DECISÃO ARBITRAL
Sumário:
Em caso de reparcelamento do solo urbano, o valor de aquisição a considerar para efeito do apuramento da mais-valia imobiliária é o correspondente ao valor patrimonial tributário do lote resultante do reparcelamento que tenha sido alienado e não o correspondente ao valor patrimonial tributário do prédio originário que foi objecto de reparcelamento.
Acordam em tribunal arbitral
I – Relatório
1. A..., contribuinte fiscal n.º..., residente na Rua ... n.º ..., ...-... ..., ..., em seu nome e de B..., titular do número de identificação fiscal..., vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade da liquidação adicional de IRS n.º 2019..., no valor de €362.716,97, da liquidação de juros compensatórios n.º 2019..., no valor de €2.710,44, e da demonstração de acerto de contas n.º 2019..., da qual resulta um valor a pagar de €191.510,91, requerendo ainda a condenação da Autoridade Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.
Fundamenta o pedido nos seguintes termos.
Em 4 de Setembro de 2018, a Requerente vendeu, juntamente com os seus dois irmãos, pelo preço total de € 5.600.000,00, um terreno para construção situado no ..., em ..., em Lisboa, com o artigo matricial ..., área total é de 3.071,0000 m2 e VPT à data de venda de €2.746.290,00, que correspondia ao Lote 4 constituído na sequência de uma operação de loteamento.
Aquando da entrega da declaração de rendimentos modelo 3, respeitante ao ano de 2018, a Requerente declarou a referida venda, tendo indicado como valor de aquisição € 915.430,00 e como valor de venda € 1.866.666,66, importâncias correspondentes a um terço do VPT do imóvel à data de aquisição e a um terço do preço de venda, na medida em que o imóvel era detido por si e pelos seus irmãos.
A Requerente foi notificada da liquidação de IRS, a qual apurou um valor de mais-valia imobiliária de € 171.206,06, na sequência de correcções propostas pelo Serviço de Finanças de ... que visavam alterar o valor de aquisição declarado pela Requerente de € 915.430,00 para € 172.380,66, com base no apuramento desse valor em dois momentos distintos: em 22 de Janeiro de 2010, no valor de € 154.235,33, e em 20 de Junho de 2017, no valor de €18.145.33.
Entende a Requerente que a correcção realizada carece de fundamento legal, devendo manter-se a liquidação inicial pelos seguintes motivos.
Em 22 de Janeiro de 2010, a C... doou aos seus três sobrinhos (a Requerente e os seus dois irmãos), em partes iguais, a nua propriedade de um imóvel denominado Quinta D..., que era um prédio em propriedade total, sem andares nem divisões susceptíveis de utilização independente, tendo a doadora retido o usufruto vitalício.
À data da doação, a doadora tinha 81 anos, e o valor da nua propriedade adquirida pela Requerente correspondia a €154.235,33, tendo em conta que o VPT da Quinta D..., naquela data, era de €544.360,00, sendo esse o primeiro valor de aquisição considerado pela Autoridade Tributária para efeitos do cálculo da mais-valia imobiliária.
A usufrutuária faleceu em 20 de Junho de 2017, com 88 anos, e a Autoridade Tributária identificou esta data como 2.º momento de aquisição da Requerente, considerando como valor de aquisição €18.145,33.
Sucede que o imóvel vendido pela Requerente em 2018 (Lote 4) não é o imóvel adquirido por doação e sucessão (Quinta D...).
O Lote 4 foi adquirido pela Requerente, e pelos restantes comproprietários, na sequência de uma operação de loteamento na modalidade de reparcelamento de iniciativa municipal, em regime de cooperação, conforme Deliberação .../CM/2017 da Câmara Municipal de Lisboa, de 28 de Julho de 2017, e cuja execução ficou dependente de um contrato de urbanização que veio a ser celebrado entre as partes em 17 de Dezembro seguinte.
A operação de loteamento, no âmbito de uma transformação fundiária, visava a criação e adjudicação aos proprietários das parcelas de terrenos abrangidos de lotes destinados à edificação urbana e na cedência para o domínio municipal de parcelas e áreas para espaços verdes e de utilização coletiva.
Do contrato de urbanização resulta que a operação de loteamento envolvia uma parcela de terreno da propriedade da Requerente e dos dois outros comproprietários denominada por «Quinta D...», com 7.642 m2, tendo a mesma operação determinado a criação de lotes para construção, entre os quais o Lote 4, com a área total de 3.071,10 m2, destinada a habitação e comércio que foi adjudicado à Requerente e aos dois outros comproprietários.
A operação de loteamento deu origem a prédios novos que foram objeto de inscrição no registo predial. Sendo que o imóvel vendido em 2018, relativamente ao qual foi apurada uma mais-valia, não foi a Quinta D..., mas sim o Lote 4, pelo que é relativamente a este que devem ser considerados os valores de que depende o cálculo da mais-valia, incluindo o valor de aquisição.
Deste modo, o valor de aquisição da Quinta D... não pode ser considerado no cálculo da mais-valia imobiliária decorrente da venda do Lote 4, na medida em que estamos perante imóveis diversos, que têm diferentes áreas, diferentes valores patrimoniais tributários e diferentes localizações e correspondem a diferentes tipo de prédio.
Pelo que a declaração de IRS apresentada pela Requerente estava correcta ao considerar, quanto à venda do Lote 4 o valor de aquisição de € 915.430,00 (correspondente à sua quota parte do VPT à data da inscrição do prédio na matriz) e o valor de realização de € 1.866.666,66 (correspondente à sua quota parte no valor de venda).
A título subsidiário, a Requerente refere ainda que, a entender-se que o valor de aquisição da Quinta D... deve ser considerado para efeitos de cálculo da mais-valia, nos dois momentos e montantes apurados pelo Serviço de Finanças, a esse valor deverá acrescer o valor de aquisição do Lote 4, ou seja, o valor de aquisição total em causa deverá ser de €1.087.810,66 (€915.430,00 + €172.380.66).
A Autoridade Tributária, na sua resposta, sustenta o seguinte.
Em 22 de Janeiro de 2010, a Requerente, conjuntamente e em quotas iguais com os seus dois irmãos, adquiriu, por doação, a nua propriedade de um imóvel identificado como “Quinta D...”, artigo matricial..., sito na freguesia .../Lisboa, prédio urbano em propriedade total, sem divisões suscetíveis de utilização independente, com área aproximada de 7.500m2.
Em 20 de Julho de 2017, com o falecimento da doadora, que reservara para si o usufruto do referido imóvel, consolidou-se a aquisição da propriedade plena pela Requerente e os seus irmãos.
Na sequência de uma operação de transformação fundiária, concretizada por meio de uma operação de loteamento, com área de intervenção total de 150.721 m2, na modalidade de reparcelamento de iniciativa municipal, em regime de cooperação, em que intervieram os proprietários da Quinta D..., incluindo a Requerente, bem como os proprietários da Quinta E..., esses prédios foram substituídos por cinco lotes de terreno para construção.
Em 20 de Dezembro de 2017, a Câmara Municipal de Lisboa apresentou a Modelo 1 de IMI, visando a inscrição dos lotes que vieram a substituir os antigos terrenos, tendo o Lote 4, adjudicado à Requerente e irmãos, passado a ser identificado matricialmente sob artigo n.º..., freguesia ..., enquanto terreno para construção, com área de 3.071m2 e VPT de € 2.746.290.
Em Setembro de 2018 a Requerente e os outros comproprietários alienaram o referido lote pelo preço global de € 5.600.000,00 e na declaração modelo 3 relativa ao exercício de 2018, nos rendimentos enquadrados como mais valia imobiliária, a Requerente inscreveu a sua quota parte de 33,33% relativa à aquisição do imóvel (artigo ...) realizada em dezembro de 2017, no valor de € 915.430,00, e a sua alienação (valor de realização) em setembro de 2018 pelo valor de € 1.866.666,67, bem como o valor de € 208.632,00 a título de despesas e encargos.
A correcção da liquidação em IRS, na parte respeitante ao valor de aquisição, resulta de não ser tido em consideração o valor da aquisição do prédio originário e que deve ser determinado em relação a dois momentos distintos: o referente ao usufruto, em Janeiro de 2010 por € 154.235,33 e o referente à união da nua propriedade em Junho de 2017 pelo valor de € 18.145,33.
Com efeito, à luz do artigo 44º do CIRS, bem como do artigo 13º, nº 6, do CIS, são relevantes os dois momentos aquisitivos, primeiro a data da doação da nua propriedade e, depois, a data do óbito da usufrutuária, momento em que se reúne a propriedade com o fim do direito real onerador.
Entende a Requerente que, tendo o prédio originário sido alvo de uma operação de transformação fundiária, em resultado da qual o mesmo foi substituído por um prédio com área distinta e que deu origem a novo artigo matricial, a operação em apreço deve ignorar, como valor de aquisição, o valor do prédio originário.
No entanto, nos termos das disposições do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial, o reparcelamento tem como efeitos a substituição, com plena eficácia real, dos antigos terrenos pelos novos lotes, de modo a que o prédio alienado, não sendo o mesmo em virtude da operação de reparcelamento, é o seu substituto.
No caso, a Câmara Municipal de Lisboa apresentou a declaração Modelo 1 do IMI visando a inscrição matricial da “substituição do antigo terreno pelo novo lote” (lote 4), inscrito sob artigo ..., sito na freguesia ..., em cujo histórico de proveniência se encontrava não apenas o artigo 104 (desativado em 20.03.2018) mas outros que foram integrados na operação de transformação fundiária de iniciativa municipal.
O artigo matricial substituído, de igual natureza urbana, não se identifica linearmente com o veio que a ser alienado ainda no ano de 2018, seja pela identificação matricial, seja pela área, seja mesmo porque o primeiro era urbano destinado a habitação e o segundo urbano destinado a construção, mas foi o processo de reparcelamento, e os seus efeitos registais - único titulo aquisitivo que justifica a titularidade do bem na esfera da Requerente - que permitiu que o direito de propriedade pudesse vir a ser objeto de posterior alienação.
Ou seja, a Requerente alienou a sua quota parte de um prédio.
E nessa circunstância, para o apuramento da mais-valia imobiliária, na parte respeitante à aquisição do imóvel, não poderá atender-se apenas ao imóvel alienado como tendo sido “adquirido” no decurso da operação de loteamento/reparcelamento.
O pedido subsidiário igualmente não pode proceder porquanto o mesmo pressupõe a consideração do total dos valores que o imóvel foi assumindo por forma a esvaziar o ganho que a Requerente veio a obter.
Sendo que a operação que se impõe é a de ponderação do ganho decorrente da diferença entre a aquisição, considerando-se o seu valor no momento real e efetivo em que a mesma se verificou, atualizado com os valores suportados com a valorização do bem (no caso com o loteamento), e o valor de venda/realização do bem em 2018.
Conclui no sentido da improcedência do pedido.
2. No seguimento do processo, por despacho arbitral de 30 de setembro, foi dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e determinada a apresentação de alegações escritas facultativas pelo prazo sucessivo de dez dias.
A Requerente apresentou as suas alegações em 29 de Outubro, muito para além do prazo cominado, e por despacho de 2 de Dezembro seguinte determinou-se o desentranhamento das alegações.
A Autoridade Tributária apresentou alegações em 4 de Novembro, também extemporaneamente, pelo que, face ao desentranhamento da peça processual junta pela Requerente, essas alegações não são de considerar.
3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.
Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 6.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, os árbitros foram designados pelas partes, tendo o Conselho Deontológico designado o árbitro presidente, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 27 de Agosto de 2020.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.
Cabe apreciar e decidir.
II - Fundamentação
Matéria de facto
4. Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes.
A) Em 22 de Janeiro de 2010, C... doou aos seus três sobrinhos, a Requerente e os seus dois irmãos, em partes iguais, a nua propriedade de um imóvel denominado Quinta D..., que era um prédio em propriedade total, sem andares nem divisões susceptíveis de utilização independente;
B) À data da doação, a doadora tinha 81 anos, o valor patrimonial tributário (VPT) da Quinta D... era de € 544.360,00, correspondendo o valor do usufruto a € 81.654,00 (€ 544.360,00 x 15%), o valor da aquisição da nua propriedade a € 462.706,00 e o valor de aquisição imputável à Requerente a € 154.235,33;
C) A usufrutuária faleceu em 20 de Junho de 2017, com 88 anos, sendo o valor de aquisição do usufruto de € 54.436,00 (€ 544.360,00 x 10%) e o valor de aquisição do usufruto imputável à Requerente de € 18.145,33.
D) A Quinta D..., compropriedade da Requerente e dos seus dois irmãos, com a área de 7642,00 m2, e inscrito na conservatória do registo predial de Lisboa sob o n.º..., juntamente com outros prédios sitos no ..., freguesia ..., foi objecto de uma operação de loteamento na modalidade de reparcelamento de iniciativa municipal, que deu origem a cinco lotes.
E) O Lote n.º 4, com a área de 3.071,00m2, foi adjudicado à Requerente e aos seus dois irmãos;
F) O Município de Lisboa procedeu à apresentação da declaração para inscrição na matriz dos novos prédios resultantes da operação de reparcelamento, para efeito do imposto municipal sobre imóveis, tendo o Lote 4 sido inscrito na matriz urbana sob o n.º...;
G) Em 4 de Setembro de 2018, a Requerente juntamente com os outros dois comproprietários, vendeu o Lote 4 pelo preço total de € 5.600.000,00, correspondendo à Requerente o valor de realização de € 1.866.666,66;
H) O valor patrimonial tributário do Lote 4, à data de venda, era de € 2.746.290,00;
I) Na declaração de rendimentos modelo 3 respeitante ao ano de 2018, a Requerente declarou a venda, tendo indicado como valor de aquisição € 915.430,00, correspondente a um terço do VPT do imóvel à data de aquisição (€ 2.746.290,00), e como valor de venda € 1.866.666,66, correspondente a um terço do preço de venda (€ 5.600.000,00);
J) A Requerente foi notificada através do Ofício n.º ..., de 4 de Setembro de 2019, para exercer o direito de audição prévia relativamente às correcções propostas pelo Serviço de Finanças de ... à declaração modelo 3 apresentada;
K) As correcções propostas visavam alterar o valor de aquisição declarado pela Requerente de € 915.430,00 para € 172.380,66, valor que, nos termos da notificação recebida, resulta da adição do valor de aquisição de € 154.235,33, correspondente à aquisição por doação da nua propriedade da Quinta D..., em 22 de Janeiro de 2010, e do valor de aquisição de € 18.145.33, por extinção do usufruto, em 20 de Junho de 2017;
L) A Requerente exerceu o direito de audição prévia, esclarecendo que o Serviço de Finanças apurou o valor de aquisição tendo em conta, não o bem imóvel vendido pela Requerente em 2018, mas sim, o bem imóvel que esta teve em sua propriedade em momento anterior e que foi extinto na sequência de uma operação de loteamento na modalidade de reparcelamento de iniciativa municipal;
M) A Requerente foi notificada da liquidação de IRS no valor de € 171.206,06, correspondente à correcção proposta pelo Serviço de Finanças;
N) A Requerente procedeu ao pagamento do imposto liquidado no dia 26 de Agosto de 2019.
O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária com a resposta e factos não questionados.
Matéria de direito
5. A questão em debate respeita à determinação da mais-valia imobiliária resultante da venda de um lote de terreno, constituído no âmbito de uma operação de loteamento na modalidade de reparcelamento de iniciativa municipal, que abrangeu um prédio pertencente à alienante em compropriedade, conjuntamente com outras parcelas de terreno pertencentes ao Município de Lisboa e outros particulares.
O acto de liquidação impugnado teve por base a divergência do Serviço de Finanças relativamente ao valor de mais-valia inscrita na declaração de rendimentos, por se ter entendido que o valor de aquisição a considerar era o resultante da aquisição da nua propriedade do prédio originário, em 22 de Janeiro de 2010, e da aquisição da plena propriedade, por efeito da extinção do usufruto, em 20 de Junho de 2017.
Entende a Requerente que o bem imóvel alienado havia sido inscrito como um prédio novo, para efeitos do Imposto Municipal sobre Imóveis, e não tem correspondência com o prédio de que anteriormente era comproprietária, que entretanto foi objecto de reparcelamento na sequência da operação de loteamento, pelo que a mais-valia imobiliária devia ter em consideração o valor patrimonial tributário (€ 2.746.290,00) e o valor da venda desse imóvel (€ 5.600.000,00).
A Autoridade Tributária, em contraposição, considera que o lote de terreno resultante do reparcelamento substitui o prédio antigo, não podendo entender-se como tendo sido adquirido por efeito da operação de loteamento, mas apenas valorizado, pelo que o valor de aquisição a considerar haverá de reportar-se à aquisição do prédio originário nas suas duas componentes (nua propriedade e plena propriedade).
No entender do tribunal, o aspecto central que interessa considerar prende-se com o regime e efeitos jurídicos do reparcelamento do solo urbano.
O reparcelamento do solo urbano, regulado nos artigos 164.º a 170.º do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT), aprovado pela Lei n.º 80/2015, de 14 de Maio, e que já constava do antecedente regime jurídico instituído pela Lei n.º 380/99, de 22 de Setembro, é definido como uma operação de reestruturação da propriedade que consiste no agrupamento de terrenos localizados em solo urbano e na sua posterior divisão, com adjudicação dos lotes resultantes aos primitivos proprietários ou a outros interessados e que tem como objetivos específicos (a) ajustar às disposições do plano intermunicipal ou do plano municipal, a configuração e o aproveitamento dos terrenos para construção, (b) distribuir equitativamente os benefícios e encargos resultantes do plano, e (c) localizar as áreas a ceder obrigatoriamente pelos proprietários destinadas à implantação de infraestruturas, de espaços verdes e de equipamentos públicos (artigo 164.º).
Nesse sentido, trata-se, como refere ALVES CORREIA, de uma operação de remodelação ou recomposição predial, que se caracteriza por três etapas: o agrupamento dos imóveis localizados numa determinada área; a nova divisão dos terrenos em lotes adequados à construção em conformidade com as prescrições do plano; e a partilha desses lotes entre os proprietários (Manual de Direito do Urbanismo, vol. II, Coimbra, págs. 108-110).
O reparcelamento integra, desse modo, uma operação de loteamento, uma vez que desemboca numa divisão em lotes, mas apresenta uma caracterização mais complexa, na medida em que envolve operações urbanísticas distintas de emparcelamento e loteamento. Da totalidade dos terrenos que originam o reparcelamento são retiradas as parcelas de terrenos para espaços verdes públicos, equipamentos de utilização colectiva e infraestruturas e a parte restante, correspondente aos terrenos edificáveis, é repartida entre os proprietários na proporção do valor do respetivo prédio à data do início do processo ou na proporção da sua área nessa data. Acresce que o cálculo do valor dos lotes ou parcelas resultantes do processo de reparcelamento deve obedecer a critérios objetivos e aplicáveis a toda a área objeto de reparcelamento, tendo em consideração a localização, a dimensão e a configuração dos lotes e sempre que possível deve procurar-se que os lotes ou parcelas se situem nos antigos prédios dos mesmos titulares ou na sua proximidade (artigo 168.º).
Por outro lado, o reparcelamento urbano produz um conjunto de efeitos que estão condensados no artigo 169.º do RJIGT. O primeiro desses efeitos é a substituição, com plena eficácia real, dos antigos terrenos pelos novos lotes. O segundo traduz-se na transmissão para a câmara municipal, de pleno direito e livre de quaisquer ónus ou encargos, das parcelas de terrenos que, de acordo com a operação de reparcelamento, devam integrar o domínio municipal.
Como esclarece ainda ALVES CORREIA, a substituição, com plena eficácia real, dos antigos terrenos pelos novos lotes como um dos efeitos da operação significa que “o reparcelamento serve de título à substituição no registo predial dos antigos terrenos pelos novos lotes ou parcelas e à definição da sua nova situação jurídica” (ob. cit., págs. 119-120). Ou seja, a titularidade existente sobre as antigas parcelas passa a reportar-se ao novos lotes que tenham sido adjudicados aos primitivos proprietários e é o acto de licenciamento ou aprovação da operação de reparcelamento, que será posteriormente titulado por alvará, que constitui o documento que servirá de base ao registo da operação e de cada um dos lotes que dela resultam (cfr. FERNANDA PALMA OLIVEIRA/DULCE LOPES, Implicações Notariais e Registrais das Normas Urbanísticas, Coimbra, 2005, págs. 71-72).
Importa ainda reter que a substituição, com plena eficácia real, dos antigos terrenos pelos novos lotes, tal como resulta da referida norma do artigo 169.º do RJIGT, exclui a verificação de uma qualquer transmissão do direito de propriedade ou uma permuta entre prédios de diferentes proprietários, e contempla a simples substituição de uns prédios por outros na sequência do agrupamento dos terrenos que se encontram integrados na área de intervenção urbanística e da subsequente operação de reparcelamento. E, sendo assim, estamos perante uma aquisição originária dos novos lotes de terreno pelos seus novos proprietários e não perante uma aquisição que tenha resultado da transmissão por algum ou alguns dos proprietários primitivos dos seus antigos terrenos (cfr. FERNANDA PALMA OLIVEIRA/DULCE LOPES, Execução programada de Planos Municipais, Coimbra, 2013, pág. 98).
Em conclusão, a substituição, com plena eficácia, dos antigos terrenos pelos novos lotes, por efeito do reparcelamento, como resulta do artigo 169.º do RJIGT, define a sua nova situação jurídica, implicando a eliminação dos prédios originários que foram objecto de transformação fundiária e que a titularidade existente sobre as antigas parcelas passe a reportar-se aos novos lotes por efeito da adjudicação.
6. Como resulta da matéria de facto dada como assente, a Requerente era comproprietária com dois irmãos, em partes iguais, do prédio designado Quinta D... por efeito de contrato de doação outorgado em 2010. A doadora reservou o direito de usufruto que se extinguiu por morte da usufrutuária em 2017, ficando consolidada nessa ocasião a propriedade do imóvel nos donatários.
A Quinta D..., juntamente com outras parcelas de terreno pertencentes a terceiros, localizadas no ..., em ..., foi objecto de loteamento na modalidade de reparcelamento de iniciativa municipal, que deu origem a cinco lotes. O Lote n.º 4 foi adjudicado à Requerente e aos seus dois irmãos. O Município de Lisboa apresentou a declaração modelo 1 para inscrição dos lotes de terreno na matriz para efeitos do imposto municipal sobre imóveis, passando o Lote 4 a ser identificado matricialmente sob o artigo ..., da freguesia de..., enquanto terreno para construção, com a área de 3.071m2 e o valor patrimonial tributário de € 2.746.290,00.
Em 4 de Setembro de 2018, a Requerente juntamente com os outros dois comproprietários, vendeu o Lote 4 pelo preço total de €5.600.000,00, correspondendo à Requerente o valor de realização de € 1.866.666,66.
Como resulta de tudo o que anteriormente se expôs, a operação de reparcelamento determina a substituição, com plena eficácia real, dos antigos terrenos pelos novos lotes. E a constituição de novos lotes, por efeito do parcelamento, passa a constituir o título jurídico para o registo predial do novo prédio e a sua inscrição matricial, designadamente para efeitos fiscais. Por outro lado, os novos lotes não correspondem em localização, dimensão e configuração aos prédios originários, visto que todos os prédios envolvidos na operação são objecto de agrupamento e posterior divisão pelos primitivos proprietários em função de critérios urbanísticos de reestruturação do espaço territorial.
O que significa que os prédios originários deixaram de existir, física e juridicamente, e foram substituídos, por efeito da transformação fundiária, por novos prédios. E como a substituição tem plena eficácia real, não só ocorreu a eliminação dos prédios antigos como os anteriores proprietários não dispõem de qualquer direito real sobre eles por se ter constituído um novo direito real que é incompatível com o direito real de que anteriormente dispunham.
É, assim, a todos os títulos evidente que no apuramento da mais-valia imobiliária resultante da venda do lote constituído por efeito do reparcelamento não pode tomar-se em consideração, como valor de aquisição, os valores atinentes à aquisição por doação da Quinta D..., pela linear razão de que esse prédio, à data da alienação, já não tinha sequer existência jurídica e o valor de aquisição a considerar apenas pode reportar-se ao novo prédio cuja alienação constitui o facto tributário que determina a sujeição a mais-valias.
Na situação do caso, o Lote n.º 4 foi adquirido a título gratuito, visto que a sua adjudicação à Requerente e aos outros comproprietários resultou da operação de reparcelamento urbano de um espaço territorial de iniciativa camarária que integrava um prédio de que eram os primitivos proprietários e que foi substituído pela constituição desse Lote.
Nos termos do artigo 45.º do Código do IRS, para a determinação dos ganhos sujeitos a IRS considera-se o valor de aquisição, no caso de bens ou direitos adquiridos a título gratuito, o valor que tenha sido considerado para efeitos de liquidação de imposto do selo ou o valor que serviria de base à liquidação de imposto do selo, caso este fosse devido.
O artigo 13.º, n.º 1, do Código do Imposto de Selo determina, por sua vez, que o valor dos imóveis é o valor patrimonial tributário constante da matriz nos termos do CIMI à data da transmissão, ou o determinado por avaliação nos casos de prédios omissos ou inscritos sem valor patrimonial.
Sendo o ganho sujeito a IRS constituído pela diferença entre o valor da aquisição e o valor da realização (artigo 10.º, n.º 4, alínea a), do Código do IRS), a mais-valia teria de ser apurada com base no valor de aquisição e no valor de realização referentes ao Lote 4 que foi o imóvel objecto de alienação. Sendo que o valor de aquisição é de € 915.430,00, correspondente a um terço do valor patrimonial tributário desse imóvel (€ 2.746.290,00), e o valor de realização de € 1.866.666,66, correspondente a um terço do preço de venda (€ 5.600.000,00), tal como consta da inicial declaração de IRS apresentada pela Requerente.
Assim sendo, a correcção realizada pela Autoridade Tributária, tendo por base o valor de aquisição de um prédio nem sequer já existente na ordem jurídica, é manifestamente ilegal e não pode manter-se na ordem jurídica.
Fica necessariamente prejudicado o conhecimento do pedido subsidiário.
Reembolso do imposto indevidamente pago e juros indemnizatórios
7. A Requerente pede ainda a condenação da Autoridade Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.
De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”. O que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.
Por efeito da reconstituição da situação jurídica em resultado da anulação do acto tributário, há assim lugar ao reembolso do imposto indevidamente pago.
Ainda nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, de um e outro desses diplomas, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito.
Há assim lugar, na sequência de declaração de ilegalidade do ato de liquidação de IMT, ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos das citadas disposições dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT, calculados sobre a quantia que a Requerente pagou indevidamente, à taxa dos juros legais (artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.º 4, da LGT).
Decisão
Termos em que se decide:
a) Julgar procedente o pedido arbitral e anular os actos de liquidação adicional em IRS n.º 2019..., no valor de €362.716,97, da liquidação de juros compensatórios n.º 2019..., no valor de €2.710,44, e da demonstração de acerto de contas n.º 2019..., que vêm impugnados;
b) Condenar a Autoridade Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago o no pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito.
Valor da causa
A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 191.510,91, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.
Notifique.
Lisboa, 7 de Janeiro de 2021
O Presidente do Tribunal Arbitral
Carlos Fernandes Cadilha
O Árbitro vogal
Fernando Borges de Araújo
A Árbitro vogal
Sofia Ricardo Borges (com declaração de voto de vencido em anexo)
Declaração de Voto
Votei vencida a Decisão por não a acompanhar seja na sua fundamentação, seja no seu sentido. Pelas razões que passarei a percorrer, e sempre com todo o devido respeito.
Expõe a Requerente que, na Liquidação em crise, a Requerida considerou - para efeitos de cálculo da Mais Valia tributável, i.e., para a determinação dos ganhos por si auferidos que ficam sujeitos a IRS (Categoria G) - não o valor de aquisição do bem imóvel por si alienado em 2018, mas sim o valor de aquisição do bem imóvel de que (ela Requerente) era proprietária antes da operação de loteamento ocorrida, de reparcelamento. Operação urbanística, de reestruturação da propriedade fundiária - propriedade do solo, pois - para a qual entrou com o dito bem imóvel anterior.
Na sequência desta operação de loteamento, refere, o imóvel de que era antes proprietária foi extinto. E da mesma operação resultou um Lote - “Lote 4” – que “adquiriu na sequência” da operação (cfr. 23.º do PPA), e que foi o imóvel por si alienado onerosamente em 2018. Sendo que foi da venda deste último que lhe adveio um ganho. Pelo que, alega, a Requerida ao proceder como procedeu violou a lei.
Vejamos. E enquadrando previamente de modo breve a questão.
Estamos em sede de IRS. E em sede de tributação de rendimentos da Cat. G.
O IRS é um imposto de formação sucessiva. Não sendo os rendimentos aí tributados na Cat. G excepção. E em particular as mais valias imobiliárias são frequentemente de formação contínua ao longo de vários anos.
O facto tributário em causa nos presentes autos tipificou-o o legislador, no respectivo Código - CIRS, art.º 10.º, n.º 1, al. a) - assim:
“1. Constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de:
a) Alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis (…).”
Em IRS tributa-se o rendimento na base de uma concepção de “rendimento-acréscimo”. Concepção por natureza mais adequada, do que seria uma concepção “rendimento-produto”, à tributação em função da capacidade contributiva dos sujeitos passivos.
Porém, e estamos agora a pensar especificamente na tributação das mais-valias em IRS, a concepção “rendimento-acréscimo” é atenuada pelo princípio da realização. Os rendimentos que se tributam são os realizados, e não os meramente latentes ou potenciais. Tributam-se os rendimentos efectivamente realizados, apenas no momento da realização. Foi esta a opção do legislador, tendo em conta as dificuldades que distinta opção necessariamente acarretaria.
As mais-valias traduzem, tradicionalmente, “uma valorização ocorrida em bens ou direitos, um ganho de carácter ocasional ou fortuito que se gera na esfera do proprietário alienante (…). Este ganho revela uma capacidade contributiva, o que justifica a respectiva sujeição a imposto.”
Pois bem. Estamos, nos autos, como aliás assente nas posições de ambas as Partes, perante uma situação enquadrável no art.º 10.º, n.º 1, al. a) do CIRS.
Ou seja: ganhos resultantes da alienação de direitos reais. Sobre bens imóveis. (v. supra).
A mais valia sujeita a IRS (“MV”) apura-se, no caso da alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis, diz-nos o legislador no n.º 4, al. a), do art.º 10.º, pela diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição. Corresponde, pois, a um ganho, a uma “diferença positiva entre o valor de realização e o valor de aquisição do mesmo bem ou direito, (…)” .
A Requerente vendeu o “Lote 4” em 2018. Cfr. Escritura Pública de compra e venda nos autos. Transmitiu, pois, o seu direito de propriedade sobre o imóvel “Lote 4”. V. art.ºs 874.º e 875.º do Código Civil.
A propriedade, diz-nos o legislador no Código Civil, é um direito real. E adquire-se – cfr. art.º 1316.º do CC – “por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei”.
Para a Requerente poder ter transmitido o seu direito de propriedade terá que o mesmo ter ingressado, antes, na sua esfera jurídica. E para ter ingressado na sua esfera jurídica tal só poderá ter ocorrido por algum dos modos expressamente previstos no referido art.º 1316.º do CC ou, quando não, por algum outro modo - previsto na lei - de aquisição do direito real propriedade (cfr. também ali, in fine). Recairíamos, para se vir a decidir como se decidiu, ou no primeiro caso ali referido - “contrato” - ou no último, i.e., em algum dos outros casos “previstos na lei”.
Adiante-se que, quanto a nós, nenhuma das duas hipóteses se verifica. Com efeito, por um lado, não seria por força do contrato de urbanização implicado na operação de loteamento que se teriam constituído e/ ou transmitido direitos de propriedade sobre bens imóveis. O contrato em causa (cfr. art.º 165.º, n.º 2 do RJIGT) cuida da regulação das relações entre os proprietários e o município, bem como entre os proprietários e outras entidades interessadas. De todo o modo, não seria título translativo do direito de propriedade de que cuidamos, sobre bens imóveis, cfr. art.º 875.º do CC. Por outro lado, não vemos que o legislador tenha conferido ao Alvará de Loteamento um efeito constitutivo de direitos reais. E/ou que o respectivo registo em sede de registo predial possa configurar um modo de aquisição do direito de propriedade. Como melhor desenvolveremos mais à frente.
Não vemos, pois, o direito real em causa (que veio a valorizar, e de cuja transmissão a Requerente obteve ganhos) senão como tendo ingressado na esfera jurídica da Requerente por via do contrato de doação, com reserva de usufruto vitalício, em 2010, e pela posterior extinção do usufruto por morte da doadora, em 2017. Cfr. pugnado pela Requerida ao proceder à Liquidação em crise.
E passemos a clarificar, agora pela positiva, o porquê de assim o entendermos.
Temos necessariamente em vista a esfera jurídica do sujeito passivo (“SP”). A Requerente. É aí que têm que ser percepcionados os ganhos em causa.
Estamos, nos autos, perante uma questão de determinação da matéria colectável. Sobre que montante haverá, afinal, de incidir o imposto de que se cuida.
O que, recorde-se, conduzirá a fazer incidir o imposto sobre os ganhos que advieram à Requerente via valorização de um direito. Que integrava a sua esfera jurídica. Direito, real, de propriedade. Sobre bens imóveis.
Mas, note-se, o imposto recairá sobre esses mesmos ganhos (os ganhos que advieram à Requerente em consequência da valorização de um direito real seu) - quando realizados, i.e., tão só e apenas no momento em que efectivamente se materializaram. Se se quiser, só no momento em que esses ganhos se traduziram num ingresso monetário na esfera da Requerente.
Tudo conforme tipificado pelo legislador – cfr. arts. 9.º, n.º 1, al. a) e 10.º, n.º 1 al. a). E v. também o art.º 10.º, n.º 3, e n.º 4, al. a)).
A respeito do conceito de matéria colectável, de forma lapidar expõe Pedro Soares Martinez , após reflectir que a faculdade contributiva não poderá ser confundida com a materialidade sobre que recai o imposto, assim: “A matéria colectável é aquela realidade económica de que se supõe provir a utilidade que justifica a sujeição do contribuinte, (…). / (…) a matéria colectável é a fonte da utilidade que justifica a sujeição do contribuinte, (…).” E, apresentando a matéria colectável como uma situação, assim: “Podemos classificar a matéria colectável consoante a sua estabilidade e tendo sempre presente a ideia de que a moderna técnica tributária nos não permite considerar a matéria colectável desligada do contribuinte. / Defeituoso será também designar por matéria colectável as próprias coisas. Matéria colectável não será o prédio, mas a situação de proprietário, de usufrutuário, etc., em relação a ele. (…) A matéria colectável é sempre uma situação que figura como base sobre que assenta o imposto.”
Visamos, pois, situações que o SP ocupa relativamente às coisas. A ocorrência, então, e em consequência, da vantagem, do ganho, na sua esfera jurídica. Mesmo que (como será) em conexão com a materialidade das coisas.
Concluímos, pois, que é por o SP ser proprietário que lhe advém um ganho.
Por ser titular desse direito real.
E é aí mesmo, nessa sua situação, que se surpreenderá a matéria colectável.
Descendo agora mais concretamente ao caso dos autos, a matéria colectável corresponderá, diremos, ao acréscimo patrimonial gerado na esfera jurídica da Requerente em virtude da sua situação de proprietária, em virtude da alienação onerosa do seu direito de propriedade por um valor superior ao valor pelo qual o adquirira.
Vejamos então, com vista à determinação da matéria colectável, e para responder à mesma questão que já vinha latente (de quando adquiriu a Requerente o direito de propriedade que em 2018 alienou), qual foi afinal o título aquisitivo pelo qual o dito direito de propriedade adveio à esfera jurídica da Requerente.
A Requerente adquirira, vimos já, em 2010, e consolidado plenamente em 2017, o direito de propriedade sobre um bem imóvel.
A seu tempo voluntariamente entrou com esse bem imóvel para uma operação de (re)estruturação da propriedade do solo.
Não transmitindo o seu direito de propriedade sobre aquele bem imóvel a ninguém, mantendo, pois, o respectivo direito de propriedade na sua esfera jurídica (vimos já que o contrato de urbanização não releva para o efeito; e é aliás pacífico, no percurso racional que se seguiu na Decisão, que não houve transmissão de direitos de propriedade no âmbito da operação urbanística – v. citação na p. 9 - “(…) a substituição, (…) art.º 169.º do RJIGT, exclui a verificação de qualquer transmissão do direito de propriedade (…).”).
Vejamos, mais uma vez.
Situamo-nos, assim o vemos, no contexto mais amplo da fiscalidade ou tributação do urbanismo, não deixará de ser relevante notá-lo. Fiscalidade por meio da qual se visa que certos encargos públicos sejam suportados pelos respectivos beneficiários directos. E que se não confunde com a, habitualmente assim denominada, “fiscalidade imobiliária ou predial”. Mais especificamente, no caso dos autos, situamo-nos em tributação geral das mais valias urbanísticas. Também elas subsumíveis, pois, quando em IRS, à previsão da norma central nestes autos – art.º 10.º, n.º 1, al. a).
A operação urbanística em causa nos autos – operação de loteamento na modalidade “reparcelamento do solo urbano”, cfr. art.º 164.º do RJIGT - para a qual a Requerente voluntariamente aportou o bem imóvel de que então era proprietária - o imóvel “anterior”, “originário” -, implica um acordo entre os proprietários dos prédios originários para a reestruturação da propriedade dos solos – v. art.ºs 162.º e 165.º do RJIGT. Por via desta operação há um agrupamento de terrenos localizados em solo urbano e uma sua posterior divisão – “com adjudicação dos lotes resultantes aos primitivos proprietários (…).” – cfr. art.º 164.º, n.º 1 do RJIGT. Há um reordenamento de terrenos (edificados ou não) de modo a constituir lotes de terreno que se adaptem aos fins de edificação. Trata-se de uma operação de reestruturação da propriedade do solo, que é executada de modo conforme aos planos territoriais (v. art.º 162.º, n.º 2 do RJIGT). Operação mediante a qual se visa uma série de objectivos e, entre o mais, “distribuir equitativamente, entre os proprietários, os benefícios e encargos resultantes do plano intermunicipal ou plano municipal;” (cfr. art.º 162.º, n.º 3, al. e)). Sendo que os planos territoriais “garantem a justa repartição dos benefícios e encargos e a redistribuição das mais-valias fundiárias entre os diversos proprietários, a concretizar nas unidades de execução, devendo prever mecanismos directos ou indirectos de perequação.” (cfr. art.º 176.º, n.º 1 do RJIGT). Mais sendo que “A repartição dos direitos entre os proprietários na operação de reparcelamento é feita na proporção do respectivo prédio à data do início do processo ou na proporção da sua área nessa data.” (cfr. art.º 168.º, n.º 1 do RJIGT).
A divisão/partilha dos lotes resultantes entre os primitivos proprietários é pois feita segundo um critério de proporcionalidade da participação inicial de cada um. Nessa medida lhes sendo adjudicados lotes resultantes da operação.
Mais se refira que o RJIGT procede à revisão do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial na sequência da aprovação, e em desenvolvimento, da Lei de Bases de política pública de solos, do ordenamento do território e do urbanismo, a qual procedeu a uma reforma estruturante, “tanto do ponto de vista dos conteúdos, no sentido de definir um conjunto de normas relativas à disciplina do uso do solo, como do ponto de vista do seu sistema jurídico, com o objectivo de traduzir uma visão conjunta do sistema de planeamento e dos instrumentos de política de solos (…)”. Mais expõe o legislador no Preâmbulo do RJIGT que pelos objectivos visados com a referida Lei de Bases (que o RJIGT desenvolve), e entre o mais, se pretendeu “introduzir uma regulamentação que permita salvaguardar os interesses dos particulares e a sua confiança no ordenamento jurídico vigente, na medida em que todas as normas relativas à ocupação, uso e transformação dos solos, para poderem ser impostas aos particulares, devem estar previstas no mesmo regulamento.” E, ao definir o objecto do RJIGT, assim: “O presente decreto-lei desenvolve as bases da política pública de solos, de ordenamento do território e de urbanismo, definindo o regime de coordenação dos âmbitos nacional, regional, intermunicipal e municipal do sistema de gestão territorial, o regime geral de uso do solo e o regime de elaboração, aprovação, execução e avaliação dos instrumentos de gestão territorial.” (cfr. art.º 1.º).
Para dizer que, quanto a nós, a propriedade - a reestruturação dela, melhor dizendo - de que se trata no âmbito das operações em causa será sempre e apenas a propriedade fundiária, a propriedade dos solos. No caso se tratando de uma operação de reparcelamento fundiário – “reparcelamento do solo urbano” é a epígrafe do art.º 164.º do RJIGT. Reconfiguração da propriedade fundiária, pois. E não mais.
As operações urbanísticas não contendem com direitos reais. Contendem com Direito do Urbanismo, com a forma. Reconfiguram a utilidade do bem.
Mais não pode o Direito de Propriedade, da Requerente, constituir-se senão por via do Direito Civil. Se dúvidas houvesse, com António Menezes Cordeiro: “No Direito civil, a propriedade é sempre estabelecida por normas de Direito privado, seja quem for o seu titular, (…).”
Como vimos de ver, não é o caso no contexto em que nos movemos.
Aflore-se ainda, e também em coerência com o que vimos de concluir, que o Direito de Propriedade não só dota o seu titular de poderes indeterminados (o proprietário tem, em princípio, todos os poderes), como é, ele próprio, dotado de certa elasticidade . E, mais, não se extingue pelo não uso -
o que corresponde à qualificação própria do Direito de Propriedade como um direito perpétuo .
Tudo para dizer que ao a Requerente entrar para uma operação de reparcelamento fundiário fê-lo enquanto proprietária de um solo urbano, com o qual entrou para um solo comum, que depois veio a ser reparcelado, constituídos que foram lotes já devidamente qualificados para fins de edificação. Mediante, pois, o ingresso com um bem de origem, e o respectivo Direito de Propriedade, seu, que veio a ser valorizado através da operação em causa. Não há, por natureza, parcelamento do solo urbano sem solo, sem propriedade prévia. Propriedade pré-existente. Na origem.
O Direito de Propriedade da Requerente sobre o bem (como é próprio dos direitos reais) existe por força do Direito Civil – cfr. CC, art.º 1316.º - no caso tendo sido adquirido por contrato de doação. E esse Direito de Propriedade não foi extinto, nem foi transmitido, no âmbito da operação de loteamento em causa.
Diferentemente, esse seu direito real foi precisamente o que legitimou a adjudicação que lhe foi feita, finda a operação, do prédio resultante (o “Lote 4”) em substituição do prédio originário. De acordo com critérios objectivos, de proporcionalidade segundo a sua participação inicial (v. art.º 168.º do RJIGT), numa lógica de perequação, visando-se uma redistribuição das mais valias fundiárias entre os proprietários (cfr. art.ºs 168.º e 176.º do RJIGT; e v. como o legislador se refere simplesmente a “proprietários” , os mesmos, no início e no fim, diremos, pois que sempre no âmbito, no exercício, na titularidade, pois, do mesmo Direito de Propriedade).
Opera-se, assim e afinal, uma reconfiguração da Propriedade (do direito real, cfr. art.º 10.º, n.º 1, al. a) do CIRS) pré-existente. Reconfiguração que comporta, e concretiza, uma sua (tendencialmente substancial) valorização.
Sendo que não acompanhamos o entendimento, que seria contra o que fica exposto, no sentido de que o acto de licenciamento da operação, a titular por Alvará, implicaria uma aquisição originária dos Lotes resultantes. Como já supra aproximámos, não cremos que se possa reconhecer um tal efeito – constitutivo de direitos reais – ao dito acto administrativo. Desde logo, como acto administrativo que é. Por tudo quanto também já ficou exposto.
Mas mais. Parece-nos clara a contraposição expressamente declarada pelo legislador, cfr. art.º 169.º, n.º 1, do RJIGT, entre o que denominou de “substituição” - al. a), e o que, diferentemente, qualificou como “transmissão” - al. b). “Substituição, com plena eficácia real”, por um lado, e “transmissão (…) de pleno direito e livre de quaisquer ónus ou encargos”, por outro.
No primeiro caso a substituição “dos antigos terrenos pelos novos lotes”. Sem mais referências. Sabendo-se, portanto, que sempre no âmbito da esfera jurídica dos proprietários. Os mesmos. No início, como no fim da operação. E no segundo caso, diferentemente, a transmissão “para a câmara municipal”, a cedência de bens imóveis para fins de utilidade pública à Câmara Municipal.
Parece-nos clara, no primeiro caso, contrariamente ao do segundo, a confirmação da manutenção do direito real de propriedade sempre na mesma esfera jurídica. No nosso caso, na esfera jurídica da Requerente. Substituição do respectivo objecto, se se quiser (por reconfiguração fundiária). Manutenção, porém, sempre, do direito real pré-existente. Inerência do direito à coisa , reconfigurada.
Revelador também, quanto a nós, de que o legislador de forma expressa reconhece estarmos sempre no âmbito do mesmo direito real quando da tal “substituição” se trata é o por si disposto no art.º 164.º, n.º 1 (RJIGT), parte final. Ao determinar que também poderão beneficiar dos novos lotes “outros interessados”, sendo que para esse caso, e só para esse (que não para o da adjudicação aos primitivos proprietários), cfr. Preâmbulo do DL n.º 316/2997, de 19.09, se exigirão “adequados instrumentos contratuais”.
Mais, também não se entende, o que novamente seria contra o que antecede, que será por o registo da individualização dos novos lotes, em sede de registo predial, se fazer com base no Alvará, que daí - por via de ser levado a registo predial o acto administrativo de controlo municipal (seja ele Alvará, seja Certidão) - decorrerá a constituição (e aquisição pela Requerente) de um novo direito real. Senão vejamos.
Antes de mais, o registo predial destina-se a tornar públicos os actos. Conferir publicidade. Não reveste, regra geral, efeitos constitutivos.
E veja-se como, cfr. art.º 108.º do RJIGT, o registo a que se procede é um registo de “individualização” dos prédios resultantes. Que incide “apenas sobre as inscrições prediais em que o requerente surja como titular”, e em que “é dispensada a menção do sujeito passivo”.
Veja-se também como na base desse mesmo registo - v. art.º 107.º, n.º 3, em especial al.s a), b) e g) RJIGT - se exige toda uma documentação para verificação da correspondência dos prédios resultantes aos prédios originários.
Veja-se, por fim, como pelo art.º 2.º do Código do Registo Predial fica patente estarmos perante realidades que se não confundem: o que está sujeito a registo – cfr. al. d) do respectivo n.º 1 na sua redacção actual – são “As operações de transformação fundiária resultantes de loteamento, (…) e de reparcelamento (…);”. Com o que se não confunde o disposto, e como não poderia deixar de ser, disposto em separado, a saber, na al. a) do mesmo n.º 1: “Estão sujeitos a registo: a) Os factos jurídicos que determinem a constituição, o reconhecimento, a aquisição ou a modificação dos direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, superfície ou servidão;”. Só neste último caso, pois, factos jurídicos com eficácia real. (E, novamente, registo para fins de publicidade, conferindo-se-lhe fé pública).
Pretendeu-se, através da sujeição a registo dos factos constantes da al. d), publicitar direitos e obrigações inerentes às operações de loteamento. Realidade factual que não é confundível com os factos sujeitos a registo nos termos da al. a). Parece-nos claro.
Prova de que o que foi levado a registo após o loteamento não é causa aquisitiva de um direito real encontramos também na Certidão do Registo Predial “pós-operação de loteamento”, nos autos, entre o mais quando ali se lê assim: “Desanexado do prédio n.º 5452/…”. Propriedade pré-existente, pois. Prédio anteriormente descrito. A favor da Requerente. Assim se cumprindo, no caso, o trato sucessivo. E não será, quanto a nós, por nesse documento constar como de “Aquisição” uma Ap. que o que dizemos ficará prejudicado. Por um lado estamos aí, como também ali se lê, no âmbito de uma “Inscrição” (e, v., art.º 91.º, n.º 2 do CRP). Por outro, aí se lê, de seguida, assim: “CAUSA: Adjudicação em Operação de Loteamento”. Por tudo o que ficou exposto, e sem mais desenvolvimentos, mantemo-nos no âmbito do mesmo direito real, pré-existente, na esfera jurídica da Requerente, cumprindo-se o trato sucessivo em relação ao Lote 4.
Em conclusão, e quanto a nós, foi o prédio originário o único prédio que a ora Requerente adquiriu. Não adquiriu outro. Não houve outro momento aquisitivo do direito real de Propriedade pela Requerente. O seu direito de Propriedade, pré-existente ao reparcelamento, manteve-se desde então na sua esfera jurídica, assim lhe sendo reconhecido o direito, de acordo com as regras próprias do reparcelamento, ab initio, a ver a si adjudicado (na partilha dos lotes resultantes), no final, um ou vários lotes, em cumprimento de um critério de proporcionalidade reportado “à data do início do processo ou na proporção da sua área nessa data”. O que, no caso, veio a operar através do Lote 4.
Com as devidas adaptações, a adjudicação/substituição do imóvel originário pelo resultante retroage os seus efeitos, bem vistas as coisas, no que aos autos releva, à data do início do procedimento de operação urbanística (v. art.º 168.º, n.º 1 do RJIGT). Como numa aquisição de bens imóveis por via sucessória a partilha da herança faz retroagir os respectivos efeitos à data da morte do de cujus por os respectivos herdeiros terem desde então um direito a uma quota ideal nos imóveis incluídos na herança e que só por efeito da partilha vem a ser concretizada/vêm a ser adjudicados . Como que, com o desencadear da operação de loteamento, os proprietários dos prédios originários têm, por força do seu direito de propriedade sobre os mesmos - direito real já então na sua esfera jurídica, portanto - um direito a quinhoar nos lotes resultantes (na medida da proporção dos prédios originários de que, nesse momento, são titulares). E é apenas com a adjudicação – “substituição” – que esse direito (a quinhoar) se concretiza. Se materializa em lote(s) resultante(s). Mas, como assim bem se compreenderá, sempre sob a “alçada” do direito real pré-existente na esfera jurídica dos proprietários. E pré-existente porque - o que aos autos mais concretamente releva – aí existente desde a aquisição do imóvel originário.
Como é bom de ver, parece-nos, a referida “substituição” cristaliza um (necessariamente relevante) acréscimo de valor daquele direito de propriedade, na esfera jurídica da Requerente. Rendimento latente, então ainda.
Isso mesmo, aliás, é revelado pela avaliação a que então se sujeita os lotes resultantes, para efeitos de IMI, cfr. art.º 13.º, al. d) do CIMI. Lotes que substituem, vimos, os prédios originários. Sempre na titularidade dos respectivos proprietários – os mesmos, antes como depois (cfr. supra). Porque titulares do respectivo direito real sobre eles – o mesmo direito real, antes como depois. É nessa perspectiva que vemos relevar, para efeitos dos presentes autos, a dita avaliação e VPT daí resultante.
Sem surpresa, também na Caderneta Predial “pós-operação de loteamento”, nos autos, se lê: “Teve origem nos artigos (…)”. Prévia inscrição na matriz, pois. Na origem.
Quanto à referência à substituição como tendo “plena eficácia real”, feita pelo legislador no art.º 169.º, n.º 1, al. a), e com Fernanda Paula Oliveira: “Atenta a transformação fundiária operada pela operação de reparcelamento a mesma produz efeitos registrais./Do ponto de vista registral, o que terá de se promover é a inscrição da operação de reparcelamento que, tendo sido aprovada ou licenciada, produz efeitos reais, isto é, de transformação da situação fundiária de área.”
Assim, e muito embora as operações de loteamento tenham por efeito a constituição de direitos urbanísticos (conferem ao proprietário, dos novos lotes, o direito a vir a concretizar as operações urbanísticas ali previstas, para os novos lotes), não têm por efeito – quanto a nós e por tudo o que fica exposto - a constituição de direitos reais.
Novamente regressando ao início, dir-se-à que os lotes resultantes adquirem um valor de mercado mais elevado que os prédios originários. Revestem-se, fruto da operação em causa, e para além do mais, de capacidade edificativa precisa. O direito real de propriedade sobre eles incidente adquiriu valor. No caso, valorizou-se na esfera jurídica da Requerente, o que traduz ganhos que contudo não foram realizados (traduzidos em dinheiro) senão aquando da sua transmissão em 2018, já tendo por objecto o Lote 4. Ganhos latentes ou potenciais que existiram ao longo do tempo - (IRS como imposto de formação sucessiva, também na Categ. G) - até este último momento, momento que é aquele que o legislador elegeu na determinação do facto tributário. Mas ganhos que não deixam de revelar, mesmo que enquanto “apenas” latentes, capacidade contributiva, na esfera da Requerente - (tributação do rendimento-acréscimo, temperado pelo princípio da realização).
Tentemos ainda, a terminar, uma aproximação ao que vem exposto por via de uma concretização hipotética. A seguir-se o entendimento que conduz à Decisão, e supondo que a Requerente havia visto o Lote 4 individualizado no registo predial a 1 de Janeiro de 2021, sendo o respectivo VPT, cfr. avaliação para efeitos de IMI e respectiva actualização da matriz após o loteamento, de € 2.746.290,00; e havia vendido o mesmo a 2 de Janeiro de 2021. Pelo preço de € 2.746.500,00. O ganho de mais-valia a tributar seria, então, no valor de € 210,00. Seria essa a matéria colectável sobre a qual iria incidir o imposto. Será ela correspondente ao ganho que a Requerente obteve na sua esfera jurídica com a valorização do seu direito de propriedade, e que realizou na venda a 2 de Janeiro? Cumprir-se-ia assim a aplicação devida do art.º 10.º, n.º 1, al. a)?
Mais rigorosamente, aliás, iriam abater-se as despesas incorridas pela Requerente na operação urbanística e chegar-se-ia ao resultado de ter a Requerente afinal incorrido numa menos valia.
Com todo o respeito, que é muito, não nos é dado acompanhar.
O apuramento da diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição (cfr. art.º 10.º, n.º 4, al. a)) para efeitos de cálculo do ganho sujeito a IRS havia que fazer-se por referência à aquisição pela Requerente do direito real, de propriedade, sobre o imóvel originário – Quinta D... (em 2010 e 2017, cfr. Liquidação em crise), direito real que veio a transmitir, onerosamente, em Setembro de 2018, tendo por objecto o Lote 4.
A situação recai sim no art.º 45.º – porém nos termos supra expostos. A Liquidação correctiva foi feita pela Requerida nos termos legais, mais tendo sido, como devido, consideradas a abater ao ganho de mais valias as despesas declaradas pela Requerente como incorridas (na medida da sua quota-parte) com as obras de infraestrutura e urbanização.
Por fim, o pedido subsidiário formulado pela Requerente, como resultará claro, é contrário a tudo o que vem exposto, ao pretender considerar como valor de aquisição o valor que se vem de concluir ter sido o correcto, ainda acrescido do VPT atribuído ao Lote 4 (que designa de “valor de aquisição do Lote 4”). Pelo que, igualmente, não poderia proceder.
(Sofia Ricardo Borges)