Sumário:
I – Não se verifica a violação do princípio da plena concorrência, no âmbito do regime dos preços de transferência, quando os ajustamentos ao lucro tributável, nos termos do artigo 3.º da Portaria nº 1446-C/2001, de 21 de Dezembro, envolvendo uma margem de discricionariedade técnica, têm fundamento nas guidelines da OCDE e permitem concluir que o resultado operacional gerado pelo sujeito passivo se revelou inferior ao que seria apurado caso as operações vinculadas tivessem sido realizadas entre entidades independentes;
II - A invocação da qualidade de “contract manufacturer” não impossibilita a aplicação do princípio da plena concorrência às relações especiais entre o sujeito passivo e o Grupo empresarial em que se integra, nem permite estabelecer um regime especial face às regras das “Guidelines” da OCDE e das normas nacionais que regulam o regime dos preços de transferência.
DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)
Acordam em tribunal arbitral
I – Relatório
1. A..., LDA., sociedade com sede na Rua ..., n.º..., ...-... ..., titular do Número único de Identificação de Pessoa Coletiva e de matrícula na Conservatória de Registo Comercial ..., vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade das liquidações adicionais de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) n.os 2017..., 2018... e 2018..., nas demonstrações de liquidação de juros compensatórios n.os 2017..., 2018... e 2018... e nas demonstrações de acerto de contas n.os 2017..., 2018... e 2018..., concernentes aos exercícios de 2013, 2014 e 2015, bem como das decisões de indeferimento da reclamação graciosa e do recurso hierárquico, contra aqueles atos apresentados, requerendo ainda a condenação da Autoridade Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago acrescido de juros indemnizatórios.
Fundamenta o pedido nos seguintes termos.
A Requerente é uma entidade residente em Portugal, que tem como atividade principal a produção de máquinas de café e ferros de engomar, bem como de peças suplentes, ferramentas, moldes e outros produtos relacionados e pertence e é integralmente detida pela sociedade B..., A.G. (B...AG).
No dia 14 de setembro de 2012, a Requerente e a B... AG – nas qualidades de fabricante (“contract manufacturer”) e principal (“principal”), respetivamente – celebraram um contrato de produção (“manufacturing agreement”), o qual regula os termos e condições do processo de fabrico, definindo, entre outros aspetos legal e contratualmente relevantes, as funções e riscos assumidos por cada uma das partes.
No que concerne ao desempenho das funções de produção, na cadeia de valor do grupo empresarial A..., a atividade prosseguida pela Requerente implica a obtenção de know-how especializado, previamente transmitido pela B... AG.
Em concreto, as funções relacionadas com o processo de produção e com o empacotamento e rotulagem são maioritariamente desempenhadas pela Requerente, sob orientação da B... AG.
Nessa medida, no que respeita à referida função, a Requerente não tem autonomia, circunscrevendo a sua atuação à aquisição de peças a fornecedores, sob autorização prévia da B... AG, apresentando tal função uma expressão residual face ao volume total de compras registado.
Por outro lado, a B... AG detém o controlo sobre os investimentos de capital realizados pela Requerente no decurso da sua atividade.
De igual modo, a rubrica de clientes é pouco significativa no total do ativo da Requerente, uma vez que a sociedade suíça B... AGS é a única entidade que adquire produto acabado.
Entre abril e dezembro de 2017, a Requerente foi alvo de uma ação inspetiva de natureza externa, em resultado da qual os serviços da Autoridade Tributária procederam a correções na esfera da Requerente, no montante global de 9.485.054,39 EUR, com fundamento na alegada preterição do regime de preços de transferência previsto no artigo 63.º do Código do IRC.
Sucede que de acordo com a Ordem de Serviço n.º OI 2017..., a ação de inspeção visava, única e exclusivamente, aferir do cumprimento das obrigações tributárias que impendiam sobre a Requerente, na qualidade de sujeito passivo, no exercício de 2014. Não obstante, os serviços de inspeção tributária estenderam o procedimento aos exercícios de 2013 e 2015, sem que a Requerente em momento algum tenha sido notificada de despacho fundamentado de alteração da extensão do procedimento inspetivo, nos termos do artigo 15.º do RCPITA.
De onde resulta a ilegalidade do procedimento inspetivo reportada à falta de competência dos serviços inspetivos para efetivarem as correções espelhadas nos atos tributários relativos aos exercícios de 2013 e 2015.
E caso se entenda que tiveram antes lugar três ações inspetivas autónomas, concernentes aos exercícios de 2013, 2014 e 2015, os atos tributários serão ilegais em relação a dois dos exercícios inspecionados, porquanto não foram emitidos os respetivos relatórios finais de inspeção nos termos do artigo 63.º, n.º 1, do RCPITA.
Acresce que o ato tributário respeitante ao exercício de 2013 foi praticado e notificado à Requerente após o termo do prazo de caducidade do direito à liquidação previsto no artigo 45.º da LGT, aplicável por remissão do artigo 101.º do CIRC, tornando-se ilegal por efeito dessa regra de caducidade.
Os atos tributários são ainda ilegais por falta de fundamentação por não terem sido acompanhados de fundamentação que justifique ou demonstre os pressupostos em que assentou a sua emissão.
Além de que padecem ainda de ilegalidade por violação do princípio do inquisitório e da verdade material, uma vez que a sua prolação resulta da omissão de diligências que se impunham à AT, porquanto tais diligências reputavam-se essenciais ao apuramento do intervalo de plena concorrência e, no âmbito desse intervalo, à determinação do ponto do intervalo tido por mais adequado à efetivação das correções. E ainda de violação dos princípios da justiça e da boa fé uma vez que, pretendendo os serviços de inspeção afastar os intervalos apurados pelo sujeito passivo, vieram a recorrer a esses mesmos intervalos para apurar as correções e o imposto em falta.
Acresce a todo o exposto que os atos tributários incorrem em violação do princípio da concorrência (artigo 63.º do CIRC) uma vez que os serviços inspetivos recorreram a uma a mediana a que se encontra extremamente inflacionada face ao que resultaria do recálculo dos intervalos de comparabilidade de plena concorrência.
De modo a efectuar essa demonstração, a Requerente realizou novos estudo de benchmarking atendendo aos seguintes critérios: Limitação da pesquisa a entidades portuguesas comparáveis com o mesmo Código de Atividade Económica (“CAE”) que a Requerente – qual seja, “Fabricação de eletrodomésticos” – em estado de atividade nos exercícios sob escrutínio; Exclusão de entidades que não apresentassem dados financeiros para, pelo menos, dois dos três anos de cada período em análise; Exclusão de entidades que desenvolvessem funções substancialmente diferentes das assumidas pela Requerente; e Exclusão de entidades consideradas outliers na ótica do filtro moderado de Tukey, tendo obtido margens operacionais que estão dentro do intervalo de plena concorrência (0,95%, 0,80% e 0,82% para os exercícios de 2013 a 2015.
Acresce que, se aos critérios identificados fossem aplicados critérios estritos relativos ao volume de negócios e ao número de funcionários – como sustenta a AT no relatório final de inspeção tributária –, não restariam empresas comparáveis suficientes que permitissem apurar um intervalo de comparabilidade.
Assim se concluindo que as margens adotadas pelo sujeito passivo se encontram dentro do intervalo de concorrência apurado, atendendo ao princípio de plena concorrência, ao passo que as margens de 5% e 4,3% adotadas pela AT são manifestamente exageradas e deturpadas face aos valores de mercado.
Caso se considere que os serviços tributários poderiam ter recorrido ao intervalo de comparabilidade que desaprovaram, a fim de procederem ao apuramento do imposto, nunca o ponto do intervalo a adotar para efetivar as correções poderia ser a mediana porquanto, atentas as caraterísticas específicas da Requerente, tal ponto não é passível de representar os termos e condições que seriam praticados entre partes independentes.
Por outro lado, a Requerente atua, no âmbito do grupo empresarial C... enquanto contract manufacturer e nessa medida assume riscos circunscritos ao cumprimento dos parâmetros de qualidade estabelecidos pela sociedade que encomenda os bens e à propriedade dos espaços e materiais necessários à produção dos bens, pelo que a sua remuneração será diminuta, sendo quase inexistentes as empresas que operam como contract manufacturer e atuam de modo livre no mercado concorrencial.
E assim, atendendo à impossibilidade prática em identificar empresas idênticas e à circunstância de a lei apenas exigir uma comparabilidade razoável das empresas que servem de base ao apuramento do intervalo de concorrência, a Requerente recorreu maioritariamente a empresas que atuam como full-fledged distributors no mercado da fabricação de bens análogos a electrodomésticos.
Sucede que, empresas que operam enquanto full-fledged distributors assumem, por definição, bastantes mais riscos e funções do que as empresas que operam enquanto contract distributors, auferindo, por esse motivo, uma maior remuneração pelas transações que efetuam e atividades que desempenham, e, desse modo, encontrando-se os valores dos intervalos de plena concorrência apurados pela Requerente influenciados por full-fledged distributors, nunca a mediana poderá representar o ponto que melhor reflete os termos e condições de mercado da Requerente, que opera como contract manufacturer, pelo que os atos tributários são ilegais por preterição do princípio da plena concorrência por recurso à mediana em violação do disposto no artigo 163.º do CPA.
Acresce que a Requerente conclui, na reclamação graciosa e no recurso hierárquico, que, as margens adoptadas obedeciam ao princípio da plena concorrência e, enquanto contract manufacturer, as margens de rentabilidade sempre deveriam situar-se na primeira metade do intervalo apurado, uma vez que foram tidas em conta empresas que atuam como full-fledged distributors.
Todavia, na decisão administrativa não se pronunciou sobre o segundo ponto, pelo que incorre em violação do dever de decisão nos termos dos artigos 56.º da LGT e 52.º, n.º 1, da CRP.
No ponto 4.1 do Relatório de Inspeção Tributária, a AT apenas menciona, como fundamento normativo para as correções, as disposições do artigo 4.º, n.º 5, da Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de dezembro e parágrafos 3.56 e 3.62 das Guidelines da OCDE., sucedendo que nenhuma dessas disposições beneficia de forma legal, verificando-se, em consequência, a preterição do princípio da reserva de lei previsto nos artigos 2.º, 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP.
A título subsidiário, os atos tributários são ilegais por violação dos princípios constitucionais da igualdade e capacidade contributiva ínsitos no artigo 13.º da CRP, tendo em consideração que, tomando como tertium comparationis as empresas independentes situadas nas metades inferiores dos intervalos de comparabilidade, a Requerente é colocada numa situação fiscalmente desvantajosa, encontrando-se obrigada a suportar uma carga tributária superior sem que haja revelado maior capacidade contributiva para o efeito.
A Autoridade Tributária, na sua resposta, invoca a excepção da incompetência material do tribunal arbitral para conhecer da falta da notificação da liquidação no prazo de caducidade do direito à liquidação, por considerar que esse constitui um fundamento de oposição à execução fiscal, nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 204º do CPPT, que é um meio processual próprio e não integra a competência dos tribunais arbitrais tal como se encontra definida no n.º 1 do artigo 2.º do RJAT.
Suscita ainda a incompetência material do tribunal arbitral para conhecer do vício de violação do dever de decisão imputável à reclamação graciosa, porquanto o meio processual próprio, nos termos do artigo 97.º, n.º 2, do CPPT, é a acção administrativa para a condenação à prática de ato administrativo legalmente devido que é regulada pelas normas sobre processo nos tribunais administrativos.
Por impugnação, a Autoridade Tributária considera que não se verificou a alegada violação da extensão da inspeção quanto aos exercícios de 2013 e 2015, porquanto a ação inspetiva teve por base ordens de serviço distintas que abrangiam os anos económicos de 2013, 2014 e 2015, tendo havido lugar a três procedimentos inspetivos autónomos devidamente notificados à Requerente, embora com um único relatório mas em que as conclusões de cada um dos procedimentos resultam perfeitamente individualizadas relativamente a cada um dos exercícios.
Quanto à caducidade do direito à liquidação do exercício de 2013, a Autoridade Tributária observa que, nos termos do n.º 1 do artigo 46.º da LGT, o prazo de caducidade suspende-se com a notificação ao contribuinte da ordem de serviço ou despacho no início da acção de inspecção externa, cessando esse efeito caso a duração da inspecção externa tenha ultrapassado o prazo de seis meses após a notificação.
No caso, a acção inspetiva relativa ano de 2013 teve uma duração inferior a seis meses e o relatório inspetivo foi notificado por ofício de 27 de Dezembro de 2017, considerando-se a notificação como feita no dia 2 de Janeiro seguinte, pelo que o prazo de caducidade manteve-se suspenso durante o período em que decorreu o procedimento inspetivo, isto é, desde 25 de Agosto de 2017 até 2 de Janeiro de 2018 e só terminou em 10 de Maio de 2018.
No tocante aos preços de transferência, o que a Autoridade Tributária constatou foi que a escolha dos comparáveis não apresentavam a similitude apropriada dadas as diferenças ao nível da atividade desenvolvida, do volume de negócios alcançado e da dimensão das estruturas das empresas consideradas face à realidade da Requerente, pelo que seria necessário proceder a ajustamentos.
E atendendo às orientações da OCDE vertidas nas Guidelines, em especial no § 3, 62, e ao facto da Requerente apresentar uma estrutura de maior dimensão face às demais, esses ajustamentos teriam de ser efetuados tomando como parâmetro as medidas estatísticas de tendência central, em oposição às medidas dos extremos.
Com efeito, a posição da Autoridade Tributária assenta numa orientação da OCDE segundo a qual, face à inexistência de operações exactamente comparáveis, deve recorrer-se a uma taxa média que aponta para uma tendência central, sendo que as Guidelines da OCDE constituem um referencial interpretativo e de atuação que é internacionalmente aceite, como é, aliás, mencionado no preâmbulo da Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de dezembro.
Alega a Requerente que é uma empresa com as características de contract manufacturers, que assumem riscos extremamente residuais, e dada a impossibilidade de encontrar empresas do mesmo tipo a operar livremente no mercado, a amostra de comparáveis utilizada no estudo de comparabilidade que efetuou é composta por empresas full-fledged distributors, que assumem um maior grau de risco auferindo, por esse motivo, uma maior remuneração das transações que efetuam e atividades que desempenham, e, nessa medida, encontrando-se os valores dos intervalos de plena concorrência apurados pela Requerente influenciados por full-fledged distributors, nunca a mediana poderá representar o ponto que melhor reflete os termos e condições de mercado da Requerente.
A esse propósito, cabe referir que a amostra de comparáveis foi a selecionada pela Requerente e a apontada circunstância não afasta a aplicação da mediana enquanto medida de correção quando subsistam factores que diminuem o índice de comparabilidade da amostra e que podem introduzir distorção no resultado do estudo.
A Autoridade Tributária afasta ainda a alegada falta de fundamentação das liquidações adicionais de IRC, considerando que os actos tributários têm uma fundamentação clara, não contraditória e sem expressões genéricas ou obscuras, cumprindo os requisitos do artigo 77° da LGT.
Quanto à violação dos princípios do inquisitório, da verdade material, da justiça e da boa fé, refere-se que o relatório de inspecção tributária partiu das informações fornecidas pela Requerente, constantes do dossier de preços de transferência por si elaborado, e que esta poderia ter aportado ao processo todas as informações que considerasse pertinentes no âmbito do exercício do direito de audição. E o facto de, segundo se alega, não se ter aí procedido ao apuramento de novos intervalos de comparabilidade não contende com os invocados princípios procedimentais.
Por outro lado, a Administração está unicamente vinculada ao dever de decidir e fundamentar a sua decisão e não tem de pronunciar-se sobre todos os argumentos apresentados pelo interessado. E a falta de menção expressa ao argumento aduzido sobre a alegada condição de contract manufacturer, não significa que os serviços inspectivos não tivessem apreciado a questão essencial que estava em causa, isto é, se o estudo inicial efetuado pela Requerente incluído no dossier dos preços de transferência é capaz de demonstrar que os preços praticados pela Requerente se encontram no intervalo de plena concorrência. Não se verificando, por conseguinte, a alegada violação do dever de decisão.
Acresce que a Autoridade Tributária efectuou as correcções com base no artigo 63.º do CIRC, recorrendo às Guidelines da OCDE como mero critério interpretativo, não ocorrendo a qualquer violação de reserva de lei formal.
A Requerente alega ainda violação dos princípios da igualdade e da capacidade contributiva na medida em que a Administração, ao corrigir as margens praticadas para os valores das medianas dos intervalos de comparabilidade, colocou a Requerente em situação de desvantagem face a todas as empresas que praticaram margens de mercado situadas na primeira metade do intervalo.
Ora, a mediana, atendendo às caraterísticas da Requerente, nomeadamente a sua dimensão, e às características das empresas tomadas como comparáveis na construção do intervalo de comparação é a medida que, por se tratar de uma medida de tendência central, traduz melhor a rentabilidade da Requerente por oposição ao primeiro quartil, pelo que a correcção efectuada visou determinar o real rendimento e capacidade contributiva do sujeito passivo.
Conclui no sentido da improcedência do pedido.
2. Notificada para se pronunciar sobre a matéria de excepção, a Requerente veio dizer, em síntese, o seguinte.
Sendo certo que a prática e notificação de qualquer ato tributário após o decurso do prazo de caducidade do direito à liquidação poderá constituir fundamento de oposição à execução, essa mesma circunstância não obsta a que o acto se encontre inquinado de um vício ilegalidade, que, como tal é passível de invocação em sede de impugnação judicial ou arbitragem tributária, como constitui entendimento da doutrina e da jurisprudência, pelo que o tribunal arbitral é materialmente competente para apreciar a pretensão.
No que se refere à incompetência do tribunal para conhecer do vício de ilegalidade imputável à decisão de reclamação graciosa por impropriedade do meio processual, sublinha-se que os tribunais arbitrais são competentes para conhecer do ato de segundo grau ou de terceiro grau que conhece da legalidade do ato de liquidação, pelo que tendo ocorrido o indeferimento da reclamação graciosa que incidiu sobre esse acto tributário, mantém-se a competência do tribunal para a apreciação da sua ilegalidade.
Conclui no sentido da improcedência das excepções.
No seguimento do processo, houve lugar à reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, também destinada à produção de prova testemunhal e prestação de declarações de parte requerida pela Impugnante.
Em alegações, a Requerente e a Requerida procuraram fixar os factos que consideram como assentes e mantiveram quanto à matéria de direito as suas anteriores posições.
3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.
Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 6.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, os árbitros foram designados pelas partes, tendo o Conselho Deontológico designado o árbitro presidente, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 3 de Março de 2020.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído.
Cabe apreciar e decidir.
II – Saneamento
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades e foram invocadas exceções de incompetência material do tribunal arbitral que serão apreciadas adiante.
Incompetência do tribunal para conhecer da falta de notificação dentro do prazo de caducidade do direito à liquidação
4. A Autoridade Tributária invoca a excepção da incompetência material do Tribunal Arbitral para conhecer da falta da notificação da liquidação no prazo de caducidade do direito à liquidação, por considerar que esse constitui um fundamento de oposição à execução fiscal, nos termos do artigo 204.º, n.º 1, alínea e), do CPPT, que é um meio processual próprio e não integra a competência dos tribunais arbitrais definida no artigo 2.º, n.º 1, do RJAT.
Embora a caducidade do direito à liquidação implique a ineficácia do acto tributário e constitua, por isso, fundamento de oposição à execução, como tal expressamente mencionado na falada disposição do artigo 204.º, n.º 1, alínea e), do CPPT, o certo é que essa consubstancia, do mesmo modo, uma ilegalidade que afecta a validade do acto de liquidação, bastando notar que o artigo 99.º do CPPT enuncia como fundamento de impugnação qualquer ilegalidade, explicitando, nas suas diversas alíneas, a título meramente exemplificativo, algumas das situações que correspondendo a formas de ilegalidade poderão servir de base à impugnação (LOPES DE SOUSA,- Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, vol. II, 6.ª edição, 2011, Áreas Editora, pág. 485; CASIMIRO GONÇALVES, Problemas Fundamentais do Direito Tributário. A Caducidade face ao Direito Tributário, 1999, Vislis Editores, pág. 237).
Nesse mesmo sentido se pronuncia o STA, que no acórdão de 18 de junho de 2014 (Processo n.º 0344/13, seguindo o entendimento já anteriormente sufragado no acórdão de 28 de Novembro de 2012 (Processo n.º 0457/12), veio consignar que “[à] semelhança do que sucede com a ilegalidade abstrata e a duplicação de coleta, também a falta de notificação da liquidação dentro do prazo de caducidade constitui vício invocável tanto em sede de oposição à execução fiscal como em sede de impugnação judicial, não ocorrendo, pois, erro na forma do processo se invocado em impugnação”.
Não se verifica, por conseguinte, a alegada incompetência do tribunal para conhecer da caducidade do direito à liquidação.
Incompetência material do tribunal arbitral para conhecer do vício de violação do dever de decisão imputável à reclamação graciosa
5. A Requerida suscita ainda a incompetência material do tribunal arbitral para conhecer do vício de violação do dever de decisão, imputável à reclamação graciosa, por considerar que o meio processual próprio para deduzir essa pretensão, nos termos do artigo 97.º, n.º 2, do CPPT, é a acção para a condenação à prática de ato administrativo legalmente devido que é regulada pelas normas sobre processo nos tribunais administrativos.
Sem dúvida que o CPTT, no seu artigo 97.º, n.º 1, alínea p), na redacção introduzida pela Lei n.º 118/2019, de 17 de Setembro, veio admitir, no contencioso tributário, a ação administrativa para a condenação à prática de ato administrativo legalmente devido, designadamente em relação atos administrativos relativos a questões tributárias que não comportem apreciação da legalidade do ato de liquidação, acção essa que, segundo o n.º 2 desse artigo, é regulada pelas normas sobre processo nos tribunais administrativos.
A condenação à prática de ato administrativo encontra-se regulada nos artigos 66.º e segs. do CPTA, podendo ser pedida, além de outras situações, quando, tendo sido apresentado requerimento que constitua o órgão competente no dever de decidir, não tenha sido proferida decisão dentro do prazo legalmente estabelecido (artigo 67.º, n.º 1, alínea a)).
Resulta do artigo 13.º do CPA que, em regra, os requerimentos apresentados aos órgãos administrativos em matéria da sua competência têm o efeito de os constituir no dever de decidir, princípio que se encontra igualmente previsto no artigo 56.º da LGT. Se a Administração não der resposta, dentro do prazo legal, o interessado pode propor ação de condenação à prática do ato devido com fundamento no incumprimento do dever de decidir, nos termos gerais do citado artigo 67.º, n.º 1, alínea a), do CPTA e do artigo 129.º do CPA, que declara que a “falta, no prazo legal, de decisão final sobre pretensão dirigida ao órgão administrativo competente constitui incumprimento do dever de decisão, conferindo ao interessado a possibilidade de utilizar os meios de tutela administrativa e jurisdicional adequados”.
Sucede que, no caso, a Requerente não pretendeu interpor uma qualquer acção de condenação à prática de ato administrativo para assegurar que a Administração emita a decisão sobre requerimento que lhe tenha sido apresentado, alegando apenas, como fundamento da impugnação judicial, a violação do dever de decidir quanto a um dos argumentos que tinha sido invocado na reclamação graciosa.
E, em todo o caso, o que está em causa, como resulta com evidência do pedido arbitral, é a declaração de ilegalidade dos actos tributários de liquidação adicional de IRC e das decisões de indeferimento da reclamação graciosa e do recurso hierárquico contra esses actos deduzidos, que integra a competência dos tribunais arbitrais, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, independentemente da viabilidade que possa ser atribuída à alegada violação do dever de decidir enquanto fundamento da impugnação judicial.
III - Fundamentação
Matéria de facto
4. Os factos relevantes para a decisão da causa que são ser tidos como assentes são os seguintes.
A) A Requerente é uma entidade residente em Portugal pertencente ao grupo empresarial C..., sendo integralmente detida pela sociedade B..., A.G. (“B... AG”), pessoa coletiva de Direito suíço, residente para efeitos fiscais na Suíça;
B) A Requerente tem como objecto social a “fabricação de electrodomésticos e de artigos de plástico, bem como sua comercialização, assistência técnica, exploração de licenças, patentes, marcas, modelos e tecnologias relacionadas com os mesmos produtos e actividades similares ou complementares adequadas. Para prossecução do seu objecto a sociedade poderá adquirir, alienar e administrar imóveis e participações noutras sociedades”.
C) A Requerente tem como atividade principal a produção de máquinas de café e ferros de engomar, bem como de peças suplentes, ferramentas, moldes e outros produtos relacionados.
D) A empresa, tem em média cerca de 600 colaboradores efetivos e subcontrata mensalmente em média entre 300 a 400 funcionários, através de empresas de trabalho temporário, de forma a dar resposta ao crescimento verificado nas encomendas dos clientes.
E) Desenvolve a sua actividade essencialmente através de vendas à casa-mãe, B..., AG, que representa cerca de 92 % do total do volume de negócios, e adquire às empresas do grupo um volume de compras que se situa em cerca de 30% do total das compras.
B... AG – nas qualidades de fabricante (“contract manufacturer”) e principal (“principal”), respetivamente – celebraram um contrato de produção (“manufacturing agreement”), o qual regula os termos e condições do processo de fabrico, definindo, entre outros aspetos legal e contratualmente relevantes, as funções e riscos assumidos por cada uma das partes.
G) A Requerente foi objecto de uma acção inspectiva externa, titulada pelas Ordens de Serviço n.os OI2017..., com despacho de 27 de Janeiro de 2017, OI2017... e OI2017..., com despacho de 28 de junho de 2017, referentes aos exercícios de 2014, 2015 e 2016.
H) Em 12 de Outubro de 2012, através do ofício n.º ... foi comunicada a prorrogação de prazo para a Ordem de Serviço 012017... relativa ao exercício de 2014, por mais três meses, nos termos do no 4 do artigo 36.º do RCPITA.
I) Os atos externos de inspeção, referentes ao exercício de 2014, iniciaram-se em 19 de Abril de 2017, e os referentes aos exercícios de 2013 e 2015 iniciaram-se em 25 de Agosto de 2017 e foram concluídos em 15 de Novembro de 2017.
J) Em resultado do procedimento inspetivo, a Autoridade Tributária procedeu a correções na esfera da Requerente, no montante global de € 9.485.054,39, com fundamento na preterição do regime de preços de transferência previsto no artigo 63.º do Código do IRC;
L) O Relatório de Inspecção Tributária fundamenta as correcções nos seguintes termos.
4. 4. Fragilidades apresentadas pelo estudo de comparabilidade constante do DPT
Com base nos resultados alcançados pelo estudo de comparabilidade constante dos Dossiês de Preços de Transferência, verificou-se que esse estudo apresenta fragilidades de acordo com o que seguidamente se apresenta.
O preâmbulo da Portaria 14460/2001, de 21/12, refere que nos casos de maior complexidade técnica, é aconselhável a consulta dos relatórios da OCDE que desenvolvem esta matéria, e cuja adopção pelos países membros é objecto de recomendações aprovadas pelo Conselho desta organização internacional." Da pesquisa efectuada à documentação emitida pela OCDE, com vista à identificação do impacto da dimensão das entidades tomadas como comparável enquanto factor a ter em consideração para efeitos de aplicação do Princípio de Plena Concorrência, importa referir que o parágrafo 3.43 das Guidelines da OCDE refere, "In practice, both quantitative and qualitative criteria are used to include or reject potential comparables. Examples of qualitative criteria are found in product portfolios and business strategies. The most commonly observed quantitative criteria are:
Size criteria in terms of Sales, Assets or Number of Employees. The size of the transaction in absolute value or in proportion to the activities of the parties might affect the relative competitive positions of the buyer and seller and therefore comparability";
A teoria económica deixa claro que as funções desempenhadas por uma pequena empresa tenderão a ser distintas das funções desempenhadas por uma grande empresa,
Assim, o impacto da dimensão nas funções desempenhadas pela empresa e consequentemente na sua rentabilidade, constitui um resultado teórico e empiricamente fundamentado. pelo que empresas com um volume de proveitos operacionais significativamente inferiores poderão não atingir a dimensão necessária ou o nível de implementação no mercado pretendido para efeitos de comparabilidade.
Por outro lado, a consideração de empresas com um nível reduzido de proveitos poderia levar à consideração de resultados distorcidos quando aplicados rácios com base nesses mesmos proveitos.
Assim, atendendo ao exposto, para efeitos de comparabilidade importa expurgar empresas de reduzida dimensão (utilizando o nível de proveitos operacionais da empresa como proxy da sua dimensão), as quais, em resultado dessa característica, desempenharão funções distintas da tested party'
Acresce que nesse parágrafo das Guidelines da OCDE é assumido que a dimensão da entidade tomada como comparável reflectirá a posição competitiva da mesma (enquanto comprador ou vendedor), e, consequentemente, a sua comparabilidade.
O critério "dimensão da entidade tomada como comparável" facilitará a exclusão de empresas "start up" elou "que se encontrem numa fase de liquidação" (e consequentemente, não comparáveis com a empresa em análise), mas essencialmente, este critério contribui para assegurar que as entidades tomadas como comparáveis exercem funções similares à da "tested party" e apresentam uma posição competitiva similar.
4.1 Quanto à não comparabilidade de algumas entidades que constam do estudo
Considerando que:
a) De acordo com o número 5 do artigo 4 0 da Portaria 1446-C/2001, de 21/12, "Se, no âmbito de aplicação de um método, a utilização de duas ou mais operações não vinculadas comparáveis ou a aplicação de mais de um método considerado igualmente apropriado conduzir a um intervalo de valores que assegurem um grau de comparabilidade razoável, não se toma necessário proceder a qualquer correcção, caso as condições relevantes da operação vinculada, nomeadamente o preço ou a margem de lucro, se situarem dentro desse intervalo.
b) No mesmo sentido, o § 3.56 das Guidelines da OCDE, estabelece que sempre que seja possível concluir que uma operação tomada como comparável apresenta um menor grau de comparabilidade que as restantes, esta deve ser excluída;
c) As fragilidades evidenciadas pelo estudo de comparabilidade, nomeadamente as que resultam do facto:
> Da actividade desenvolvida por grande parte das entidades tomadas como comparáveis não consistir na actividade de fabricação de electrodomésticos (actividade da A...) mas numa actividade que o Sujeito Passivo entendeu considerar como similar a esta;
> Existir uma diferença significativa entre o volume de negócios da A... nos exercícios em apreço e o apresentado pelas entidades tomadas como comparáveis;
> O número de empregados da A... ser substancialmente superior ao apresentado pelas entidades tomadas como comparáveis;
Tomemos para demonstração do exposto, a empresa considerada como comparável " D... SA", que no entender da Inspeção Tributária não assegura um grau de comparabilidade razoável com as demais observações do intervalo pelos seguintes motivos:
• No triénio considerado para 2011, 2012 e 2013, apresenta os seguintes valores para o indicador de rentabilidade considerado:
2013 2012 2011 weighted average
D...SA 0,98% -10,06% 1,07% -3,03%
• O valor do indicador de rentabilidade considerado é fortemente influenciado pelo valor relativo ao exercício de 2012 que claramente é desconforme com o A observação em causa (exercício de 2012) apresenta características de outlier sete milhões, valores bastante inferiores ao volume de negócios apresentados pela A... na ordem dos 70 milhões.
• A observação em causa (exercício de 2012) apresenta características de outlier pelo que deveria ter sido excluída da análise efetuada;
• Apresenta um volume de negócios para o triénio em questão entre os cinco e os sete milhões, valores bastante inferiores ao volume de negócios apresentados pela A... na ordem dos 70 milhões.
De acordo com as Diretivas da OCDE sobre Preços Transferência, em concreto as Directivas publicadas em julho de 2010, de acordo com o S 3.62 quando persistam alguns defeitos de comparabilidade da amostra devem utilizar-se medidas de tendência central como a mediana, a média ou a média ponderada, a fim de minimizar os riscos de erro provocado por defeitos de comparabilidade.
O § 3.62 das Guidelines da OCDE 10 estipula o seguinte:
"3.62 In determining this point, where the range comprises results of relatively equal and high reliability, it could be argued that any point in the range satisfies the arm's length principle. Where comparability defects remain as discussed at paragraph 3.57, it may be appropriate to use measures of central tendency to determine
5. Determinação do preço que seria praticado entre entidades independentes
Dado que foram identificadas fragilidades, ao nível dos comparáveis considerados no estudo de comparabilidade constante dos Dossiês de Preços Transferência, em virtude:
Da actividade desenvolvida pelas entidades tomadas como comparáveis não consistir na actividade de fabricação de electrodomésticos (actividade da A...) mas em actividades que o Sujeito Passivo entendeu considerar como similares a esta;
Existir uma diferença significativa entre o volume de negócios da A... nos exercícios em apreço e o apresentado pelas entidades tomadas como comparáveis;
> O número de empregados da A... ser substancialmente superior ao apresentado pelas entidades tomadas como comparáveis;
Existir na amostra a entidade considerada como comparável " D... SA", que no entender da Inspeção Tributária não assegura um grau de comparabilidade razoável de acordo com os motivos já expostos.
Assim, de forma a assegurar um grau de comparabilidade razoável e com vista a colmatar as limitações associadas ao estudo de comparabilidade apresentado pelo sujeito passivo e que já foram realçadas ao longo do presente relatório, cumpre-nos determinar as condições de plena concorrência e, em conformidade com as orientações da OCDE, atenderemos às Directrizes publicadas em Julho de 2010 e ao parágrafo 3.62, considerando assim a eleição da mediana como medida mais adequada, pelo que se propõe as seguintes correcções aos resultados operacionais do sujeito passivo, evidenciadas no quadro seguinte.
Quadro n.º 7 – Correções propostas ao Resultado Operacional exercícios de 2015, 2014 e 2013
(Eur’000)
2015 2014 2013 TOTAL
1. Vendas Liquidas (ajustadas) 74.548,0 66.894,0 67.086,0
2. Custos Operacionais (ajustados) 73.906,6 66.254,5 66.639,9
3. Resultados Operacionais ajustados (EBIT) 641,4 639,5 446,1
4. Ajusted FCMU (Resultados Opera./Custos Operac.) (4.)=(3/”) 0,868% 0,965% 0,669%
5. Mediana 5% 5% 4,3%
6. Resultados Operacionais ajust.(EBT) corrigidos pela Mediana (6.)=(2x5) 3.695,33 3.312,73 2.865,52
7. Correção (7.)=(6-3) 3.053,93 2.673,23 2.419,42 8.146,57
Quadro n.º 8 – Resultado Tributável corrigido – exercícios de 2015, 2014 e 2013
Valores em Euros
2015 2014 2013
Resultado Tributável Declarado 458.206,10 448.507,96 431.760,33
Correção Proposta 3.053.930,00 2.673.230,00 2.419.420,00
Resultado Tributável Corrigido 3.512.136,10 3.121.737,96 2.851.180,33
M) A Requerente foi notificada dos atos tributários em Janeiro de 2018.
N) Em 13 de abril de 2018, a Requerente apresentou reclamação graciosa, a qual foi expressamente indeferida por despacho de 29 de maio de 2019, do director adjunto da Direcção de Finanças de Lisboa.
O) O indeferimento fundamentou-se na informação da Divisão de Justiça Administrativa, onde se refere na parte relevante o seguinte.
II - Análise e Parecer
Atendendo aos fundamentos alegados pelo ora reclamante, verifica-se que as questões suscitadas já foram sobejamente apreciadas no âmbito do projeto de decisão.
No entanto, sempre se dirá que, nos termos do n° 6 do art.º 63° do CIRC, o sujeito passivo deve manter organizada, nos termos estatuídos para o processo de documentação fiscal a que se refere o art.º 130.º a documentação respeitante a política adotada em matéria de preços de transferência.
Esse processo de documentação fiscal deve estar constituído, nos termos do art.º 130° do CIRC, até ao termo do prazo para entrega de declaração a que se refere a al. c) do n.º 1 do art.º 117° e o art.º 121° do CIRC.
Ora, o dossier de preços de transferência deverá abranger todas as transações que tenham lugar entidades relacionadas com aquela, incorporando estudos de mercado, informação detalhada sabre os custos de aquisição, produção e venda dos bens/serviços prestados, de modo a justificar qual o método de preços de transferência escolhido para aquela transação em especifico.
Ora, este regime existe exatamente para garantir que entre entidades com relações especiais devem ser contratados termos e condições substancialmente idênticos aos praticados por entidades independentes em operações comparáveis.
Pelo que, os estudos de mercado apresentados em sede da presente reclamação graciosa deveriam ter sido elaborados e apresentados tempestivamente, uma vez que o dossier dos preços de transferência fiscal deve estar incluído no dossier fiscal, para que a AT procedesse a uma análise comparativa de todos os elementos apresentados e justificativos dos valores declarados e contabilizados pela ora reclamante.
Saliente-se ainda que o dossier de preços de transferência deve estar atualizado e que os serviços de inspeção tributária procederam à analise dos documentos contabilísticos e demais elementos que lhes foram apresentados, constantes do dossier fiscal, peta ora reclamante durante a ação de inspeção.
Refira-se também que não foram juntos, em sede do exercício do direito de audição prévia, meios de prova novos que ponham em causa as correções efetuadas pelos serviços de inspeção tributária ou que comprovem o alegado pela ora reclamante.
III - Conclusão
Face ao exposto, atendendo a que a reclamante não apresentou elementos suscetíveis de alterar o sentido da decisão projetada, propõe-se sua convolação em definitiva, no sentido do indeferimento do pedido.
P) Em 5 de julho de 2019, a Requerente interpôs recurso hierárquico que não foi objecto de pronúncia por parte da Autoridade Tributária, entendendo-se como tacitamente indeferido.
Q) No dia 6 de abril de 2018, a Requerente procedeu ao pagamento do imposto, no montante global de € 2.107.501,90, sendo € 2.090.550,08 de IRC e juros compensatórios e € 16.951,82 de juros de mora, por força do processo de execução fiscal entretanto instaurado.
Factos não provados
Não há factos não provados que revelem para a decisão da causa.
Motivação da matéria de facto
O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária com a resposta, na produção de prova testemunhal e declarações de parte em audiência e factos não questionados pelas partes.
Matéria de direito
Ordem de conhecimento dos vícios
6. A Requerente fundamenta o pedido arbitral no vício de violação do princípio da concorrência, com base no disposto no artigo 63.º do Código do IRC, e em diversos outros vícios formais ou procedimentais e ainda em vícios de inconstitucionalidade.
Conforme dispõe o artigo 124.º do Código de Procedimento e Processo Tributário, na sentença a proferir no processo de impugnação, o tribunal apreciará prioritariamente os vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do ato impugnado e, depois, os vícios arguidos que conduzam à sua anulação (n.º 1), havendo lugar, no primeiro grupo, à apreciação prioritária dos vícios cuja procedência determine, segundo o prudente critério do julgador, mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos, e, no segundo grupo, a indicada pelo impugnante, sempre que este estabeleça entre eles uma relação de subsidiariedade e não sejam arguidos outros vícios pelo Ministério Público ou, nos demais casos, a fixada na alínea anterior (n.º 2).
No presente caso, não são arguidos vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do ato impugnado ou outros que resultem do exercício da ação pública, estando apenas em causa vícios que conduzem à anulação do ato administrativo. Por outro lado, a Requerente não indica uma relação de subsidiariedade entre os vícios, pelo que se afigura haver lugar ao conhecimento prioritário do vício de violação de lei (violação do princípio da concorrência) por ser este que confere mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos, visto que os vícios formais ou de procedimento — a procederem — não impediriam que a Administração produzisse, em execução de julgado, um ato de idêntico sentido ainda que mediante o suprimento ou regularização das deficiências que, nesses aspectos, lhe são imputadas.
Por outro lado, as questões de constitucionalidade só têm de ser analisadas como última ratio, isto é, quando se venha a concluir no sentido da improcedência do vício de violação do princípio da concorrência e se torne necessário, segundo a alegação da Requerente, confrontar a disposição legal com as normas ou princípio constitucionais.
Sendo assim, começar-se-á por analisar o apontado vício de violação de lei.
Violação do princípio da concorrência
7. 1. O princípio da plena concorrência
A Requerente argumenta que foi violado, a dois títulos, o princípio da plena concorrência: primeiro porque discorda do recurso à mediana por parte da AT, depois porque discorda do próprio valor atribuído a essa mediana. Em ambos os casos remetendo para o art, 63º do CIRC.
Lembremos que o princípio de plena concorrência (“arm’s-length principle”) está consagrado no art. 9º, 1 do Modelo de Convenção Fiscal da OCDE (as “Guidelines”):
“Quando as duas empresas (associadas), nas suas relações comerciais ou financeiras, estiverem ligadas por condições aceites ou impostas que difiram das que seriam estabelecidas entre empresas independentes, os lucros que, se não existissem essas condições, teriam sido obtidos por uma das empresas, mas não foram por causa dessas condições, podem ser incluídos nos lucros dessa empresa e, consequentemente, tributados em conformidade”.
A nível nacional, o art. 63º, 1 do CIRC e o art. 1º, 1 da Portaria nº 1446-C/2001, de 21 de Dezembro, consagram este princípio, ao estabelecer que, nas operações realizadas entre entidades relacionadas, “devem ser contratados, aceites e praticados termos ou condições substancialmente idênticos aos que normalmente seriam contratados, aceites e praticados entre entidades independentes em operações comparáveis”.
É o “benchmark” das transacções entre entidades não-relacionadas que, no pressuposto de uma certa comparabilidade, permite estender uma presunção de “normalidade” a transacções entre entidades com relações especiais, a normalidade ficcionada dos “preços de transferência”.
Contudo, há um obstáculo: é que empresas especialmente relacionadas (art. 63º, 4 do CIRC) tendem a desenvolver operações que não teriam lugar entre entidades independentes, sendo, portanto, distinto o contexto comercial – o que remete para “métodos não-transaccionais” de comparação, como se verá.
Comece por referir-se que os preços de transferência podem não ter uma vertente patológica, na medida em que sirvam como “sucedâneos de preços” que promovem a distribuição eficiente de recursos dentro de um grupo multinacional, funcionando como sinais e incentivos que não interessa às empresas distorcer .
O mesmo se dirá do intervalo de preços que exprime o fenómeno da “transferência”, que pode funcionar como uma estrutura de incentivos realista, compatível com a margem de indefinição que ocorre no próprio mercado entre entidades independentes .
Feita esta ressalva, reconhecer-se-á que é a patologia que predomina, ou pelo menos que é ela que mais releva para uma análise jurídica, ou jurídico-económica, dos preços de transferência: é que a assimetria informativa entre empresas e administrações tributárias gera a possibilidade de “camuflagem de rendimentos” , especificamente de transferência de lucros para empresas relacionadas, e situadas em jurisdições com menor carga fiscal, “cobrando” preços artificialmente altos ou baixos, e essa possibilidade pode corresponder a uma estratégia dominante, se não forem muito elevados os “concealment costs” .
O que suscita, da parte das ordens jurídicas nacionais, a reacção anti-abuso, que conduz a liquidações adicionais, protegendo a receita doméstica e restabelecendo a paridade tributária com as empresas domésticas – mesmo que à custa do incentivo suplementar às exportações que o “profit shifting” pode circunstancialmente representar .
Retenhamos também que a questão dos preços de transferência nasce das fronteiras nacionais da tributação, que impedem a consolidação dos valores de rendimento gerados por grupos empresariais multinacionais, obrigando à fragmentação desses valores pelas diversas jurisdições que sujeitam a imposto as empresas do grupo nelas sediadas. Trata-se de garantir que o lucro gerado numa determinada jurisdição reflicta a contribuição para a cadeia de valor criado nessa mesma jurisdição, como aconteceria por intermédio de uma transacção de mercado aberto entre partes independentes, como resulta dos termos da Portaria nº 1146-C/2001, de 21 de Dezembro.
Dessa fragmentação nasce a necessidade de ficção de um “mercado intragrupo”, centrado num mecanismo de preços que se pretende que seja uma emulação daquele que se formaria nas trocas entre essas empresas, se elas não se integrassem no grupo – a essência do princípio “arm’s length”, a imposição de que os “relacionados” procedam como se fossem “não-relacionados”, os preços “controlados” se formem como se fossem “não-controlados”, e as “operações vinculadas” como se fossem “operações não-vinculadas” .
Mas é nesse momento que a dificuldade de tal ficção de um “mercado intragrupo” abre o flanco a margens de penumbra e de incomparabilidade que podem ser abusivamente exploradas, especificamente no sentido do referido “profit shifting”, de transferência de rendimentos em direcção a jurisdições que proponham cargas tributárias mais ligeiras – um problema que se agrava com a globalização, a qual aumenta o volume e o âmbito das transacções intragrupo.
O objecto principal do regime dos preços de transferência é, portanto, o da prevenção e repressão do “profit shifting”, um fenómeno muito pronunciado em Portugal , tendo já atingindo valores como o de 4,8% da base tributável – e um fenómeno de amplíssimo âmbito internacional, calculando-se por exemplo que, por efeito de “profit shifting”, na Alemanha as filiais de multinacionais têm pago em média menos 27% de imposto do que as suas congéneres domésticas.
E o peso que a política legislativa tem comprova-se por simples correlações: o incremento da carga tributária que recai sobre as empresas faz aumentar o “profit shifting” , e o mesmo fenómeno tende a diminuir se se intensifica a monitorização dos preços de transferência .
Não admira, pois, que a introdução em Portugal, em 2001, de regras específicas sobre preços de transferência tenha visado de imediato o combate à manipulação do rendimento tributável através de transacções intragrupo – reconhecendo-se a oportunidade, e estratégia dominante, de “camuflagem de rendimentos”, mas também a insuperável margem de subjectividade que se insinua na comparabilidade das transacções, a reclamar o recurso a métodos indiciários e a presunções , criando um espaço adicional de litigância tributária, mesmo depois de se impor, aos grupos multinacionais, deveres extensos de revelação e de cooperação, que mesmo assim não dispensam a cooperação entre as autoridades tributárias das diversas jurisdições .
Relembrando o problema básico da ficção do “mercado intragrupo”: na vida real frequentemente não existe, ou não é observável, um preço de mercado “não-controlado” relativo a transacções comparáveis, nem as partes “relacionadas” costumam estabelecer verdadeiros preços, já que as suas transacções ocorrem fora de um mercado, no seio de uma integração vertical – daí que inevitavelmente a análise se recentre em “margens”, estabelecendo, para estas, intervalos interquartis “de confiança” .
7.2. O método de cálculo
Segundo a Requerente, a incomparabilidade que ilegitimaria o recurso, no caso, à mediana resulta do facto de ela, Requerente, ser um “contract manufacturer” de grande dimensão, sendo muito difícil, senão virtualmente impossível, encontrar empresas independentes a actuarem no mercado como “contract manufacturers”, sendo mais comum encontrar-se “full-fledged distributors” que, assumindo mais riscos, têm margem de remuneração muito mais elevadas.
O problema do recurso à mediana para fixar o valor “de plena concorrência” consistiria no facto de ela incluir no universo de cálculo também aquelas entidades que auferem remunerações mais elevadas, correspondentes ao maior risco que elas assumem – sendo que a situação de dependência da Requerente [de integração vertical com a B... AG] implica menor suporte de riscos, logo remuneração menor.
Vejamos como a Requerente se auto-caracterizou. A classificação do Inland Revenue, no Reino Unido, agrupa os vários produtores em três tipos, que se diferenciam entre si pelo grau de complexidade das suas funções :
A Requerente exclui a sua caracterização como “toll manufacturer”, e coloca-se na posição intermédia de “contract manufacturer”, que, como se vê pela tipologia, apenas se afasta do “full-fledged manufacturer” em termos de dimensão.
Ao invocar problemas de comparabilidade, a Requerente dificulta a aplicação do princípio da plena concorrência, na medida em que sugere a inidoneidade da ficção do “mercado intragrupo”, por não haver “contract manufacturers” com características próximas das suas a funcionarem como empresas independentes no seu sector de actividade e no correspondente “mercado real”.
Dificultando-a, não impossibilita, contudo, essa aplicação do princípio da plena concorrência às relações especiais entre a Requerente e o Grupo empresarial em que ela se integra.
Se impossibilitasse, isso significaria a derrota do próprio propósito da organização de dossiers de preços de transferência e da distribuição de ónus da prova que lhe subjaz (arts. 63º, 6 e 7, e 121º-A do IRC, arts. 13º a 16º da Portaria 1446-C/2001, de 21 de Dezembro), na medida em que cabe à Requerente promover intervalos de comparabilidade suficientemente idóneos para evitarem a contestação por parte da inspecção tributária – não devendo escudar-se em incomparabilidades, ou em comparações que, empurrando os preços de transferência para os extremos inferiores dos intervalos, pudessem sugerir a ocorrência do género de prática que a disciplina dos preços de transferência visa precisamente prevenir ou mitigar.
Na verdade, o que essa difícil comparabilidade implica são somente duas coisas: A) o afastamento dos métodos “transaccionais”, que reclamam abundância de “comparáveis”; B) o estabelecimento de um “intervalo de plena concorrência” susceptível de abarcar não somente a heterogeneidade de “comparáveis”, mas ainda as variações intertemporais verificadas nas entidades independentes que se usam para base de comparação (“benchmark”).
7.2. A. O método da margem líquida da operação
Começando pelo afastamento dos métodos “transaccionais”, a própria Requerente indicou, no dossier de preços de transferência, ter adoptado o método da “margem líquida” (art. 10º da Portaria nº 1446-C/2001, de 21 de Dezembro), centrado na “margem operacional” (diferença entre resultados e custos operacionais).
Relembremos, desde logo, que o princípio de plena concorrência reclama que os preços praticados nas transacções intragrupo sejam idênticos aos preços praticados em operações idênticas que decorram entre entidades independentes e conhecedoras do mercado (entidades que, por isso, se presume que operam em “plena concorrência”), devendo para isso adoptar-se o método susceptível de assegurar o mais elevado grau de comparabilidade entre as operações praticadas por entidades em relações especiais e as operações tidas por “normais”, isto é, as praticadas no “mercado” em “plena concorrência”, por entidades não ligadas por relações especiais – ou seja, aquilo que seria “normalmente contratado”, o que pode ser alcançado olhando para as operações (métodos “transaccionais”, “traditional transaction methods”), ou, como segunda opção, olhando para o lucro das operações (métodos “não-transaccionais”, “transactional profit methods”).
Mais precisamente, e seguindo as orientações da OCDE, o art. 63º, 2 do CIRC estabelece que devemos escolher “o método ou métodos susceptíveis de assegurar o mais elevado grau de comparabilidade entre as operações ou séries de operações que efetua e outras substancialmente idênticas, em situações normais de mercado ou de ausência de relações especiais”, e o art. 63º, 3, a) e b) do CIRC, tal como o art. 4º da Portaria nº 1446-C/2001, de 21 de Dezembro, prevêem a utilização dos seguintes métodos:
a) Métodos tradicionais baseados nas operações (ou “transaccionais”) – Método do Preço Comparável de Mercado, o Método do Preço de Revenda Minorado e o Método do Custo Majorado;
b) Métodos baseados no lucro das operações (ou “não-transaccionais”) – Método do Fraccionamento do Lucro, Método da Margem Líquida da Operação e Outros (quando os métodos referidos não possam ser aplicados).
Devendo adoptar-se como método “aquele que é susceptível de fornecer a melhor e mais fiável estimativa dos termos e condições que seriam normalmente acordados, aceites ou praticados numa situação de plena concorrência”, uma fórmula genérica que acaba por remeter para alguma margem de casuísmo, dada a relevância das características dos bens, direitos ou serviços, a posição de mercado, a situação económica e financeira, a estratégia de negócio, as demais características relevantes dos sujeitos passivos envolvidos, as funções por eles desempenhadas, os ativos utilizados, a repartição do risco, as quantidades transacionadas, a forma de pagamento, os prazos acordados, as garantias oferecidas, a qualidade dos produtos, bens ou serviços, a complexidade das transacções internacionais, ou os activos intangíveis compartilhados entre as subsidiárias, entre outras particularidades (art. 5º da Portaria 1446-C/2001, de 21 de Dezembro) .
Podemos esquematizar o procedimento:
MPCM= Método do Preço Comparável de Mercado (comparable uncontrolled price (CUP) method)
MPRM= Método do Preço de Revenda Minorado (resale price method)
MCM= Método do Custo Majorado (cost-plus method)
MMLO= Método da Margem Líquida da Operação (transactional net margin method)
MFL= Método do Fraccionamento do Lucro (transactional profit split method)
Ao adoptar o método MMLO (Método da Margem Líquida da Operação, transactional net margin method, art. 10º da Portaria nº 1446-C/2001, de 21 de Dezembro), a Requerente reconhece que, não obstante a escassez de “comparáveis”, é possível prosseguir, através da selecção do indicador de rentabilidade mais adequado, para a fase subsequente da determinação de um “intervalo de plena concorrência”, e, dentro deste, de valores de quartis, entre eles o da mediana.
Ou seja, os problemas de comparabilidade não impossibilitam a aplicação do princípio da plena concorrência às relações especiais entre a Requerente e o Grupo empresarial em que ela se integra.
7.2.B. A determinação do intervalo de plena concorrência
Quanto ao estabelecimento de um “intervalo de plena concorrência” (“arm’s length range”), compreender-se-á que a eficácia do princípio da plena concorrência dependa da escolha do método de comparação e de benchmarking, para se apurar aquele “intervalo de plena concorrência”.
Com efeito, para aferirmos a idoneidade da informação respeitante aos preços de transferência, tem de se levar em conta:
1. a comparabilidade das entidades (a formação de uma lista de empresas comparáveis, para habilitar uma comparação robusta);
2. o cálculo do intervalo (apurando-se se corresponde, ou não, ao intervalo interquartil);
3. a fixação do preço de transferência dentro desse intervalo (não imperativamente, mas recomendavelmente, sempre que surjam fragilidades na comparação, de acordo com o parágrafo 3.57 das “Transfer Pricing Guidelines” da OCDE).
Trata-se, lembremo-lo, de assegurar que o preço das transacções entre partes relacionadas converge para o preço de mercado – e isso reclama identificação de transacções comparáveis, pelos preços ou pelas margens que geram, a formação de um intervalo “arm’s length” com quartis e mediana – o que implica algumas regras e técnicas rígidas, que buscam mitigar a margem de subjectividade e de imprecisão que sempre subsiste – já que que a técnica dos preços de transferência não é, manifestamente, uma ciência exacta.
As condições “arm’s length” correspondem, pois, a um intervalo, ou espectro, de preços / rendimentos / margens, assente numa comparação de transacções, entre as que são levadas a cabo entre as partes relacionadas e as que são levadas a cabo por partes que o não são, e interagem num mercado real, tomando-se por balizas o quartil inferior (o percentil 25) e o quartil superior (percentil 75), com o centro na mediana (2º quartil, ou percentil 50).
Esse intervalo espelha a impossibilidade de se estabelecer inicialmente um valor único, preciso, para o preço ou para a margem, dadas as dificuldades típicas a que já aludimos:
- as condições nunca são iguais, e portanto a comparação com as transacções entre entidades independentes tem que se fazer sempre por aproximação;
- as flutuações distorcem as comparações, o que aconselha a formação de uma base multiperíodo;
- as próprias empresas independentes podem praticar preços distintos e ter margens diferentes;
- a informação é difícil de obter e processar .
Significa isto que só é preciso recorrer aos intervalos “arm’s length” quando não se conclui pela existência de transacções absolutamente similares, o que automaticamente asseguraria a paridade de condições entre relacionadas e não-relacionadas.
E significa também que o contribuinte tem todo o interesse em colocar os seus resultados no intervalo interquartil, e fugir dos “outliers”, para tornar os seus resultados mais credíveis e fiáveis, e evitar liquidações adicionais.
7.2.C. As medidas de tendência central
Ora que fez a Requerente? Adoptou o método MMLO, mas apresentou margens baixíssimas, seja de acordo com standards internacionais , seja numa comparação com os valores medianos e médios para os anos de referência apresentados pela AT, seja ainda numa comparação com dois intervalos de plena concorrência, interquartis, apresentados por ela mesma:
2013 2014 2015
Margens apresentadas pela Requerente 0,669% 0,965% 0,868%
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
Valores medianos apresentados pela Requerida 4,3% 5% 5%
Valores médios apresentados pela Requerida 6,9% 5,9% 5,9%
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
Quartil inferior apresentado pela Requerente - 1 1,77% 1,41% 1,01%
Mediana apresentada pela Requerente - 1 3,12% 4,54% 4,11%
Quartil superior apresentado pela Requerente - 1 4,49% 7,28% 7,29%
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
Quartil inferior apresentado pela Requerente - 2 1,77% 1,17% 1,01%
Mediana apresentada pela Requerente - 2 3,12% 3,15% 4,11%
Quartil superior apresentado pela Requerente - 2 4,26% 4,54% 7,07%
Quando o sujeito passivo não apresenta valores compatíveis com o “benchmark”, por se situarem fora dos intervalos interquartis apresentados por ele próprio, passa a caber à administração ajustar as condições que asseguram a plena concorrência – o que fará com medidas de tendência central, que são as que minimizam o erro resultante de defeitos de comparação.
Isso corresponde ao que se sustenta no acórdão do Proc. nº 423/2015-T, do CAAD (José Baeta Queiroz / Luís Menezes Leitão / António Martins):
“No entender do tribunal, quanto maiores as dúvidas sobre a comparabilidade das entidades da amostra, maior será a propensão para que os ajustamentos tomem como referência indicadores de tendência central da amostra de entidades tidas como comparáveis tais como a mediana (ou resultantes de percentis mais próximos do meio do intervalo) e a secundarizar ajustamentos para valores mais baixos (e.g., valor mínimo ou o correspondente ao primeiro quartil).”
Especificamente, valores muito baixos, ou perdas sucessivas, deixam os valores “controlados” fora de uma hipótese de comparação com valores de mercado – pela simples razão de que tais valores não seriam compatíveis com a sobrevivência de uma empresa independente no ambiente concorrencial de um mercado aberto .
Na verdade, nos EUA já se requer de cada empresa de um grupo multinacional que apresente valores dentro do intervalo “arm’s length”, o intervalo interquartil do “benchmark” das trocas em mercado aberto – indo mais longe do que as “Guidelines” da OCDE no esforço de erradicar erros e vencer impasses provocados por dificuldades de comparabilidade, e prevenir abusos. As próprias consultoras norte-americanas encarregam-se de promover, nas declarações de rendimentos, esse enquadramento no intervalo interquartil .
Na verdade, as “Guidelines” da OCDE nem sequer favorecem o uso de instrumentos estatísticos para apuramento de um valor dentro do “arm’s length range”; mas isso, como vimos, acaba por tornar-se uma consequência da busca de segurança e fiabilidade na aplicação do princípio de plena concorrência, de superação das dificuldades conexas com os limites de comparabilidade , mesmo que isso sugira inadvertidamente uma uniformidade que não se verifica nas próprias transacções de mercado.
Na verdade, a amplitude do intervalo interquartil tem de ser controlada para permitir que a comparação produza os seus efeitos, que a heterogeneidade não impeça a identificação de comparáveis precisos – o que novamente remete para a tendência central , ainda que a escassez de “comparáveis” dificulte um tratamento estatístico extenso .
De um ponto de vista conceptual, qualquer valor dentro do intervalo de plena concorrência satisfaria, em tese, o princípio de plena concorrência, visto que apenas se excluem os valores dos “outliers”. Mas por vezes as ordens jurídicas, por razões preventivas e de disciplina reguladora, restringem o intervalo impondo o valor mediano, ou o intervalo entre a mediana e o quartil superior (este último o caso da China) .
Lembremos que a relevância tributária dos preços de transferência resulta essencialmente do potencial, que eles representam, de manipulação abusiva do rendimento tributável – e daí usar-se as transacções “não-controladas” entre entidades não-relacionadas como “benchmark” para a aferição das transacções “controladas” entre entidades relacionadas, presumindo-se que aquelas representam a normalidade “não-abusiva”.
Visa-se, portanto, uma “aproximação ao mercado”, o que tem o seu quê de arbitrário, razão pela qual as escolhas devem ser particularmente bem documentadas, os critérios bem caracterizados, o cálculo do intervalo de plena concorrência (“arm’s length range”) transparente, com abertura a revisões e ajustamentos na medida em que se descubra que as circunstâncias não admitiam uma comparação linear entre o preço “controlado” e o “não-controlado”.
Intervém aqui, pois, na disparidade entre valores apresentados e valores no intervalo de plena concorrência, e mais especificamente valores centrais nesse intervalo, uma margem de discricionariedade técnica, cabendo à administração ajustar as condições que asseguram a plena concorrência.
Aplicando o mesmo princípio que vimos sustentado no acórdão arbitral do Proc. nº 423/2015-T, do CAAD (José Baeta Queiroz / Luís Menezes Leitão / António Martins), e dado se reconhecer, no caso presente, que não havia, no mercado nacional, “comparáveis” mais apropriados do que aqueles que foram usados pela própria Requerente no dossier de preços de transferência, já que todos eles são subdimensionados face à própria Requerente – facto que reconhecem tanto a Requerente como a Requerida –, e ultrapassada a fase de recurso a métodos não-transaccionais como aquele que a Requerente empregou, segue-se o momento de definir o “intervalo de plena concorrência” e, através dele, de se chegar à validação de um valor único, que corresponderá à liquidação.
Ora esse valor único propenderá para um valor central como é o da mediana, e não para o quartil inferior ou superior que são as balizas do próprio “intervalo”; e não, de todo, para valores inferiores ao intervalo interquartil, ou “outliers” “baixíssimos”.
Esse caminho deve ser percorrido pela administração tributária, no uso de uma prerrogativa de discricionariedade técnica. Aliás, isso corresponde a um entendimento dominante na jurisprudência de países da OCDE:
- Em Denmark vs Icemachine Manufacturer A/S, June 2020, National Court, Case No SKM2020.224.VLR, o tribunal dinamarquês entendeu que o sujeito passivo não tinha fornecido documentação fiável para comprovar a observância do princípio “arm’s length”, e que isso legitimou a liquidação de acordo com princípios de discricionariedade técnica da administração fiscal.
- Em Norway vs VingCard Elsafe AS, 2012, o tribunal entendeu que, para se aceitar o método da margem líquida das transacções, não se poderia admitir todo o tipo de arranjos entre as partes relacionadas, mormente a imposição de margens líquidas fixas entre elas, sob pena de se violar o princípio “arm’s length”, caso em que ficou justificado o recurso à discricionariedade técnica da administração fiscal.
Já um valor central tornará desnecessário esse caminho:
- Em Italy vs BI S.r.l, November 2018, Tax Tribunal of Milano, Case no. 5445/3/2018, o tribunal entendeu que as autoridades tributárias não deveriam rejeitar uma declaração de margem líquida de 8,38% quando as próprias autoridades tinham apurado, para o período de referência, um intervalo entre os 1,40% e os 18,28%.
Num acórdão recente e muito noticiado, o judiciário espanhol estabeleceu que a mediana é o valor justificado sempre que surjam problemas de comparabilidade que retirem fiabilidade à indicação de um valor único, ou sempre que se transgridam as fronteiras do intervalo interquartil:
- Em Spain vs Ikea, March 6, 2019, Audiencia Nacional (TEAC), Case No SAN 1072/2019, a subsidiária de IKEA em Espanha tinha declarado resultados abaixo do intervalo interquartil (tomado como base para o “arm’s length range”) na sua documentação de preços de transferência num ano fiscal, 2007, e nos anos seguintes obtivera resultados interquartil, mas abaixo da mediana. Foram aceites ajustamentos administrativos à mediana no primeiro ano, 2007, mas não em 2008, entendendo-se que valores dentro do intervalo interquartil não precisam de ser ajustados à mediana. A IKEA reagiu alegando que os seus resultados multiperíodo eram interquartil, e que além disso os resultados abaixo do quartil inferior deveriam ser ajustados ao quartil, e não à mediana.
O “benchmark” para cálculo do intervalo interquartil era o das margens dos anos 2003-2005, com o quartil inferior nos 2,1%, a mediana nos 4,1% e o quartil superior nos 7,6%, sendo a média 6,1%. E a IKEA submeteu como margens 3,48% para 2006, 0,42% para 2007 e 2,42% para 2008. Logo, o valor de 2007 estava abaixo do quartil inferior, enquanto que o de 2008 já cabia no intervalo interquartil.
A Audiencia Nacional rejeitou o recurso a valores multiperíodo, mas aceitou que o valor mediano só deve ser utilizado quando existam “problemas de comparabilidade” na amostra respeitante aos preços de transferência – pelo que aceitou que os valores abaixo do quartil deveriam ter sido ajustados, na ausência de defeitos de comparabilidade (de disparidades demasiadas entre os valores do sujeito passivo e os valores dos “comparáveis”), ao primeiro quartil e não à mediana, e que os valores interquartil, na ausência de defeitos de comparabilidade, não teriam que ser ajustados à mediana (de acordo com o parágrafo 3.60 das “Transfer Pricing Guidelines” da OCDE).
Ou seja, na sequência desta decisão as autoridades tributárias espanholas precisarão de passar a demonstrar a existência de defeitos notórios de comparabilidade antes de poderem recorrer à mediana para procederem a ajustamentos na liquidação. E aos sujeitos passivos passa a interessar reforçarem a prova de que os valores são fiáveis na medida em que cabem no intervalo interquartil, para assegurarem a idoneidade da observância pelo princípio “arm’s length” e serem poupados a inspecções e a eventuais liquidações adicionais.
Regressando ao acórdão do Proc. nº 423/2015-T, do CAAD (José Baeta Queiroz / Luís Menezes Leitão / António Martins), poderemos agora acompanhar, mais uma vez, a formulação nele encontrada:
“Com efeito, uma vez provada, como se entende que está, a fragilidade do grau de comparabilidade e daí decorrendo à necessidade de ajustamentos, a AT não tem uma métrica legalmente prevista e obrigatória para os quantificar. Pode fundar-se em várias medidas estatísticas. A AT usou no ajustamento uma medida estatística de tendência central. As Guidelines indicam o intervalo interquartil ou outras (que poderiam ser a mediana, a média, etc., como antes se referiu). A inspeção optou, dentro das medidas possíveis, por uma solução menos gravosa para a requerente.”
E a comparação entre valores medianos e valores médios para o período 2013-2015 prova, no caso vertente, que a opção pela mediana foi menos gravosa do que o teria sido a opção pelo outro valor central.
7.3. O valor certo da liquidação
Sem esta possibilidade de especificação de um valor único de liquidação em remate de um processo repleto de complexidade, de subjectividade, de potencial de abuso, de assimetrias informativas e de estratégias dominantes de “camuflagem de rendimentos”, toda a área dos preços de transferência pode soçobrar num pântano de litigância e de impasses de indecidibilidade, em especial em casos de difícil observação e computação, como é o caso dos intangíveis , ou em casos de escassez estrutural de “comparáveis”, como sucede na propriedade intelectual .
E, no entanto, não é consentido às administrações tributárias fazerem cedências nesta área dos preços de transferência, que está profundamente comprometida no problema da “base erosion and profit shifting”, como o explicitam os objectivos 8, 9, 10 (Assure that transfer pricing outcomes are in line with value creation) e 13 (Re-examine transfer pricing documentation) do projecto “BEPS – Base Erosion and Profit Shifting” da OCDE (2013) , um programa que, entre outros objectivos, visa a harmonização internacional das regras relativas a preços de transferência , e uma cooperação multilateral como a que ficou consagrada em 2016 com o MCAA, “Multilateral Competent Authority Agreement”, um tipo de cooperação administrativa do tipo previsto no art. 121º-A do CIRC.
Pode ser que, no futuro, o progresso do projecto BEPS signifique melhorias já hoje reclamadas nestes domínios: uma maior consideração directa da substância económica que permita maior maleabilidade e realismo no enfrentamento da evasão fiscal e do planeamento fiscal agressivo ; a redução de formalismos que redundem em “compliance costs” desnecessários ; o estabelecimento de “safe harbor rules” em contraponto a uma complexidade ineficiente e geradora de “loopholes” ; etc.
Mas até lá, a regra é a de que aquele que apresenta valores muito baixos, nos “outliers” da base de cálculo e do intervalo de plena concorrência, se sujeita a inspecção, e eventual liquidação adicional em sede de preços de transferência, por parte de uma autoridade tributária que pode chegar a um valor certo usando de uma margem discricionária, desde que fundamentada em termos jurídicos e por referência a valores económicos determinados (art. 63º, 8 e 9 do CIRC).
7.4. Conclusão
Em suma, quanto à primeira alegação da Requerente de que foi violado o princípio da plena concorrência, afigura-se que a Requerida mais não fez do que, no cumprimento do dever que lhe era imposto pelo art. 3º da Portaria nº 1446-C/2001, de 21 de Dezembro, e no exercício de uma margem de discricionariedade técnica que resulta desse preceito, ter procedido a cálculos que têm pleno fundamento nas guidelines da OCDE, depois de concluir que “o resultado operacional gerado [pela Requerente] se revelou inferior ao que seria apurado caso aquelas operações vinculadas tivessem sido realizadas entre entidades independentes” (ponto 1.4 do RIT).
A simples invocação da sua natureza de “contract manufacturer” não é razão para se impossibilitar a aplicação do princípio da plena concorrência às relações especiais entre a Requerente e o Grupo empresarial em que ela se integra, e menos ainda para se conceber algum regime excepcional face à regra da aplicação das “Guidelines” da OCDE e das normas nacionais que densificam aquelas directrizes.
Quanto à segunda alegação da Requerente de que foi violado o princípio da plena concorrência, e que consiste no argumento de que o valor da mediana a que a Requerida recorreu se encontraria muito inflacionado, trata-se de uma mera divergência de quantificações e de cálculos entre a Requerente e a Requerida, e não de uma dúvida que, como pretende a Requerente, pudesse conduzir à aplicação do art. 100º do CPPT – já que as conclusões do RIT não evidenciam qualquer dúvida desse género, além de que não se descortina qualquer erro nos cálculos a que a AT procedeu e que conduziram aos resultados plasmados no RIT.
Além de que – e esse é o ponto mais relevante –, mesmo com valores inferiores de medianas e de intervalos interquartis como os propostos pela Requerente, as margens por ela apresentadas ficam muito abaixo destas medianas, e fora destes intervalos, com todas as consequências que vimos daí terem de resultar.
Violação da extensão da inspecção quanto aos exercícios de 2013 e 2014
8. A Requerente começa por referir que, por efeito da Ordem de Serviço n.º OI 201700198, a acção de inspeção visava, única e exclusivamente, aferir do cumprimento das obrigações tributárias relativamente ao exercício de 2014, e que o procedimento se estendeu aos exercícios de 2013 e 2015 sem que tenha sido notificada do despacho fundamentado que determinou essa alteração, tendo ocorrido, nesses termos, a violação do disposto no artigo 15.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária (RCPITA).
A citada disposição legal prevê, com efeito, que “os fins, o âmbito e a extensão do procedimento de inspecção podem ser alterados durante a sua execução mediante despacho fundamentado da entidade que o tiver ordenado, devendo ser notificado à entidade inspeccionada”.
Todavia, o que se constata através do Relatório de Inspecção Tributária é que a Requerente foi objecto de uma acção inspectiva externa, titulada pela Ordem de Serviço n.º OI2017..., com despacho de 27 de Janeiro de 2017, referente ao exercício de 2014, e pelas Ordens de serviço n.ºs OI2017... e OI2017..., com despacho de 28 de junho de 2017, referentes aos exercícios de 2015 e 2016.
E segundo o mesmo Relatório, em aplicação do disposto no artigo 49.º do RCPITA, foram enviadas as respetivas cartas aviso ao sujeito passivo, no dia 4 de Abril de 2017, através do ofício n.º..., comunicando-lhe que iria ser objeto de ação inspetiva ao exercício de 2014, e através dos ofícios n.ºs ... e ..., de 26 de Julho de 2017, comunicando-lhe que iria ser objeto de ação inspetiva aos exercícios de 2013 e 2015. E assim sendo, houve lugar, sem dúvida, a três acções inspectivas autónomas, que foram devidamente notificadas aos sujeito passivo, sendo para o caso irrelevante que as conclusões tivessem sido condensadas num único Relatório.
E, neste conspecto, não ocorreu qualquer alteração da extensão do procedimento que justificasse o cumprimento do disposto no artigo 15.º do RCPITA.
Caducidade do direito à liquidação
9. A Requerente invoca ainda a caducidade do direito à liquidação quanto ao ato tributário respeitante ao exercício de 2013 por ter sido praticado e notificado após o termo do prazo previsto no artigo 45.º da LGT, alegando, em síntese, que a ação de inspeção tributária se iniciou em 19 de abril de 2017 e findou a 27 de dezembro seguinte, tendo, por via disso, uma duração superior a seis meses, o que necessariamente implicou a preclusão do efeito suspensivo a que se refere o artigo 46.º, n.º 1, da LGT.
Resulta do citado artigo 45.º que “o direito de liquidar os tributos caduca se a liquidação não for validamente notificada ao contribuinte no prazo de quatro anos, quando a lei não fixar outro” (n.º 1), contando-se o prazo de caducidade, nos impostos periódicos, a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário (n.º 2). E nos termos do subsequente artigo 46.º, “o prazo de caducidade suspende-se com a notificação ao contribuinte, nos termos legais, da ordem de serviço ou despacho no início da ação de inspeção externa, cessando, no entanto, esse efeito, contando-se o prazo desde o seu início, caso a duração da inspeção externa tenha ultrapassado o prazo de seis meses após a notificação” (n.º 1).
No caso vertente, como decorre do Relatório de Inspecção Tributária, a acção inspectiva foi comunicada ao sujeito passivo através de ofício datado de 26 de Julho de 2017 e os respectivos actos externos de inspeção iniciaram-se em 25 de Agosto e foram dados como findos em 15 de Novembro desse ano. Assim se conclui que a duração da inspecção externa não ultrapassou o prazo de seis meses após a notificação, pelo que o prazo de caducidade da liquidação esteve suspenso, nos termos do falado artigo 46.º, n.º 1, da LGT, a partir da notificação do procedimento inspectivo, pelo que não se encontrava decorrido o prazo de caducidade, contado a partir do termo do ano de 2013, quando foi feita a notificação dos actos tributários em janeiro de 2018.
A arguição é, por conseguinte, improcedente.
Falta de fundamentação dos actos de liquidação adicional
10. A Requerente alega, no essencial, que os atos tributários impugnados são ilegais por falta de fundamentação por não terem sido acompanhados de fundamentação que justifique ou demonstre os pressupostos em que assentou a sua emissão.
Como é entendimento jurisprudencial corrente, a fundamentação do acto tributário é um conceito relativo que varia conforme o tipo de acto e as circunstâncias do caso concreto, sendo que a fundamentação é suficiente quando permite a um destinatário normal aperceber-se do itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pelo autor do acto para proferir a decisão, isto é, quando aquele possa conhecer as razões por que o autor do acto decidiu num certo sentido e não de forma diferente.
E não se ignora que o artigo 77.º da LGT estabelece um especial dever de fundamentação, por parte da Autoridade Tributária, em situações em que estejam em causa em operações financeiras, efectuadas entre um sujeito passivo de imposto sobre o rendimento e qualquer outra entidade com a qual aquele esteja em situação de relações especiais, tornando-se exigível que a fundamentação observe determinados requisitos (n.º 3).
Significando que, nessa situação particular, a fundamentação, ainda que possa consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas (incluindo o relatório da fiscalização tributária), não pode limitar-se a uma fundamentação sumária que contenha as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo, conforme preveem, em geral, os n.ºs 1 e 2 desse artigo.
Na situação do caso, a Autoridade Tributária, no relatório inspectivo, não deixou de caracterizar as relações subsistentes com a sociedade dominante do grupo e o modelo de negócio desenvolvido pela Requerente, do mesmo modo que analisou as operações vinculadas realizadas nos exercícios de 2013, 2014 e 2015 e os resultados obtidos com base no estudo de comparabilidade constante dos dossiers de preços de transferência.
E optou por proceder às correcções aos resultados operacionais do sujeito passivo por considerar existirem fragilidades no dossier de preços de transferência apresentados pela Requerente, que, em síntese, resultam do seguinte conjunto de considerações.
Quanto à não comparabilidade de algumas entidades que constam do estudo de preços de transferência foram tidos em conta os seguintes factores: (a) a actividade desenvolvida por grande parte das entidades tomadas como comparáveis não consiste na actividade de fabricação de electrodomésticos (actividade da A...) mas numa actividade que o sujeito passivo entendeu considerar como similar a esta; (b) existe uma diferença significativa entre o volume de negócios da A... nos períodos de tributação considerados e o apresentado pelas entidades tomadas como comparáveis; (c) o número de empregados da A... é substancialmente superior ao apresentado pelas entidades tomadas como comparáveis.
A título exemplificativo das fragilidades invocadas, os serviços inpectivos indicam a empresa "D... SA", tida pela Requerente como entidade comparável, que consideraram não assegurar um grau de comparabilidade razoável com as demais observações do intervalo pelos seguintes motivos: (a) no triénio de 2011, 2012 e 2013, para o indicador de rentabilidade considerado, apresentava os seguintes valores - 2013: 0,98%; 2014: -10,06%; 2015: -3,03%; weighted average: - 3,03%; (b) o valor do indicador de rentabilidade considerado é fortemente influenciado pelo valor relativo ao exercício de 2012 que claramente é desconforme com comportamento desta entidade; (c) a observação em causa (exercício de 2012) apresenta características de outlier pelo que deveria ter sido excluída da análise efetuada; (d) apresenta um volume de negócios para o triénio em questão entre os cinco e os sete milhões, valores bastante inferiores ao volume de negócios apresentados pela A... na ordem dos 70 milhões.
Conclui o Relatório de Inspecção Tributária, invocando o § 3.62 das Guidelines da OCDE sobre preços de transferência, que, quando persistam alguns defeitos de comparabilidade da amostra devem utilizar-se medidas de tendência central como a mediana, a média ou a média ponderada, a fim de minimizar os riscos de erro provocado por defeitos de comparabilidade.
Vindo a entender-se, com base nos dados anteriormente mencionados que para assegurar um grau de comparabilidade razoável e com vista a colmatar as limitações associadas ao estudo de comparabilidade, a mediana constituiria a medida mais adequada para definir os ajustamentos à matéria colectável.
Sendo esta a fundamentação utilizada pela Administração para proceder à liquidação adicional em IRC, impõe-se concluir que o Relatório de Inspecção Tributária não se limita a formular meras considerações genéricas para aquilatar da fiabilidade dos valores alcançados pelo sujeito passivo no dossier de preços de transferência e do seu grau de comparabilidade, e contém uma suficiente concretização, relativamente às empresas envolvidas, dos elementos de informação que permitem considerar que a actividade por elas desenvolvida não é similar ou apresenta uma diferença no volume de negócios ou no número de empregados. E cumpriu, de resto, todos os requisitos exigíveis para a fundamentação, nos termos da citada norma do artigo 77.º, n.º 3, da LGT, quando a correcção da matéria tributável é determinada por efeito de relações especiais.
E nesse condicionalismo, independentemente de outras considerações àcerca da validade dos argumentos aduzidos, que foram objecto de análise em sede de matéria de fundo, não pode dizer-se, de nenhum modo, que o interessado se encontrou impossibilitado de discutir as soluções propostas e de rebater a factualidade descrita ou que tenha sequer ficado impedido de aceitar ou reagir processualmente contra o acto tributário.
Improcede, por conseguinte, o indicado vício de forma por falta de fundamentação.
Violação dos princípios do inquisitório, da verdade material, da justiça e da boa fé
11. Alega ainda a Requerente que os actos tributários padecem de ilegalidade por violação do princípio do inquisitório e da verdade material, porquanto, tendo entendido os serviços inspetivos que os intervalos de comparabilidade apurados pelo sujeito passivo continham incorreções, se impunha à Autoridade Tributária o apuramento de novos intervalos de comparabilidade. E sustenta ainda que, pretendendo os serviços de inspeção afastar os intervalos apurados pelo sujeito passivo, vieram a recorrer a esses mesmos intervalos para apurar as correções e o imposto em falta, pelo que os actos impugnados incorrem ainda em violação dos princípios da justiça e da boa fé.
Como é sabido, a Administração Tributária está vinculada, ao nível do procedimento, ao princípio da verdade material, pelo qual lhe cabe o poder-dever de realizar todas as diligências que entenda serem úteis para a descoberta da verdade, sendo nessa iniciativa oficiosa de realização de diligências adequadas e necessárias à preparação da decisão que se traduz no princípio do inquisitório (artigo 58.º da LGT).
No entanto, do princípio do inquisitório não resulta a obrigação, por parte da administração tributária, de realizar todas diligências requeridas pelo contribuinte no decurso do procedimento ou realizar todas aquelas que o interessado venha a entender a posteriori como necessárias face ao conteúdo da decisão final que tenha sido adoptada.
O principal efeito jurídico da insuficiência das diligências instrutórias a realizar pela Administração no âmbito do procedimento tributário traduz-se, em sede de impugnação judicial num non liquet probatório sobre os factos materiais da causa, implicando que o tribunal emita uma pronúncia desfavorável em relação à parte a quem incumbia fazer a prova dos factos, à luz dos critérios de repartição do ónus da prova do artigo 74.º da LGT (SERENA CABRITA NETO/CARLA CASTELO TRINDADE, Contencioso Tributário, Vol. I, Coimbra, 2017).
Como vício invalidante do acto tributário, a preterição do princípio do inquisitório (e, consequentemente, do princípio da verdade material) apenas pode ser considerada na situação limite em que os serviços omitam diligências essenciais à averiguação da situação tributária de tal modo que não se encontre justificação plausível para a correcção fiscal.
Por outro lado, atento o disposto no artigo 63.º do Código de IRC, em especial nos seus n.ºs 2 e 6) e no artigo 4.º, n.º 4 e 5, da Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de dezembro, não cabe à Administração Tributária, no âmbito do procedimento inspectivo, realizar novos estudos de comparabilidade, em substituição daqueles que foram apresentados pelo sujeito passivo, mas unicamente verificar a fiabilidade dos valores que foram obtidos para efeito de decidir quanto à necessidade de proceder a ajustamentos ao lucro tributável.
E as divergências que possam subsistir quanto à avaliação efectuada pela Administração não se situam no plano dos vícios de procedimento mas no da discussão jurídico-económica sobre as condições e termos de comparabilidade e concorrência (GC, pág. 151).
Por todas as sobreditas considerações, não se verifica uma qualquer violação dos princípios da verdade material e do inquisitório ou da justiça e boa fé.
Violação do dever de decisão
12. A Requerente alega ainda que a decisão da reclamação graciosa incorre em violação do dever de decisão, porquanto não se pronunciou sobre uma das questões colocadas em que se referia que as suas margens de rentabilidade, enquanto contract manufacturer, deveria situar-se na primeira metade do intervalo apurado, uma vez que foram tidas em conta empresas que atuam como full-fledged distributors.
Em primeiro lugar, importa reter que o princípio da decisão, tal como consagrado nos artigos 13.º do CPA e 56.º da LGT, apenas implica que a Administração se deva pronunciar sobre as pretensões que tenham sido formuladas pelos contribuintes ou outros interessados. O dever de decisão não envolve, em todo o caso, o dever de pronúncia sobre todos os argumentos que tenham invocados pelos requerentes, mas apenas o dever de emitir decisão sobre a pretensão que tenha sido apresentada. A principal consequência do incumprimento do dever de decidir, no plano da declaração de ilegalidade de actos tributários, traduz-se na presunção de indeferimento tácito da petição do contribuinte para efeitos de recurso hierárquico ou impugnação judicial (artigo 57.º, n.º 5, da LGT).
E nesses termos, a omissão de pronúncia sobre qualquer das questões que tenham sido suscitadas pelo interessado no âmbito do procedimento tributários não representa, em si mesmo, um qualquer vício de procedimento. Sendo certo que o artigo 97.º, n.º 1, alínea p), do CPPT, na redacção introduzida pela Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro, apenas se refere à acção de condenação à prática de acto legalmente devido, havendo de entender-se, em consonância com os pressupostos processuais definidos no artigo 67.º do CPTA, que há lugar à condenação à prática de acto administrativo quando não tenha sido proferida decisão dentro do prazo legalmente estabelecido e não quando tenha sido omitida pronúncia quanto a alguma das questões que tenham sido suscitadas no requerimento do interessado.
Mesmo que assim não fosse, o suposto vício de procedimento por omissão de pronúncia imputado à decisão da reclamação graciosa não se repercute na legalidade dos actos de liquidação, nem se enquadra na competência do tribunal arbitral. O artigo 2.º, n.º 1, do RJAT, ao definir a competência da jurisdição arbitral, apenas se refere à declaração de ilegalidade de tributos, retenção na fonte ou pagamentos por conta ou à declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributária. E a extensão da competência aos actos de segundo grau ou terceiro grau apenas se justifica na medida em que são confirmativos dos actos de liquidação e incorporam os vícios que a esses actos são assacados, constituindo, como o objecto mediato do pedido arbitral. E o único efeito útil da dita extensão de competência é o de permitir a anulação consequencial desses actos de segundo grau ou terceiro grau em resultado da procedência do pedido arbitral em relação aos actos de liquidação.
Assim sendo, mesmo que se pudesse admitir que a informação dos serviços que serviu de base à decisão de indeferimento da reclamação graciosa omitiu pronúncia sobre questão suscitada pela Requerente, haverá de concluir-se que essa omissão não só não constitui vício de procedimento como também esse vício, a ser considerado, não poderia ser analisado em sede arbitral.
O que conduz à sua completa inoperância para efeitos da apreciação da legalidade dos actos tributários.
Violação de reserva de lei formal
13. A Requerente imputa ainda aos atos tributários em causa a violação do princípio de reserva de lei formal, por considerar que é da competência da Assembleia da República legislar sobre a criação de impostos (artigos 103.º, n.º 2 e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP) e o relatório de inspeção tributária apenas menciona como fundamento normativo para as correcções as disposições do artigo 4.º, n.º 5, da Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de dezembro e os parágrafos 3.56 e 3.62 das Guidelines da OCDE, sendo que a referida portaria é um mero regulamento administrativo que não possui força de lei.
Como se sabe, através do conceito de reserva de lei pretende-se delimitar o conjunto de matérias que devem ser reguladas por lei, distinguindo-se três diferentes níveis: uma área de reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República, em que só o parlamento pode legislar, uma área de reserva relativa, em que a Assembleia da República pode autorizar o Governo a legislar, e todas as restantes matérias nas quais o Governo pode legislar concorrentemente com a Assembleia da República (artigos 164.º e 165.º).
A desconformidade dos actos normativos com as regras de competência legislativa constitucionalmente definidas gera o vício de inconstitucionalidade orgânica. Trata-se, no entanto, de um vício que é imputável aos actos legislativos ou regulamentares que se enquadrem no conceito de actos normativos, não podendo considerar-se como tais os meros actos administrativos.
Ora, como é claro, os actos tributários que são objecto de impugnação são actos administrativos que se destinaram a produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta, e a alegada circunstância de o relatório inspectivo em que tais actos de basearam ter feito unicamente referência à Portaria n.º 1446-C/2001 – o que nem sequer corresponde à verdade – apenas significa que o seu autor utilizou como fundamento decisório as disposições constantes desse regulamento.
Certo é que as decisões de procedimento tributário devem ser fundamentadas por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que as motivaram (artigo 77.º da LGT), pelo que a Administração, ao invocar certas normas regulamentares, não fez mais do que dar cumprimento ao dever de fundamentação, o que obviamente não implica qualquer violação do princípio de reserva de lei.
Violação dos princípios da igualdade e capacidade contributiva
14. Por fim, a título subsidiário, Requerente considera que as correções da matéria tributável através da mediana, e não de um ponto da primeira metade dos intervalos de comparabilidade, viola os princípios da igualdade fiscal e da capacidade contributiva ínsitos no artigo 13.º da CRP, na medida em que impõe à Requerente a tributação por margens superiores às praticadas por metade dos agentes no mercado em situação comparável, penalizando-a em relação a estes.
Como tem sido sublinhado pela doutrina, o princípio da igualdade fiscal tem ínsita sobretudo «a ideia de generalidade ou universalidade, nos termos da qual todos os cidadãos se encontram adstritos ao cumprimento do dever de pagar impostos, e da uniformidade, a exigir que semelhante dever seja aferido por um mesmo critério - o critério da capacidade contributiva. Este implica assim igual imposto para os que dispõem de igual capacidade contributiva (igualdade horizontal) e diferente imposto (em termos qualitativos ou quantitativos) para os que dispõem de diferente capacidade contributiva na proporção desta diferença (igualdade vertical)» (CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 5ª edição, Coimbra, 2009, págs. 151-152).
Configurando-se o princípio geral da igualdade como uma igualdade material, o princípio da capacidade contributiva – segundo o mesmo autor - enquanto tertium comparationis da igualdade no domínio dos impostos, não carece dum específico e directo preceito constitucional. O seu fundamento constitucional é o princípio da igualdade articulado com os demais princípios e preceitos da respectiva “constituição fiscal” e, em especial, aqueles que decorrem já dos princípios estruturantes do sistema fiscal que constam dos artigos 103º e 104º da Constituição (ob. cit., pág. 152).
Como pressuposto e critério da tributação, o princípio da capacidade contributiva – dentro da mesma linha de entendimento - «afasta o legislador fiscal do arbítrio, obrigando-o a que na selecção e articulação dos factos tributários, se atenha a revelações da capacidade contributiva, ou seja, erija em objecto e matéria colectável de cada imposto um determinado pressuposto económico que seja manifestação dessa capacidade e esteja presente nas diversas hipóteses legais do respectivo imposto» (ob. cit., pág. 154).
Também o Tribunal Constitucional, mais recentemente, tem analisado o princípio da igualdade fiscal sob o prisma da capacidade contributiva, como se pode constatar designadamente no acórdão n.º 142/2004, onde se consigna que «[o] princípio da capacidade contributiva exprime e concretiza o princípio da igualdade fiscal ou tributária na sua vertente de uniformidade – o dever de todos pagarem impostos segundo o mesmo critério – preenchendo a capacidade contributiva o critério unitário da tributação».
O reconhecimento do princípio da capacidade contributiva como critério destinado a aferir da inadmissibilidade constitucional de certa ou certas soluções adoptadas pelo legislador fiscal, tem conduzido também à ideia, expressa por exemplo no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 348/97, de que a tributação conforme com o princípio da capacidade contributiva implicará «a existência e a manutenção de uma efectiva conexão entre a prestação tributária e o pressuposto económico selecionado para objeto do imposto, exigindo-se, por isso, um mínimo de coerência lógica das diversas hipóteses concretas de imposto previstas na lei com o correspondente objecto do mesmo».
O Tribunal Constitucional tem vindo, portanto, a afastar-se de um controlo meramente negativo da igualdade tributária, passando a adoptar o princípio da capacidade contributiva como critério adequado à repartição dos impostos; mas não deixa de aceitar a proibição do arbítrio como um elemento adjuvante na verificação da validade constitucional das soluções normativas de âmbito fiscal, mormente quando estas sejam ditadas por considerações de política legislativa relacionadas com a racionalização do sistema.
Em suma, o princípio da igualdade tributária pode ser concretizado através de vertentes diversas: uma primeira, está na generalidade da lei de imposto, na sua aplicação a todos sem exceção; uma segunda, na uniformidade da lei de imposto, no tratar de modo igual os contribuintes que se encontrem em situações iguais e de modo diferente aqueles que se encontrem em situações diferentes, na medida da diferença, a aferir pela capacidade contributiva; uma última, está na proibição do arbítrio, no vedar a introdução de discriminações entre contribuintes que sejam desprovidas de fundamento racional (cfr. acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 306/2010 e n.º 695/2014).
15. Revertendo à situação do caso, cabe recordar que a Autoridade Tributária, tendo identificado limitações no estudo de comparabilidade, por considerar que as entidades seleccionadas para comparação são subdimensionadas face à Requerente e não desenvolvem uma actividade substancialmente idêntica, propendeu para a tendência central, seguindo o parágrafo 3.62 das Guidelines da OCDE, entendendo ser essa a medida adequada a assegurar um grau de comparabilidade razoável.
Refere esse parágrafo que “quando o intervalo compreende resultados de fiabilidade relativamente igual e alta, pode-se argumentar que qualquer ponto no intervalo satisfaz o princípio plena concorrência. Quando os defeitos de comparabilidade permanecem, conforme discutido no parágrafo 3.57, pode ser apropriado usar medidas de tendência central para determinar este ponto (por exemplo, a mediana, a médias ou médias ponderadas, etc., dependendo das características específicas de o conjunto de dados), a fim de minimizar o risco de erro devido a defeitos de comparabilidade desconhecidos ou não quantificáveis.
Nesse mesmo sentido se pronunciou o tribunal arbitral no acórdão proferido no Processo nº 423/2015-T, do CAAD, em que se consigna o seguinte: “No entender do tribunal, quanto maiores as dúvidas sobre a comparabilidade das entidades da amostra, maior será a propensão para que os ajustamentos tomem como referência indicadores de tendência central da amostra de entidades tidas como comparáveis tais como a mediana (ou resultantes de percentis mais próximos do meio do intervalo) e a secundarizar ajustamentos para valores mais baixos (e.g., valor mínimo ou o correspondente ao primeiro quartil).”
Neste contexto, não se vê nenhum motivo para considerar a opção pela mediana, nas circunstâncias do caso, tenha colocado a Requerente em situação de desvantagem face a todas as empresas que praticaram margens de mercado situadas na primeira metade do intervalo, quando justamente a mediana foi adoptada para minimizar as diferenças existentes entre os factos e as situações comparáveis.
Não se verifica, por conseguinte, qualquer violação dos princípios da igualdade e da capacidade contributiva.
Juros compensatórios
16. A Requerente impugna igualmente a liquidação de juros compensatórios em relação a qualquer dos actos tributários de liquidação de IRC, alegando que agiu sem culpa, porquanto a sua interpretação das normas em questão é legítima, plausível e de boa-fé, não existindo uma actuação dolosa ou negligente, mas unicamente uma divergência interpretativa relativamente à aplicação do regime de preços de transferência.
Nos termos do artigo 35.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária, “são devidos juros compensatórios quando, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido ou a entrega de imposto a pagar antecipadamente, ou retido ou a reter no âmbito da substituição tributária”.
Como tem sido entendimento corrente, os juros compensatórios devidos nos termos da referida disposição constituem uma reparação de natureza civil que se destina a indemnizar a Administração Tributária pela perda de disponibilidade de uma quantia que não foi liquidada atempadamente. Tratando-se de uma indemnização de natureza civil, ela só exigível se se verificar um nexo de causalidade entre a actuação do sujeito passivo e o atraso na liquidação e essa actuação possa ser censurável a título de dolo ou negligência.
Como se reconhece no preâmbulo da Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de Dezembro, que regulamenta a disposição do artigo 63.º do Código do IRC, “as regras sobre preços de transferência não permitem actuar com o rigor e a precisão próprios de uma ciência exacta, porquanto a fiabilidade dos resultados obtidos com a aplicação das metodologias preconizadas para a determinação dos termos e condições que seriam normalmente aceites ou praticados numa operação comparável entre partes independentes depende, em grande medida, de análises complexas e elaboradas, em que entra um grande número de variáveis, da disponibilidade e facilidade de recolha de dados comparáveis externos e do maior ou menor apelo a critérios de índole subjectiva e aos pressupostos básicos assumidos”.
Sendo de admitir que a litigância neste domínio se centre essencialmente na discussão jurídica sobre as condições e termos de comparabilidade.
Por outro lado, na específica situação do caso, a definição do intervalo de valores que assegurem um grau de comparabilidade razoável oferece alguma complexidade técnica, tendo em consideração as diferenças existentes entre operações e entidades intervenientes no estudo de comparabilidade e que foram realçadas no Relatório de Inspecção Tributária.
Acresce que não se encontra demonstrado um intuito evasivo.
Neste condicionalismo, a improcedência do pedido de pronúncia arbitral quanto às liquidações adicionais não é determinante, por consequência, do reconhecimento do direito a juros compensatórios.
Juros indemnizatórios
17. Sendo de julgar improcedente o pedido de declaração de ilegalidade dos actos tributários de liquidação, fica necessariamente prejudicado, nessa parte, o pedido de pagamento de juros indemnizatórios.
III – Decisão
Termos em que se decide:
a) Julgar improcedente o pedido arbitral e manter as liquidações adicionais que vêm impugnadas, bem como as decisões de indeferimento da reclamação graciosa e do recurso hierárquico contra elas deduzidos;
b) Julgar procedente o pedido arbitral no que se refere às liquidações de juros compensatórios.
Valor da causa
A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 2.090.550,08, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.
Notifique.
Lisboa, 21 de Dezembro de 2020
O Presidente do Tribunal Arbitral
Carlos Fernandes Cadilha
O Árbitro vogal
António Martins
(junta declaração de voto)
O Árbitro vogal
Fernando Araújo
Voto de vencido do Árbitro António Martins
Pese embora a elevada consideração pelos Exmos. Senhores Árbitros que subscreveram a posição que neste Processo fez vencimento, não a posso acompanhar pelos motivos que a seguir se expõem.
1. Síntese das questões de fundo que motivam a minha divergência
No que ao tema substancial deste Processo diz respeito - a aplicação das normas relativas aos preços de transferência - o sujeito passivo (S.P.) elaborou os respetivos dossiers para o período de 2013 a 2015. Utilizou o Método da Margem Líquida das Operações (MMLO). Sendo o sujeito passivo um contract manufacturer - essencialmente uma fábrica, com funções de produção - o uso do MMLO o coloca, tendencialmente, num "campo inclinado a seu desfavor".
Ou seja, as empresas comparáveis, tendo que cumprir critérios de independência, serão selecionadas, tipicamente, de entre full fledged distributors que, por terem funções, ativos e riscos mais vastos, obtêm, em regra, maior rendibilidade. Assim, a comparabilidade de margens é, à partida, desfavorável à Requerente, pelo simples facto de que o cumprimento das normas relativas a preços de transferência lhe imporia uma comparabilidade com entidades que, em regra, se não encontram facilmente no tecido empresarial (contract manufaturers não integrados em grupos). Assim, tendo de usar, total ou parcialmente, full fledged distributors como entidades comparáveis, tal determina um enviesamento de margens no sentido desfavorável à Requerente.
Neste contexto, e no caso em apreço, o S.P. concluiu que o valor da margem para a sua atividade, nos exercícios em questão, se situava dentro do intervalo de margens de empresas tidas como comparáveis, cumpria o disposto no nº 5, do art. 4º, da Portaria 1446-C/2001, e nenhuma correção ao resultado fiscal haveria que efetuar.
A Requerida (doravante também designada por AT) alega que a amostra apresentada pelo Sujeito Passivo no sentido de provar o cumprimento do princípio de plena concorrência evidencia fragilidades de comparabilidade. Põe assim em causa que exista a "comparabilidade razoável" que se expressa no art. 4º, nº 5, da Portaria 1446-C/2001, não efetuando a análise rigorosa de fatores de comparabilidade (cf. estabelece o art. 5º da Portaria 1446-C/2001) que demonstre ou prove quais as entidades da amostra que sofrem de tal lacuna, estriba-se nas Guidelines da OCDE, na versão, aqui relevante, de 2010. Assim, baseando-se no § 3.43 das Guidelines, que versa sobre sobre critérios de “seleção de comparáveis” e não de “fatores de comparabilidade”, alega que vendas e número de empregados constituem fatores que colocam em causa a comparabilidade razoável entre o sujeito passivo e as entidades constantes da amostra usada.
Não prova ou demonstra que empresas sofrem dessas fragilidades, nem como elas afetam a comparabilidade da amostra. Apenas apresenta uma entidade que, constando na amostra, é classificada como outlier e pugna pela sua exclusão, sem fundamentar com base em que critério(s) lhe confere aquele atributo. Sucede que não se encontrando na Lei a definição outlier, ela existe estatisticamente, e podem buscar-se orientações nas Guidelines para definir outliers. A Requerida, quanto a este assunto, nada demonstra ou fundamenta.
Em audiência realizada no CAAD, para inquirição de testemunhas, a Exma. Senhora Inspetora Tributária sustentou que, em seu entender, caso a AT buscasse uma amostra alternativa se depararia com os mesmos problemas, e não obteria melhores comparáveis.
Depois, usando (sem fundamentar a forma como utilizou tal base técnica) o § 3.62 das Guidelines da OCDE, a AT corrige o valor da margem para a mediana do intervalo. A correção para a mediana, sem qualquer análise prévia ou fundamentação económica, não é justificável quando se compara um contract manufacturer com fully flegded distributors, porque resulta do ponto central de amostras de margens empresariais que estão, em regra, acima dos valores que se esperam obter por parte de um contract manufacturer. Assim, deveria ter existido um cuidado especial de fundamentação quanto ao ponto do intervalo para o qual se fazem correções. A prova que a correção para a mediana é economicamente imprópria, neste contexto, é dada pelo resultado económico absurdo que se alcança em termos da rendibilidade da Requerente, caso a sua margem seja fixada na que a AT lhe imputa.
Sendo o contencioso fiscal de mera anulação, a apreciação da fundamentação dos atos da Requerida haveria de ter um papel crucial. Não vejo nos argumentos da Requerida razões que possam sustentar uma correção como a que foi efetuada, com base em tal superficialidade de análise e falta de fundamentos.
A correção enferma em meu juízo, de elevada superficialidade de fundamentação no tocante à questão central da comparabilidade, não respeita regras básicas prescritas na Portaria e nas Guidelines sobre esta mesma questão, não sustenta a escolha da específica métrica da correção realizada dentro do especto de valores possíveis, e ignora diversos elementos de análise económica de preços transferência que seriam centrais numa aplicação equilibrada de qualquer ajustamento. Daí a minha divergência e a razão desta declaração de voto, cujos motivos serão de seguida melhor explicitados.
2. Análise desenvolvida das razões da minha divergência
2.1 A razão do litígio
Sustenta a Requerente a sua posição relativa à ilegalidade da liquidação baseada em diferentes argumentos: jurídicos, económicos, estatísticos e ainda das lacunas que enfermaria a utilização das Guidelines da OCDE sobre Preços de transferência (doravante, Guidelines) quanto à forma da respetiva aplicação no Relatório da Inspeção Tributária.
Por seu turno, a Requerida alega a adequação da fundamentação e da correção do montante do ajustamento do resultado tributável, considerando que:
i) A atividade desenvolvida por parte das entidades tomadas como comparáveis não consistir na atividade de fabricação de eletrodomésticos mas numa atividade que o contribuinte entendeu considerar como similar a esta.
ii) Verifica-se uma diferença significativa entre o volume de negócios da requerente nos exercícios em apreço e o apresentado pelas entidades tidas como comparáveis.
iii) O número de empregados da requerente ser substancialmente superior ao apresentado pelas entidades como comparáveis.
iv) Existir na amostra uma empresa (D...) que, sendo um outlier, não assegura um grau de comparabilidade razoável.
e, neste contexto, com base no § 3.62 das Guidelines da OCDE, ajustou a margem da Requente para mediana do intervalo.
2.2 A análise efetuada pela AT e a respetiva fundamentação
2.2.A) Quanto a critérios de comparabilidade de empresas da amostra
As asserções que acima se transcreveram, quanto às razões que levaram a AT a efetuar o mencionado ajustamento para a mediana, não permitem, em meu entender, estribar fundamentadamente a sua posição. Era, antes de mais, necessário que se expusessem os dados quantificados caracterizadores das empresas e as análises neles baseadas que permitissem avaliar as razões concretas pelas quais sustenta a “não comparabilidade de algumas entidades que constam no estudo”.
Sendo a amostra constituída, em média anual, por 12 entidades, seria necessário que se analisassem, nos exercícios em questão, os elementos caracterizadores de cada empresa relativamente ao tipo de atividade, ao montante de vendas e ao número de empregados. E antes de recorrer ás Guidelines seria necessário averiguar, cf. o disposto no art. 5º da Portaria 1446-C/2001, que fatores de comparabilidade se analisaram. Mesmo usando os fatores aventados na Guidelines, e crucialmente para uma correta fundamentação, era essencial que se definissem limites quantificados de comparabilidade, para que surgissem claros os critérios usados na delimitação de quais seriam as empresas não comparáveis. Que se indagasse especificamente sobre as atividades (CAE) que não seriam comparáveis. E que se tivesse dado ao S.P. a possibilidade de, seguindo o princípio/dever da colaboração, poder reavaliar os resultados obtidos.
A Requerida afirma, mas não demonstra, não quantifica valores de potencial demarcação de comparáveis, nem avança critérios numéricos que permitam aferir se, como consta do artº 4º, nº 5, da Portaria 1446-C/2001, existe “comparabilidade razoável”:
Fica, pois, sem se saber que atividade, volume de vendas e número de empregados teria que apresentar qualquer das empresas integrante dos intervalos relativos ao triénio em causa para que estivesse cumprido o requisito de comparabilidade razoável. A lei, atendendo à dificuldade reconhecia em selecionar empresas independentes comparáveis, fixa um grau de similitude não absoluto, mas sim razoável. Os dossiers de preços de transferência apresentados pela Requerente tinham, por certo, informação quantitativa e qualitativa sobre o processo de seleção de comparáveis. Mas não ela é usada pela administração fiscal numa fundamentação de critérios objetivos de potencial exclusão de entidades comparáveis. Não se apreende uma análise justificativa e exigente, com base em critérios e cálculos, que, sustentada nos dados económico-financeiros individuais das empresas da amostra, e na subsequente aplicação de valores limite para vendas e número de trabalhadores, identifique as entidades a excluir como não comparáveis. Observa-se a referência a fragilidades, a motivos gerais, mas não a sua definição numérica, nem a efetiva aplicação como razão de exclusão de determinadas empresas. A decisão que fez vencimento acolhe a justificação da AT, quanto a este ponto, como bastante. Não o entendo assim.
Aprofundemos o tema, dada a sua centralidade no Processo. Usando um exemplo hipotético, admita-se que, num dossier de preços de transferência, usando-se o MMLO, se apurou o seguinte intervalo:
Empresa 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
Margem -0,03 -0,01 0,00 0,04 0,05 0,06 0,07 0,12 0,14 0,16 0,18 0,23
Se porventura se entender que existem neste intervalo empresas não comparáveis (por exemplo, as entidades designadas no quadro acima como 1, 3, 9 e 12), então deve dizer-se expressamente que critérios de exclusão foram utilizados e que métricas ou filtros se aplicaram na seleção de entidades a excluir. Referir, como no caso aqui em apreço, que a amostra, em geral, apresenta fragilidades de comparabilidade, e que elas resultam de diferenças de atividades, vendas e número de trabalhadores, fica aquém do exigido pelo art. 5º da Portaria 1446-C/2001, pois não se sabe que regras delimitadoras se aplicaram, quantas entidades se expurgaram, e como esse procedimento afeta a diferente distribuição dos pontos estatísticos (mínimo, 1º quartil, mediana, etc.) da nova amostra potencial resultante da exclusão de determinados valores.
A jurisprudência tem, como se conhece, vindo a sufragar a tese da que incumbe à administração fiscal nas correções efetuadas ao abrigo das normas relativas a preços de transferência, um dever especial de fundamentação do que seriam condições de plena concorrência, atentas as particularidades da matéria em causa. (Veja-se, entre muitos, o Acórdão do TCAS, de 14 de novembro de 2019, no Processo 10/17.9BCLSB).
Sublinhe-se que a Requerida não distingue, como o fazem as Guidelines, entre "critério de escolha de comparáveis” e “análise de comparabilidade”. O § 3.43, a que a Requerida se ancora, trata da de critérios de seleção de comparáveis. Todavia, como se diz no § 3.1, tal não se substitui à análise de comparabilidade, cujos fatores, importados do §§ 1.38 a 1.63, são a base do art. 5º da Portaria 1446-C/2001. Assim, alegar que diferenças nas vendas, trabalhadores, inquinam, ipso facto, a comparabilidade não é validado pelo conteúdo das Guidelines. Este ponto pode parecer secundário, mas não o é. Tome-se um exemplo simples. Admita-se uma empresa A que fabrica sapatos de alta gama, vende apenas no mercado nacional e fatura 50 milhões de euro por ano. Tem um ativo composto por 50% de investimentos de longo prazo e 50% de ativos de curto prazo e detém intangíveis (patentes). Por consulta a uma base de dados, numa análise de preços de transferência, admita-se que surgem duas empresas: uma entidade B que fatura 45 milhões de euro de sapatos de gama média, exporta a totalidade, com descontos de 15%, está sujeita e risco de câmbio e apresenta 20% de ativos de longo prazo, sem deter intangíveis de relevo. Uma outra empresa C, fatura 14 milhões de euro, vende, apenas no mercado interno, sapatos de alta gama, e detém 40% de ativos de longo prazo, incluindo intangíveis (marcas).
Porventura, tendo em conta o critério vendas, a lógica da Requerida levaria a considerar C como tendo fragilidades de comparabilidade, face ao diferencial de vendas anuais. Ora, uma análise aos fatores de comparabilidade (cf. art. 5º da Portaria e § 1.38 a 1.63 das Guidelines) mostra que B padece claramente de maiores fragilidades. Este exemplo vinca que a asserção da AT não se pode fundamentar, tal como o fez, por simples referência, nem sequer numérica, a fragilidades em "critérios de escolha de comparáveis", ignorando a análise de comparabilidade (art. 4º e 5º da Portaria). Quando se ancora uma correção nas Guidelines, há que analisar as suas recomendações em toda a sua amplitude. Ora, confrontando os §§ acima referidos (3.1; 3.43 e 1.38 até 1.63) fica ainda mais patente a superficialidade da fundamentação da Requerida, que não julgo aceitável num caso desta natureza.
Todas esta cautelas da OCDE, face ao complexo problema da comparabilidade, e as diferenças entre as variáveis a considerar num processo de escolha de comparáveis e numa análise aos fatores de comparabilidade, deveriam contribuir também para uma reflexão mais cuidada, uma fundamentação mais profunda e exigente da Requerida, e uma ponderação do equilíbrio dos fatores comprativos, de índole económico -empresarial, na correção que se efetuou.
Em síntese deste ponto, seria esperável, numa fundamentação adequada, que se identificassem os critérios de exclusão das entidades que teriam uma comparabilidade fragilizada, e se apontassem individualmente que entidades seriam excluídas a partir dessa concreta fundamentação. A não se efetuar tal prova, peca a sustentação da correção por sérias lacunas.
2.2 B) A identificação de outliers e sua exclusão
A Requerida, no sentido de ilustrar ou provar as fragilidades - como no Relatório de Inspeção (RIT) se afirma, “para demonstração do exposto” – foca-se unicamente na empresa D... SA, e apresenta os valores que serviram de base ao dossier de preços de transferência relativo a 2015. E alega que sendo a empresa um outlier (valor extremo) deveria ser excluída. A análise efetuada não quadra, quanto a este ponto, com as exigências da Lei, com a análise estatística de pontos extemos em amostras de dados, nem com o que as Guidelines exprimem como orientação doutrinal de referência relativamente ao MMLO.
Não julgo aceitável que um exemplo relativo a um outlier, referente apenas a um dos três exercícios em causa, encerre a questão da exemplificação da fundamentação factual das ditas fragilidades de falta de comparabilidade; pois não se vê no RIT a concretização da falta de comparabilidade de vendas e emprego para uma qualquer específica entidade amostral.
Ademais, a noção de outlier não pode resultar do facto de num exercício económico (2012) certa empresa incluída na amostra apresentar uma margem substancialmente negativa.
Em testes estatísticos existe uma conhecida noção comum de outlier: o valor que dista, para mais ou para menos, 2 desvios padrões em relação à média (caso seja um outlier moderado), ou 3 desvios padrões (caso seja um outlier extremo). Todavia, a aplicação deste conceito, nesta modalidade, esbarra muitas vezes com a reduzida dimensão das amostras usadas em preços de transferência. Estas rondam, em geral, pouco mais de uma dezena de entidades, retirando consistência de cálculo a esta forma de definir estatisticamente valores extremos positivos e negativos.
Em preços de transferência tem assim vindo a ganhar aceitação o apuramento de outliers pelo designado filtro de Tukey. Usando ainda os dados do quadro exemplificativo acima apresentado, e aplicando a folha de cálculo Excel para calcular o 1º quartil, a mediana e o 3º quartil, teremos:
1º quartil: 0,0375
Mediana: 0,065
3º quartil: 0,155
O intervalo interquartil (diferença entre o percentil 75 ou 3º quartil, e o percentil 25 ou 1º quartil), e será de (0,155 – 0,0375) = 0,1175 ou 11,75%.
Na lógica que se descortina na atuação da AT, e por referência à amostra hipotética do quadro acima, a empresa 1, (e porventura a 2) com margens negativas seriam excluídas da amostra, imputando-lhes a condição de outliers. Se aplicarmos o filtro de Tukey a tal amostra, teremos que outliers negativos seriam dados por valores inferiores a (1Q - 1,5* intervalo IQ), ou seja: 0,0375-(1,5*0,1175) = - 0,13875. Conclusão: não há outliers negativos na dita amostra.
Vejamos se existem na hipotética amostra outliers positivos: (0,155+1,5*0,1175) = 0,33125. Idêntica conclusão se retira.
Vejamos o que sucederia se esta ferramenta estatística tivesse sido aplicada ao caso que consta como exemplo no Processo aqui em causa. Para tal, é de especial interesse o quadro que consta da p. 25 e que a seguir se transcreve.
Se o esforço de indagação de outliers, ou pontos extremos, fosse baseado no critério estatístico antes indicado, e não pela mera constatação da negatividade da margem, teríamos, para a média dos 3 anos, na última coluna do quadro anterior:
Outliers negativos: 3,4% -1,5*(11,0%-3,4%)= - 8%. Ora, em tal caso, o valor mínimo de -2,4%, da empresa D..., não seria um outlier negativo. Existiriam outliers positivos? Vejamos: para os mesmos valores médios eles seriam dados por: 11% + 1,5*(11,0%-3,4%)= 22,4%, constatando-se igualmente a ausência deste tipo de outliers.
Aprofunde-se a análise. Vejamos se para o ano de 2012, expressamente referido pela Requerida como período relevante, (embora se tenham usado, como recomendam as Guidelines, valores médios do triénio e não indicadores de um único exercício) existiam outliers negativos.
Assim, no quadro acima transcrito e na coluna relativa ao ano de 2012, ter-se-ia: 1,7% - 1,5*(10,4%-1,7%)= - 11,35%. Donde resulta que o valor de -10,1% não seria, segundo este critério, um outlier negativo. Usando idêntico critério também se não detetam outliers positivos.
Ou seja, no plano estatístico, a empresa identificada como outlier, para (único) exemplo demonstrativo quantitativo das fragilidades apontadas, não tem sequer esse traço, segundo métodos estatísticos consagrados em análise de amostras para efeitos de preços de transferência. É ainda de enfatizar que esta análise estatística, embora essencial, não esgota o que a Lei determina, e as Guidelines sugerem, quanto à análise de outliers. Para determinar um valor extremo, para mais tendo ele a função de "demonstrar as fragilidades", tinha ainda que se atender a dois elementos adicionais:
i) A Portaria 1446-C/2001
No artigo 5º da Portaria 1446/2001 estabelece-se que, em análise de comparabilidade, reportada ao disposto no art. 4º, nº 5, devem ter-se em conta (negrito meu):
“Factores de comparabilidade
Para efeitos do artigo anterior, o grau de comparabilidade entre uma operação vinculada e uma operação não vinculada deve ser avaliado, tendo em conta, designadamente, os seguintes factores:
a) As características específicas dos bens, direitos ou serviços que, sendo objecto de cada operação, são susceptíveis de influenciar o preço das operações, em particular as características físicas, a qualidade, a quantidade, a fiabilidade, a disponibilidade e o volume de oferta dos bens, a forma negocial, o tipo, a duração, o grau de protecção e os benefícios antecipados pela utilização do direito e a natureza e a extensão dos serviços;
b) As funções desempenhadas pelas entidades intervenientes nas operações, tendo em consideração os activos utilizados e os riscos assumidos;
c) Os termos e condições contratuais que definem, de forma explícita ou implícita, o modo como se repartem as responsabilidades, os riscos e os lucros entre as partes envolvidas na operação;
d) As circunstâncias económicas prevalecentes nos mercados em que as respectivas partes operam, incluindo a sua localização geográfica e dimensão, o custo da mão-de-obra e do capital nos mercados, a posição concorrencial dos compradores e vendedores, a fase do circuito de comercialização, a existência de bens e serviços sucedâneos, o nível da oferta e da procura e o grau de desenvolvimento geral dos mercados;
e) A estratégia das empresas, contemplando, entre os aspectos susceptíveis de influenciar o seu funcionamento e conduta normal, a prossecução de actividades de pesquisa e desenvolvimento de novos produtos, o grau de diversificação da actividade, o controle do risco, os esquemas de penetração no mercado ou de manutenção ou reforço de quota e, bem assim, os ciclos de vida dos produtos ou direitos;
f) Outras características relevantes quanto à operação em causa ou às empresas envolvidas.”
Os fatores elencados não foram tidos em conta, tanto para o dito outlier, como para qualquer outra empresa. Tomando como referência a entidade D..., e face ao que dispõem as alíneas d) e e) acima transcritas, e porque tal empresa apresenta margens positivas em 3 dos 5 anos, era necessário indagar as razões subjacentes do valor da margem apurada para 2012. O que não é feito, nem para esta entidade nem para qualquer outra a que, genericamente, se apontam fragilidades de comparabilidade. Esta atuação não quadra com o que exige o art.º 58 da LGT, dispondo que “A administração tributária deve, no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido.”
A decisão arbitral de que divirjo aceita uma noção de comparabilidade que valida as variáveis que a AT usa de forma geral (como o volume de negócios, o número de empregados) e que não são os fatores de comparabilidade cuja análise específica consta das normas aplicáveis.
Deve referir-se que a “assimetria de informação” entre as empresas e as autoridades fiscais a que a decisão alude é, no contexto da utilização do método da margem líquida (em grande parte assente em variáveis contabilísticas e de relato económico-financeiro a que tanto os contribuintes como a AT acedem) muito mitigada. Na verdade, a AT possui atualmente as mesmas bases de dados empresariais que os S.P.. O que lhe permite, em geral e no caso presente, aferir, para cada entidade integrante da amostra, se cumpre as condições de comparabilidade exigidas na lei. Nada disso foi feito.
Mesmo as Guidelines, como a seguir se verá, não podem ser usadas para sustentar que uma entidade com margem negativa constitui, ipso facto, um outlier.
ii) As Guidelines
Nos §§ 3.63 a 3.65 que se seguem (tradução, sublinhaos e negritos meus) refere-se:
"A.7.3 Resultados extremos: considerações de comparabilidade
3,63 Resultados extremos podem consistir em perdas ou lucros excepcionalmente altos. Resultados extremos podem afetar os indicadores financeiros que são analisados no método escolhido (por exemplo, a margem bruta ao aplicar um preço de revenda, ou uma indicador de lucro ao aplicar um método de margem líquida transacional). Eles podem também afetar outros itens, (...) mas podem também refletir circunstâncias económicas excepcionais. Onde um ou mais comparáveis potenciais têm resultados extremos, um exame mais aprofundado será necessário para entender as razões para tais resultados extremos. O motivo pode ser um defeito na comparabilidade, ou condições excepcionais enfrentadas por uma entidade que seria em tudo o resto comparável,. Um resultado extremo pode ser excluído com base na constatação de que um defeito de comparabilidade significativo, anteriormente ignorado, foi identificado, e não apenas com base no fato de que os resultados observados na entidade tida como "comparável" simplesmente parecem ser muito diferentes dos resultados observados em outras empresas “comparáveis".
3,65 De um modo geral, uma empresa ou transação não controlada com prejuízo deve desencadear uma investigação mais aprofundada, a fim de estabelecer se pode ou não ser um comparável.(...) Comparáveis deficitários que satisfazem critérios de comparabilidade não devem, no entanto, ser rejeitados tendo como único fundamento o facto de que sofrem perdas.
3.64 Uma empresa independente não continuaria atividades geradoras de perdas, a menos que tivesse expectativas razoáveis de lucros futuros. (...) Em particular, funções simples ou de baixo risco não devem gerar perdas por um longo período de tempo. Isso não significa, entretanto, que as empresas ou transações deficitárias nunca possam ser comparáveis. Em geral, todas as informações relevantes devem ser usadas e não deve haver qualquer regra geral sobre a inclusão ou exclusão de empresas comparáveis deficitárias. Na verdade, são os factos e circunstâncias que influenciam a empresa em questão que devem determinar a sua escolha como um comparável, não simplesmente os lucros ou perdas."
Ou seja, para definir outliers aquando do uso do MMLO, e querendo usar-se uma fundamentação assente em alguma fonte (e.g. Guidelines), não basta identificar uma margem negativa. É necessário um esforço de análise de factos e circunstâncias que influenciam a empresa em questão, e não simplesmente os seus lucros ou perdas. O § 3.64, acima, é claro a tal respeito. A AT nada disto fez, e o esforço fundamentador de outliers é essencial, para mais quando eles são erigidos em exemplo (neste caso, único) concreto e quantificado de falta de comparabilidade.
Ou seja: quanto às razões de fragilidades por virtude de volume de negócios e número de empregados, não se esclarece por que forma elas afetam o grau de comparabilidade da amostra. E não há qualquer fundamentação, económica ou estatística, sobre o outlier que se aponta como único exemplo prático que ilustraria as fragilidades.
2.2.C) A aplicação das Guidelines na correção para mediana do intervalo
O que imputa ao S.P. a decisão constante do Acórdão? Nela se diz a dado passo (ponto 7.2.C): "Ora que fez a Requerente? Adoptou o método MMLO, mas apresentou margens baixíssimas, seja de acordo com standards internacionais , seja numa comparação com os valores medianos e médios para os anos de referência apresentados pela AT, seja ainda numa comparação com dois intervalos de plena concorrência, interquartis, apresentados por ela mesma..."
E prossegue a decisão:
“Quando o sujeito passivo não apresenta valores compatíveis com o “benchmark”, por se situarem fora dos intervalos interquartis apresentados por ele próprio, passa a caber à administração ajustar as condições que asseguram a plena concorrência – o que fará com medidas de tendência central, que são as que minimizam o erro resultante de defeitos de comparação.”
Ora, em meu entender, não basta dizer isto. Se a margem do S.P. se situa no intervalo de plena concorrência definido em função da amostra, haverá que provar, convincente e expressamente, que tal intervalo não assegura uma comparabilidade razoável (cf. art 4º da Portaria 1446-C/2001), usando os fatores de comparabilidade previstos no art 5º da mesma fonte legal. A AT não fez tal demonstração. Adicionalmente, como a seguir mostrarei, dizer que se usa o § 3.62 das Guidelines não constitui uma fundamentação. É apenas uma solução técnica, que exige procedimentos anteriores que AT não desenvolveu, e opções fundamentadas que a AT não sustentou nem deu a conhecer ao S.P. Vejamos.
O uso da mediana como métrica quantitativa da correção efetuada vem ancorado no § 3.62 das Guidelines, mas não é discutido ou fundamentado pela Requerida. Um tal procedimento afasta-se nitidamente das recomendações das ditas Guidelines quanto ao ponto do intervalo, ou da amostra, para o qual se devem, sendo caso disso, ajustar as margens. Com efeito, veja-se o que referem os § 3.55 a 3.62 sobre o intervalo de plena concorrência e a seleção do ponto mais apropriado para ajustamentos; em especial o § 3.57 (tradução e negrito meus).
"A.7 O intervalo de plena concorrência
A.7.1 Em geral
3.55 Em alguns casos, será possível aplicar o princípio de plena concorrência para chegar a um único valor (por exemplo, preço ou margem) que seja o mais fiável para estabelecer se as condições de uma transação respeitam o princípio de plena concorrência. No entanto, porque os preços de transferência não são um ciência exata, também haverá muitas situações em que a aplicação do método, ou métodos, mais adequado(s) produz uma gama de números, todos relativamente igualmente fiáveis. Nestes casos, as diferenças nos valores que compõem o intervalo podem ser causadas pelo facto de que, em geral, a aplicação do princípio de plena concorrência produzir apenas uma aproximação das condições que teriam sido estabelecidas entre empresas independentes. Também é possível que os diferentes pontos representem o facto de que empresas independentes envolvidas em transações comparáveis em circunstâncias comparáveis podem não estabelecer exatamente o mesmo preço para a transação sob análise.
3.56 Em alguns casos, nem todas as transações comparáveis examinadas terão um grau relativamente igual de comparabilidade. Quando é possível determinar que algumas transações não controladas têm um menor grau de comparabilidade do que outras, elas devem ser eliminadas.
3.57 Também pode ser o caso que, embora todos os esforços tenham sido feitos para excluir pontos que têm um menor grau de comparabilidade, o que se obtém é um intervalo de valores para os quais é considerado, dado o processo usado para selecionar comparáveis e limitações nas informações disponíveis sobre comparáveis, que permanecem alguns defeitos de comparabilidade que não podem ser identificados e / ou quantificados e, portanto, não são ajustados. Em tais casos, se o intervalo inclui um número considerável de observações, ferramentas estatísticas que levam em consideração medidas de tendência central para estreitar o intervalo (por exemplo, o intervalo interquartil ou outros percentis) podem ajudar a aumentar a fiabilidade da análise.
3.59 Quando a aplicação do método mais apropriado (ou, em circunstâncias relevantes, de mais de um método, ver parágrafo 2.11), produz um intervalo de valores, um desvio substancial entre os pontos nesse intervalo pode indicar que os dados usados no estabelecimento de alguns dos pontos podem não ser tão fiáveis quanto os dados usados para estabelecer os outros pontos no intervalo, ou que o desvio pode resultar de características dos dados comparáveis que requerem ajustamentos. Nesses casos, uma análise mais aprofundada desses pontos pode ser necessária para avaliar sua adequação para inclusão no intervalo de plena concorrência."
Do que transcreveu, afigura-se nítido que a Requerida não eliminou as entidades que considerou como tendo defeitos de comparabilidade e, refazendo a amostra, obtivesse novos valores para os diversos percentis (cf. § 3.56). Não expressou os “defeitos de comparabilidade que não podem ser identificados e / ou quantificados e, portanto, não são ajustados”. Nem se o intervalo, após realizada tal tarefa, “inclui um número considerável de observações” que permitam ainda a sua utilização para efeitos de cálculo de percentis (cf. § 3.57). E tendo constatado a Requerida que existiam desvios substanciais entre pontos do intervalo apresentado pela Requerente, não se indica qual a “análise mais aprofundada” desses pontos foi concretizada para avaliar sua adequação para inclusão num hipotético intervalo final de plena concorrência. (cf. § 3.59, e ainda o artigo 5º da Portaria 1446-C/2001, já antes mencionado). Ou seja, o simples salto lógico, dado pela Requerida, das “fragilidades” para o “§ 3.62” é algo que inquina a fundamentação do critério algébrico aí usado.
Após as considerações acima expostas, entram as Guidelines no tema relativo ao ponto do intervalo para o qual se deve ajustar o valor (tradução e negrito meus). Vejamos.
"A.7.2 Selecionando o ponto mais apropriado no intervalo
3.60 Se a condição relevante da transação controlada (por exemplo, preço ou margem) estiver dentro do intervalo de plena concorrência, nenhum ajustamento deve ser feito.
3.61 Se a condição relevante da transação controlada (por exemplo, preço ou margem) ficar fora do intervalo intervalo de plena concorrência adotado pela administração tributária, o contribuinte deve ter a oportunidade de apresentar argumentos de que as condições da transação controlada satisfazem o princípio de plena concorrência, e que o resultado cai dentro do intervalo (ou seja, que o arm's length range é diferente daquele que é afirmado pela administração fiscal). Se o contribuinte não for capaz de estabelecer esse facto, a administração tributária deve determinar o ponto dentro do intervalo para o qual ajustará as condições da transação controlada.
3.62 Ao determinar este ponto, quando o intervalo compreende resultados de fiabilidade relativamente igual e alta, pode-se argumentar que qualquer ponto no intervalo satisfaz o princípio plena concorrência.Quando os defeitos de comparabilidade permanecem, conforme discutido no parágrafo 3.57, pode ser apropriado usar medidas de tendência central para determinar este ponto (por exemplo, a mediana, a média ou médias ponderadas, etc., dependendo das características específicas do conjunto de dados), a fim de minimizar o risco de erro devido a defeitos de comparabilidade desconhecidos ou não quantificáveis."
Também aqui a atuação da Requerida fica bastante aquém do que as Guidelines recomendam. Em especial, e cf. se refere no § 3.61, deveria ter sido dada oportunidade ao contribuinte de apresentar elementos adicionais, que fossem então analisados. O contribuinte fê-lo, tendo apresentado um segundo estudo de comparabilidade, procurando levar em conta as críticas ao dossier de preços de transferência original e às amostras que dele constam. A Requerida não deu qualquer relevo a tal elemento.
Ainda neste § 3.61 se refere que, em caso de discordância sobre a amplitude dos intervalos, deve a administração fiscal adotar ou determinar um intervalo de plena concorrência, ajustando o número de pontos daquele que o contribuinte propõe, ou construindo um intervalo alternativo. Não se encontra nos autos prova de tal procedimento.
Ou seja, e concluindo este tema, para se aplicar o § 3.62 é preciso percorrer um caminho que se não percorreu. O § 3.62 é um ponto de chegada, após exigente análise prévia. Não um imediato ponto de partida. Para mais, esse § 3.62 deve ser aplicado se permanecerem “defeitos de comparabilidade desconhecidos ou não quantificáveis.” Se permanecem, é porque se efetuou exigente análise prévia. O que também se não discute ou desenvolve por parte da AT. E considera ainda que o ajustamento para um certo ponto (média, mediana ou outro, pois o § apenas exemplifica pontos) "depende das características específicas do conjunto de dados". No caso da comparação de um contract manufacturer com entidades que, tipicamente, o não são, o uso da mediana é incorreto. O próprio § 3.62 remete para o § 3.57. Ora esta último, já citado, não deixa dúvidas sobre o relevo de todo o intervalo interquartil.
Quando, como no caso em apreço, as Guidelines constituem o arrimo técnico-legal para uma correção ou ajustamento, elas não podem ser aplicadas como se fez, e sim na correta sequência de procedimentos que acima se mostrou.
Por tudo isso afasto-me do que na decisão se refere ao dizer-se (ponto 7.3) : “Mas até lá, a regra é a de que aquele que apresenta valores muito baixos, nos “outliers” da base de cálculo e do intervalo de plena concorrência, se sujeita a inspecção, e eventual liquidação adicional em sede de preços de transferência, por parte de uma autoridade tributária que pode chegar a um valor certo usando de uma margem discricionária, desde que fundamentada em termos jurídicos e por referência a valores económicos determinados (art. 63º, 8 e 9 do CIRC).”
A AT usou discricionariamente um critério sem o fundamentar (como adiante veremos tal foi expressamente reconhecido pela Exma. Senhora Inspetora Tributária), enfermando a sua análise de graves contradições técnicas quanto a fatores de comparabilidade, e, como ainda se verá, o valor económico que usa não faz qualquer sentido no caso em apreço.
Uma razão adicional milita em favor de um atuação mais ponderada da Requerida, que não a imediata correção para mediana, em face de diferenças de volume de negócios e emprego. É que, com as Guidelines bem reconhecem, (cf. § 3.38 que a seguir se transcreve em nota) a obtenção de comparáveis absolutamente similares é, em especial num caso como o presente, muito difícil, se não impossível, por falta de entidades independentes comparáveis. Isso leva, como se refere no dito § 3.38, a incluir entidades que, ao alargarem o campo de escolha desses comparáveis podem diminuir a similaridade com a empresa sob inspeção, mas é algo de inescapável. Adicionalmente, o § 3.43, usado pela AT como fundamento dos elementos a tomar em conta nas fragilidades, termina, depois de elencar cinco possíveis critérios de escolha, com a seguinte afirmação: The choice and application of selection criteria depends on the facts and circumstances of each particular case and the above list is neither limitative nor prescriptive.”
Ancorando a AT a quantificação da correção efetuada nas Guidelines, e em face da inobservância do que nelas se recomenda, é ainda mais evidente a desconexão entre o nível de exigência das Guidelines que acima se referiu e as considerações adicionais sobre o modo como se fundamentou a correção efetuada que foram ouvidas em audiência de inquirição de testemunhas.
3.A prova testemunhal e o que ela traduz
Em audição de testemunhas, realizada no CAAD em 12 de outubro de 2020, afirmou a Exma. Senhora Inspetora Tributária, entre outros aspetos, o seguinte:
- Que, analisando a amostra apurada pela Requerente, nenhuma empresa se pode considerar verdadeiramente comparável;
- Que a correção para a mediana é menos gravosa para o contribuinte;
- Que a inspeção, usando as bases de dados que possui, não obteria uma melhor amostra de comparáveis do que a apresentada pela Requerente.
Quanto à primeira afirmação, dela se retiram duas consequências. Em primeiro lugar, não é claro se as fragilidades de comparabilidade afetam “algumas empresas” ou se, afinal, afetam todas. Em segundo lugar, se tais fragilidades contaminam todas as entidades, e se a Requerida, como também foi afirmado, não teria melhor amostra alternativa, então estar-se-ia fora do campo de aplicação de preços de transferência, por falta de entidades independentes em situação de comparabilidade. O artigo 63º do CIRC estabelece que (negrito meu):
“1 -Nas operações efetuadas entre um sujeito passivo e qualquer outra entidade, sujeita ou não a IRC, com a qual esteja em situação de relações especiais, devem ser contratados, aceites e praticados termos ou condições substancialmente idênticos aos que normalmente seriam contratados, aceites e praticados entre entidades independentes em operações comparáveis”.
Se, conforme afirmado, não há entidades independentes comparáveis, então não existe a base jurídico-económica essencial para se proceder a eventuais ajustamentos ao lucro tributável com base no regime dos preços de transferência.
É ainda de ponderar como se pode corrigir a margem para a mediana de uma amostra que está, em todos os seus pontos, incluindo essa mesma mediana, ferida de falta de comparabilidade. E se, possuindo a AT as bases de dados comummente usadas em preços de transferência (e.g., SABI, AMADEUS, BACH) se pode limitar a mencionar que não obteria melhor amostra, sem apresentar prova de que usou tais bases, efetuou pesquisas de comparáveis, e foi esse o resultado. Em matéria como os preços de transferência é de exigir mais do que uma afirmação de princípio ou mera convicção, para mais existindo as bases de dados em que tal prova se poderia sustentar.
Finalmente, sustentar que a correção para a mediana “é a menos gravosa para o contribuinte” constitui uma afirmação que não se compreende. A mediana representa, como se sabe, o percentil 50 de uma amostra de dados. Antes desse, há pontos menos gravosos (por exemplo, o ponto mínimo da amostra, o primeiro quartil ou qualquer outro valor entre o percentil 1 e 49. Face às dúvidas e contradições que a determinação da amostra de comparáveis suscitou (especialmente em face do que foi afirmado em audiência), e aos problemas que surgem da comparação entre contract manufacturers e full flegded distributors, então um adequado grau de ponderação por parte da AT determinaria que, a efetuar-se alguma correção, ela não fosse para o referido ponto central, e hipoteticamente para o primeiro quartil ou valores entre os percentis 25 e 49, com a necessária fundamentação. O que é reforçado pelo que a seguir se analisa.
4. Aspetos da análise económica aos preços de transferência aplicados ao caso concreto
A disciplina fiscal dos preços de transferência implica, como em muitas outras áreas do direito fiscal, aplicar normas jurídicas a realidades económicas que lhes subjazem. Por isso devem, sempre que possível, analisar-se tais realidades.
Perpassa no Relatório de Inspeção a convicção – porque a demonstração ou análise de tais asserções não é efetuada - segundo a qual existe um a relação positiva entre dimensão das empresas e a rendibilidade. Esta suposta relação entre dimensão e rendibilidade das empresas não se pode resolver com uma frase genérica, que se cita do RIT:
"Assim, o impacto da dimensão nas funções desempenhadas pela empresa e consequentemente na sua rentabilidade, constitui um resultado teórico e empiricamente fundamentado. pelo que empresas com um volume de proveitos operacionais significativamente inferiores poderão não atingir a dimensão necessária ou o nível de implementação no mercado pretendido para efeitos de comparabilidade."
Com efeito, existe abundante literatura económica que tem estudado empiricamente o assunto. Em resultado de pesquisa efetuada a uma base de dados de estudos científicos (Base "B-on") sobre o tema em causa não se extrai a conclusão acima transcrita.
Por exemplo, Hou e van Dijk, em artigo intitulado "Resurrecting the Size Effect: Firm Size, Profitability Shocks, and Expected Stock Returns", publicado, em 2019, na Review of Financial Studies, editada pela Universidade de Oxford, concluem que as pequenas empresas apresentam níveis de rendibilidade para os investidores superiores aos das grandes empresas. A análise estatística cobre o período 1965-2014, e é relativa a 41 países.
Ana Lara e outros, no artigo "Categorizing the Spanish Accommodation Sector: Does Firm Size Influence Economic Profitability?", publicado em 2012, na Cornell Hospitality Quarterly, não encontram relação estatística significativa entre dimensão e rendibilidade empresarial.
M. KJuncova e outros, em artigo intitulado "Firm Size as a Determinant of Firm Performance: The Case of Swine Raising", publicado em 2016, na revista Agris on-line Papers in Economics and Informatics, encontram uma relação positiva entre dimensão e rendibilidade.
A. Amar e outros, em artigo intitulado "Indicator Variables Model of Firm’s Size-Profitability Relationship of Electrical Contractors Using Financial and Economic Data", publicado em 2003 no Journal of Construction Engineering and Management encontram uma relação negativa entre dimensão e rendibilidade.
Por fim, R. Batra e outro, em artigo intitulado "Rethinking and Redefining the Determinants of Corporate Profitability", publicado em 2016 na Global Business Review encontram uma relação positiva.
Como se observa, a relação geral que a Requerida refere está longe de ser validada pela literatura financeira de índole estatística que analisa esta questão.
Além disso, o facto de a Requerente ser um contract manufacturer, com riscos, ativos e funções muito mais limitados do que uma empresa que desempenha todas as funções (como as empresas independentes da amostra usada tendem a desempenhar) terá, por estar sujeita a menor risco, menor rendibilidade esperada. Também esta característica implica que a correção para a mediana é economicamente sobrevalorizada e incorreta, e não tenha levado em conta aspetos que deveriam ter sido considerados no tocante ao ponto do intervalo para o qual se efetuaram correções. Note-se que a dimensão de uma empresa não tem necessariamente relação direta com as suas funções e riscos. Uma entidade de dimensão apreciável (como a Requerente) tem essencialmente uma função produtiva. E entidades de pequena dimensão, sobretudo se independentes de um grupo, podem ter funções de investigação e desenvolvimento, estratégia, marketing, produção, recursos humanos, finanças, etc.
A decisão, no ponto 7.2 expressa, colocando tal afirmação depois do quadro intitulado "Taxonomia dos tipos de produtor" que: " A Requerente exclui a sua caracterização como “toll manufacturer”, e coloca-se na posição intermédia de “contract manufacturer”, que, como se vê pela tipologia, apenas se afasta do “full-fledged manufacturer” em termos de dimensão."
Ora basta observar o dito quadro tipológico para se concluir que um contract manufacturer” difere de um full-fledged de forma muito mais ampla do que na dimensão. No Acórdão pouco ou nenhum relevo se dá ao facto de as entidades independentes da amostra serem full-fledged manufacturers, cujo nível de ativos, riscos e funções implica margens e rendibilidade tipicamente acima das que aufere um contract manufacturer. Tal deveria impor à AT, depois de fundamentar a falta de comparabilidade, a moderação da métrica da correção, e não usar a mediana de empresas cuja rendibilidade é, em média, superior. Ou seja a Requerida vê deficiências de comparabilidade nas vendas e emprego; mas ignora que os valores quantitativos que representam os ponto da amostra estão afetados por uma premissa económica que torna a correção para a mediana uma solução excessiva, e por isso injusta.
Daí que não só a fundamentação do uso do § 3.62 peca por insuficiente face ao que antes se expôs, com a medida usada não faz sentido economicamente, ao utilizar as margens de empresas com um enviesamento ou diferencial positivo face ao S.P. Também por isso a mediana é, neste caso, de um ponto de vista económico –financeiro, inconsistente como métrica de correção, além de que não tem, por parte Requerida, qualquer fundamentação relativamente à sua preferência face a outras medidas (1º quartil, média ponderada, percentis 30 ou 40, etc).
Adicionalmente, ainda no plano económico, uma investigação a estudos efetuados pelas próprias entidades que organizam bases de dados a usar em preços de transferência (e.g., BACH) mostra que em 2012 a lucratividade média das empresas portuguesas ficava muito aquém daquela revelada pelas entidades dos outros países da amostra. Estas análises não seriam despiciendas numa fundamentação cuidada.
Por fim, e ainda num plano económico, julgo que seria curial questionar o absurdo da implicação económico-financeira da correção que se efetuou. Vejamos.
Em 2015, com a correção efetuada, o resultado operacional eleva-se para 3 695 330 euro. Retirando a esse resultado os juros líquidos pagos (203 000 euro), teremos um resultado contabilístico antes de imposto de 3 492 330 euro. Dado o lucro tributável corrigido atingir 3 512 136 euro, então supondo uma taxa efetiva de imposto de 25% (21%, acrescida de derrama estadual e eventual tributação autónoma) o resultado líquido seria de (3 492 330 - 25%*3 512 136)= 2 614 296 euro.
O capital próprio da Requerente, em final de 2014, era de 8 634 240 euro, como se observa no Relatório e contas. Assim, a rendibilidade do capital próprio será dada pelo quociente entre lucro líquido e capital próprio: 2614296/8634240= 30,28%.
Ora, nunca um contract manufacturer, com funções e riscos limitados, teria uma rendibilidade de 30,28%. Os autores que estudam empiricamente este tema (veja-se A. Damodaran) estimam para empresas dos EUA valores médios desta rendibilidade entre 11 e 14%. Para o caso europeu estima o mesmo autor valores a rondar os 10%. Esta análise também deveria ter conduzido a uma ponderação da razoabilidade da correção efetuada, num plano da respetiva consistência económica. Este resultado económico absurdo da correção efetuada foi ignorado na decisão arbitral.
Quando nela se refere: "E a comparação entre valores medianos e valores médios para o período 2013-2015 prova, no caso vertente, que a opção pela mediana foi menos gravosa do que o teria sido a opção pelo outro valor central", aceita-se que, a existirem correções, só a média e a mediana se impõem como apropriadas. Ora tal conclusão não é justificada quando se compara um contract manufacturer com amostras de full flegded distributors.
E esta posição do Acórdão não se compagina, aliás, com o relevo que nele se dá a uma decisão de um tribunal espanhol, Citando (negrito meu): “Ou seja, na sequência desta decisão as autoridades tributárias espanholas precisarão de passar a demonstrar a existência de defeitos notórios de comparabilidade antes de poderem recorrer à mediana para procederem a ajustamentos na liquidação. E aos sujeitos passivos passa a interessar reforçarem a prova de que os valores são fiáveis na medida em que cabem no intervalo interquartil, para assegurarem a idoneidade da observância pelo princípio “arm’s length” e serem poupados a inspecções e a eventuais liquidações adicionais.
Extrapolando, não vejo como se pode, neste Processo, apreciar a atuação da AT como demonstrativa de defeitos notórios. Alegou-os genericamente. Mas não os demostrou.
5. Sobre uma hipotética relação do Processo 808-T-2019 com o Processo 423-T-2015
A decisão arbitral chama à colação, por várias vezes, um Acórdão na qual o signatário deste voto teve intervenção como árbitro: o Processo 423-T-2015. As seguintes razões tornam totalmente inapropriada a comparação entre os dois processos.
Nesse Processo 423-T-2015, a Requerente usou, no dossier de preços de transferência, o método do custo majorado como método principal para provar a aplicação do princípio de plena concorrência. A AT entendeu, fundamentadamente, que o método sofria de erros de aplicação contabilística e algébrica, tendo-o desconsiderado. O Tribunal validou tal posição da AT.
A aí requerente usou, como método secundário, o que designou como “lucro comparável”. Foi entendido que esse método se reconduzia ao MMLO. No estudo deste último método apresentado pela entidade aí Requerente, o indicador de margem por esta obtido situava-se fora do intervalo encontrado. O valor obtido pela requerente era de -7%, e o valor mínimo do intervalo situava-se em -1,3%. Nenhuma similitude algébrica e económica pois se verifica com o caso presente.
O contribuinte sustentou naquele Processo que a margem de -7% não implicaria correções para qualquer ponto do intervalo (mínimo, 1º quartil, mediana, ou outro) porque o ano em que se verificou essa margem de -7% seria atípico. A AT demostrou fundamentadamente, e o tribunal validou tal fundamentação, que assim não seria. Como é bom de ver nada disto ocorre no caso presente.
Mas as diferenças são ainda mais amplas. O tribunal considerou que a AT fundamentou, em dezenas de páginas do RIT, as asserções de não comparabilidade, ou as fragilidades, da amostra. Em concreto, foi efetuada uma análise económica aprofundada a um outlier que então se identificou. Foi apresentados limite numéricos para apontar problemas de comparabilidade. O outlier apresentava rendibilidade persistentemente negativa. No caso dos autos, a entidade D..., que, sem fundamentação económica ou estatística, se considera outlier, apresenta margem positiva em 3 de 5 anos, sem que se tenha feito qualquer indagação adicional sobre a natureza e causas do referido outlier.
Mais, provou-se, nesse Processo 423-T-2015, como se pode ver na decisão consultável no site do CAAD, que, na fase inspetiva, a AT enviou vários pedidos, por escrito, ao sujeito passivo acerca da justificação da comparabilidade de certas entidades, cumprindo as obrigações de procurar obter a verdade material e de colaboração com o contribuinte, vertidas na lei (LGT, CPPT, RCPIT e Portaria 1446-C/2001) e nas Guidelines. Obteve então respostas que a não satisfizeram e mostrou porquê. Foram ainda exibidas provas de realização de reuniões com o sujeito passivo a fim de tentar esclarecer tais controversas questões.
No final, o sujeito passivo não aceitou qualquer modificação na amostra, sustentando quer a desnecessidade de correções da margem de -7%, quer a adequação da comparabilidade da amostra na sua totalidade. Ou seja, em oposição com o caso vertente, foi a AT que procurou junto do contribuinte os esclarecimentos adicionais, e que os ponderou na sua atuação.
Em face de todas estas diligências e respetivas provas, e da posição final do contribuinte, e fundamentando a escolha, a AT ajustou o valor da margem para o 1º quartil, e não a para mediana, usando uma lógica de prudência e moderação da correção, face às particularidades dos preços de transferência, em especial o não constituírem “ciência certa” e originarem questões variadas de análise económica e estatística.
Não há, pois, a similitude que se quer fazer valer entre os mencionados processos e, pelo exposto, não pode a decisão do Processo 423-T-2015 servir, no caso dos autos, como um suposto alicerce de ajustamento da margem para a mediana, valor muito mais gravoso do que o 1º quartil, usado no Processo 423-T-2015. O que este processo, e a decisão que sobre ele recaiu, mostra é necessidade de fundamentar devidamente, e com bases analíticas e interpretativas, uma correção, sabendo-se que a lei não estabelece métricas quantitativas de correções. Nenhuma fonte legal, doutrinal ou jurisprudencial determina, sem mais, o uso da mediana, desprovida de uma convincente fundamentação. Os excertos que esta decisão arbitral de que divirjo utiliza, e que são provenientes desse Processo 423-T-2015, nunca referem o ponto que considero central. Ei-lo (subl. e negrito meus):
- Como reagiu, por fim, a AT? Apontou amplamente as fragilidades da amostra, mas decidiu mantê-la na sua totalidade. Entendeu a inspeção que, a manter-se a totalidade da amostra, como sempre sustentou a requerente, e face aos procedimentos sugeridos ou recomendados constantes das Guidelines (designadamente o parágrafo 3.57), a aplicação do intervalo inter quartil melhoria a qualidade do apuramento quantitativo do intervalo de plena concorrência, e usou o primeiro quartil como medida desse ajustamento. Note-se que a base aritmética deste ajustamento poderia ser a média, a mediana, o primeiro quartil ou outro indicador referencial. (...) A AT teria pois alguma discricionariedade técnica, desde que fundamentando tal escolha.”
Fundamentar, neste contexto, não é referir, en passant, o § 3.62. É muito mais do que isso.
As exigências de fundamentação que se expressam nesse Processo 423-T-2015 foram ignoradas no que aqui nos ocupa. Ademais, no caso dos autos, afirmou a Exma Senhora Inspetora Tributária, ouvida em audiência: “Eu teria de justificar no relatório que utilizo a mediana por ser, para a inspeção, a medida mais favorável e bondosa para o sujeito passivo? Não me pareceu algo que fosse importante. Aliás, se adotássemos a média, para mim haveria necessidade, então, de justificar porque é que estou a utilizar a média em detrimento da mediana, que é mais favorável ao sujeito passivo. Utilizando eu uma medida que é mais favorável ao sujeito passivo, tenho de justificar porque é que utilizei essa e não utilizei a que é mais desfavorável ao sujeito passivo? Não me pareceu relevante esse tipo de análise.”
Em suma, face ao que fica dito, é manifestamente infundada qualquer similitude entre os dois Processo. Não que os princípios gerais de alguma discricionariedade, fundamentada, relativos a ajustamentos que se referem no 423-T-2015 sejam aqui inválidos, mas porque eles se revelavam sustentados e fundamentados por um trabalho da Requerida no processo 423-T-2015, o qual é inexistente no caso presente.
Perante dúvidas extensas ou notórias sobre comparabilidade, a mediana é uma solução possível. Mas dúvidas legalmente fundadas, economicamente analisadas e provadas com factos concretos. Não meramente alvitradas sem qualquer esforço probatório específico. E sem, após essa fundamentação das razões de uma correção, se analisarem as várias opções quanto ao ponto do intervalo a usar e se justificar porque se utiliza um dado ponto desse intervalo.
6. Das possíveis consequências futuras a que conduz aceitar a correção efetuada
A decisão que fez vencimento tem uma consequência que se deve salientar. Impõe aos contract manufaturers o seguinte possível cenário fiscal: se apresentarem margens abaixo das medidas centrais das amostras (que já vimos tendem a sobrevalorizar as ditas margens), e porque nas amostras de entidades comparáveis independentes, muitas vezes localizadas noutros países, sempre haverá diferenças de volume de negócios, de emprego, etc., poderão ver, independentemente das reais condições de lucratividade, o seu lucro tributável corrigido. Bastando, para isso, a AT alegar "fragilidades" e usar o § 3.62 das Guidelines.
Para se furtar a tal destino, e como se explicitamente se refere na decisão:
"Significa isto que só é preciso recorrer aos intervalos “arm’s length” quando não se conclui pela existência de transacções absolutamente similares, o que automaticamente asseguraria a paridade de condições entre relacionadas e não-relacionadas. (...) o contribuinte tem todo o interesse em colocar os seus resultados no intervalo interquartil, e fugir dos “outliers”, para tornar os seus resultados mais credíveis e fiáveis, e evitar liquidações adicionais.
As amostras de comparáveis, até por que delas constam habitualmente empresas de Estados da União Europeia (quando se mostra a inexistência, em Portugal, de entidades independentes comparáveis) sempre padecerão de algumas das “fragilidades” gerais a que a AT alude, ou de falta de empresas "absolutamente similares".
Uma nota final. A decisão arbitral de que divirjo, na respetiva nota de rodapé nº 15, atribui ao signatário deste voto a seguinte afirmação: ”Não admira, pois, que a introdução em Portugal, em 2001, de regras específicas sobre preços de transferência tenha visado de imediato o combate à manipulação do rendimento tributável através de transacções intragrupo – reconhecendo-se a oportunidade, e estratégia dominante, de “camuflagem de rendimentos”, mas também a insuperável margem de subjectividade que se insinua na comparabilidade das transacções, a reclamar o recurso a métodos indiciários e a presunções” (reportando, na dita nota, tal afirmação a Martins, António F. (2017), "Accounting Information and Its Impact in Transfer Pricing Tax Compliance: A Portuguese View", EuroMed Journal of Business, 12/2, p. 2.).
Conhecendo-se o preciso significado, no ordenamento fiscal português, de métodos indiciários e de presunções, estranhei que tivesse escrito tal coisa num artigo sobre preços de transferência. Fui ler o texto e a página, e não confirmei tal afirmação.
E, a tal propósito, este Processo parece dar renovada atualidade aos receios sobre métodos de apuramento do lucro tributável que Rui Morais desenvolve no seu artigo intitulado “Preços de transferência - o sistema fiscal no fio da navalha”, publicado em 2009, na Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal.
António Martins