1.1 - Posição das partes
Relativamente a esta questão, a Requerente defende, em síntese que:
i. A liquidação impugnada apresenta como fundamentação apenas e somente normas aplicáveis ao Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (“IMT”) e constituí uma fundamentação de liquidação de IMT;
ii. A AT emitiu liquidação adicional de Imposto do Selo, mas fundamentou-a com as normas aplicáveis ao Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT);
iii. A AT, no que diz respeito à fundamentação da liquidação de Imposto do Selo em causa, “não se dignou efetuar qualquer explicação ou esclarecimento”;
iv. O ato de liquidação que se impugna, que se dirigia a uma eventual liquidação de IMT, culminou numa liquidação de Imposto do Selo.
A Requerente com base nos argumentos referidos, concluí, defendendo que o ato de liquidação do Imposto de Selo aqui em causa, enferma de falta de fundamentação, devendo em consequência ser anulado, nos termos do artigo 77º da Lei Geral Tributária (“LGT”).
A Autoridade Tributária e Aduaneira, por seu turno, defende que o ato de liquidação do Imposto de Selo aqui em causa não padece de falta de fundamentação, sustentando, em suma que:
i. Da liquidação impugnada constam todos os elementos que permitem à Requerente identificar o imposto devido, o montante deste, o facto tributário, o valor tributável e a norma legal que conduziu ao apuramento do montante devido;
ii. O parecer da Adjunta do S.F. de Vila Nova de Gaia ..., datado de 20-01- 2020, sancionado por despacho da Chefe de Finanças, em 26-02-2020, dado a conhecer à requerente através do ofício n.º .../..., datado de 16-03-2020, padece de lapso uma vez que foi impropriamente feita menção ao IMT, ao invés do Imposto do Selo (“IS”), que era o imposto em análise na informação em causa;
iii. Da demonstração da liquidação de IS n.º..., datada de 17-04-2020, com o DUC n.º..., consta a identificação do imposto devido (IS – verba 1.1 da TGIS), o montante deste (€10.680,00), a identificação do facto tributário (aquisição do prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo n.º..., da freguesia de ..., concelho de Vila Nova de Gaia), o valor tributável (Valor aquisição: € 1.335.000,00) e a norma legal que conduziu ao apuramento do montante devido (verba 1.1 da TGIS por remessa do n.º 1 do art.º 1.º do CIS);
iv. Na demonstração da liquidação, estavam presentes todos os elementos que permitiam ao contribuinte analisar e, eventualmente, opor-se ou questionar, os seus fundamentos e contabilização;
v. Da análise à demonstração da liquidação remetida à Requerente, retira-se que, os fundamentos do acto tributário estavam expressa e suficientemente plasmados naquela, permitindo ao sujeito passivo apreender, de forma clara, suficiente e congruente, tanto o processo lógico que conduziu ao apuramento da matéria tributável e do tributo, bem como as operações de qualificação e quantificação do facto tributário;
vi. Caso a Requerente desconhecesse a fundamentação da notificação, sempre poderia ter lançado mão do mecanismo inscrito no art.º 37.º do CPPT;
vii. Apesar do lapso ocorrido no parecer da Adjunta do S.F. de Vila Nova de Gaia..., datado de 20-01-2020, sancionado por despacho da Chefe de Finanças, em 26-02-2020, notificado através do ofício n.º..., datado de 16-03-2020, que fazia referência ao IMT, ao invés de IS, não se descortina a existência de qualquer violação do dever legal de fundamentação do ato tributário, que impende sobre a AT, nos termos do n.º 2 do art.º 77.º da LGT, uma vez que, na liquidação de IS – verba 1.1 da TGIS, os fundamentos do ato tributário estavam expressa e proficuamente plasmados naquela;
viii. A Requerente entendeu perfeitamente o sentido e alcance das liquidações sobre as quais recai o presente pedido de pronúncia arbitral, tal como resulta do próprio exercício jurídico-argumentativo que faz no seu pedido de pronúncia arbitral;
ix. A fundamentação é clara, suficiente e congruente, pelo menos a ponto de ser perceptível à luz do homem médio e, mais importante, perceptível à leitura da Requerente;
x. Não é possível afirmar que determinado acto não se encontra fundamentado quando, no caso concreto, a motivação contextual permitiu ao seu destinatário ficar a saber as razões de facto e de direito que levaram a Requerida a tomar a decisão em causa, com aquele sentido e conteúdo;
xi. Apesar terem sido referidas as disposições legais aplicáveis em sede de IMT em vez do IS, isso não te qualquer efeito invalidante, pois que, o próprio Código do Imposto do Selo refere no n.º 4 do artigo 23º, sob a epígrafe: “Competência para a liquidação”, remete para as regras contidas no Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (“CIMT”).
III/2.1.2 – Apreciação da questão da falta de fundamentação da liquidação
A primeira questão que cumpre apreciar respeita à falta de fundamentação que subjaz ao ato impugnado, que foi alegada pela Requerente e sobre a qual a Requerida se pronunciou em sentido contrário.
A este respeito importa ter presente o disposto no artigo 268.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (“CRP”) e no artigo 77.º, n.ºs. 1 e 2 da Lei Geral Tributária (LGT).
O artigo 268.º, n.º 3, da CRP estabelece que “os actos administrativos estão sujeitos a notificação aos interessados, na forma prevista na lei, e carecem de fundamentação expressa e acessível quando afetem direitos ou interesses legalmente protegidos”.
O artigo 77.º, n.º 1, da LGT prevê que a “A decisão de procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária”.
O artigo 77.º, n.º 2, da LGT dispõe que, mesmo quando efetuada de forma sumária, a fundamentação dos atos tributários deve, sempre, “conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos atos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo.”
Na anotação ao artigo 77.º da LGT, Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, afirmam “Como o STA vem entendendo, a exigência legal e constitucional de fundamentação visa, primacialmente, permitir aos interessados o conhecimento das razões que levaram a autoridade administrativa a agir, por forma a possibilitar-lhes uma opção consciente entre a aceitação da legalidade do acto e a sua impugnação contenciosa. Para ser atingido tal objectivo a fundamentação deve proporcionar ao destinatário do acto a reconstituição do itinerário cognoscitivo e valorativo percorrido pela autoridade que praticou o acto, de forma a poder saber-se claramente as razões por que decidiu da forma que decidiu e não de forma diferente.” (vd., Lei Geral Tributária. Anotada e Comentada, 4.ª ed., Lisboa, Encontro da Escrita Editora, 2012, pp. 675).
A jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo tem sustentado que “(…) A Administração Tributária tem o dever de fundamentar os actos de liquidação impugnados de harmonia com o princípio plasmado no art. 268º da CRP e acolhido nos arts. 125º do CPA e 77 º da LGT. (…) O acto estará suficientemente fundamentado quando o administrado, colocado na posição de um destinatário normal – o bonus pater familiae de que fala o art. 487º nº 2 do Código Civil – possa ficar a conhecer as razões factuais e jurídicas que estão na sua génese, de modo a permitir-lhe optar, de forma esclarecida, entre a aceitação do acto ou o accionamento dos meios legais de impugnação, e de molde a que, nesta última circunstância, o tribunal possa também exercer o efectivo controle da legalidade do acto, aferindo o seu acerto jurídico em face da sua fundamentação contextual. (…) Significa isto que a fundamentação, ainda que feita por remissão ou de forma muito sintética, não pode deixar de ser clara, congruente e encerrar os aspectos, de facto e de direito, que permitam conhecer o itinerário cognoscitivo e valorativo prosseguido pela Administração para a determinação do acto.” (vd., Acórdão do STA, de 23-04-2014, processo n.º 01690).
O respeito pelos mais elementares direitos dos contribuintes obriga a que a fundamentação seja contemporânea e contextual e não se presuma, devendo resultar de forma clara, expressa e inequívoca do próprio ato.
O mesmo entendimento é perfilhado pelo Supremo Tribunal Administrativo onde no âmbito do Processo n.º 0512717, de 14 de março de 2018, refere que “(…) o dever legal de fundamentação do acto administrativo cumpre uma dupla função: endógena, ao exigir ao decisor a expressão dos motivos e critérios determinantes da decisão, assim contribuindo para a sua ponderação e transparência; exógena, ao permitir ao destinatário do acto uma opção esclarecida entre a conformação e a impugnação graciosa ou contenciosa (cfr. o ac. deste STA, de 2/2/2006, rec. nº 1114/05). Daí que essa fundamentação deve ser contextual e integrada no próprio acto (ainda que o possa ser de forma remissiva), expressa e acessível (através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão), clara (de modo a permitir que, através dos seus termos, se apreendam com precisão os factos e o direito com base nos quais se decide), suficiente (permitindo ao destinatário do acto um conhecimento concreto da motivação deste) e congruente (a decisão deverá constituir a conclusão lógica e necessária dos motivos invocados como sua justificação), equivalendo à falta de fundamentação a adopção de fundamentos que, por obscuridade, contradição ou insuficiência, não esclareçam concretamente a motivação do acto. Ou seja, a fundamentação formal do acto tributário é distinta da chamada fundamentação substancial, devendo esta exprimir a real verificação dos pressupostos de facto invocados e a correcta interpretação e aplicação das normas indicadas como fundamento jurídico.”.
A fundamentação deve consistir numa exposição dos fundamentos de facto e de direito que motivaram a decisão.
As razões de facto e os fundamentos de direito da decisão devem ser percetíveis, claros e entendíveis para o contribuinte.
Aplicando a doutrina e jurisprudências enunciadas ao caso dos presentes autos, impõe-se verificar em que termos a Requerida fundamentou a liquidação adicional de Imposto do Selo que constitui objeto do pedido de pronúncia arbitral.
Atendendo à factualidade que resultou assente nos presentes autos arbitrais (vd., alíneas L), M), N) dos Factos Provados constantes do ponto III/ 1.1. supra), merecem análise os seguintes aspetos:
Primeiro
A Requerente foi notificada do ato de “Liquidação adicional de Imposto de Selo”.
Na mencionada liquidação, e no que ao Imposto do Selo respeita, apenas consta a alusão vaga e genérica à “Verba 1.1. da TGIS” (vd., alínea L) dos Factos Provados ponto III/ 1.1. supra), não sendo indicada a norma ou normas jurídicas que em concreto serviram de fundamento legal para a liquidação do Imposto em causa.
Segundo
A liquidação adicional de Imposto de Selo, foi notificada à Requerente “(…) nos termos do nº 2 do artº 19º do Código do Imposto Municipal Sobre Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT) (…)” (vd., alínea L) dos Factos Provados constantes do ponto III/ 1.1. supra).
Na referida notificação apenas consta a referência ao CIMT, não sendo feita qualquer referência às normas do Código do Imposto do Selo (CIS) que disciplinam a liquidação do Imposto em causa.
Terceiro
O despacho da Chefe do Serviço de Finanças de 26-02-2020 que determina que se proceda à notificação da liquidação do imposto, refere que o imposto é o “ (…) (IMT)” (vd., alínea M) dos Factos Provados constantes do ponto III/ 1.1. supra).
Neste despacho, refere-se expressamente que o imposto em questão é o IMT, não constando qualquer referência ao Imposto do Selo.
Quarto
O parecer da Adjunta do Serviço de Finanças de 20-01-2020, que serve de fundamento à liquidação do imposto, refere que não há lugar à “ (…) isenção de IMT” (vd., alínea N) dos Factos Provados constantes do ponto III/ 1.1. supra).
Neste parecer, refere-se novamente e de modo expresso que o imposto em questão é o IMT, não constando qualquer referência ao Imposto do Selo.
Quinto
A norma legal invocada pela AT para fundamentar a liquidação do Imposto, é a norma constante do artigo 270º-2 do CIRE (vd., alínea N) dos Factos Provados constantes do ponto III/ 1.1. supra).
O artigo 270º-2 do CIRE respeita ao “Beneficio relativo ao imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis”.
Uma vez mais e no que respeita ao Imposto do Selo, não é invocada qualquer disposição legal que sirva de fundamento à liquidação deste Imposto.
Do exposto resulta que, o ato de liquidação de Imposto do Selo aqui impugnado, não contém a indicação das normas legais que serviram de fundamento à liquidação do imposto.
Não obstante nos encontrarmos perante o ato de liquidação de Imposto do Selo, as normas legais invocadas pela AT como fundamento jurídico para a liquidação, respeitam todas elas ao IMT e não ao Imposto do Selo.
Daqui se conclui que ato de liquidação do Imposto do Selo em análise, não se mostra devidamente fundamentado, sendo omisso quanto à necessária fundamentação de direito.
A Requerida alega, para refutar a falta de fundamentação do ato impugnado que apesar terem sido referidas as disposições legais aplicáveis em sede de IMT em vez do IS, “isso não tem qualquer efeito invalidante”, pois o artigo 23º, nº 4 do CIS, remete para a aplicação das regras contidas no CIMT (vd. artigo 3º das alegações da Requerida).
Não seguimos a tese defendida pela Requerida, pois entendermos que a remissão que é feita pelo artigo 23º-4 do CIS para o CIMT, se reporta somente à competência para a liquidação do Imposto do Selo e não à fundamentação legal do ato de liquidação do imposto.
Como já antes se referiu, a fundamentação legal terá sempre e necessariamente que existir, devendo ser expressa, acessível, clara, suficiente e congruente, equivalendo à falta de fundamentação, a adoção de fundamentos que, por obscuridade, contradição ou insuficiência, não esclareçam concretamente a motivação do ato em causa.
Parece-nos claro, que no caso em concreto o ato de liquidação do Imposto do Selo não contém a necessária fundamentação legal, sendo que os fundamentos que constam da liquidação são manifestamente obscuros, contraditórios e insuficientes, não esclarecendo concretamente a motivação do ato em causa.
A Requerida alega ainda, para afastar o vício de falta de fundamentação, que a Requerente entendeu perfeitamente o sentido e alcance do ato tributário impugnado, porque isso resulta do exercício jurídico - argumentativo que faz no seu pedido de pronúncia arbitral (vd. artigo 18º da resposta da Requerida).
Não podemos acompanhar, salvo o devido respeito, esta posição da Requerida porque não é aceitável sob pena de se subverter todo o quadro de vinculação constitucional e legal em vigor nesta matéria que, perante insuficiências manifestas de fundamentação da exclusiva responsabilidade da Autoridade Tributária, se imponha ao contribuinte o ónus de detetar e suprir as referidas falhas de fundamentação.
A fundamentação é um requisito do próprio ato e cabe ao seu autor a obrigação de o fundamentar de facto e de direito. O contribuinte não pode ficar adstrito a substituir-se ao autor do ato na busca do sentido da fundamentação para exercer de forma mais eficaz as suas garantias de defesa. No caso de existir um deficiente cumprimento do dever de fundamentação por parte da Autoridade Tributária não compete ao contribuinte fazer suposições e tentar descortinar a fundamentação completa para esse ato. Consequentemente, o cumprimento deficiente do dever de fundamentação, a cargo da Autoridade Tributária, não pode ser convalidado pela ação do contribuinte.
Em face do que se deixa exposto, é de concluir que o ato de liquidação impugnado não se mostra fundamentado, impondo-se a respetiva anulação por violação do disposto nos artigos 268.º, n.º 3, da CRP e 77.º da LGT.
Nestes termos, deverá ser considerada procedente a arguida preterição de formalidade, decorrente do incumprimento do dever legal de fundamentação, que nos termos do artigo 268.º da CRP e 77.º da LGT impende sobre a Autoridade Tributária. Em consequência, o ato de liquidação de Imposto do Selo padece do vício de falta de fundamentação, pelo que é ilegal e deve ser anulado.
III/2.2 – Questões de conhecimento prejudicado
Procedendo o pedido de pronúncia arbitral por vício de falta de fundamentação, fica deste modo, prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas pela Requerente (cf. artigo 608º, n.º 2 do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT).
III/2.3 – Devolução do valor do imposto pago pela Requerente
A Requerente peticiona também que seja determinada a devolução do valor do imposto por si pago.
Na sequência da anulação da liquidação, a Requerente tem direito a ser reembolsada do valor do imposto por si pago.
A Requerente em 17-04-2020 pagou o adicional de imposto de selo cuja liquidação aqui impugna, no valor de € 10.680,00 (vd., alínea P) dos Factos Provados constantes do ponto III/ 1.1. supra).
Termos em que procede o pedido da Requerente quanto à devolução do imposto por si pago, no valor de € 10.680,00.
III/2.4 – Juros indemnizatórios
A Requerente deduz ainda pedido de juros indemnizatórios que devem acrescer à devolução do imposto por si indevidamente pago.
Nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
Sobre esta questão, o Conselheiro Jorge Lopes de Sousa exprimiu, em anotação ao artigo 61.º do CPPT, uma posição que merece o nosso total acordo, segundo a qual “... a existência de vícios de forma ou incompetência significa que houve uma violação de direitos procedimentais dos administrados e, por isso, justifica-se a anulação do acto, por estar afectado de ilegalidade. Mas o reconhecimento de um vício daqueles tipos não implica a existência de qualquer vício na relação jurídica tributária, isto é, qualquer juízo sobre o carácter indevido da prestação pecuniária cobrada pela Administração Tributária com base no acto anulado, limitando-se a exprimir a desconformidade com a lei do procedimento adoptado para a declarar ou cobrar ou a falta de competência da autoridade que a exigiu. Ora, é inquestionável que, quando se detecta um vício respeitante à relação jurídica tributária, se impõe a atribuição de uma indemnização ao contribuinte, pois a existência desse vício implica a lesão de uma situação jurídica subjectiva, consubstanciada na imposição ao contribuinte da efectivação de uma prestação patrimonial contrária ao direito. Por isso, se pode justificar que, nestas situações, não havendo dúvidas em que a exigência patrimonial feita ao contribuinte implica para ele um prejuízo não admitido pelas normas fiscais substantivas, se dê como assente a sua existência e se presuma o montante desse prejuízo, fazendo-se a sua avaliação antecipada através da fixação de juros indemnizatórios a favor daquele. Porém, nos casos em que o vício que leva à anulação do acto é relativo a uma norma que regula a actividade da Administração aquela nada revela sobre a relação jurídica fiscal e sobre o carácter indevido da prestação, à face das normas fiscais substantivas. Nestes casos, a anulação do acto não implica que tenha havido uma lesão da situação jurídica substantiva e, consequentemente, da anulação não se pode concluir que houve um prejuízo que mereça reparação. Por isso, pode-se considerar justificado que, nestas situações, não resultando da decisão anulatória a comprovação da existência de um prejuízo, não se presuma o seu valor, fixando juros indemnizatórios, mas apenas se deva restituir aquilo que foi recebido, o que poderá constituir já um benefício para o contribuinte, perante a realidade da sua situação tributária.” (in Código de Procedimento e de Processo Tributário, vol. I, 6ª ed., Lisboa, Áreas Editora, 2011, pp. 531 e 532).
Neste sentido tem vindo a decidir uniformemente o Supremo Tribunal Administrativo como pode ver-se pelos seguintes acórdãos: de 05-05-1999 processo n.º 05557-A; de 17-11-2004 processo n.º 0772/04; de 01-10-2008 processo n.º 0244/08; de 29-10-2008 processo n.º 0622/08; de 25-06-2009 processo n.º 0346/09; de 09-09-2009 processo n.º 0369/09; de 04-11-2009 processo n.º 0665/09; de 08-06-2011 processo n.º 0876/09; de 07-09-2011, processo n.º 0416/11; de 30-05-2012, processo n.º o410/12; e de 22-05-2013, processo n.º 0245/13.
Na linha desta jurisprudência, sendo procedente o pedido de pronúncia arbitral apenas com fundamento em vícios de falta de fundamentação, a Requerente não tem direito a juros indemnizatórios
No presente caso a anulação do ato de liquidação adicional resulta do vício de falta de fundamentação e não de qualquer ilegalidade, à luz das normas substantivas, que expresse o carácter indevido da prestação tributária.
Assim, não pode concluir-se, de acordo com o artigo 43.º da LGT, que se encontram reunidos os requisitos para a Requerente ser indemnizada, pelo que improcede o pedido da Requerente quanto aos juros indemnizatórios.
IV. DECISÃO
Nos termos expostos, o Tribunal Arbitral decide:
a) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral formulado pela Requerente e consequentemente anular o ato de liquidação de Imposto do Selo constante do ofício nº ... de 16-03-2020, no montante de € 10.680,00, por vício de falta de fundamentação;
b) Julgar procedente o pedido de devolução à Requerente do imposto por si pago e condenar a Requerida a restituir à Requerente o valor de € 10.680,00;
c) Julgar improcedente o pedido de pagamento de juros indemnizatórios e absolver a Requerida deste pedido;
d) Condenar a Requerida no pagamento das custas do presente processo.
V. VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em € 10.680,00 (dez mil seiscentos e oitenta euros), nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e do artigo 306.º, n.º 2, do CPC, aplicáveis ex-vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
VI. CUSTAS
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 918,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa, 4 de janeiro de 2021
O Árbitro
(Carla Almeida Cruz)