Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 155/2013-T
Data da decisão: 2014-01-27  IRS  
Valor do pedido: € 256.208,78
Tema: IRS – Tributação de mais-valias na alienação onerosa de partições sociais em micro e pequenas empresas – artigo 43.º do CIRS
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Processo nº 155/2013 - T

 

Os árbitros Dr. José Poças Falcão (árbitro-presidente), Professor Doutor Jorge Bacelar Gouveia e Dr. Amândio Amadeu Fernandes Silva, designados pelo presidente do Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem este Tribunal Arbitral, constituído em 3-9-2013, acordam no seguinte:

 

I - RELATÓRIO

A e B, (adiante designados Requerentes), contribuintes n.ºs ... e ..., com residência fiscal na …, requereram, em 4 de julho de 2013, a constituição de tribunal arbitral, nos termos do disposto na al. a) do n.º 1 do artigo 2.º e alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (adiante, Regime Jurídico da Arbitragem Tributária ou RJAT), tendo em vista:

(i)                 A anulação parcial da liquidação do IRS n.º …, relativa ao ano de 2010 [€240.916,92] e respetiva liquidação de juros compensatórios n.º … [€15.291,86], na parte referente a 50% da mais-valia obtida com a alienação onerosa da C;

(ii)               Consequente reembolso do IRS resultante da anulação parcial; e

(iii)             Pagamento de juros indemnizatórios.

 

                O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e notificado à Autoridade Tributária (adiante Requerida).

 

                No pedido, os Requerentes optaram por não designar árbitro.

               

                O tribunal encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objecto do processo.

 

Fundamentação do pedido

Defendem e/ou concluem em síntese os requerentes:

1.       Alienaram, no ano de 2010, ações da sociedade C, com sede em Cabo Verde, pelo valor de € 2.992.892,00, que haviam adquirido, em 2009, pelo preço de € 581.432,00.

2.      Desta alienação, resultou uma mais-valia de € 2.411.460,00.

3.      Na declaração de IRS, os Requerentes inscreveram, para efeitos de tributação, o valor de € 1.205.730,00, correspondente a 50% da mais-valia, por aplicação do disposto no n.º 3 do artigo 43.º do CIRS.

4.      Estão preenchidos os requisitos do artigo 2.º do Anexo ao Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de novembro, nomeadamente:

                                   (i) a empresa não teve empregados;

                                   (ii) a empresa não teve volume de negócios;

(iv)    Possuía um total de balanço anual de € 5.157.140,00;

(v)      Não estava cotada em mercado regulamentado.

5.      Assim, por se tratar de uma pequena empresa, a mais-valia obtida é tributada em apenas 50% do seu valor.

6.      A desconsideração desta exclusão parcial de tributação pela Autoridade Tributária e Aduaneira fundamenta-se essencialmente no facto de a sede da empresa ser em Cabo-Verde.

7.      No entanto, consideram os Requerentes, não se encontra na lei - quer no seu espírito quer na sua letra - qualquer limitação à sua aplicação em razão da residência da sociedade.

8.      Quanto ao espírito da lei, a atual redação do n.º 3 do artigo 43.º foi introduzida pela Lei n.º 15/2010, de 26 de julho, que revogou a isenção das mais-valias relativas à alienação de ações detidas pelo seu titular por mais de 12 meses e criou, além do regime em análise, um regime de isenção das mais-valias para pequenos investidores previsto no artigo 72.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (entretanto revogado pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro).

9.      O legislador ao revogar uma isenção tradicional para as mais-valias de ações e obrigações, quis paralelamente estabelecer medidas que desagravassem a tributação de pequenos ganhos bolsistas e também de ganhos que derivem da venda de partes sociais em empresas de pequena dimensão.

10.   Nessa medida, tanto é indiferente para a isenção prevista no EBF a sede das empresas a que as partes sociais ou as obrigações respeitam, como indiferente é a sede da PME no caso do desagravamento previsto no artigo 43.º n.º 3.

11.    Dito de outro modo, o regime beneficiado não se dirige às empresas mas sim ao investidor ou sócio.

12.   Acrescenta-se também que um regime que se dirigisse exclusivamente à venda de participações sociais em empresas nacionais violaria o princípio da liberdade de estabelecimento previsto no Tratado da União Europeia, o que faz presumir que não houve nem poderia haver qualquer limitação em razão da residência fiscal da empresa.

13.   A remissão para o anexo ao Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de novembro, é também revelador de que a intenção do legislador foi no sentido de não limitar o regime às PME nacionais: não se remete para a certificação a conceder pelo IAPMEI mas apenas para os conceitos de micro e pequena empresa previstos no respectivo Anexo.

14.   Em conclusão: não havendo qualquer limitação legal à aplicação da exclusão prevista no n.º 3 do artigo 43.º, deve a liquidação adicional objecto do presente processo ser anulada, sendo ainda a AT condenada no pagamento de juros indemnizatórios.

 

Síntese da resposta e conclusões da requerida.

 

15.   Como questão prévia, suscitou o incidente do valor atribuído à causa [arts. 4º a 6º da resposta];

16.   Quanto ao mérito, trata-se de saber se a redução da tributação das mais-valias previstas no n.º 3 do artigo 43.º do CIRS para as micro e pequenas empresas pode beneficiar empresas sediadas em Cabo-Verde.

17.   No entender da AT, tal possibilidade constitui uma errónea interpretação das normas legais.

18.   Em primeiro lugar, o Estado Português não tem jurisdição sobre o território de Cabo Verde, pelo que não pode ser a legislação nacional a definir o conceito de micro e de pequenas empresas localizadas fora dos limites da sua jurisdição, e como tal, sujeitos à soberania de outro Estado.

19.   Aliás, a legislação cabo-verdiana estabelece, no Decreto-Lei n.º 40/90, de 6 de junho, o seu conceito de PME: “todas aquelas que reúnem as seguintes características: possuir mais de 5 trabalhadores e menos do que 50 trabalhando de forma permanente; as receitas anuais não ultrapassem duzentos milhões de escudos; o seu capital social seja detido em mais de 75% por investidores de nacionalidade Cabo-verdiana; não detenha participações financeiras noutras empresas que não sejam PME´S nacionais.

20.  Cabendo a cada Estado definir o seu conceito de PME, os requisitos de qualificação de pequenas e médias empresas previstos no Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de junho, aplicam-se apenas no território nacional.

21.   Acresce ainda que, nos termos do n.º 2 deste diploma, a definição de PME e demais conceitos correspondem aos previstos na Recomendação n.º 2003/361/CE, da Comissão Europeia, de 6 de Maio, “aplicadas no interior da Comunidade e do Espaço Económico Europeu” (artigo 1.º), o que reforça o argumento da aplicação daquelas regras apenas às entidades nacionais.

22.  Por outro lado, o benefício em análise não é semelhante aos incentivos à internacionalização previstos nos Decretos-Leis n.ºs 249/2009, de 23 de setembro e 250/2009, de 23 de setembro, porque, in casu, trata-se de incentivos fiscais concedidos pelo Estado a micro e pequenas empresas do seu país.

23.  Contrariamente ao referido pelos Requerentes, os benefícios previstos nos n.ºs 3 e 4 do artigo 43.º do Código do IRS têm como objectivo beneficiar, incrementar e desenvolver as micro e pequenas empresas e não dar um benefício ao investidor.

24.  Aliás, da análise literal destas normas resulta que os requisitos estabelecidos são relativos à dimensão das empresas e não à qualidade dos empresários.

25.  Como se trata de uma norma excecional que estabelece uma exclusão tributária, deve evitar-se abusos que conduzam à concessão de uma vantagem excessiva face aos objetivos da norma, onerando o Estado Português com uma despesa fiscal com entidades não residentes.

26.  Assim, a Autoridade Tributária e Aduaneira limitou-se a cumprir o princípio da legalidade previsto no artigo 266.º da Constituição da República Portuguesa e concretizado nos artigos 55.º da Lei Geral Tributária e artigo 3.º do Código do Procedimento Administrativo.

27.  Mesmo que assim não se entenda, sempre competiria aos Requerentes o ónus de comprovar que preenchem os requisitos de que depende o benefício fiscal pretendido, o que não lograram fazer.

 

        No dia 25 de outubro de 2013, foi realizada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, tendo aí o Tribunal decidido que o incidente do valor do pedido seria decidido a final [cfr ata respetiva].

 

        As partes renunciaram à produção das alegações orais, previstas no n.º 2 do artigo 18.º do RJAT, tendo o Tribunal concedido o prazo sucessivo de 10 dias, para apresentação de alegações escritas.

 

        Nas suas alegações escritas apresentadas no mencionado prazo, os Requerentes reafirmam o peticionado no requerimento inicial e esclarecem, quanto à alegação da Requerida de não ter sido comprovado o cumprimento dos requisitos previstos no Anexo ao Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de junho, que foi junto ao pedido de pronúncia arbitral a informação financeira da sociedade em causa relativa ao ano de 2010 e, por comparação, do exercício de 2009, o que permite verificar que a empresa não ultrapassa os limiares definidos no aludido diploma.

        Juntou-se, ainda, uma declaração das Autoridades de Cabo Verde a confirmar aquela informação [cfr doc 3, junto com este pedido de pronúncia arbitral].

        Acrescentam ainda que a empresa exercia à data, e continua a exercer, uma atividade económica de exploração ….

        Em 2009 e 2010, após a aquisição do terreno, a empresa estava a aguardar o licenciamento pelo Município … para a construção do empreendimento, o que explica os resultados nulos e a inexistência de pessoas contratadas.

        Reitera ainda que a tese da Requerida de limitação do benefício a sociedades residentes e necessidade de certificação pelo IAPMEI não têm na letra da lei qualquer aderência ou correspondência verbal.

        A título exemplificativo, descreve-se o regime de reinvestimento do n.º 5 do artigo 10.º do CIRS onde o legislador definiu exatamente os limites territoriais, o que permite concluir que a lei poderia ter restringido o benefício a investimentos em empresas residentes e da UE mas optou por não o fazer.

        Conclui, por fim, que estamos perante um benefício ao investidor, independentemente da localização da sede da sociedade cujas partes sociais foram alienadas.

 

        Por sua vez, nas suas alegações finais, a Requerida considera que o artigo 43.º nºs 3 e 4 do CIRS exige a verificação de dois requisitos cumulativos: o primeiro, de natureza material, que é o preenchimento dos requisitos do anexo ao Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de novembro; o segundo, respeita à necessidade de o respectivo estatuto de micro ou pequena empresa ser certificado pelo IAPMEI.

        Acrescenta, neste sentido, que “analisando a ratio do regime consagrado no Código do IRS, concluímos, de forma peremptória que a intenção do legislador tributário foi a de subordinar a aplicação do regime previsto no n.º 3 do artigo 43.º do CIRS não apenas à verificação de pressupostos materiais mas também ao pressuposto formal consubstanciado na posse do certificado PME emitido pelo IAPMEI”.

        Por outro lado, para a comprovação destes requisitos, compete ao sujeito passivo apresentar os elementos necessários à comprovação e confirmação da sua situação tributária, nos termos do artigo 59.º n.º 2 do CPPT e 75.º n.º 3 da LGT (vide neste sentido o Acórdão do CAAD, Proc. n.º 40/2013-T, de 10 de Outubro).

        Ora, a certificação do IAPMEI só é emitida a entidades residentes em Portugal, o que, no caso concreto, impede a empresa cujas participações foram alienadas de obter aquele certificado.

        Em consequência, não se encontram verificadas as condições legais exigidas para que possa ser aplicada a exclusão prevista no n.º 3 do artigo 43.º do Código do IRS, pelo que improcede o pedido de pronúncia arbitral.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é competente.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades.

 

Incidente de valor da causa:

            Suscita a requerida a questão do valor da causa (arts 4º e ss, da resposta)

            Alega, em síntese, que foi indicada pelos requerentes como valor da causa, a importância de €256.208,78 mas sendo este o valor global do ato tributário de liquidação, só será objeto de impugnação 50% desse valor porquanto está em causa a aplicabilidade ou não do artigo 43º-3, do CIRS.

            Pede assim que seja fixado em metade de € 256.208,78 [€128.104.35], o valor da causa.

            Ouvidos, os requerentes pronunciaram-se, também em síntese, no sentido da manutenção do valor indicado no requerimento inicial, alegando que esse é o valor correspondente ao valor de 50% da tributação da mais-valia e é esse [€256.208,78], em consequência, o valor cujo reembolso é pedido.

            Cumpre apreciar e decidir este incidente.

            Do disposto no artigo 97º-A, do CPPT, aplicável ex vi artigo 29º-1/a), do RJAT, resulta que o valor do processo é, na verdade, correspondente à importância cuja anulação se pretende, sendo o da própria liquidação, se for pedida a anulação total ou o valor da parte impugnada, se se pretender apenas a anulação parcial.

            Ora dos autos resulta, por um lado, que vem pedida a anulação, por ilegalidade da liquidação de IRS 2010 nº 2013 … “(…) e consequentemente ser a AT condenada: a)  A proceder à anulação da referida liquidação de IRS de 2010 (…) no montante de 256.208,78 Euros (…)”

            Por outro lado e segundo foi também alegado pelos requerentes, o valor por ela indicado respeita ao valor da tributação adicional de mais-valias em 50%, sendo que a remanescente tributação em sede de IRS (50%), foi anteriormente liquidado e pago pela requerente, [“(…) conforme se vê na demonstração de acerto de contas (o valor de 235.721,25 euros, que inclui IRS sobre 50% da mais-valia, foi pago com a liquidação inicial)].

            Sendo esta a configuração do pedido, será com base nela [independentemente do seu fundamento] que deverá ser fixado o valor da causa.

            Daí que se decida indeferir o incidente, mantendo-se o valor da causa indicado pela requerente.

 

II. FUNDAMENTAÇÃO

MATÉRIA DE FACTO

Factos provados:

1.       Os Requerentes procederam à venda, no ano de 2010, da totalidade das ações da empresa C, com sede em Cabo Verde, pelo preço de € 2.992.892,00.

2.       As referidas ações foram adquiridas, em 2009, pelo preço de € 581.432,00.

3.       No anexo J da declaração de IRS modelo 3 de IRS, os Requerentes declararam 50% da mais-valia, no valor de €1.205.730,00 [(€ 2.992.892,00- € 581.432,00 = 2.411.460,00) x 0,5].

4.       Da liquidação resultou o pagamento de imposto à taxa especial de 20%, nos termos do n.º 4 do artigo 72.º do CIRS em vigor à data, no valor € 241.460,00.

5.       Através da Ordem de serviço interna n.º …, de 2012/07/02, da Inspeção Tributária, foi a declaração de IRS corrigida oficiosamente e considerada a parte da mais-valia não tributada (50%) no valor de €1.205.730,00, do qual resultou um imposto de € 240.916,92,00.

6.       Em consequência, os requerentes receberam em 8-3-2013 receberam a nota de liquidação adicional para pagamento do mencionado valor de IRS (€240.916,92) e juros compensatórios vencidos no valor de € 15.291,861, tendo como limite de pagamento o dia 10-4-2013 [cfr doc 1, junto com o requerimento inicial e processo administrativo];

7.       Os requerentes efetuaram o pagamento destas importâncias [que perfaziam um total de € 256.208,78] em 9-4-2013;

8.      A sociedade C, não cotada em bolsa,  apresentava, em 2010, um total de balanço anual de 568.652.031 escudos caboverdeanos (equivalente a € 5.157.140,00), um volume de negócios nulo e não tinha qualquer empregado, além dos seus administradores.

Motivação

A decisão da matéria dos factos provados baseou-se nos documentos mencionados e demais juntos e não impugnados e ainda no processo administrativo anexo a estes autos pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

Relevou, em especial, para prova dos factos elencados em 6., o doc nº 3 junto pelos requerentes com o seu pedido de pronúncia arbitral, documento que não foi impugnado pela requerida.

 

Não há factos não provados, com relevo para a decisão da causa.

 

II – FUNDAMENTAÇÃO (cont.)

O DIREITO

                1. A questão jurídica central consiste em saber qual a melhor interpretação do art. 43º, nº 3, do CIRS.

                O punctum saliens é relativo à inclusão ou não na previsão desta norma de benefício, as micro e pequenas empresas cuja sede se situe fora do território nacional.

                Por outro lado, no caso em apreço a empresa em questão preenche os requisitos do conceito de micro e pequena empresa, tal como ele vem a ser legislativamente construído.

                Reduzindo a complexidade da questão de Direito em causa, tudo está em saber se são relevantes quaisquer micro e pequenas empresas ou se apenas são relevantes para a aplicação deste benefício fiscal aquelas cuja sede se situe no território português.               

 

2. Do ponto de vista literal, a não distinção quanto à origem das mais-valias do prisma da sede da empresa a que respeitam não autorizaria a desconsideração das empresas sediadas foram do território português.

                E sabemos que já no Direito Romano se aconselhava, quanto à tarefa interpretativa, segundo esta máxima: ubi lex non distinguere, nec nos distinguere debemus…

                Se pudéssemos atender apenas ao elemento literal, a resposta a dar quanto ao Direito aplicável conduziria à procedência do pedido.

 

                3. A verdade, porém, é que é necessário também considerar outros elementos disponíveis de interpretação jurídica, sendo certo que esta é uma operação que vai muito para além da literalidade dos preceitos jurídicos, estando há muito tempo ultrapassada a conceção literalista da interpretação jurídico-fiscal.

                A interpretação das normas fiscais, hoje, é uma atividade que se sujeita – ainda que se assinalando algumas exceções, como em matéria fiscal-penal – aos cânones gerais da Metodologia da Interpretação do Direito.

                É isso mesmo o que se afirma no art. 11º, nº 1, da Lei Geral Tributária: “Na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam são observadas as regras e os princípios gerais de interpretação e aplicação das leis”.        

Ora, uma dessas orientações é precisamente recorrer a outros elementos disponíveis de interpretação jurídica, como sejam os elementos extraliterais: o histórico, o sistemático e o teleológico, para os quais aponta o art. 9º do Código Civil.

                              

4. Quer isto dizer que a interpretação do aspeto de se considerar as micro e pequenas empresas sediadas fora do território nacional deve levar em linha de conta a finalidade que se pretende com esta norma de benefício fiscal, a qual está adequada ao estímulo da atividade económica por parte de quem mais precisa desse mesmo estímulo pela redução dos custos fiscais, que são as micro e pequenas empresas.

                Se assim é, ainda que isso também possa beneficiar a economia nacional porque envolve alguém fiscalmente residente em Portugal, o certo é que o facto translativo ocorre fora do território português, do que se depreende a ausência de impacto económico que venha a beneficiar a economia portuguesa, pelo menos com a intensidade com que isso seria desejável se tal acontecesse com as empresas sediadas em território português.

E se no caso em apreço a ligação económica entre as economias portuguesa e cabo-verdiana até pode apreciável, imagine-se o que seria – partindo do pressuposto de que a melhor interpretação consideraria qualquer sede – aplicar esta norma a empresas situadas em qualquer lugar do mundo, sem o mínimo de conexão com a economia portuguesa e assim se inviabilizando o cumprimento da teleologia que se crê ter sido atribuída a esta norma de benefício fiscal.

Todavia, em nosso entender, a questão objeto deste processo não se coloca, no essencial, na ótica da empresa ou sociedade mas de quem é titular de partes do seu capital social quando as aliena.

Ou seja: tudo está em saber se os contribuintes portugueses quando tributados em sede de IRS podem ser diferenciados na tributação de mais-valias obtidas com a venda dessas participações consoante a localização das sedes das empresas respetivas se situem no estrangeiro ou em Portugal.

Vejamos mais de perto a questão, analisando primeiro o âmbito de incidência do artigo 43º-3, do CIRS e, de seguida, quais os requisitos exigíveis para o preenchimento legal do estatuto de micro, pequena e média empresa para os efeitos aqui em causa.

 

5. O âmbito de incidência do artigo 43º-3, do CIRS

 

Dispõe o artigo 43.º n.ºs 3 e 4, do CIRS:

3. O saldo referido no nº 1, respeitante às transmissões previstas na al. b) do n.º 1 do artigo 10.º, relativo a micro e pequenas empresas não cotadas em mercado regulamentado ou não regulamentado da bolsa de valores, quando positivo, é igualmente considerado em 50% do seu valor.

4. Para efeitos do número anterior entende-se por micro e pequenas empresas as entidades definidas, nos termos do anexo ao Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de novembro”.

 

O citado artigo 10º-1/b), dispõe:

1 - Constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de

a) (…)

b) Alienação onerosa de partes sociais, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, e de outros valores mobiliários e, bem assim, o valor atribuído aos associados em resultado da partilha que, nos termos do artigo 75.º do Código do IRC, seja considerado como mais-valia.

E no artigo 2º-1, do anexo ao DL nº 372/2007, define-se micro, pequena e média empresa:

1 - A categoria das micro, pequenas e médias empresas (PME) é constituída por empresas que empregam menos de 250 pessoas e cujo volume de negócios anual não excede 50 milhões de euros ou cujo balanço total anual não excede 43 milhões de euros.

 

A citada redação do n.º 3 do artigo 43.º, do CIRS, foi introduzida pela Lei n.º 15/2010, de 26 de julho, que revogou a isenção das mais-valias relativas à alienação de ações detidas pelo seu titular por mais de 12 meses e criou, além do regime em análise, um regime de isenção das mais-valias para pequenos investidores previsto no artigo 72.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (entretanto revogado pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro)[1].

 

Com estas disposições, o legislador estabeleceu um tratamento mais favorável, em sede de IRS, para as mais-valias obtidas na alienação de participações sociais relativas a micro e pequenas empresas não cotadas.

 Trata-se de uma norma de exclusão parcial de tributação com natureza de benefício fiscal.

Atentos exclusivamente à letra da lei, concluímos que o legislador não estabeleceu qualquer limitação quanto à residência da sociedade cujas participação ou participações geraram a mais-valia tributável.

De todo o modo sempre se referirá que a violação do direito comunitário [os requerentes falam na violação do direito de estabelecimento] estará afastada pois não tem relação directa com a situação.

Mas como lugar paralelo (se as alienações fossem de uma empresa da UE não sedeada em Portugal) parece-me que não haveria violação nem desse direito nem do direito de concorrência entre empresas, pois o campo de aplicação da redução a 50% é a esfera individual dos accionistas e não a da empresa. O que ocorreria ou poderia ocorrer era a afectação da concorrência fiscal entre países, pois seria certamente mais compensador criar a PME em Portugal do que noutro país da UE. Trata-se, porém aqui de igualdade a nível da concorrência fiscal e que não é assegurada pela UE (Cfr as diferentes taxas de IRC e de IVA etc., que vigoram nos países que integram a UE).

Por outro lado e como referem os Requerentes, se o legislador quisesse estabelecer limitação do benefício às participações em empresas nacionais , bastaria acrescentar “(...)relativo a micro e pequenas empresas com sede em território português(...)”.

Por outro lado ainda, a análise de outras disposições do Código do IRS, permite-nos concluir que, em situações similares, o legislador estabeleceu expressamente limites às normas que consagram exclusões ou tratamento fiscal mais favorável [cfr., v. g., o n.º 2 do mesmo artigo 43º, do CIRS: a exclusão de tributação das mais-valias relativas à alienação de imóveis beneficia apenas os residentes].

Isto é, não parece, numa primeira análise, haver razões para presumir como errada ou deficiente a forma como o legislador se expressou.

Ainda assim, determina o artigo 9.º do Código Civil, ex vi artigo 11.º da LGT, que a interpretação não pode cingir-se à letra da lei mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo. Caberá, assim, saber, no caso concreto, se uma interpretação no sentido de aplicação exclusiva às mais-valias obtidas na alienação de participações sociais de empresas residentes em território nacional resulta do espírito e pensamento do legislador, ressalvando sempre que qualquer sentido ou significado deve ter uma conexão com o texto da norma.

Vejamos.

Em primeiro lugar, é importante referir que a exclusão em causa só indirectamente constitui um benefício para as micro e pequenas empresas. Em primeira linha, o benefício serve exclusivamente ao sócio financiador do capital social da sociedade. E, quanto a este, não há dúvidas de que o benefício é concedido a um residente em território português que aqui pagará imposto pela mais-valia gerada.

Num segundo plano, parece evidente que também as micro e pequenas empresas beneficiam (como dissemos, indiretamente) desta isenção na medida em que se o sócio investe o seu capital numa empresa, a empresa reforça os seus capitais próprios e disponibilidades financeiras, obtendo, por isso, uma vantagem. Poderemos, em consequência, ser tentados a concluir que não faz sentido que este benefício seja criado para beneficiar micro e pequenas empresas não residentes em território português.

Este raciocínio - lógico e, eventualmente, defensável numa ótica de política fiscal - encontra objeções nos princípios comunitários da liberdade de estabelecimento e não discriminação que impedem que um benefício desta natureza seja aplicado exclusivamente às mais-valias resultantes da alienação de participações sociais de empresas que tenham a sua sede em Portugal.

Ainda que o legislador tivesse explicitamente determinado a aplicação deste benefício às empresas nacionais estaria a violar frontalmente o Direito Comunitário, tal como aconteceu com o já citado n.º 2 do artigo 43.º do CIRS[ “(…)o n.º 2 do artigo 43º do Código do IRS, aprovado pelo DL n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 109-B/2001, de 27 de Dezembro, que limita a incidência de imposto a 50% das mais-valias realizadas apenas por residentes em Portugal, viola o disposto no art. 56º do Tratado que Institui a Comunidade Europeia, ao excluir dessa limitação as mais-valias que tenham sido realizadas por um residente noutro Estado membro da União Europeia. (cfr Acórdão do STA de 16-1-2008, processo n.º 439/06, consultável em www.dgsi.pt)].

Mas aqui estava-se perante uma discriminação das pessoas singulares, entre residentes e não residentes em Portugal relativamente aos rendimentos idênticos obtidos no mesmo país.

De qualquer modo, vendo a questão sob a perspetiva dos contribuintes singulares e não da empresas de onde lhes provêm os rendimentos - que é como deve ser vista em sede de IRS - constituiria violação frontal do princípio constitucional da igualdade tributária distinguir, para efeitos de tributação, a origem dos seus rendimentos iguais: o obtido com a alienação de participações em empresas nacionais sujeito ao citado benefício fiscal, ao contrário do obtido pela alienação de iguais participações sociais em micro ou pequena empresa com sede no estrangeiro.

Ou seja: o mesmo rendimento de dois nacionais seria tributado de duas formas diferentes.

Vistas as coisas em diversas perspetivas e tendo também em conta a unidade do sistema jurídico (n.º 1 do artigo 9.º do Código Civil, ex vi artigo 11.º da LGT), não parece que se possa interpretar de forma restritiva o mencionado benefício.

 Visto na ótica da empresa – que não é, como se viu, a relevante para a conclusão sobre a tributação das mais valias - perante a ausência de um critério expresso na lei, concluir que apenas se aplica a micro ou pequenas empresas com sede em território nacional, parece constituir um salto dedutivo que não tem na letra da lei qualquer conexão.

 O critério que maior aproximação traz ao nosso país e ao seu desenvolvimento seria um critério material aplicável a todas as empresas que aqui exerçam uma atividade, independentemente da residência. Parece-nos, no entanto, que este tipo de juízos têm natureza claramente especulativa, indo contra as regras de interpretação definidas no n.º 2 do artigo 9.º.

Ainda com enfoque na empresa, também se concluiria não resultar da letra nem do espírito dos n.ºs 3 e 4 do artigo 43.º do Código do IRS qualquer limitação à exclusão parcial das mais-valias geradas com a alienação de participações, em resultado da residência da sociedade.

Todavia, insiste-se, tratando aqui de tributação em sede de IRS, releva essencialmente para o efeito, a localização dos sujeitos passivos e os rendimentos por eles obtidos, independentemente de provirem ou não do estrangeiro, desde que não haja normas internacionais ou comunitárias aplicáveis, naturalmente.

 

6. Cumprimento dos requisitos de micro ou pequena empresa

 

Caberá, neste aspeto e em primeiro lugar, verificar se da aplicação dos critérios definidos na lei relativos à condição de micro ou pequena empresa, resultará que o citado benefício fiscal em sede de tributação de IRS (mais-valias) só pode ser aplicado a entidades residentes em território português certificadas como tal pelo IAPMEI, nos termos do Decreto-Lei nº 372/2007, de 6 de novembro, por expressa remissão do n.º 4 do artigo 43.º.

Entende-se decididamente que não.

Com efeito, o n.º 4 do artigo 43.º não remete para o Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de novembro, mas, expressamente, para o seu anexo.

“O que o legislador fiscal quis no n.º 4 do artigo 43.º do CIRS foi apenas importar, para efeitos de aplicação do n.º 3, os conceitos de micro e de pequena empresa e não importar um meio de prova da condição de PME. O desiderato do legislador é o de que a remissão seja feita especificamente para o Anexo, por ser no anexo que se contêm as definições de micro empresa e de pequena empresa.

Ao contrário do que pretende a Requerida, a lei não exige qualquer requisito formal consistente na apresentação da certificação eletrónica. Desde logo, seria estranho, como notam os requerentes, que fosse exigido a determinado sujeito passivo um documento que não está na sua disponibilidade obter, nada relevando para o efeito, como é evidente, a pessoa em questão ter sido ou não sócio-gerente da empresa em causa (…).

Ou seja, os Requerentes não precisam, pelas razões supra explanadas, de apresentar a certificação prevista no Decreto-Lei n.º 372/2007. Podem provar a qualidade de PME por qualquer outro meio adequado para o efeito, mas não estão dispensados dessa prova…” [Cfr o Acórdão Arbitral - CAAD - Proc n.º 40/2013-T]

A obrigatoriedade de certificação circunscreve-se ou limita-se aos fins [que não são os que aqui estão em causa] indicados no n.º 3 do artigo 3.º do DL n.º 372/2007, sendo que a remissão efetuada pelo artigo 43º, do CIRS é limitada ao anexo deste diploma.

Daqui resulta a primeira conclusão óbvia: a de que não é necessário ou exigível para o a verificação do cumprimento deste requisito legal que a  entidade obtenha a certificação mas tão só e  apenas o cumprimento dos requisitos previstos no Anexo ao citado DL nº 372/2007, ou seja, que se comprove que a empresa em causa emprega menos de 250 pessoas, o seu volume de negócios anual não excede 50 milhões de euros ou o balanço total anual não excede 43 milhões de euros.

In casu, os requererentes venderam, em 2010, com mais-valia, participações da sociedade comercial, não cotada, C, com sede em Cabo Verde, que apresentava, nesse ano:

- um total de balanço anual de 568.652.031 escudos caboverdeanos [€5.157.140,00];

- volume de negócios nulo e

- não empregava qualquer trabalhador, para além dos seus administradores.

 

Em conclusão: a sociedade citada preenche (ou preenchia à data dos factos), para além, naturalmente, o critério de empresa, os demais requisitos previstos no anexo ao citado Dec-Lei nº 372/2007, para ser qualificada como micro/pequena empresa.

O que conduz à procedência integral do pedido de anulação das liquidações impugnadas.

 

5. O pedido de pagamento de juros indemnizatórios

 

                A par da declaração da ilegalidade da liquidação, os Requerentes peticionam ainda que lhes seja reconhecido o direito a juros indemnizatórios, matéria que se insere no âmbito das competências deste Tribunal, conforme expressamente prevê o n.º 5 do artigo 24.º do RJAT.

                Determinada a ilegalidade da liquidação e a sua consequente anulação e encontrando-se paga a dívida tributária indevida, o direito a juros indemnizatórios subsiste, sempre que tal decorra de erro imputável aos serviços da AT, conforme prevê o n.º 1 do artigo 43.º da Lei Geral Tributária (LGT).

                No presente caso, está-se perante uma liquidação determinada pela Autoridade Tributária e que se veio a revelar legalmente injustificada.

                Ou seja: ocorreu não por qualquer ato ou procedimento, ainda que desculpável ou involuntário dos sujeitos passivos, mas por um entendimento erróneo sobre os pressupostos da liquidação.

                Tanto basta para se considerar verificado o erro imputável aos serviços com a consequente obrigação de pagamento de juros indemnizatórios sobre a importância indevidamente liquidada e paga, com contagem a partir do dia seguinte ao do pagamento indevido até à data da emissão da respetiva nota de crédito – arts 43º- 1 e 2, da LGT e 61º, do CPPT.

                Assim, com base nas disposições dos n.ºs 1 e 2 do artigo 43.º da LGT e artigo 61.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), são devidos juros indemnizatórios, à taxa legal, sobre a importância indevidamente liquidada e paga, contados a partir do dia seguinte ao do pagamento indevido até à data da emissão da respetiva nota de crédito.

 

6. Decisão 

 

    De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

a)                     Julgar procedentes os pedidos, objeto destes autos, de anulação da liquidação de IRS relativo ao ano de 2010 (€240.916,92) e juros compensatórios (€15.291,86), tudo perfazendo a importância de € 256.208,78;

b)                    Julgar procedente o pedido de juros indemnizatórios formulado, condenando-se, em consequência, a Autoridade Tributária e Aduaneira na restituição dos citados valores, acrescidos de juros contados desde 9-4-2013, à taxa legal, até integral e efetivo reembolso.

 

7. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no art. 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o já fixado valor de € 256.208,78.

 

8. Custas

 

Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 4.896,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Lisboa, 27 de janeiro de 2014

 

Os Árbitros

 

 

 

(José Poças Falcão)

 

 

 

 

(Jorge Bacelar Gouveia)

 

 

 

 

(Amândio Amadeu Fernandes Silva)

 

 

 

 



[1] O Orçamento do Estado para o ano de 2013 eliminou a isenção para mais-valias até 500 euros, designadamente, com a compra e venda de ações. Assim, independentemente do valor, toda a mais-valia passou a pagar imposto.