Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 102/2020-T
Data da decisão: 2021-01-04  IRC  
Valor do pedido: € 489.061,55
Tema: IRC - Fusão inversa; dedutibilidade de gastos de financiamento. Artigo 23.º do CIRC.
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Sumário:

I – A produção dos normais efeitos jurídico-económicos de uma fusão inversa, consentidos e impostos pelo direito comercial, implicam a transmissão dos direitos e obrigações da sociedade incorporada para a sociedade incorporante, aqui Requerente.

II. Assim, se os juros derivados de financiamento concedido à sociedade incorporada eram fiscalmente aceites previamente à fusão (porque os capitais alheios estavam aplicados para um fim específico), então também o serão após a fusão, que se limitou a seguir as regras do direito comercial, de transmissão de todos os direitos e obrigações da incorporada, e continuam a ser considerados juros de capitais alheios aplicados na exploração (agora reestruturada por efeitos legais da fusão), ao abrigo do disposto no art. 23.º, n.º 1 e n.º 2, al. c) do CIRC. Neste âmbito, não se pode dizer que os capitais alheios deixaram de ser aplicados.

III - O artigo 23.º do CIRC não se reconduz a uma norma antiabuso, que pudesse ser utilizada em substituição do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, artigo 73.º, n.º 10 do CIRC ou artigo 63.º do CIRC.

IV – A AT poderia ter indagado se as motivações para a fusão inversa foram essencial ou principalmente fiscais, aplicando, se fosse o caso, o art.º 38.º n.º 2 da LGT quanto à dedutibilidade dos juros. Porém, não o tendo feito, não cabe aqui apreciar tal questão, pois a mesma não constitui fundamento dos atos tributários impugnados.

 

Os Árbitros Alexandra Coelho Martins, Guilherme W. d´Oliveira Martins e Luís Menezes Leitão, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

 

1.            A..., S.A., pessoa coletiva n.º..., com sede na Rua ..., n.º..., Edifício ..., ...-... ... (doravante “Requerente”), veio, ao abrigo do disposto nos artigos 95.º da Lei Geral Tributária (“LGT”), 99.º, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), 137.º, n.º 1, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“CIRC”) e 10.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (“RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral Coletivo,

2.            A Requerente solicita na presente ação arbitral a apreciação da legalidade das liquidações de IRC e juros compensatórios n.º 2019..., de 2 de outubro de 2019, relativamente ao ano de 2015, e n.º 2019..., de 2 de outubro de 2019, relativamente ao ano de 2016, das quais resultou um valor total a pagar de € 489.061,55, com base nos seguintes fundamentos:

a)            Tais liquidações de IRC foram emitidas na sequência de ação de Inspeção tributária interna levada a cabo pela Direção de Finanças de Lisboa a coberto das ordens de serviço n.os OI2018... e OI218..., no âmbito da qual a Administração Tributária determinou correções ao lucro tributável da Requerente, nos valores de € 744.390,99 e € 979.753,66, relativas aos anos de 2015 e 2016, respetivamente, decorrentes da não aceitação da dedução fiscal de custos financeiros suportados pela Requerente, por suposto não enquadramento como gasto nos termos do artigo 23.º do CIRC – cfr. Relatório da Inspeção Tributária contendo a fundamentação das referidas correções e, nessa medida, das liquidações impugnadas.

b)           A Requerente não se conforma com os referidos atos tributários de liquidação, considerando que as referidas correções enfermam do vício de violação de lei, razão pela qual pretende a constituição de Tribunal Arbitral que emita pronúncia sobre a ilegalidade das liquidações n.os 2019 ... e n.º 2019 ..., ambas de 2 de Outubro de 2019.

c)            A Requerente é uma sociedade comercial anónima, enquadrada no regime geral para efeitos de IRC, que desenvolve a sua atividade no âmbito da prestação de serviços de gestão integrada de créditos, incluindo análise, aconselhamento, gestão imobiliária, securitização e estruturação, entre outros serviços, tendo sido constituída em 2007 pela B... LIMITED, sociedade de Direito inglês.

d)           A 20 de Maio de 2014, 100% do capital social da Requerente foi comprado pela sociedade de Direito português C..., S.A., pessoa coletiva n.º ..., com sede na Rua Duque de Palmela, n.º 23, em Lisboa.

e)           A 22 de Dezembro de 2015, no contexto de uma operação de fusão por incorporação, nos termos do artigo 97.º, n.º 4, alínea a), do Código das Sociedades Comerciais (“CSC”), a Requerente incorporou a referida C..., S.A.

f)            Esta operação de fusão ocorreu num processo de reestruturação e reorganização da atividade do Grupo multinacional D... em Portugal:

«Esta reestruturação, no que respeita às sociedades do grupo sediadas em Portugal, decorre, entre vários factores, da entrada do grupo D... em Portugal através da constituição de uma sociedade holding –E..., S.A. –, que por seu turno adquiriu participações na sociedade C..., S.A., a qual detém totalmente a sociedade A..., S.A. [Requerente], o que resultou na duplicação de estruturas jurídicas independentes e redundantes e que geram ineficiências ao nível jurídico, fiscal, administrativo, pelo que existe necessidade de obter sinergias e de dotar a actividade do grupo de uma maior eficácia. Acresce que a redução de obrigações legais e dos custos inerentes, designadamente de obrigações contabilísticas e fiscais, ao mesmo que traduz uma política de desburocratização da actividade desenvolvida pelas sociedades, é igualmente uma forma de alcançar per si as desejadas sinergias e também eficiência e simplicidade […]. A existência de duas sociedades como a C... e A... [Requerente] – detendo a primeira a totalidade do capital social da segunda, e constituindo essa detenção de capital social a única actividade e activo da C...–, representa uma redundância porquanto se podem prosseguir os mesmos resultados de actividade através da supressão da C..., replicando-se a estrutura accionista existente nesta na A... [Requerente] […]. O acto de concentração projectado comporta assim inegáveis vantagens económico-financeiras na perspectiva de reestruturação projectada nesta operação de concentração, […] contribuindo desta forma também, ainda que indirectamente, para o reforço da competitividade da economia portuguesa, a qual necessita de dispor de empresas de cariz nacional capazes de contribuir eficientemente para o aumento do valor acrescentado interno».

g)            Com a referida operação de fusão, todos os direitos e obrigações da C..., S.A. foram transmitidos para a Requerente, entre os quais uma dívida de suprimentos de Maio de 2014 à então acionista da sociedade incorporada F... S.A.R.L. – crédito este que, em Abril de 2015, cedido pela F... S.A.R.L. à E…, S.A.

h)           No que concretamente respeita ao suprimento referido supra (concedido a 20 de Maio de 2014 pela F... S.A.R.L. à C...), a Requerente suportou encargos financeiros no montante de € 744.390,99 em 2015 e no montante de € 979.753,66 em 2016.

i)             Em cumprimento das ordens de serviço n.os OI2018... e OI218..., os Serviços da Divisão de Inspeção Tributária VI da Direção de Finanças de Lisboa levaram a cabo uma ação de Inspeção tributária à Requerente, de âmbito parcial, respeitantes aos exercícios de 2015 e 2016.

j)             Através de Ofício datado de 27 de Agosto de 2019, dos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Lisboa, a Requerente tomou conhecimento do projeto de correções do relatório final de Inspeção tributária, de cujo conteúdo resultava, em síntese, o seguinte:

k)            Os gastos financeiros suportados pela A... [Requerente] com o financiamento obtido pela C... para a aquisição das ações da A... em nada se relacionaram com a atividade da A... e em nada contribuíram ou vão contribuir para a realização de rendimentos sujeitos a imposto […]. Aquele financiamento, quando contraído, foi utilizado unicamente para o pagamento das ações da A... . Não faz parte da atividade da A... a sua própria aquisição […]. Não poderão ser aceites fiscalmente na esfera da A... por não contribuírem para a realização de rendimentos sujeitos a IRC, nos termos do número 1 do artigo 23.º do Código do IRC».

l)             Do teor do projeto de correções do relatório final de Inspeção tributária, e no que à matéria com relevância para os presentes autos concerne, resultavam, assim, correções ao lucro tributável de IRC de 2015 no montante de € 744.390,99 e de 2016 no montante de € 979.753,66.

m)          No dia 16 de setembro de 2019, a Requerente exerceu o respetivo direito de audição prévia, manifestando a sua discordância com a posição sufragada pela Administração Tributária.

n)           Através do Ofício n.º ..., de 25 de setembro de 2019, dos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Lisboa, a Requerente foi notificada do Relatório Final de Inspeção Tributária, de cujo teor resultava a conversão em definitivo do entendimento sufragado no referido projeto de correções.

o)           Assim, tal como resulta do Relatório Final de Inspeção Tributária, a Administração Tributária, não contestando a ocorrência de uma fusão por incorporação e da consequente assunção pela Requerente da totalidade dos direitos e obrigações da C..., cristalizou o entendimento de que a Requerente não pode deduzir no apuramento do seu lucro tributável para efeitos de IRC um gasto que seria da C..., sustentando que tal gasto não se enquadra no artigo 23.º do CIRC por falta de conexão com a atividade da Requerente e, bem assim, com a geração de rendimentos sujeitos a IRC.

p)           Face às correções decorrentes do referido Relatório Final de Inspeção Tributária, foi liquidado adicionalmente o montante de IRC e juros compensatórios de € 201.917,95, nos termos da liquidação de IRC e juros compensatórios n.º 2019..., de 2 de Outubro de 2019, relativamente ao ano de 2015, e o montante de IRC e juros compensatórios de € 272.972,78, nos termos da liquidação de IRC e juros compensatórios n.º 2019..., de 2 de Outubro de 2019, relativamente ao ano de 2016, resultando de tais atos tributários um valor total a pagar de € 489.061,55.

q)           Sem prejuízo de considerar manifestamente ilegais os referidos atos tributários de liquidação – motivo pelo qual apresenta o presente requerimento arbitral, o qual todavia não suspende a eficácia dos atos impugnados –, a 20 de Novembro de 2019 e 22 de Novembro de 2019, a Requerente procedeu ao pagamento integral das referidas liquidações de imposto e juros compensatórios.

r)            A Requerente reputa de inadmissíveis as liquidações adicionais de IRC e juros compensatórios em referência, não se conformando com as mesmas, entendendo que tais atos tributários são ilegais e consequentemente anuláveis, ao abrigo do artigo 163.º do Código de Procedimento Administrativo (“CPA”).

s)            Conforme resulta da factualidade que se deixou exposta, a questão decidenda nos presentes autos consiste em aferir da legalidade das correções ao lucro tributável de IRC determinadas pela Administração Tributária na inspeção tributária dos exercícios de 2015 e 2016 da Requerente, respeitantes à rejeição da dedutibilidade fiscal dos custos financeiros suportados pela Requerente após a concretização de uma operação de fusão inversa, e, por via disso, da legalidade das liquidações de imposto e juros compensatórios acima identificadas e dela resultantes.

 

3.            A Autoridade Tributária, na sua resposta, defende a legalidade dos atos tributários praticados e alega, em síntese o seguinte:

a)            A C..., sociedade que veio a ser incorporada na Requerente A..., passado nem 3 meses após a sua constituição, contraiu um financiamento junto do seu único acionista (a F...) para poder adquirir partes de capital - a totalidade do capital da Requerente;

b)           Esse financiamento foi precisamente aquele que originou os gastos financeiros objeto do presente litígio.

c)            Os gastos incorridos com o financiamento obtido para a aquisição do capital da Requerente A... (sociedade adquirida) traduzem um ato de gestão suscetível de gerar rendimentos na esfera da C... (sociedade adquirente), nomeadamente através de eventuais dividendos distribuídos ou de eventuais mais-valias obtidas com uma futura alienação das partes sociais adquiridas.

d)           Logo, estes gastos consubstanciavam um gasto para efeitos fiscais nos termos do artigo 23.º do Código do IRC na esfera da C....

e)           Pois bem, como consta do RIT, com a incorporação da C... na Requerente, por fusão, o financiamento obtido pela C... junto do seu acionista para a aquisição da Requerente A..., foi transferido para esta sociedade e o mesmo aconteceu com os respetivos gastos.

f)            Ou seja, com esta operação de fusão, verificou-se que os juros do financiamento relacionado com a aquisição das partes de capital da Requerente A..., passaram a ser suportados por ela própria, isto é, a sociedade adquirida passou a suportar os encargos financeiros com a sua própria aquisição.

g)            No entanto, demostram o RIT e a Resposta que, com esta operação de fusão, o financiamento e os respetivos juros foram transferidos para a Requerente A..., mas as partes de capital que foram adquiridas com esse financiamento não foram transferidas para a Requerente, mas para os acionistas da Requerente.

h)           De acordo com o RIT, a atividade desenvolvida pela C... era, exclusivamente, a detenção de 100% do capital da Requerente A..., o seu único ativo.

i)             Ora, concorda-se com a Requerente quando afirma que a fusão por incorporação visa a manutenção da atividade económica da sociedade incorporada, a qual continua a ser prosseguida pela sociedade incorporante por meio da integração dos elementos afetos a esta atividade na sociedade incorporante, e na sequência dessa integração, a personalidade jurídica da sociedade incorporada extingue-se, mas a respetiva atividade económica continua a ser prosseguida pela sociedade incorporante.

j)             Não obstante, tal situação não acontece no presente caso, porquanto, como demonstra o RIT, as ações da Requerente A..., o único ativo e fundamento da atividade da C..., não são transferidas para a A..., mas para os seus acionistas.

k)            Desta forma, como bem consideraram os SIT, os “gastos financeiros não poderão ser aceites fiscalmente na esfera da A... por não contribuírem para a realização de rendimentos sujeitos a IRC, nos termos do número 1 do artigo 23º do Código do IRC”.

l)             O argumento da Requerente no sentido de que só com a aplicação da cláusula anti-abuso, prevista no número 2 do artigo 38.º da LGT, seria possível à AT desconsiderar a fusão para manter a dedutibilidade daqueles gastos fora da esfera jurídica da Requerente A..., não merece acolhimento.

m)          Nunca, ao longo do RIT, se afirma que a fusão inversa deveria ser considerada abusiva para efeitos fiscais.

n)           Sendo que, ao contrário do que afirma a Requerente, não é necessário desconsiderar a fusão, reputando-a como abusiva, para manter a dedutibilidade fiscal daqueles gastos fora da sua esfera jurídica.

o)           Porquanto, a AT se encontra legitimada por lei para efetuar correções ao lucro tributável declarado pelo contribuinte quando não se mostram cumpridos os pressupostos definidos no CIRC para efeitos de dedutibilidade dos custos incorridos, como lhe impõe, aliás, o princípio da legalidade, com fundamento em normas especiais anti-abuso, ou noutras normas do CIRC que determinam ajustamentos aos custos decorrentes das limitações fiscais relativas aos montantes ou natureza dos mesmos.

p)           In casu limitou-se a Inspeção Tributária a efetuar correções aritméticas à matéria tributável de IRC declarada, por desconsideração fiscal da dedução de encargos financeiros que não reúnem os requisitos do artigo 23.º do CIRC, sem ter que lançar mão da cláusula geral anti-abuso.

q)           Neste contexto, ao escrutinar a dedutibilidade fiscal dos gastos financeiros deduzidos pela Requerente, a Inspeção Tributária fê-lo dentro do quadro legal aplicável, ou seja, analisando se estavam verificados os requisitos e condições estabelecidos no n.º 1 do art.º 23.º do Código do IRC.

r)            Conforme sustenta o RIT, ao contrário do que acontece na fusão por incorporação tradicional, os elementos patrimoniais que originaram os encargos financeiros em apreço (os ativos, a totalidade das ações representativas do capital da Requerente A...) não são transferidos para a sociedade beneficiária, mas sim para os seus acionistas.

s)            Ou seja, é na esfera destes acionistas e não na esfera da sociedade beneficiária A... que, contrariamente ao que sucede no outro tipo de fusão, os ditos elementos patrimoniais contribuirão para a obtenção de rendimentos.

t)            Com efeito, a neutralidade da operação de reestruturação no modo de fusão não deve implicar, sem mais, a transmissibilidade de todos e quaisquer gastos fiscais, mas apenas daqueles que se relacionem com os elementos patrimoniais transmitidos.

u)           Nesta operação é evidente que há elementos patrimoniais que não são transmitidos para a sociedade beneficiária mas sim para os seus acionistas, dai que os correspondentes gastos associados não devam ser relevados na esfera fiscal da Requerente A..., uma vez que os rendimentos a eles associados, porque se tratam de lucros distribuídos/a distribuir aos acionistas e mais e menos valias realizadas derivadas da alienação onerosa de partes de capital, também não vão manifestar-se na sua esfera económica e fiscal, mas sim na esfera económica e fiscal daqueles outros.

v)            Concorda-se em absoluto com a Requerente quando refere que a dedutibilidade fiscal de um gasto depende apenas de uma relação causal e justificada com a atividade da empresa, pelo que ficam de fora apenas os atos de gestão desconformes com o escopo social, aqueles que não se inserem no interesse da sociedade, que dizem respeito apenas a um interesse individual do sócio ou grupo de sócios, porque não visam obter ou garantir rendimentos.

w)          Ora, foi precisamente o que aconteceu com a incorporação, por fusão, da C... na Requerente A... .

x)            O gasto não passou a ter uma relação causal e justificada com a atividade da Requerente A..., uma vez que que a atividade da C... não continuou na A..., mas na esfera dos acionistas da A..., porque, reitera-se, as ações da A..., adquiridas com recurso ao financiamento que gerou os gastos em causa, não transitaram para a A..., mas para os seus acionistas.

y)            Com a fusão, a A... passou a suportar gastos no interesse dos seus acionistas, os beneficiários efetivos dos rendimentos resultantes da titularidade das ações da A..., o que não está conforme com o seu escopo social.

z)            Assim, como bem demostra o RIT, estes gastos não são indispensáveis para a Requerente A..., à luz do preceituado no número 1 do artigo 23.º do Código do IRC.

aa)         Quanto ao argumento de que para apreciar o preenchimento do requisito da indispensabilidade dos gastos suportados com os juros o momento relevante é o da contração dos empréstimos, i.e., quando nasce a obrigação que a eles dá lugar, está o mesmo, com o devido respeito, inquinado por um erro de análise da lei.

bb)         Efetivamente, no IRC o facto gerador do imposto, consubstanciado na formação do lucro tributável, nasce em cada período de tributação e para a sua quantificação concorrem os gastos, os rendimentos e as variações patrimoniais positivas e negativas, imputáveis a cada período de tributação, em conformidade com o princípio da especialização dos exercícios.

cc)          Ora, de acordo com o n.º 1 do art.º 18.º do Código do IRC, a imputação dos gastos e dos rendimentos baseia-se em critérios de competência económica que, quando se trata de juros, não atendem à data de vencimento ou de pagamento, mas antes apelam para o custo da utilização dos capitais alheios pela empresa durante um determinado período de tempo.

dd)         Por isso, na apreciação da indispensabilidade dos gastos relativos a juros suportados com capitais alheios, em cada período, é imperioso analisar a operação subjacente que a eles deu origem em ordem a concluir se os capitais alheios foram utilizados ou aplicados pela empresa na exploração e consequentemente deram um contributo para a obtenção dos rendimentos ou para a manutenção da fonte produtora, como resulta, aliás, do Acórdão do STA de 19-04-2017, proc. n.º 0925/16.

ee)         Não basta, portanto, para aferir da indispensabilidade dos juros suportados em cada período de tributação, tomar como base a conexão com os rendimentos ou a fonte produtora existente no período de contração dos empréstimos que a eles dão lugar,

ff)           Sobretudo se, como no caso em apreço, a ligação inequívoca verificada nesse período entre as partes de capital e os financiamentos obtidos para a sua aquisição é desfeita na sequência da fusão, por motivo da atribuição das ações da Requerente A..., adquiridas com recurso ao financiamento que gerou os gastos em causa, não a esta entidade, mas aos seus acionistas.

gg)         Como se extrai da interpretação jurisprudencial e doutrinal do requisito da indispensabilidade dos gastos enunciado no n.º 1 do art.º 23.º do Código do IRC “a indispensabilidade de um custo tem sido interpretada como um conceito indeterminado de necessário preenchimento casuístico, em resultado de uma análise de perspetiva económica-empresarial, na perceção de uma relação de causalidade económica entre a assunção de um encargo e a sua realização no interesse da empresa” (cfr. Acórdão do TCAS, de 23/03/2017, proc.º n.º 06792/13),

hh)         Ou seja, o juízo de avaliação tem de ser feito não em abstrato, mas, em confronto com a realidade e as circunstâncias de cada caso, em ordem a estabelecer um nexo entre os gastos e o interesse da empresa que os suporta (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 42/2014, de 09/12). 

ii)            Donde resulta que o exemplo extraído do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul n.º 1550/15.0BELRS, de 5 de junho de 2019, citado pela Requerente na tentativa de demonstrar a justeza da tese defendida segundo a qual o preenchimento do requisito da indispensabilidade dos gastos com juros deve ser aferida tendo como referência o momento em que são contraídos os empréstimos e não no momento de vencimento dos juros não é transponível para o caso sob análise, como exposto na Resposta.

jj)           Quanto ao conceito de indispensabilidade dos gastos no contexto de uma fusão por incorporação, demostra a Resposta, de acordo com a jurisprudência e doutrina nela transcritas, que o requisito da indispensabilidade (i) deve ser objeto de preenchimento casuístico, (ii) não pressupõe necessariamente a existência de uma causalidade direta entre gastos e rendimentos e (iii) assenta na exigência de uma conexão – causalidade económica - com a prossecução do interesse das atividades empresariais exercidas pelo sujeito passivo que suporta os encargos.

kk)         Ora, in casu, não obstante a circunstância de ter havido uma fusão por incorporação, a conexão que, antes da fusão, era possível estabelecer entre os encargos financeiros associados aos financiamentos contraídos para a aquisição daquelas ações e a atividade da entidade que os suportava deixou de existir.

ll)            Logo, os gastos incorridos com aqueles financiamentos não podem ser considerados indispensáveis para a prossecução da atividade empresarial exercida pela Requerente, porque deixou de ser possível estabelecer qualquer nexo de causalidade económica entre os mesmos e a obtenção de rendimentos ou a manutenção da fonte produtora da entidade que os suporta.

mm)      Nem pode aceitar-se que seja consequência lógica e legal da fusão a manutenção, nos exercícios posteriores à fusão, da relação de causalidade económica entre os encargos e o interesse da empresa que se verificava na esfera da sociedade incorporada;

nn)         Abstraindo-se o julgador de analisar a operação subjacente que deu origem aos custos, em ordem a concluir se os capitais alheios foram utilizados ou aplicados pela empresa na exploração e consequentemente deram um contributo para a obtenção dos rendimentos ou para a manutenção da fonte produtora.

oo)         Como se disse na Resposta, não se descortina qual é a base legal em se sustenta a consideração de que o regime fiscal especial aplicável à fusão comporta a transposição automática para a esfera da sociedade incorporante (beneficiária) do tratamento fiscal conferido, na esfera da sociedade fundida aos gastos suportados com os passivos (ou ativos) transferidos;

pp)         E a prova cabal da inexistência de fundamento legal é que a Requerente se limita a remeter para o art.º 112.º, alínea a) e b) do CSC.

qq)         O regime especial de neutralidade fiscal, na sua essência, consubstancia-se, por um lado, num regime de diferimento da tributação das mais-valias ou menos valias e outros resultados apurados, na sociedade incorporada, por motivo da transferência dos elementos patrimoniais em consequência da fusão (cfr. n.º 1 do art.º 74.º do Código do IRC) e, por outro, na adoção em matéria de determinação do lucro tributável da sociedade incorporante (cf. n.º 4 do art.º 74.º), no respeitante aos elementos patrimoniais transferidos, no seguimento das mesmas regras de depreciação ou amortização, a par da transmissibilidade dos prejuízos fiscais, nas situações em que a lei o permite.

rr)           Donde resulta que a dedutibilidade dos encargos financeiros deve ser tratada em primeira linha, de acordo com o disposto no n.º 1 do art. 23.º do Código do IRC, o qual, ao constituir um crivo em matéria de qualificação dos gastos relevantes do ponto de vista fiscal, tem precedência sobre a limitação quantitativa dos gastos de financiamento líquidos instituída pelo art.º 67.º e, consequentemente, sobre a aplicação do n.º 2 do art.º 75.º-A, do mesmo Código. 

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi apresentado em 18-02-2020, aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 19-02-2020. Em 06-07-2020, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo os aqui signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As Partes foram devidamente notificadas dessa designação, em 06-07-2020, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados das alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

Por força da legislação introduzida pela Lei 1-A/2020, de 19.03, alterada pela Lei 4-A/2020, de 06.04 (legislação COVID 19), ocorreu uma suspensão de todos os prazos judiciais em curso nos tribunais judiciais e arbitrais, a qual se suspendeu, apenas, com a entrada em vigor da Lei 16/2020, de 29.05.2020. Esta última Lei veio, nomeadamente, dar por finda a suspensão dos prazos judiciais e administrativos e regular a realização presencial ou através de meios de comunicação à distância de diligências judiciais ou procedimentais, alterando o regime que havia sido fixado pelo artigo 7.º da Lei 1-A/2020, de 19.03, alterada pela Lei 4-A/2020, de 06.04. Como resultado do regime previsto no artigo 7º da supra referida Lei 1-A/2020, de 19.03, alterada pela Lei 4-A/2020, de 06.04, os prazos estiveram suspensos, o que justifica o decurso de tempo entre a notificação da aceitação dos Árbitros designados e a constituição do Tribunal Arbitral Coletivo a qual teve de aguardar o prazo para pronúncia das partes sobre a nomeação.

 

O Tribunal Arbitral Coletivo ficou, assim, constituído em 05-08-2020, tendo sido proferido despacho arbitral em 06-08-2020 em cumprimento do disposto no artigo 17º do RJAT, notificado à AT para, querendo, apresentar resposta.

 

A AT apresentou a sua Resposta, em tempo, em 30-09-2020.

 

Em 06-10-2020 foi proferido Despacho arbitral com o seguinte teor:

“Pretende este Tribunal Arbitral, ao abrigo do princípio da autonomia na condução do processo, previsto no artigo 16.º, alínea c) do RJAT, dispensar a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, por desnecessária, atendendo a que não é requerida prova testemunhal, nem foi invocada ou identificada matéria de exceção. Fixa-se o prazo de 5 (cinco) dias para as partes, querendo, se pronunciarem. Notifiquem-se as partes do presente despacho.”

Em 15-10-2020 foi proferido o seguinte Despacho Arbitral:

“Dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, por se afigurar desnecessária, notifiquem-se as partes para apresentarem alegações, facultativas e sucessivas, fixando-se o prazo de 10 dias. * * * A prolação da decisão arbitral ocorrerá até à data limite prevista no artigo 21.º, n.º 1 do RJAT, advertindo-se a Requerente que deve previamente proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente, nos termos do n.º 3 do artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e comunicar o mesmo pagamento ao CAAD. Notifiquem-se as partes do presente despacho.”

 

Foram apresentadas as alegações das partes.

 

POSTO ISTO:

O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.

Tudo visto, cumpre decidir.

 

II. DECISÃO

A.           MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

a)            A Requerente exerce a atividade de outras atividades de crédito, n.e. (CAE 64923), encontrando-se enquadrada em sede de IRC no regime geral de tributação. 

b)           A Requerente foi constituída em 27-03-2007 pela “B... Limited”, sediada no Reino Unido, encontrando-se, desde 15-09-2008, com a falência do seu acionista, sob administração de insolvência pela G... . 

c)            Em 28-02-2014, a sociedade “F...”, sediada no Luxemburgo e detida por fundos geridos pela H..., constituiu em Portugal a sociedade C..., S.A.. 

d)           Em 20-05-2014 a C..., S.A.  adquiriu a totalidade do capital da Requerente à B... UK, pelo montante de € 9.200.016,00. 

e)           No mesmo dia 20-05-2014, a F... concedeu um suprimento à C..., S.A., no montante total de € 9.645.016,00, para esta proceder à aquisição da participação na Requerente A..., bem como para a aquisição da participação na sociedade de titularização de créditos “I..., S.A.”, no valor de € 445.000,00, ambas detidas até esta data pela B... UK.

f)            Em 27-03-2015, a sociedade “J... Limited”, sediada no Reino Unido e detida pela D..., constituiu, em Portugal, a sociedade “E..., S.A.”.

g)            No dia 01-04-2015, a  E...acordou com a F... a compra de 100% do capital da C..., S.A., bem como a compra do suprimento concedido pela F... à C..., S.A., pelo montante global de € 47.833.333,00. 

h)           A aquisição do capital da C..., S.A.  ocorreu ao longo de 3 fases: em 21-04-2015, a E... adquiriu 33% do capital, em 01-04-2016, adquiriu mais 42% do capital e em 01-04-2017 adquiriu os restantes 25% do capital. 

i)             A E... adquiriu o suprimento concedido pela F... à C..., S.A.  em 21-04-2015, constando do contrato que se vencem juros a uma taxa de juro anual de 9% e que o capital e os juros são pagos na maturidade, em 21-05-2018.

j)             Em 21-04-2015, a C..., S.A.  alienou a sua participação na I... à F... pelo mesmo valor que a tinha adquirido à B... UK e procedeu ao reembolso do suprimento à F... no montante de € 445.000,00, reduzindo-se o suprimento concedido pela F... à C..., S.A.  para € 9.200.016,00.

k)            Em 22-12-2015, a Requerente incorpora, mediante uma operação de fusão inversa, a sociedade C..., S.A., sua detentora.

l)             A C..., S.A., desde a data da sua constituição até à data em que foi incorporada na A..., não exerceu qualquer atividade para além da detenção das partes de capital na A... e na I...;

m)          Com a referida operação de fusão, todos os direitos e obrigações da C..., S.A. foram transmitidos para a Requerente, entre os quais uma dívida de suprimentos de maio de 2014 à então acionista da sociedade incorporada F... S.A.R.L. – crédito este que, em Abril de 2015, cedido pela F... S.A.R.L. à E…, S.A.

n)           No que concretamente respeita ao suprimento referido supra (concedido a 20 de Maio de 2014 pela F... S.A.R.L. à C...), a Requerente suportou encargos financeiros no montante de € 744.390,99 em 2015 e no montante de € 979.753,66 em 2016.

 

A.2. Factos dados como não provados

 

Os factos dados como provados são aqueles que o Tribunal considera relevantes, não se considerando factualidade dada como não provada que tenha interesse para a decisão.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

A matéria de facto foi fixada por este Tribunal Arbitral Coletivo e a convicção ficou formada com base nas peças processuais e requerimentos apresentados pelas Partes, bem como nos documentos juntos aos autos.

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor, conforme n.º 1 do artigo 596.º e n.os 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi das alíneas a) e e) do n.º do artigo 29.º do RJAT e consignar se a considera provada ou não provada, conforme n.º 2 do artigo 123.º Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT). Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do n.º 7 do artigo 110.º do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13 , “o valor probatório do relatório da inspeção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a decisão, em relação às provas produzidas, na íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC.

Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g. força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.

 

B. DO DIREITO

 

B.1. QUANTO AO MÉRITO

 

Este Tribunal é chamado a apreciar se a fusão inversa datada de 22-12-2015 altera a dedutibilidade dos juros. Em concreto, está em causa aferir se os juros, outrora aceites em termos fiscais (de forma pacífica), devem deixar de o ser após a fusão, por aplicação do art. 23.º, do CIRC (requisito geral da indispensabilidade e especial de aplicação na exploração).

Inclinamo-nos claramente no sentido da dedução fiscal desses juros, mesmo após a fusão, agora na esfera da Requerente, por três principais argumentos, a seguir explanados – e tendo presente as considerações anteriores.

a)            Aplicação dos capitais alheios na exploração - O primeiro prende-se com a análise do teor literal art. 23.º, n.º 1 do CIRC [atual art. 23.º, n.º 2, al. c)]: a dedução dos encargos financeiros exige que os “juros de capitais alheios sejam aplicados na exploração”. E todos concordam que, no momento inicial, o crédito concedido à C..., S.A., no montante total de € 9.645.016,00, foi para esta proceder à aquisição da participação na Requerente A..., bem como para a aquisição da participação na sociedade de titularização de créditos “I..., S.A.”, no valor de € 445.000,00, ambas detidas até esta data pela B... UK. – subsumindo-se, no exercício da sua atividade e prossecução do lucro.

Ocorre finalmente uma operação de fusão inversa entre a Requerente e a C..., S.A., segundo as regras legais do direito comercial. Com essa operação, não se pode dizer que os capitais alheios deixaram de ser aplicados (os financiamentos continuaram) e mantêm-se afetos à exploração, agora reestruturada por efeitos legais da fusão (transmissão dos direitos e obrigações para a sociedade incorporante).

Não ocorre assim um desvio do financiamento, no sentido que serve-se agora o favorecimento de interesses extra empresariais, p. ex., em benefício de um sócio. O que ocorre é apenas a produção dos normais efeitos económicos da fusão, consentidos e impostos pelo direito comercial, e é impossível concluir que os efeitos dessa operação, seguindo os estritos ditames do direito comercial, redundam na tutela de interesses alheios ao interesse societário, apenas para beneficiar abusivamente terceiros da operação de fusão. Este resultado interpretativo seria uma verdadeira contradição nos seus termos, porque equivaleria a admitir que o direito comercial, ao regular a fusão (invertida ou não) permitiria resultados que violariam a tutela dos interesses acautelados por essa disciplina jurídica.

Assim, se os juros eram fiscalmente aceites previamente à fusão (porque os capitais alheios estavam aplicados para um fim específico), então também o serão após a fusão, que se limitou a seguir as regras do direito comercial, de transmissão de todos os direitos e obrigações da incorporada, porque após a fusão, continuam a ser considerados juros de capitais alheios aplicados na exploração.

 

b)           Inexistência de uma decisão de desinvestimento - O segundo argumento pondera a situação similar (idêntica aos autos) em que, havendo ou não uma fusão superveniente, a Sociedade decidisse abdicar do objeto do investimento (por não ser rentável), mas tivesse evidentemente de manter o financiamento que proporcionou os meios financeiros para o investimento.

Somos assim sensíveis aos argumentos expostos no Acórdão 4/2/2020, emitido no processo 191/2019, deste Centro :

“Suponhamos que uma empresa X compra uma máquina de valor elevado para prosseguir uma nova atividade – e financia-se junto da Banca para a comprar e que pagará 100 mil euros de juros durante 10 anos (e no final terá de amortizar o capital). Imagine-se agora que a empresa conclui, no final do 4º ano, que essa atividade não é rentável, pois não há mercado para os produtos produzidos pela máquina, pelo que decide abandonar a produção e a máquina é desligada e “abandonada”. Claro que terá de continuar a pagar os juros anuais de 100 mil euros. Mas será que esses juros, a partir do 5º ano, não serão dedutíveis ao rendimento fiscal, por se advogar que não são aplicados na exploração ou que não são indispensáveis para os proveitos ou manutenção da fonte produtora?

Ora, aqueles encargos manter-se-ão dedutíveis, não obstante o desaparecimento – por via de uma decisão empresarial – do objeto em que os capitais alheios que remuneram foram aplicados. O capital alheio foi aplicado na exploração no momento inicial – dando origem ao investimento produtivo. E isso é suficiente e bastante para legitimar a dedução fiscal dos juros daí decorrentes, independentemente das vicissitudes empresariais futuras desse investimento. Os encargos financeiros continuam a ser dedutíveis, ainda que o investimento se tenha gorado ou se tenha revelado como um mau negócio ou uma decisão empresarial infrutífera – pois, e é isso que importa, os capitais alheios estiveram ligados a um investimento que no momento inicial foi aplicado na exploração.

E se isto é assim, independentemente da ocorrência de qualquer fusão (mas no desinvestimento económico), sê-lo-á ainda com mais propriedade em caso de fusão, em que, como se viu, não há uma decisão subjetiva de qualquer desinvestimento, mas apenas a objetiva transmissão de direitos e obrigações, por efeito legal desse instituto do direito comercial.”

 

c)            O artigo 23.º do CIRC não é uma norma antiabuso - As considerações anteriores poderiam ser confrontadas – em termos fiscais – e este é o terceiro argumento, com a existência de um encadeamento de operações para propositadamente proporcionar um resultado fiscal indesejado, de abusiva poupança de impostos, traduzido numa aquisição de partes sociais com utilização de financiamento, imediatamente seguida de fusão (invertida ou não) com o propósito de diminuir abusivamente os impostos a pagar nos anos seguintes pela sociedade operacional e lucrativa (por efeito dos encargos financeiros que haviam sido suportados para a sua aquisição).

A AT, na fundamentação do ato tributário, não convocou esse arsenal argumentativo para justificar a liquidação, em substituição ou cumulativamente com o art. 23.º do CIRC.

Apesar de desconfiar do encadeamento temporal e cronológico das operações e da “poupança fiscal” assegurada com a dedução dos juros do financiamento da aquisição da Requerente sobre os proveitos operacionais das mesmas empresas (pós fusão), não sustentou a correção fiscal no art. 38.º, n.º 2, da LGT ou no art. 73.º, n.º 10, do CIRC ou sequer no art. 63.º do CIRC (invocando uma quantificação excessiva dos juros entre sociedades em relações especiais). E o julgador, no contencioso fiscal, tem de se debruçar sobre o objeto do processo, tal como recortado pela fundamentação, sob pena de ilegal fundamentação a posteriori e intromissão no poder dever do poder executivo.

Assim, o art. 23.º do CIRC não se reconduz a uma norma antiabuso, que pudesse ser utilizada em substituição do art. 38.º, n.º 2, da LGT, art. 73.º, n.º 10 do CIRC ou art. 63.º do CIRC. Cada norma tem um conteúdo prescritivo diverso – e o art. 23.º do CIRC não funciona como uma norma anti abuso substitutiva daqueles outros preceitos.

Continuando na mesma linha de raciocínio do Acórdão 4/2/2020, emitido no processo 191/2019, deste Centro :

“O art. 23.º do CIRC limita o seu raio de ação à não dedução fiscal dos gastos assim contabilizados, mas que, quando contraídos (ou os investimentos efetuados) não se inserem no interesse económico da Sociedade, mas servem interesses extra societários, dos administradores ou de terceiros. Suponhamos que uma Sociedade suporta os juros de um financiamento por si contraído para efetuar um investimento apenas em benefício privado de um sócio ou administrador (e isso não é reconduzido a um rendimento em espécie da pessoa singular). Ou que se financia na banca para entregar essa quantia financeira a terceiro, sem qualquer contrapartida, fora do grupo ou fora do seu objeto social. Nesses casos, os juros que vier a suportar com esses fundos não são fiscalmente dedutíveis porque não foram (ab initio e para sempre) aplicados na exploração da Sociedade.”

O caso dos autos é totalmente diverso. Os capitais alheios foram aplicados para um fim específico; e caso se pretendesse invocar que todas as operações se reconduziriam a um abusivo esquema de encadeamento de operações, ainda que lícitas sob o ponto de vista civil, para obter-se um ganho fiscal – o que nalguns passos da inspeção é isso o que fica subentendido – então a fundamentação não se teria de socorrer do instituto do art. 23.º do CIRC mas sim do artigo 38.º, n.º 2 da LGT.

Ora, admitindo então que o art.º 23.º n.º 1 alínea c) do CIRC tem que ter em conta a atividade do conjunto da empresa que participa na operação de fusão e não apenas a beneficiária da mesma (a Requerente), caberia de seguida averiguar se as motivações para a fusão inversa foram essencial ou principalmente fiscais, aplicando-se o art.º 38.º n.º 2 da LGT quanto à dedutibilidade dos juros.

Caberia assim averiguar, nos termos do art.º 38.º n.º 2 da LGT se os negócios foram artificiosos, se as finalidades da fusão inversa foram essencial ou principalmente fiscais e se havia outros negócios jurídicos que dessem origem a idênticas vantagens fiscais, isto é, se a dedutibilidade dos custos teria sido alcançada por outros meios (a fusão ou o Regime Especial de Tributação de Grupos de Empresas): art.º 38.º n.º 2 da LGT.

Deveria desta forma ter sido aplicado o procedimento previsto no ex-artigo 63.º n.º 1 do CPPT, o qual estipulava que “[a] … liquidação dos tributos com base em quaisquer disposições antiabuso nos termos dos códigos e outras leis tributárias depende da abertura para o efeito de procedimento próprio”.

 

A argumentação exposta basta para se proceder à anulação da liquidação impugnada, com as demais legais consequências. Não é assim necessário explorar os demais argumentos expostos pela impugnante.

 

C. DECISÃO

Nestes termos, decide o Tribunal Arbitral Coletivo:

a)            Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade e anular as liquidações de IRC e juros compensatórios n.º 2019..., de 2 de outubro de 2019, relativamente ao ano de 2015, e n.º 2019..., de 2 de outubro de 2019, relativamente ao ano de 2016, no valor global de € 489.061,55;

E em consequência:

b)           Ordenar a devolução à Requerente do referido montante, acrescido de juros indemnizatórios, à taxa legal, contados da data do seu pagamento até integral reembolso.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 489.061,55, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 7.650,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi julgado procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 4 de janeiro de 2021

 

O Árbitro Presidente

(Alexandra Coelho Martins)

 

O Árbitro Vogal

(Guilherme W. d’Oliveira Martins)

 

O Árbitro Vogal

(Luís Menezes Leitão)