SUMÁRIO:
I. Quando o insolvente é pessoa singular que exerce uma actividade de natureza, industrial, comercial ou agrícola, pode o sujeito passivo adquirente dos bens à massa insolvente beneficiar das isenções de IMT e de Imposto do Selo, previstas, respectivamente, nos artigos 270.º, n.º 2 e 269.º, n.º 1, alínea e) do CIRE.
II. As isenções em causa serão passíveis de serem aplicadas nas vendas de imóveis no âmbito de uma insolvência empresarial, desde que se demonstre que o imóvel integra o “activo da empresa”.
DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)
I – RELATÓRIO
1. No dia 07 de Janeiro de 2020, A..., S.A. , NIPC..., com sede na ..., n.º..., ..., ...-... Lisboa, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade do acto de liquidação adicional de IMT n.º 2019/... de 12 de Abril de 2018, no valor de €125.679,85 e do acto de liquidação de Imposto do Selo n.º 2019/..., no valor de €16.720,66, relativos à aquisição do prédio misto, descrito na ... Conservatória do registo Predial de ..., sob o n.º ... e inscrito na matriz predial sob os artigos rústicos..., ..., ... e sob o artigo urbano ..., sitos na freguesia de ..., concelho de Coimbra.
2. Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, que sendo a insolvente pessoa singular que exerce uma actividade de natureza industrial, comercial ou agrícola, pode a Requerente, enquanto adquirente dos bens pertencentes à massa insolvente beneficiar da isenção de IMT e de Imposto do Selo, previstas, respectivamente, nos artigos 270.º, n.º 2 e 269.º, n.º 1, alínea e) do CIRE.
3. No dia 08-01-2020, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.
4. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
5. Em 28-02-2020, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.
6. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 06-07-2020.
7. No dia 22-09-2020, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.
8. Ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º, e n.º 2 do art.º 29.º, ambos do RJAT, foi dispensada a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.
9. Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelas partes, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.
10. Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no art.º 21.º/1 do RJAT.
11. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
O processo não enferma de nulidades.
Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.
Tudo visto, cumpre proferir:
II. DECISÃO
A. MATÉRIA DE FACTO
A.1. Factos dados como provados
1- A Requerente é uma sociedade anónima que tem como objecto social a construção e obras públicas, compra, arrendamento, venda e permuta de bens imobiliários e revenda dos adquiridos para esse fim e promoção imobiliária; instalação, montagem e reparação de fornos industriais e queimadores e supervisão das actividades referidas.
2- Em 23-04-2018, através de escritura pública, a Requerente adquiriu o prédio misto, sito na freguesia de ..., concelho de, descrito na ... Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º..., e inscrito na matriz predial sob os artigos rústicos ..., ... e ... e, sob o artigo urbano ..., da freguesia de ... .
3- O imóvel em causa encontrava-se à data da transmissão e encontra-se, ainda na presente data, registado como estando afecto a habitação.
4- A referida aquisição foi efectuada no âmbito do processo de insolvência de B... (NIF...) e de C... (NIF ...), que correu termos no juízo de Comércio do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria – Juiz 1, sob o processo n.º .../10...TBPBL, cuja sentença transitou em julgado em 30-08-2010.
5- No âmbito da celebração da escritura de compra e venda do referido imóvel, a Requerente obteve, junto do Serviço de Finanças de ..., as guias de IMT e Imposto do Selo, tendo sido emitida a guia n.º ..., no valor de €0,00.
6- O Insolvente B... esteve desde 31-12-2004 e até à data da cessação oficiosa de actividade, em 31-12-2012, colectado na actividade de “Compra e venda de bens imobiliários”.
7- A partir de 01-01-2005 até 31-12-2006 o Insolvente esteve enquadrado no Regime Normal do IVA com Periodicidade Trimestral e enquadrado em IRS no Regime Simplificado de Tributação.
8- De 01-01-2007 até à data da cessação de actividade, que ocorreu em 31-12-2012, o Insolvente esteve enquadrado no Regime Normal do IVA com Periodicidade Trimestral, possuindo, neste período, para efeitos de IRS, Contabilidade Organizada por Opção.
9- As declarações periódicas de IVA apresentadas pelo insolvente para efeitos do artigo 29.º, n.º 1, alínea c) do CIVA, não contemplam quaisquer operações activas ou passivas, contendo a referência no quadro 05-A que “No período a que esta declaração diz respeito não realizou operações (ativas ou passivas)”.
10- A Insolvente C... não se encontrava colectada para o exercício de qualquer actividade industrial, comercial ou agrícola.
11- Em 19-07-2019, a Requerente foi notificada, através do Ofício n.º ... do Serviço de Finanças de ..., a informar que iria ser emitida uma liquidação de IMT e de Imposto do Selo, uma vez que não se verificavam os requisitos para a concessão das isenções previstas no n.º 2 do artigo 270.º e na alínea d) do artigo 269.º do CIRE, respectivamente, e que deveria solicitar a emissão das guias e efectuar o pagamento do imposto devido acrescido de juros compensatórios, ou no prazo de 15 dias, exercer direito de audição.
12- Da referida notificação, consta o seguinte:
13- Em 09-08-2018, a Requerente exerceu direito de audição.
14- Em sede de direito de audição, a Requerente procedeu à junção dos seguintes documentos:
a) Auto de adjudicação do imóvel;
b) Alvará de Licença de Construção n.º .../02, emitido pela Câmara Municipal de ... em 27 de março de 2002, onde que "é licenciada a reconstrução/ampliação que incide sobre a edificação sita em ...–..., da freguesia de ..., descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º .../...” e “uso a fazer-se desta edificação: unidade hoteleira”.
c) Prorrogação do Alvará de Licença n.º.../02 –01/2004, emitida pela Câmara Municipal de ... em 24 de Abril de 2004, onde se refere que “é licenciada a prorrogação do prazo do Alvará de Licença de Construção n.º .../02 referente à construção de moradia que incide sobre o prédio sito na ..., Freguesia de ...”;
d) Termo de Responsabilidade emitido e assinado pelo Sr. Arq. o D... no qual se refere que “o projeto de ARQUITETURA de que é autor, relativo à ALTERAÇÃO/AMPLIAÇÃO DO HOTEL, na categoria de 4 ESTRELAS, localizado em ..., concelho de ...”;
e) Projecto para recuperação e ampliação do solar da ... para instalação de unidade hoteleira;
f) Proposta de deferimento do projeto de arquitetura/alterações no âmbito da Licença de Construção n.º .../02, de 20 de abril de 2004;
g) Informação n.º DQO/DEA/2008..., emitida em 15 de maio de 2008 pelo Turismo de Portugal, I.P., nos termos da qual foi aprovada "a classificação como Hotel de quatro estrelas, com a capacidade máxima de 82 camas, distribuídas por 41 unidades de alojamento (35 quartos duplos e 6 suites)”;
h) Informação da Direção Regional de Cultura do Centro, de 12 de novembro de 2008, onde se refere que a "..., estabelecimento hoteleiro" é classificada como tendo "Valor Concelhio, ou, de acordo com a nova legislação, Imóvel de Interesse Municipal";
i) Pedido de emissão de Alvará de Licença de Construção "relativo ao edifício de hotelaria, sito na ..., freguesia de ..., ...", tendo sido emitido o novo Alvará de Licença
de Construção n.º .../2009, através do qual é licenciada uma
construção/ampliação/alterações que incide sobre o prédio sito em ..., da freguesia de ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º .../..., prédio misto por inscrição na matriz urbana da respetiva freguesia, sob o n.º ... e inscrito na matriz rústica da mesma freguesia sob os n.ºs..., ... e ...;
15- Em 14-08-2019, foram emitidas as liquidações n.º 2019/... de IMT no valor de €125.679,85 e de Imposto do Selo n.º 2109/..., no montante de €16.720,66.
16- Através do ofício n.º... de 27-09-2019, a Requerente foi notificada da decisão de indeferimento da anulação das liquidações que entretanto haviam sido emitidas, onde consta, além do mais, o seguinte:
17- A Requerente não procedeu ao pagamento da liquidação de IMT n.º 2019/... e da liquidação de Imposto do Selo n.º 2019/..., pelo que foi instaurado processo de execução fiscal para cobrança coerciva daquelas liquidações.
18- A Requerente prestou garantia bancária tendo em vista a suspensão do processo de execução fiscal.
19- Em 13-02-2019, a Requerente apresentou um pedido de “Autorização para Estabelecimento Hoteleiro”, por forma a obter a Licença de Utilização do Imóvel enquanto unidade hoteleira.
20- Em 30-10-2019, a Requerente apresentou recurso hierárquico, o qual foi arquivado por despacho de 27-12-2019, e notificado pelos ofícios n.º ... e ... de 30-12-2019.
A.2. Factos dados como não provados
Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.
B. DO DIREITO
Em causa nos presentes autos está, exclusivamente, dar resposta à questão de saber se estão ou não preenchidos os pressupostos de que dependem as isenções de Imposto do Selo e de IMT, previstas, respectivamente, na alínea e), do n.º 1, do artigo 269.º e no n.º 2 do artigo 270.º, ambos do CIRE (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
Vejamos então.
Dispõe a alínea e) do n.º 1 do artigo 269.º o seguinte:
“Artigo 269.º
Benefício relativo ao imposto do selo
Estão isentos de imposto do selo, quando a ele se encontrem sujeitos, os seguintes atos, desde que previstos em planos de insolvência, de pagamentos ou de recuperação ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente:
(…)
e) A realização de operações de financiamento, o trespasse ou a cessão da exploração de estabelecimentos da empresa, a constituição de sociedades e a transferência de estabelecimentos comerciais, a venda, permuta ou cessão de elementos do activo da empresa, bem como a locação de bens;
(…)”
Por sua vez, dispõe o n.º 2 do artigo 270.º o seguinte:
“Artigo 270.º
Benefício relativo ao imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis
1-…
2 -Estão igualmente isentos de imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis os atos de venda, permuta ou cessão da empresa ou de estabelecimentos desta integrados no âmbito de planos de insolvência, de pagamentos ou de recuperação ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente.”
Sustenta a Requerente que a aquisição do imóvel ocorreu no âmbito de uma insolvência de pessoas singulares e que o Insolvente marido desenvolvia uma actividade comercial, encontrando-se o imóvel em causa afecto essa actividade.
Mais refere que, embora os Insolventes (transmitentes do imóvel) não tenham explorado, efectivamente, a actividade no imóvel alienado, o facto de terem sido praticados actos a título preparatório da actividade, consubstanciam, em si mesmos, o exercício de uma actividade comercial no imóvel em apreço.
Pelo que, conclui a Requerente que tratando-se o Insolvente de uma pessoa singular que exerce uma actividade comercial e, estando o imóvel em causa afecto àquela actividade, pode o sujeito passivo adquirente beneficiar da isenção de IMT e de Imposto do Selo, previstas nos artigos 269.º, n.º 1, alínea e) e 270.º, n.º 2 do CIRE.
Por sua vez, sustenta a AT que estamos perante a aquisição de um imóvel, ainda que em processo de insolvência, mas que não pertence a uma empresa nem estava destinado ao exercício de uma actividade empresarial pelo que, em seu entender, não estão reunidos os pressupostos legalmente previstos para que a Requerente beneficie da isenção de IMT e de Imposto do Selo.
Dispõe o art.º 74.º da LGT que: “O ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque.”.
Este será, salvo melhor opinião, o primeiro dado a ter em conta na apreciação da questão decidenda.
No caso sub iudice, pretende a Requerente prevalecer-se dos benefícios fiscais previstos na alínea e) do n.º 1 do artigo 269.º e no n.º 2 do artigo 270.º, ambos do CIRE. Daí que, nos termos do citado artigo 74.º da LGT lhe assista o ónus de provar os pressupostos do benefício de que pretende usufruir.
O artigo 269.º, n.º 1, alínea e) do CIRE faz depender a aplicação da isenção de imposto do Selo, da circunstância de estarmos perante um dos seguintes actos: (i) operações de financiamento, (ii) trespasse ou cessão da exploração de estabelecimentos da empresa, (iii) constituição de sociedades, (iv) transferência de estabelecimentos comerciais, (v) venda, permuta ou cessão de elementos do activo da empresa ou (vi) locação de bens, desde que previstos em planos de insolvência, de pagamentos ou de recuperação ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente.
No caso sub iudice, conforme resulta do ponto 2 e 4 dos factos provados, está em causa a compra de um imóvel no âmbito de um processo de insolvência de pessoa singular, pelo que caberá determinar se o imóvel objecto de venda no âmbito do processo de insolvência integrava, na terminologia utilizada pela norma, o “activo da empresa”.
Por sua vez, a isenção de IMT prevista no n.º 2 do artigo 270.º do CIRE, conforme resulta da letra da lei, é aplicável aos actos de venda, permuta ou cessão da empresa ou de estabelecimentos desta integrados no âmbito de planos de insolvência, de pagamentos ou de recuperação ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente.
Porém, no que a esta última isenção diz respeito, embora a letra da lei se refira a “empresas ou estabelecimentos desta”, o Acórdão do STA de Uniformização de Jurisprudência de 29-03-2017, proferido no processo n.º 01521/15 , pronunciou-se no sentido de que “a isenção de IMT prevista no n.º 2 do artigo 270º do CIRE se aplica não apenas às vendas ou permutas de empresas ou estabelecimentos enquanto universalidade de bens, mas, também, às vendas e permutas de imóveis, enquanto elementos do ativo de sociedade insolvente, desde que enquadradas no âmbito de um plano de insolvência ou de pagamento, ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente.”
Sustenta aquela decisão, que “haverá que ter em conta o fim que o legislador pretende alcançar com a concessão de tal isenção, - «fomentar e apoiar a venda rápida dos bens que
integram a massa insolvente por óbvias razões de interesse dos credores, mas, também do interesse público de retoma do normal funcionamento do mundo empresarial em que cada processo de insolvência se apresenta como elemento perturbador», dando incentivos fiscais a quem adquirir os bens imóveis que integram a massa insolvente e que serão vendidos em fase de liquidação.
Não havendo que diferenciar, para tal fim, as situações em que se esteja a vender globalmente a empresa com todo o seu activo e o seu passivo, das situações em que se esteja a vender um ou mais dos estabelecimentos comerciais que a integravam, ou em que se estejam a vender bens imóveis que integravam o seu activo.”
E conclui que “o objectivo que preside à teleologia da norma será igualmente prosseguido quando a aquisição tem por objecto elementos do activo da empresa, não se tomando necessário que o objecto seja a empresa ou estabelecimentos desta integrados no âmbito de plano de insolvência”.
Esta jurisprudência levou a AT, em cumprimento do disposto no n.º 4 do artigo 68.º-A da LGT, segundo o qual “a administração tributária deve rever as orientações genéricas referidas no n.º 1 atendendo, nomeadamente, à jurisprudência dos tribunais superiores”, a publicar, em 10/02/2017, a Circular nº 4/2017 da Direcção de Serviços do IMT, do IS, do IUC e das Contribuições Especiais (DSIMT), através da qual reviu a sua anterior interpretação no que toca a esta isenção de IMT, adoptando uma nova interpretação que reflecte a jurisprudência reiterada e uniforme do Supremo Tribunal Administrativo.
Assim, dúvidas não restam que, em substância, quer o artigo 269.º, n.º 1, alínea e), quer o n.º 2 do artigo 270.º do CIRE reportam a aplicação das isenções à circunstância de estar em causa, para o que aqui nos interessa, a venda de “elementos do ativo da empresa” previstos em planos de insolvência, de pagamentos ou de recuperação ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente.
Adianta-se, desde já que a aplicação das referidas isenções não fica afastada, sem mais, por estarmos perante uma insolvência de pessoa singular.
Resulta dos factos provados que o Insolvente marido exercia uma actividade comercial/empresarial e se encontrava enquadrado, para efeitos fiscais, no grupo dos rendimentos empresariais, motivos pelos quais a insolvência de onde o imóvel é proveniente se trata de uma insolvência empresarial, que pode ser enquadrada na previsão do artigo 270.º, n.º 2 do CIRE.
Saliente-se, a este propósito, que o legislador no n.º 2 do artigo 270.º do CIRE não se refere a “sociedade”, mas antes a “empresa”, pelo que se reporta à noção de um património empresarial, isto é, um património colocado à disposição de uma entidade ou pessoa que exerce a actividade comercial .
Este entendimento é, inclusive, confirmado na Instrução IMT 2014/01 da Direcção de Serviços do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis, de Imposto do Selo, do Imposto Único de Circulação e das Contribuições Especiais, que refere o seguinte:
“1- Comum a ambas as disposições é a referência literal ao termo “empresa”, realidade que estando em causa preceitos do CIRE, há de corresponder à definição constante do seu art.º 5º, ou seja, será «toda a organização de capital e de trabalho destinada ao exercício de qualquer atividade económica».
2- Assim, para efeitos da isenção de IS (verba 1.1 da Tabela Geral) prevista na al. e) do art.º 269.º do CIRE, só os atos de venda, permuta ou cessão de elementos do ativo das empresas entendidas como organizações complexas, nos termos mencionados no ponto antecedente – se poderão considerar abrangidos pela previsão legal. Deste modo, não estão abrangidos por esta previsão legal os insolventes que sejam pessoas singulares e não exerçam uma atividade industrial, comercial ou agrícola”
Assim, resulta de uma interpretação a contrario, como sustenta a Requerente, que quando o insolvente é pessoa singular que exerce uma actividade de natureza, industrial, comercial ou agrícola, pode o sujeito passivo adquirente dos bens à massa insolvente beneficiar das isenções de Imposto do Selo e de IMT.
Serão, assim, as isenções em causa passíveis de serem aplicadas nas vendas de imóveis no âmbito de uma insolvência empresarial, desde que se demonstre que o imóvel integra o “activo da empresa”.
Cumpre, por isso apurar se a Requerente sobre quem, como já se referiu, incide o ónus da prova dos pressupostos das isenções de que pretende beneficiar, logrou demonstrar que o imóvel em causa integrava o “activo da empresa”.
O empresário em nome individual, como é o caso do Insolvente marido, tem uma empresa e possui bens que estão afectos à actividade empresarial. Esses bens constituem o “património da empresa” do empresário em nome individual, por contraposição ao seu património pessoal. Sobre esta matéria, Freitas Pereira adverte que embora não possa falar-se propriamente “do património da empresa individual como realidade diferente da do património pessoal do empresário em nome individual (...) para efeitos contabilísticos e fiscais essa separação existe e tem importantes reflexos”.
Assim, a afectação de bens à actividade empresarial – e que, consequentemente, integrarão o activo da empresa - terá, necessariamente de consubstanciar uma afectação formal, definida numa data concreta, que resulte do tratamento contabilístico e fiscal conferido a esse bem. Esta exigência justifica-se pela confusão que, não raras vezes, se gera entre os bens que integram o património privado e os bens que integram o património da empresa, aliada à necessidade de assegurar, com o necessário grau de fiabilidade, que o bem está ao serviço da actividade empresarial.
Esta conclusão, extrai-se, inclusive, de alguns artigos do CIRS que se referem à “afectação de bens à actividade empresarial” e que, para o que aqui nos importa, contribuem para densificar esse conceito.
Senão, vejamos:
Nos termos do artigo 29.º, n.º 2 do CIRS, refere-se que para o cálculo da mais-valia resultante do afectação do imóvel do património individual à actividade empresarial, releva o momento da afectação. Com efeito, desde logo, daqui se extrai que a afectação deve estar definida numa data concreta.
Por outro lado, o n.º 4 do mesmo artigo diz expressamente que o valor é atribuído no momento da afectação, reforçando a ideia de que a afectação é formal, tem de ser inscrita no activo da actividade empresarial, reportando-se a uma data determinada, e por um valor determinado.
Quanto à prova da afectação do bem à actividade empresarial e, consequentemente, da integração do bem no “activo da empresa”, subscreve-se o entendimento sufragado no Acórdão do TCA-Sul de 19-09-2019, processo n.º 1117/09.1BELRA, em que se discute a tributação na categoria B dos rendimentos enquadráveis nas categorias F, gerados por bens que fizessem parte do activo das empresa do sujeito passivo, ou que estivessem afectos às actividades empresariais por ele desenvolvidas, cuja argumentação é transponível para os presentes autos, e segundo a qual “Tal afetação poderia ser detetada “...designadamente, com base no tratamento contabilístico conferido aos bens em apreço – a reconhecer como activos enquanto se encontrarem afectos à actividade empresarial ou profissional – ou através do controlo dos encargos relativos aos mesmos – conforme sejam suportados pelo sujeito passivo a título particular ou reconhecidos no âmbito da sua actividade empresarial ou profissional”.
Deste modo, assiste, neste contexto, razão à AT quando refere que “se o imóvel estivesse afetado à sua atividade, qualquer que ela fosse, sempre teria que pertencer ao ativo circulante e demonstrado fiscalmente essa afetação”.
Assim, a prova de que o imóvel objecto de venda no âmbito do processo de insolvência se encontrava afecto à actividade empresarial do Insolvente marido, empresário em nome individual, passaria por demonstrar que o imóvel se encontrava registado no activo imobilizado da contabilidade de empresário do Insolvente, com as consequências que daí decorrem, designadamente, ao nível do registo das depreciações e eventual relevância em sede de mais ou menos valias, assim como pela demonstração de que os encargos relativos àquele bem eram reconhecidos no âmbito da actividade empresarial do Insolvente.
Conforme resulta da matéria de facto provada, o Insolvente marido esteve enquadrado no regime da contabilidade organizada por opção, motivo pelo qual se crê que se tivesse existido, efectivamente, afectação do imóvel à actividade empresarial, não haveria dificuldades em demonstrá-la através dos elementos da contabilidade, que, inclusive, deveriam estar disponíveis à ordem do processo de insolvência.
Sucede, porém, que a Requerente carreou para os autos apenas os documentos referidos no ponto 14 dos factos provados, onde constam, entre outros, os alvarás de licenças de construção em que é licenciada a reconstrução/ampliação que incide sobre a edificação sita na ..., o projecto para recuperação e ampliação do solar da ... para instalação de unidade hoteleira, a declaração emitida Turismo de Portugal, I.P. de classificação como Hotel de 4 estrelas e a informação da Direcção Regional de Cultura do Centro "..., estabelecimento hoteleiro" é classificada como tendo "Valor Concelhio”.
Os referidos documentos tratam-se de meros documentos de licenciamento dos quais não é possível extrair qualquer informação determinante acerca da efectiva afectação à actividade empresarial, no sentido de não resultar, portanto, qualquer dúvida razoável de que o imóvel integrava o activo da empresa do insolvente.
Acresce que, atenta a necessidade de assegurar que o bem se encontra ao serviço da empresa, pelas razões que acima se expuseram, não se pode o ónus da prova satisfazer com a prova de meros actos que possam exteriorizar o propósito de haver afectação, sem que resulte suficientemente demonstrada essa afectação. Com efeito, não colhe a afirmação da Requerente segundo a qual “tendo em conta a documentação junta ao direito de audição, para a qual se remete ao abrigo do n.º 2 do artigo 74.º da Lei Geral Tributária, conclui-se que, estando o Imóvel adquirido pela Requerente afeto à atividade desenvolvida pelos Insolventes, estão reunidos os pressupostos previstos no n.º 2 do artigo 270.º do CIRE.”
A Requerente, enquanto adquirente do imóvel passível de beneficiar da isenção, aquando do processo de aquisição, deveria munir-se dos elementos necessários à comprovação, para além do mais, dos benefícios ficais de que pretendesse usufruir em tal processo.
Além disso, embora esteja em causa um benefício fiscal automático, este não é um benefício fiscal presumido mas, unicamente, um benefício fiscal que não carece de reconhecimento administrativo prévio, não dispensando, evidentemente, a prova dos respectivos pressupostos por quem, de acordo com as regras que repartem o respectivo ónus, a ela está obrigado.
Ora, no caso, e como se viu já, era à Requerente que assistia o ónus da prova do direito aos benefícios fiscais a que se arroga, pelo que a insuficiência de prova a tal respeito, sempre terá de ser decidida contra si.
Face ao exposto, na ausência de prova, por parte da Requerente, de que o imóvel adquirido fazia parte do activo da empresa, fica por demonstrar o preenchimento dos pressupostos de que depende a aplicação das isenções de Imposto de Selo e de IMT, previstas nos artigos 269.º, (n.º 1,) alínea e) e 270.º, n.º 2 do CIRE, motivo pelo qual não merecem qualquer censura as liquidações impugnadas, improcedendo, o pedido arbitral.
*
Sustenta, a final, a Requerente que “a atuação da Autoridade Tributária ao emitir as guias de IMT e de Imposto do Selo a «zeros», criou expectativas de actuação na esfera da Requerente, as quais merecem tutela, designadamente por a mesma ter procedido em conformidade”.
Está em causa, portanto, a eventual violação do princípio da confiança, como subprincípio da boa fé.
Nos termos do artigo 266.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, a administração pública prossegue o interesse público no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos. E, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé.
O princípio da boa fé é concretizado em dois subprincípios sendo um deles o da tutela da confiança legítima, ínsito no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa, que implica um mínimo de certeza e de segurança nos direitos e nas expectativas juridicamente criadas e que se traduz na impossibilidade de a administração ou o contribuinte poderem mudar o critério da sua actuação de forma injustificada.
O subprincípio da tutela da confiança legítima tem como pressupostos a existência de uma situação de confiança subjectiva, devidamente justificada e fundamentada em elementos objectivos, com investimento dessa confiança no desenvolvimento efectivo de actividades jurídicas.
Porém, como referem Serena Cabrita Neto e Carla Castelo Trindade (citadas no Acórdão do TCA Norte de 08-03-2018, proferido no processo n.º 03202/04) “só haverá lugar à tutela da confiança do contribuinte na actuação da Administração de acordo com os ditames da boa fé quando o princípio da legalidade seja assegurado. Ou seja, não será merecedora de tutela a confiança suscitada nos contribuintes de uma determinada actuação ilegal da Administração.”
Conforme constatou posteriormente a AT e veio a ser confirmado nesta sede, não estavam, na situação sub iudice, preenchidos os pressupostos de que depende a aplicação das isenções previstas nos artigos 269.º, n.º 1, alínea e) e no artigo 270.º, n.º 2 do CIRE, pelo que as liquidações de Imposto de Selo e de IMT, inicialmente emitidas, acolhendo aquela declarada isenção, se revelaram desconformes com a lei, e se traduziram numa actuação violadora do princípio da legalidade.
Tendo a AT procedido, ilegalmente, na emissão das primitivas liquidações de IMT e de Imposto de Selo, tal actuação não é suceptível de gerar confiança, merecedora de tutela.
O STA teve já oportunidade de se pronunciar no acórdão de 26-10-1994, proferido no processo n.º 017626, no sentido de que o princípio da confiança não tem força invalidante quando a AT exerce a sua função subordinada ao princípio da legalidade.
Assim, consubstanciando as liquidações de IMT e de Imposto do Selo aqui impugnadas uma actuação da AT conforme com o princípio da legalidade, não cedem perante a tutela da expectativa criada pela Requerente com base numa actuação ilegal da AT.
Face ao exposto, uma vez que a Requerente fundou a sua confiança numa actuação ilegal da AT, atento o princípio da legalidade a que se encontra vinculada a AT, não merece tutela a confiança da Requerente, pelo que improcede também nesta parte o pedido arbitral.
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Suscitou a Requerente a ampliação do pedido, peticionando a condenação da AT no pagamento de uma indemnização por prestação indevida de garantia.
O regime do direito a indemnização por garantia indevida consta do artigo 53.º da LGT, que estabelece o seguinte:
“1. O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objeto a dívida garantida
2. O prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo.
3. A indemnização referida no número 1 tem como limite máximo o montante resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios prevista na presente lei e pode ser requerida no próprio processo de reclamação ou impugnação judicial, ou autonomamente.”
4. A indemnização por prestação de garantia indevida será paga por abate à receita do tributo do ano em que o pagamento se efetuou.”
No caso em apreço, tendo sido declarado improcedente o pedido de anulação das liquidações impugnadas que estão na origem dos processos executivos onde foi prestada a garantia, fica prejudicado o conhecimento do pedido de condenação da AT no pagamento de uma indemnização por prestação indevida de garantia.
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C. DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar integralmente improcedente o pedido arbitral formulado e, em consequência,
a) Absolver a Requerida do pedido;
b) Condenar a Requerente nas custas do processo, abaixo fixadas.
D. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em €142.400,51, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
E. Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 3.060,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerente, uma vez que o pedido foi totalmente improcedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa, 6 de Janeiro de 2021
O Árbitro Presidente
(José Pedro Carvalho)
O Árbitro Vogal
(A. Sérgio de Matos)
O Árbitro Vogal
(Carla Alexandra Pacheco de Almeida Rocha da Cruz)