SUMÁRIO:
Uma sequência de transações em que se inclui a criação de uma empresa veículo, desprovida de substância económica, que serviu apenas para a aquisição de participações sociais de uma outra sociedade, que ulteriormente distribuiu dividendos destinados à liquidação da dívida gerada por essa aquisição, constitui objetivamente um esquema abusivo enquadrável na cláusula geral anti-abuso, quando seja possível considerar que a finalidade principal das operações societárias foi a de evitar a tributação em IRS de rendimentos de capitais.
DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)
Os árbitros Carlos Alberto Fernandes Cadilha (árbitro-presidente), Cláudia Rodrigues e Jónatas Machado (árbitros auxiliares) designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:
I – Relatório
1. A..., contribuinte número ..., e B..., contribuinte n.º ..., ambos residentes em Rua ..., ..., ..., ...-... ... (doravante, “Requerentes”), abrangidos pelo serviço periférico local de ..., ao abrigo dos artigos 10.º e 2.º, n.º 1, alínea a), ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que institui a arbitragem como meio alternativo de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária (de ora em diante “RJAT”), e da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, requereram, em 12.05.2020, na sequência de decisões de indeferimento de reclamação graciosa e deferimento parcial de recurso hierárquico, a constituição de Tribunal Arbitral, para pronúncia arbitral sobre os atos tributários de liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (doravante “IRS”) n.º 2017..., de 20.12.2017, da autoria da Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante, “AT”), Imposto sobre o Rendimento, e de Demonstração de Liquidação de Juros, identificada com o n.º 2017..., e de Demonstração de Acerto de Contas n.º 2017..., referentes ao período de 2013, e dos quais resultou um valor a pagar, até dia 01.02.2018, de € 1.934.486,34 (um milhão, novecentos e trinta e quatro mil, quatrocentos e oitenta e seis Euros e trinta e quatro cêntimos), com base na sua ilegalidade.
2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite em 13.05.2020, pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida.
3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do art. 6.º e da alínea b) do n.º 1 do art. 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD nomeou os signatários como árbitros do tribunal arbitral coletivo, no dia 07.07.2020, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
4. As partes foram devidamente notificadas dessa nomeação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do art. 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e dos art.s 6.º e 7.º do Código Deontológico.
5. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do art. 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 06.08.2020.
6. Na sua Resposta, apresentada a 30.09.2020, a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante AT ou Requerida) veio impugnar as razões da Requerente, sustentar a improcedência do pedido de pronúncia arbitral por não provado.
7. A 20.11.2020, em aplicação dos princípios da autonomia na condução do processo, e da celeridade, simplificação e informalidade processuais (artigos 19.º, n.º 2, e 29.º, n.º 2, do RJAT, por os Requerentes terem prescindido da testemunha arrolada e não haver outros elementos sobre que as partes se devam pronunciar, entendeu o presente tribunal dispensar a reunião a que se refere o artigo 18.º desse Regime, bem como dar um prazo para a apresentação de alegações, que foram apresentadas pela Requerente em 02.12.2020.
1.1. Matéria de facto
8. Aos autos foram trazidos os seguintes factos relevantes, que poderão ser tidos como provados:
a) A C..., S.A., pessoa coletiva n.º ... (doravante “C...”) foi constituída em 1977, com o capital social inicial de € 320.100,00, tendo por objeto social o exercício da indústria e comércio de material elétrico para equipamento, aquecimento, arrefecimento e iluminação;
b) Até 10.11.2011, figuravam como acionistas da C...: Família D..., com 33,33% do capital social (E... : 15.760 ações representativas de 32,11%; F...: 200 ações representativas de 0,41%; G...: 200 ações representativas de 0,41%; A...: 200 ações representativas de 0,41%), Família H..., com 33,33% do capital social (I...: 15.760 ações representativas de 32,11%; J...: 600 ações representativas de 1,22%;), Família K..., que detinha 33,33% do capital social (L...: 15.760 ações representativas de 32,11%; M...: 300 ações representativas de 0,61%; e N...: 300 ações representativas de 0,61%.)
c) Atualmente, a estrutura acionista da C... é E...: 2.756 ações representativas de 1,62%; e O... 167.244 ações representativas de 98,38%;
d) A P..., S.A (P...) foi constituída em 2004, com o capital social de € 150.000,00, tendo por objeto social a exportação e importação, fabrico e comércio por grosso e a retalho de material elétrico para iluminação sendo que até 24.09.2009, as quotas da P... eram detidas por: E...: 50.000, representativa de 33%; L...: 50.000, 33%; e J...: quota de 50.000, 33% do capital social;
e) Em 24.09.2009, na sequência de um aumento de capital de € 900,00, a P... foi transformada em sociedade anónima, detida pelos acionistas: Família D..., 33,33% do capital social (E...: 10.000 ações representativas de 33,13%; F...: 20 ações, 0,07%; G...: 20 ações, 0,07%; A...: 20 ações, 0,07%. Família H..., 33,33% (I...: 60 ações, 0,20%; J... : 10.000 ações representativas de 33,13%) Família K..., 33,33% (L...: 10.000 ações, 33,13%; M...: 30 ações, 0,10%; N...: 30 ações, 0,10%.);
f) Em 2009, tendo as famílias H... e K... (66,66% do capital social) manifestado intenção de sair da C..., foi feita uma primeira tentativa de colocação desta empresa no mercado e de procura de potenciais compradores, tendo a R... (R...) conduzido uma due diligence preliminar e elaborado um documento de apresentação das empresas a potenciais investidores no âmbito do designado por Projeto ..., tendo um potencial investidor, a S..., manifestado interesse em adquirir a C..., sem concretizar; (Documento 3 e 4);
g) Em 03 de Novembro de 2011 foi constituída a sociedade por quotas denominada O..., Lda, tendo por objeto social a consultoria em projetos de engenharia industrial (elétrica e eletrónica, mecânica de sistemas, geológica e hidráulica);
h) O capital social de € 300.000,00 era representado por quatro quotas, detidas pelo pai e três filhos da Família D..., assim distribuídas: E... (10%), F... (30%); G... (30%) e A... (30%);
i) No período de 2011 a 2015, o volume de negócios declarado pela O... refere-se exclusivamente a "Management Fees" prestados à participada C..., tendo apresentado prejuízo fiscal de € 1.640,86 (2011), € 4741,89 (2012) e € 101.126,83 (2013) e lucro tributável de € 13.209,78 (2014) e € 18.097,33 (2015);
j) Em 2011 a C..., iniciou o contacto com a sociedade italiana T... (“T”) – que opera no mesmo ramo da C... e possui sucursais e participadas em diferentes países, incluindo Portugal – para avaliar se existiria um interesse por parte desta em participar na C..., tendo a T... visto aí a possibilidade de alargar o seu campo de atuação e, em 28.04.2011, apresentado uma proposta de compra não-vinculativa, onde manifestava a intenção de financiar a operação através de um Leveraged Buy Out (LBO) a ser realizado por uma sociedade (U...) a constituir em Portugal, sendo a obtenção de financiamento bancário essencial à concretização da proposta (vd. ponto “(iii) Transaction Structure”, onde se diz “the sourcing of sufficient bank loans from the local Banking system is a key assumption of the present Non Binding Offer”), sendo intenção da T... deter, direta ou indiretamente, uma participação maioritária na U... e, eventualmente, admitir outros co-investidores minoritários; (Documento 5)
k) No âmbito da aquisição e reestruturação pelo Grupo T..., foi acordado – conforme resultava da proposta não vinculativa – que o acionista F... concretizaria um reinvestimento de 20% na nova estrutura da T... Portugal, o qual seria realizado através de uma estrutura societária, a O..., constituída em 2011, com o capital social de € 300.000,00, com o objeto social de consultoria em projetos de engenharia industrial (elétrica e eletrónica, mecânica, de sistemas, geológica e hidráulica), tendo sido pensada, inicialmente, a seguinte estrutura:
l) À data da constituição da O... (em Novembro de 2011), e fruto do evoluir das negociações com a T... e demais famílias desde a receção da proposta não vinculativa (datada de Abril de 2011), as partes optaram por serem os acionistas E... 90.000, 30%) G... (90.000, 30%) e A... (90.000, 30%) daquela entidade, em vez do acionista F... e a T..., conforme tinha sido inicialmente pensado;
m) A frustração do negócio proposto nos termos em que estava montado e no período temporal expectável para a sua conclusão, foi comunicada pela T... em carta dirigida aos acionistas e datada de 29.11.2011; (Documento n.º 6)
n) Paralelamente, foi acordada a alienação do capital da P..., tendo a C... adquirido, em 12.04.2012, 33,33% do capital social da P..., detido por J...; 33,33%, de V..., N... e M..., passando, a 13.04.2012, a C... a deter a P... na totalidade;
o) Em 25.06.2012, foi celebrado entre a T..., a O... e a W..., S.A. um acordo de investimento e de acionistas (Co-investment and shareholder agreement), por via do qual a T... Portugal, cujo capital social era de 400.000€ (quatrocentos mil euros) e detido a 80% pela W... e a 20% pela T... Itália, iria sofrer alterações na sua estrutura, tendo a W... acordado vender à T... Itália a totalidade da sua participação social na T... Portugal, de forma a que esta pudesse adquirir diretamente a C... e, indiretamente, a P..., implicando um aumento de capital, na T... Portugal, pelo que a T... Itália ficaria a deter 51% do capital social da T... Portugal, sendo o restante capital detido em 41% pela O... e em 7% pela W...; (Documento n.º 8)
p) A O..., que detinha 67.89% do capital social da C..., e E... e X..., que detinham os remanescentes 32.11% do capital social da C..., acordam, em 25.06.2012, vender à T... Portugal as participações da C... (cfr. “Agreement for the Sale”), tendo para o pagamento de parte do preço, a T... Itália, que detinha 51% da T... Portugal, concedido a esta um financiamento no valor de € 1.750.000,00, que serviria para a T... Portugal pagar à O... o diferimento do preço das participações da C... se a T... Portugal não conseguisse obter qualquer outra forma de financiamento (“Loan Agreement); (Documentos n.º 8 e 9)
q) Mesmo após todas as negociações e a elaboração de todos os documentos relevantes, o negócio veio a frustrar-se, agora numa fase ainda mais avançada das negociações, o que veio a ser comunicado por carta datada de 01.08.2012 e formalizado através de “Termination Agreement” assinado em Junho de 2013, por a T... ter entendido que as condições 4.2.7 do “Sale Agreement” e 5.2.j do anexo 5.1 ao “Sale Agreement” não estavam verificadas; (Documento n.º 10)
r) Em 11.04.2012, a Família H... transmitiu à O... as participações sociais que detinham na C..., representativas de 33,33% do respetivo capital, pelo valor global de € 6.957.744,40, sendo 15.760 ações pertencentes a I..., e 600 ações pertencentes a J...;
s) Na mesma data, a Família K... transmitiu à O... as participações sociais que detinham na C..., representativas de 33,33% do respetivo capital, pelo valor global de € 6.702.570,40, sendo 15760 ações pertencentes a L..., 300 ações pertencentes a N..., e 300 ações pertencentes a M...;
t) Em 6.06.2012, F..., A... e G... (filhos de E...) transmitiram à O... 600 ações de que eram titulares em partes iguais na C..., representativas de 1,22% do respetivo capital social, pelo preço de € 255.174,00;
u) Em 23.12.2013, E... transmitiu à O..., 14.963 das ações de que era titular na C..., representativas de 30,49% do respetivo capital social, pelo preço de € 6.363.614,27;
v) A O... reconheceu a dívida aos ex-acionistas da pertencentes à Família H..., no montante de € 6.957.744,40, bem como a dívida aos ex-acionistas pertencentes à Família K..., no mesmo montante, que foram relevadas contabilisticamente no passivo;
w) A O... reconheceu a dívida aos ex-acionistas F..., A... e G..., no montante global de € 255.174,00, bem como a dívida ao sócio E..., no montante de € 6.363.614,27, que foram relevadas contabilisticamente no passivo;
x) Em 11.04.2012, a C... vendeu à sociedade Y..., pelo preço de € 6.291.490,00, um prédio urbano sito na freguesia de ..., município de Águeda;
y) Na mesma data, a sociedade Y... deu de arrendamento o imóvel à C...;
z) Em 15.04.2012, I... cedeu o crédito que detinha sobre a O..., proveniente da alienação de acções, no montante de € 6.291.490,00, à sociedade Y..., e no dia imediato a sociedade Y... cedeu esse crédito à C...;
aa) Por efeito das operações mencionadas nas antecedentes alíneas r), s) e t), o crédito que I... detinha sobre a O..., no montante de € 6.291.490,00, passou para a titularidade da C...;
bb) Em 11.04.2012, a C... vendeu a L... três prédios urbanos sitos nas freguesias de ..., município de Águeda, Carnaxide, município de Oeiras, e Senhora da Hora, município de Matosinhos, pelo preço global de € 2.500.000,00;
cc) Na mesma data, L... deu de arrendamento os mesmos imóveis à C...;
dd) Em 16.04.2012, a O... cedeu a L... o crédito, no montante de € 616.678,00, que detinha sobre a C...;
ee) Na mesma data, a C... cedeu à O... o crédito, no montante de € 1.520.322,00, que detinha sobre L..., proveniente da alienação dos imóveis mencionados na antecedente alínea v);
ff) Por efeito das operações mencionadas nas antecedentes alíneas v),w), x) e y), o crédito que L... detinha sobre a O..., no montante de € 2.137.000,00, passou para a titularidade da C...;
gg) Em 27.12.2013, a C... distribuiu dividendos à acionista O..., no montante de € 10.091.147,00 que se destinaram, em parte, a compensar a dívida constituída pela C... por efeito da cessão de créditos efetuadas por I... e L..., nos montantes de € 6.291.490,00 e € 1.520.322,00, respetivamente;
hh) Os requerentes foram objeto de uma inspeção tributária ao abrigo das Ordens de Serviço n.º OI2017... e OI2017..., de âmbito parcial de IRS e que incidiu sobre os períodos de tributação de 2013 e 2014, tendo a AT apurado estar-se diante de negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos por meios artificiosos e com abuso de formas jurídicas, à eliminação de impostos que seriam devidos sem a utilização desses meios, que, em seu entender, constituem fundamentos para proceder à aplicação da norma legal anti abuso prevista no n.º 2 do artigo 38.º da LGT (CGAA), tendo os mesmo sido notificados, através do Ofício n.º..., de 28.08.2017, do projeto de decisão de aplicação da CGAA, e exercido o seu direito de resposta em audição prévia e, posteriormente, novamente notificados, através do Ofício n.º ..., de 19.12.2017, do RIT, no qual a AT concluiu estarem reunidos os pressupostos para a aplicação da CGAA constante do artigo 38.º, n.º 2, da LGT.
8.1. O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária com a resposta.
1.2. Argumentos das partes
9. Sobre os factos acima referidos, os Requerentes alegam:
a) A AT, no RIT, analisa as operações apenas a partir do momento em que as participações na C... são adquiridas pela O...;
b) Para compreender os motivos subjacentes à criação da O..., importa ter uma visão global das operações em causa, e ter presente que (i) os acionistas maioritários – Família K... e Família H... – desde 2009 vinham manifestando a vontade de sair da C..., alienando as suas participações; (ii) para concretizar esta operação existia a necessidade de obter financiamento por estarem em causa participações sociais no valor de quase 14 milhões de euros;
c) Decorre da proposta da T..., de 28.04.2011, de aquisição da C... que a obtenção de financiamento bancário é essencial à concretização da proposta (vd. ponto “(iii) Transaction Structure”, onde se diz “the sourcing of sufficient bank loans from the local Banking system is a key assumption of the present Non Binding Offer”), denotando a necessidade de obter financiamento para custear uma operação deste montante, sendo a constituição da O... (enquanto U...) uma condição imposta pela T... para aquisição da C...;
d) A O... surge num contexto em que os acionistas maioritários (Famílias H... e K...) manifestavam, desde 2009, intenção de vender as participações detidas na C..., em que aparece um comprador interessado em adquirir as mesmas, e em que este define os termos do negócio e da estrutura, sendo muito anterior às operações descritas pela AT, encontrando-se perfeitamente sustentada e justificada em face da evolução das negociações e do processo de aquisição em curso;
e) Todos estes atos têm de ser analisados no contexto das negociações que entretanto decorriam com a T..., a qual mantinha o interesse em adquirir a C... e a P... .
f) Com o escalar, em 2011, da crise financeira Mundial e da Zona Euro, incluindo com o pedido de assistência financeira que Portugal dirigiu ao FMI, Comissão Europeia e BCE, as instituições financeiras envolvidas nesta operação, na sua maioria, sedeadas em Itália, não aprovaram a linha de crédito solicitada pela T..., frustrando de maneira imprevista o negócio nos termos em que estava montado;
g) Neste contexto de marcada contração da economia portuguesa e assinaláveis dificuldades na obtenção pelas empresas de crédito bancário, o segundo negócio com a T... não chegou a concretizar-se, sendo útil para ilustrar que o facto de, no final do dia, ter sido a O... a adquirir as sociedades operacionais não sucedeu por falta de tentativa de alienação do capital social da C... a outros investidores, inclusivamente depois da alienação das ações das três famílias à O... .
h) O acordo de 25.06.2012, entre a T..., a O... e a W... S.A. evidencia que estas operações foram realizadas de modo a que se conseguisse obter o financiamento necessário à compra da C... e da P... pela T... Portugal;
i) A não celebração definitiva do negócio com a T..., após mais de 1 ano de negociações, confrontou a estrutura acionista da O... com: (i) a desistência definitiva do negócio por parte da T... tinha desistido definitivamente do negócio, nunca tendo existido execução dos acordos assinados; (ii) a existência da O...; (iii) a alienação à O... das participações na C... detidas pela Famílias H... e K..., bem como as detidas por F..., G... e A...; (iv) a O... já se tinha tornado devedora do montante do preço acordado, visto que as Famílias K... e H... não queriam manter a participação na C..., tendo o pagamento sido feito por cessão e compensação de créditos, figuras que nada têm de anómalo;
j) A questão da alienação do capital social da C... pôs-se, pelo menos, três anos antes das operações de alienação das participações sociais ocorrida em 2012, o que demonstra que os acionistas efetiva e ativamente procuraram alternativas antes de alienarem as ações à O..., tendo optado pela alienação a esta como ultima ratio da reorganização societária da C...;
k) O período em que ocorreu a alienação das participações sociais da C... à O..., o ano de 2012, foi marcado por circunstâncias económicas que impunham restrições significativas à obtenção de financiamento, denotando-se uma significativa contração do crédito, cenário que já se iniciara antes e que conduzira a que, em 06.04.2011, fosse anunciado o pedido de assistência financeira de Portugal ao FMI, Comissão Europeia e BCE;
l) A O..., longe de ser um mero veículo desprovido de substância económica, destinava-se a permitir o financiamento conjunto da aquisição C..., o que, não obstante ter sido uma condição imposta pela T..., perante todos os acontecimentos descritos, não se veio a verificar, em momento algum tendo estado na base da sua criação qualquer intuito abusivo de retirada de dividendos ou de quaisquer outros montantes;
m) A existir alguma vantagem esta traduz-se apenas na aquisição de controlo, por parte da Família D..., da sociedade O... (vantagem esta que não é fiscal) e não na distribuição de dividendos visto que esta só se concretizará, eventualmente, no futuro, se e quando os Requerentes efetivamente receberem lucros da sociedade ou alienarem as suas participações sendo que até lá existe uma mera expectativa – que a lei não sujeita a tributação – ou um acréscimo patrimonial que a lei também não considerou relevante para efeitos de tributação;
n) A O... não transferiu os créditos detidos sobre si por I... e L... para a C..., como se vê no caso do crédito detido por I... sobre a O... decorrente da alienação das ações detidas na C..., visto que este crédito foi, em parte (no valor de € 6.291.490,00), cedido por I... e Z... à sociedade Y..., que depois o cedeu à C..., passando esta a ser credora da O...;
o) A utilização da O... como veículo permitiu, aquando daquelas compensações de créditos, que as Famílias H... e K... vissem os seus créditos compensados com a aquisição à C... de quatro prédios urbanos, os quais foram depois arrendados à C..., gerando rendas pagas a essas mesmas famílias, no caso da sociedade Y..., fixada no valor de € 25.000/mês e no caso de L..., no valor de € 7.917/mês;
p) A O... foi utilizada como forma de financiamento da operação de aquisição das participações detidas na C... pelas Famílias H... e K..., o que de resto foi sempre o cenário colocado (utilização de uma sociedade veículo) pela T... enquanto decorreram as negociações para aquisição das mesmas participações sociais;
q) Não se está perante uma ausência de tributação, porquanto os resultados foram tributados na esfera da C..., mas perante uma ausência de dupla tributação, sendo que a eliminação da dupla tributação não é um benefício fiscal, mas antes uma medida de desagravamento estrutural que visa evitar que um mesmo rendimento seja tributado sucessivamente, mais do que uma vez, ainda que na esfera de sujeitos passivos diferentes;
r) O objetivo económico das compensações de créditos que a AT identifica como os atos que teriam na distribuição de dividendos pela C... à Família D... consistiu no pagamento do preço das ações alienadas pelas Famílias H... e K...;
s) As Famílias que em montante superior foram pagas do preço que a AT pretende requalificar como dividendos, foram justamente aquelas que a AT pretende excluir da aplicação da cláusula geral antiabuso: as famílias H... e K...;
t) Se a O... tivesse sido utilizada com o único propósito de se interpor entre e C... e a Família D... (deixando as outras duas de fora deste intuito abusivo) de forma a evitar a tributação de dividendos na esfera das pessoas singulares detentoras da O... e, por isso, da C..., sempre seria expectável que o valor efetivamente recebido por essa família fosse, se não superior, ao menos idêntico ao das restantes famílias que a AT exclui do âmbito de aplicação da CGAA;
u) A vantagem, no sentido de valores efetivamente recebidos pela Família D..., ascende apenas ao valor de € 444.774,00 – e não ao valor total devido pela alienação das ações da C..., no montante de € 6.618.788,27 –, pelo que ainda que pudesse aplicar-se a CGAA, apenas aquele valor se traduziria em qualquer tipo de recebimento a título de preço que deveria ser tributado a título de rendimentos de capitais nos termos do artigo 5.º, n.º 2, alínea h) do Código do IRS, sendo que no caso das famílias H... e K..., esse valor seria superior, ascendendo, respetivamente, a € 6.957.744,40 e € 5.065.744,40;
v) O destinatário da aplicação da CGAA não pode deixar de ser quem usufruiu das vantagens fiscais em causa (as quais, nos referidos processos, se verificavam na esfera dos acionistas e não do substituto tributário);
w) Não existiu qualquer aumento de capacidade contributiva de qualquer dos membros da Família D..., porquanto esta recebeu o preço das ações que alienou e que antes detinha na C..., numa operação legal, não ocorrendo qualquer facto tributário que possa constituir pressuposto de aplicação da CGAA, instituto de natureza excecional;
x) Não se verificam os elementos (i.e., meio, resultado, intelectual, normativo e sancionatório) que constituem pressuposto de aplicação da CGAA, pois a) nenhum dos negócios, considerados individualmente, ou a sua totalidade, considerada sequencialmente, reveste carácter anómalo, b) o preço recebido pela família D... não é dividendos e a eliminação da dupla tributação não traduz uma vantagem fiscal, c) a operação obedece a um intuito não fiscal inequívoco, de cumprimento das obrigações assumidas, d) a constituição da O..., a aquisição de participações na C... e o posterior pagamento do preço acordado às Famílias H... e K... mediante compensação de créditos existentes não visaram a elisão fiscal, e e) não foram praticados atos passíveis de sanção jurídico-fiscal;
y) A AT não fundamenta a afirmação de ausência de substância económica das operações em causa, limitando-se a afirmá-la sem revelar – incluindo por altura do direito de audição em sede de reclamação graciosa – o itinerário cognoscitivo e valorativo percorrido para efetivamente poder concluir como conclui, violando assim o dever de fundamentação dos artigos 77.º da LGT e 268.º, n.º 3, da CRP.
10. A AT responde, sustentando os atos impugnados com os seguintes contra-argumentos:
a) Existe um complexo esquema, pré-planeado, do tipo step transaction, com a interposição da O... entre a C... e os seus acionistas membros da Família D..., que culmina com a regularização dos créditos decorrentes da aquisição das ações da C..., detidas pelas Famílias H... e K..., à O..., com o intuito de evitar os impostos a “suportar” pelos acionistas membros da Família D..., decorrentes da distribuição de dividendos pela C...;
b) O esquema elisivo assenta nos seguintes factos: (i) Constituição, em 2011, da sociedade O..., detida, na íntegra, pela Família D...; (ii) alienação, em 11.04.2012, pelas Famílias H... e K..., das participações que detinham na C... à O..., correspondentes a 66,66%, pelo preço de € 13.915.488,80; (iii) alienação, em 06.06.2012, pela Família D..., do capital que detinha na C... à O..., correspondente a 1,22%, pelo preço de € 255.174,00; (iv) alienação, em 23.12.2013, pelo acionista E... de 30,49% do capital da C... à O..., pelo preço de € 6.363.614,27, mantendo participações correspondentes a 1,62%; (v) reconhecimento pela O..., pelas operações descritas nos pontos (ii) a (iv), de uma dívida aos ex-acionistas da C...– Famílias H... e K... – pelos montantes referidos acima; (vi) Liquidação de parte desta dívida, até 31.12.2013, através da cessão de créditos pela O... à C...; (vii) distribuição, em 27.12.2013, pela C... de dividendos à sua acionista – O... – no montante de € 10.091.147,00, tendo estes beneficiado da eliminação da dupla tributação do artigo 51.º do IRC, e sido utilizados para compensar a dívida constituída junto da C... por força da cessão de créditos efetuada por I... (€ 6.291.490,00) e L... (€ 1.520.322,00) à. O..., que totaliza € 7.811.812,00, decorrente da alienação de 66,66% da própria C..., compensar a cessão de créditos de clientes no valor de € 79.344,58 e regularizar a dívida contraída junto da participada, no montante de € 2.199.990,42;
c) Deste modo, a Família D... adquire a titularidade da totalidade do capital social da C..., pagando aos restantes ex-acionistas da C... (Famílias H... e K...) com recurso a dividendos gerados pela C..., designadamente: a) um dividendo intercalar de € 209,00 por ação, deliberado pagar em 27.12.2013, no valor de € 10.091.147,00; b). um dividendo intercalar de € 15,25 por ação, deliberado pagar em 11.03.2014, que ascendeu a € 736.315,75; c). um dividendo intercalar de € 4,10 por ação, deliberado pagar em 07.05.2014, no valor de € 197.960,30;
d) Entre todos os indivíduos e entidades em causa existem relações especiais, relevantes para efeitos do artigo 63.º, n.º4, alíneas a) a d) do CIRC;
e) Verifica-se um conjunto de atos e negócios sequenciais, lógicos e planeados, organizados artificiosamente de modo unitário (encadeados), com vista a atingir um objetivo fiscal, a saber, o recebimento de dividendos não tributados pela Família D..., em 2013 e 2014, através da sociedade veículo O... (beneficiando da eliminação da DTE a que se refere o artigo 51.º do CIRC) para, com eles, pagar as dívidas entretanto geradas não O... decorrentes da aquisição de 66,66% das ações da C... às Famílias H... e K..., distribuindo dividendos sem os sujeitar a tributação à taxa liberatória prevista na alínea c) do n.º 1 do art.º 71 do CIRS, por se tratar efetivamente de dividendos pagos a pessoas singulares.
f) O objetivo da retirada de lucros da sociedade C... poderia e deveria ter sido atingido com a simples distribuição de dividendos aos acionistas Família D... (pessoas singulares) e não à sociedade veículo, a O... (pessoa coletiva), desprovida de substância económica, que serviu apenas para a aquisição das participações sociais da sociedade C... pela Família D... (pessoas singulares), sem que tenham despendido qualquer montante, porquanto a C..., quando distribui os dividendos à O... (que servem para pagar as referidas partes sociais) não retém qualquer imposto, nos termos do artigo 97.º do CIRC;
g) Para atingir o seu objetivo sem despender qualquer verba, a Família D..., através da O..., socorreu-se dos seguintes subterfúgios: a) valor regularizado através da cessão de créditos à C...; b) cessão de créditos da O... sobre a C...a L..., relativos à venda das ações da P...; c) valor regularizado através da cessão de créditos de clientes; d) valor pago pela O... através dos bancos AA... e BB..., verbas que têm como origem fundos da C..., e) fazer crer que parte da dívida é paga com recurso a suprimentos de E... e financiamento da T..., quando, seguindo o rasto do dinheiro, naquele lapso temporal, todo ele é oriundo de uma única fonte, a C...;
h) Quando a sociedade C... distribui dividendos à O... não há qualquer encargo tributário face ao disposto no artigo 51.º do CIRC, sendo que esse rendimento na O... nunca chega a dividendo (recorde-se que a O... nunca distribuiu resultados aos seus sócios), e como tal, nunca há tributação em sede de IRS na esfera dos acionistas, na medida em que os mesmos valores serviram, para mera regularização da quantia em dívida por parte da Família D... perante os antigos acionistas (Famílias H... e K...) que, relembre-se, serviu tão somente o propósito da Família D... ficar com a totalidade do capital da. C..., sem despender ela própria (Família D...) qualquer montante;
i) Sem a utilização destes meios – válidos e lícitos, mas desprovidos de qualquer substância económica – os contribuintes beneficiários (membros da Família D...) não evitariam a tributação, resultante da transformação dos dividendos não tributados em dividendos tributados, ficando sujeitos a imposto, nos termos gerais, como rendimentos da categoria E de IRS;
j) O negócio equivalente seria a distribuição de dividendos aos membros da família D...– liquidando o respetivo imposto – o qual ocorreu quando a C... distribui os lucros à O..., entidade juridicamente distinta daquela família, mas economicamente e de facto controlada por ela, na medida em que todos os restantes atos e negócios jurídicos praticados tiveram como fim preponderante a obtenção das vantagens fiscais descritas, e foram praticados com abuso das formas jurídicas;
k) É de considerar ineficaz, no âmbito tributário, a classificação daqueles dividendos como rendimentos não tributados nos termos do artigo 51.º do CIRC, e enquadrá-los como distribuição de dividendos a pessoas singulares, tributados nos termos da alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS, por se considerar que os mesmos foram distribuídos às pessoas singulares (Família D...) para com eles pagar o valor das ações adquiridas às Famílias H... e K... .
II - Fundamentação
2.1. Fixação da matéria de facto
O Tribunal não tem que se pronunciar sobre todos os detalhes da matéria de facto que foi alegada pelas partes, cabendo-lhe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada (cfr. art. 123.º, CPPT, e art. 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi art. 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
12. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções para o objeto do litígio no direito aplicável (vd. art. 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
13. Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do disposto no art. 110.º, n.º 7, do CPPT, e as provas apresentadas, consideram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
2.2. Matéria de direito
2.2.1. Cláusula geral anti-abuso
14. A questão decidenda prende-se com a aplicação, pela AT, da CGAA prevista no artigo 38.º, n.º 2, da LGT, que determina a tributação de acordo com as normas aplicáveis se não tivessem sido utilizados meios artificiosos, sustentando que a desconsideração fiscal dos negócios realizados tem como necessária consequência a reposição do regime legal que seria aplicável face à prática jurídica comum. No caso concreto, está em causa a liquidação, aos Requerentes, de um imposto alegadamente devido por se estar diante de negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos por meios artificiosos e com abuso de formas jurídicas, à eliminação de impostos que seriam devidos sem a utilização desses meios.
15. Importa atentar, com a necessária brevidade, para o regime da CGAA do artigo 38.º, n.º 2, da LGT. A redação em vigor à data dos factos , dispunha que “[S]ão ineficazes no âmbito tributário os atos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efetuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas.” Trata-se de uma norma jurídica que tem como objetivo primordial evitar aproveitamentos abusivos da interpretação literal das normas jurídicas, nomeadamente de natureza fiscal, geradoras de resultados elisivos não queridos pelo legislador. Pela suas próprias natureza e função, a CGAA apela à interpretação teleológica das normas jurídicas relevantes, em detrimento do formalismo jurídico, devendo a aplicação do artigo 38.º, n.º 2, da LGT privilegiar a solução que melhor atinja a razão fundamental da norma e que é a remoção das vantagens fiscais proporcionadas pelo uso abusivo da construção jurídica em causa.
16. Segundo assinala SÉRGIO VASQUES, a CGAA consagrada na LGT é composta de três elementos essenciais. “Em primeiro lugar exige-se a prática de ato ou negócio artificioso ou fraudulento e que exprima abuso das formas jurídicas, no sentido de estarmos perante esquemas negociais que ocultem os seus verdadeiros propósitos e aos quais seja dada uma utilização manifestamente anómala face à prática jurídica comum. Em segundo lugar, exige-se o objetivo único ou principal de através desses esquemas negociais obter uma vantagem fiscal, qualquer que seja a sua natureza, com a marginalização evidente de objetivos económicos reais. Em terceiro lugar, exige-se que da lei resulte com clareza a intenção de tributar os bens em causa, nos mesmos termos em que estes seriam tributados se tivesse o contribuinte recorrido às formas jurídicas e práticas negociais mais comuns” (Manual de Direito Fiscal, Coimbra, 2018, pág. 369).
17. O sentido geral da norma é, nestes termos, o de permitir a desqualificação para efeitos fiscais de um qualquer ato ou negócio jurídico praticado pelo contribuinte com o único, ou principal, objetivo de obtenção de uma vantagem fiscal, que possa consubstanciar uma fraude à lei fiscal. A CGAA pode aplicar-se a atos unilaterais ou plurilaterais, incluindo operações de rotina, como sejam restruturações de empresas, alienações de propriedade ou operações de financiamento. Ponto é que a obtenção de uma vantagem fiscal seja o único ou o principal objetivo prosseguido pelo contribuinte e que se esteja, objetivamente, perante meios artificiosos e indiciadores de abuso de formas jurídicas, mesmo que não fraudulentos. O efeito jurídico que resulta do funcionamento da CGAA é o de considerar fiscalmente ineficazes os atos ou negócios jurídicos praticados e tratá-los, para esse efeito, de acordo com o padrão normal do comércio jurídico para obter o mesmo resultado económico, determinando-se desse modo a obrigação tributária.
18. No caso concreto, a AT partiu da existência de uma sequência de negócios jurídicos nos termos, valores e datas acima descritos, que considerou na sua totalidade – i.e. a) a constituição da O... detida pela família D..., b) a alienação pelas Famílias H... e K..., das participações que detinham na C... à O..., c) a alienação pela Família D..., do capital da C... à O..., d) a alienação por E... da sua parte do capital da C... à O..., e) o reconhecimento pela O... de uma dívida aos ex-acionistas da C...– Famílias H... e K... e f) a liquidação de parte desta dívida através da cessão de créditos pela O... à C...; e g) distribuição pela C... de dividendos à O... para compensar a dívida constituída junto da C... por força da cessão de créditos efetuada por I... e L... à O..., compensar a cessão de créditos de clientes e regularizar a dívida contraída junto da participada –, tendo considerado que essa sequência de negócios jurídicos, em que os Requerentes participavam através da aquisição, detenção e alienação de participações sociais, configurava a utilização de meios artificiosos e ao abuso das formas jurídicas, sendo principalmente, ainda que não exclusivamente, ao diferimento temporal de impostos. A existência de uma sequência de negócios jurídicos fiscalmente relevante é inquestionável.
19. O carácter artificioso e abusivo das formas jurídicas utilizado na sequência de negócios jurídicos em causa deduz-se do defeito de habitualidade das transações em causa, quando analisadas objetivamente à luz do critério do contribuinte razoável, ordeiro e consciencioso e tendo como pano de fundo a comparação contrafáctica com transações alternativas consideradas normais, visto que o objetivo da retirada de lucros da sociedade C... poderia e deveria ter sido atingido, em condições normais, com a simples distribuição de dividendos aos acionistas Família D..., onde se incluem os Requerentes, e não à sociedade veículo, a O... (pessoa coletiva), desprovida de substância económica, que serviu apenas para a aquisição das participações sociais da sociedade C... pela Família D... (pessoas singulares), sem que tenham despendido qualquer montante.
20. Por outras palavras, além da inexistência de substância económica da O..., verifica-se a utilização de meios pouco usuais, por comparação – externa e hipotética – com os que seriam habitualmente utilizados por entidades não relacionadas transacionando entre si, de boa-fé, à distância de um braço (arm’s lengh principle), sendo manifesta a existência de pelo menos dois meios mais diretos, simples e normais para alcançar o mesmo resultado, a saber, a distribuição de dividendos da C... à família D... ou a aquisição por esta das participações sociais das famílias H... e K... .
21. Uma sequência de transações pode, evidentemente, servir diferentes finalidades fiscais e não fiscais. Não se exclui, portanto, a existência de um objetivo económico e comercial, entre 2009 e 2011, na tentativa de alienação das participações na C... das famílias H... e K..., na procura de um investidor externo e na criação da O... . Não obstante, a existência de uma finalidade principal (principal purpose test) de “redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios” não exclui a presença de outras finalidades, implicando tão somente a análise do espaço que as mesmas razoavelmente ocupam no contexto global da sequência das transações societárias ocorridas e das formas utilizadas. Do mesmo modo, a aplicação do critério da finalidade principal não supõe necessariamente uma análise subjetiva das finalidades e motivações subjetivas do contribuinte, devendo antes inferir-se, razoavelmente, a partir de uma análise objetiva da totalidade dos factos e circunstâncias relevantes. Não é necessário encontrar provas conclusivas acerca da intenção subjetiva das pessoas envolvidas na sequência de transações em causa, bastando ser razoável concluir, após uma análise objetiva de todos os fatos e circunstâncias relevantes, que um dos principais objetivos da sequência foi a obtenção de uma vantagem fiscal.
22. A análise dos critérios de razoabilidade e finalidade principal subjacentes à CGAA do artigo 38.º. n.º 2, da LGT, é, pois, uma operação essencialmente objetiva. A esta luz, são especialmente significativos os factos de que a C..., ao distribuir dividendos à O... (que servem para pagar as referidas participações sociais), não reteve qualquer imposto, nos termos do artigo 97.º do CIRC, bem como de a O... nunca ter exercido qualquer atividade económica genuína, de a mesma ter contraído, pouco tempo depois da sua constituição, uma dívida junto das famílias H... e K... de cerca de catorze milhões de euros e de nunca ter distribuído resultados aos seus sócios, não havendo assim tributação em sede de IRS na esfera dos acionistas por rendimentos da categoria E, visto aqueles dividendos, distribuídos pela C... . terem servido para mera regularização da quantia em dívida por parte da Família D... perante os antigos acionistas (Famílias H... e K...).
23. Nesta montagem negocial societária, a entidade que não tem atividade e que é tida como empresa veículo é a O..., a quem foram alienadas as participações sociais que os acionistas detinham na C... . Esta última é que favorece a distribuição de dividendos, por efeito da sua atividade operacional, e o que sucede é que esses pagamentos são efetuados a título de reembolso por virtude do reconhecimento da dívida resultante da aquisição de participações. A circunstância de a C... produzir lucros não descaracteriza o esquema abusivo, e é antes um dos seus fatores, na medida em que permite a distribuição de dividendos que não serão tidos como rendimentos de capital. Sem a utilização destes meios – válidos e lícitos, mas desprovidos de qualquer substância económica – os contribuintes beneficiários (membros da Família D...) não evitariam a tributação, resultante da transformação dos dividendos não tributados em dividendos tributados, ficando sujeitos a imposto. Dada a íntima relação que existe entre a O... e a família D..., as mesmas podem, à luz da CGAA e do inerente princípio da primazia da substância sobre a forma, ser tratadas como se fossem uma só entidade para efeitos substantivos e processuais, aspeto fundamental para validar a notificação da liquidação .
24. Resulta de todas as precedentes considerações, que a CGAA se destina a eliminar as vantagens fiscais ilegítimas obtidas na esfera jurídica pelo contribuinte através de atos ou negócios abusivos praticados com o intuito de obviar ao pagamento do imposto que seria devido caso se tivesse recorrido às formas negociais comuns. No caso vertente, a vantagem fiscal ilícita que justificou a sua aplicação traduziu-se na evitação de pagamento de imposto, por parte dos Requerentes, por rendimentos da Categoria E relativamente à distribuição de lucros da C..., que, normalmente, seria objeto de tributação como rendimentos de capitais, nos termos da alínea h) do n.º 2 artigo 5.º do Código do IRS, e que foi alcançada através de um conjunto sucessivo de operações societárias que se encontram assim descritas. Assistiu-se, assim, a uma série de transações por passos (“step transaction”) com um efeito consequencial elisivo.
25. Não pode perder-se de vista o sentido geral da Diretiva Antielisião Fiscal (UE) 2016/1164 do Conselho, de 12 de julho de 2016, que, no artigo 6.º, n.º 2, esclarece que uma montagem (ou série de montagens) será considerada como não genuína na medida em que não coloque em prática um propósito comercial válido baseado em razões que reflitam a realidade económica. Não sem antes dispor, no n.º 1, que “os Estados-Membros devem ignorar uma montagem ou série de montagens que, tendo sido posta em prática com a finalidade principal ou uma das finalidades principais de obter uma vantagem fiscal que frustre o objeto ou a finalidade do direito fiscal aplicável” não seja genuína tendo em conta todos os factos e circunstâncias relevantes”. Este aspeto reveste-se de grande relevo, no âmbito do direito da União Europeia, onde há muito se entende, no quadro do dever de cooperação leal, que mesmo o direito nacional anterior a uma diretiva da União Europeia deve ser interpretado e aplicado, pelos juízes nacionais, em conformidade com teor literal e as finalidades da mesma .
26. No caso, não encontra, o presente tribunal, um objetivo suficientemente definido e justificado, do ponto de vista financeiro, na constituição de uma nova sociedade que apenas se destina a titular a dívida da alienação de participações sociais que os acionistas detinham numa outra empresa . Pelo contrário, observa-se a existência de um desvio significativo relativamente ao padrão das transações habituais. Subsistem, por conseguinte, factos indiciários suficientes para se considerar, razoável e objetivamente, que o presente conjunto articulado e sequencial de operações societárias teve como principal finalidade, ainda que não necessariamente a única, obstar à tributação em sede de IRS dos rendimentos de capitais, havendo fundamento bastante para a declaração de ineficácia dos negócios jurídicos em aplicação da CGAA a que se refere o artigo 38.º, n.º 2, da LGT.
2.2.2. Juros indemnizatórios
27. Sendo de julgar improcedente o pedido principal de declaração de ilegalidade do ato tributário de retenção na fonte e da decisão de indeferimento do recurso hierárquico, fica necessariamente prejudicado o pedido de pagamento de juros indemnizatórios.
III – Decisão
Termos em que se decide:
a) Julgar improcedente o pedido arbitral e por não provado, e, consequentemente, absolver a Requerida:
b) Julgar prejudicado o pedido de pagamento de juros indemnizatórios.
IV - Valor da causa
Os Requerentes indicaram como valor da causa o montante de € 974.887,83, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa
V - Custas
Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 13.464,00, que fica a cargo da Requerente.
Notifique-se
Lisboa, 23 de dezembro de 2020
O Presidente do Tribunal Arbitral
Carlos Fernandes Cadilha
A Árbitra vogal
Cláudia Rodrigues
O Árbitro vogal
Jónatas Machado